I - O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da Constitucionalidade das normas dos artigos 10.º, n.os 2, 3 e 4, e 11.º do Decreto 293/V da Assembleia da República, que aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e lhe foi enviado para promulgação.
O pedido vem fundamentado nos seguintes termos:
O artigo 10.º, n.º 2, altera o regime constante do Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril (artigo 7.º, n.º 2), elevando de 3500 para 4000 e de 1750 para 2000 o número de recenseados, ou sua fracção, para eleger um deputado em cada um dos círculos eleitorais em que se divide a Região. Tal matéria foi objecto do Decreto da Assembleia da República n.º 99/V, cujo artigo 1.º foi declarado inconstitucional, em sede de fiscalização preventiva, por violação dos artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2, da Constituição da República pelo Acórdão 183/88 do Tribunal Constitucional, de 3 de Agosto de 1988. Estava em causa quanto a tal preceito a violação do princípio da representação proporcional por aumento do número de círculos uninominais.
Desta feita, porém, o n.º 3 do artigo 10.º vem estipular que «cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados». Procurou-se, desta forma, contornar a inconstitucionalidade oportunamente declarada de norma idêntica à que ora consta do n.º 2 do artigo 10.º Todavia, quanto à aplicação das duas referidas disposições, continuam a poder suscitar-se dúvidas de constitucionalidade em face dos mesmos artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2, da Constituição da República. Com efeito, poderemos, com esta solução, estar ainda mais distantes do respeito do princípio da proporcionalidade na conversão de votos em mandatos. E isto na medida em que um número reduzido de eleitores passa a eleger sempre dois deputados. De facto, podem estar a criar-se discrepâncias significativas com círculos maiores que beneficiem de idêntica representação. Ora, é necessário, para que haja proporcionalidade, estabelecer uma razão sensivelmente uniforme entre o número de eleitores e o número de eleitos, aplicável às diversas circunscrições.
No n.º 4 do artigo 10.º estipula-se, por outro lado, que «haverá mais um círculo correspondendo aos cidadãos portugueses nascidos na Região e residentes fora dela em território nacional ou estrangeiro, o qual elegerá dois deputados».
Neste caso, as dúvidas têm a ver com a consideração do critério do nascimento, e não da residência, para a elaboração de um recenseamento específico para a eleição da Assembleia Regional - além do recenseamento normal para a eleição de órgãos nacionais. Poderão estar neste ponto em causa princípios fundamentais do Estado democrático: como o da soberania popular e o da sua unidade e indivisibilidade (artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da Constituição da República), e bem assim o da unidade do Estado, explicitado no artigo 6.º, n.º 1, da Constituição da República e presente no n.º 3 do artigo 228.º da lei fundamental.
As dúvidas que se colocam quanto ao artigo 10.º, n.º 4, do decreto da Assembleia da República são extensíveis ao artigo 11.º, onde se define quem tem capacidade eleitoral activa.
Deste modo, suscita-se a dúvida de saber se os n.os 2 e 3 do artigo 10.º do decreto acima identificado se conforma com os artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2, da Constituição da República e se o n.º 4 do artigo 10.º e o artigo 11.º estão de acordo com os artigos 2.º, 3.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, e n.º 3 do artigo 228.º da Constituição da República.
A referência à norma do artigo 228.º, n.º 3, da Constituição, constitui lapso manifesto: querer-se-á antes aludir à norma do artigo 227.º, n.º 3, que articula a autonomia regional com a integridade da soberania do Estado.
Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, veio apenas oferecer o merecimento dos autos.
II - As normas.
As normas cuja apreciação se requer são as dos artigos 10.º, n.os 2, 3 e 4, e 11.º do Decreto 293/V da Assembleia da República. Inscrevem-se no título II «Órgãos regionais», capítulo I «Assembleia Legislativa Regional», e dispõem assim:Art. 10.º - 1 - .....................................................................................................
2 - Cada um dos círculos referidos no número anterior elege um deputado por cada 4000 eleitores recenseados ou fracção superior a 2000.
3 - Cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados.
4 - Haverá ainda mais um círculo, compreendendo os cidadãos portugueses nascidos na Região e residentes fora dela, em território nacional ou estrangeiro, o qual elegerá dois deputados.
5 - ....................................................................................................................
Art. 11.º - 1 - São eleitores nos círculos referidos no n.º 1 do artigo anterior os cidadãos portugueses inscritos no recenseamento eleitoral da respectiva área.
2 - São eleitores no círculo referido no n.º 4 do artigo anterior os cidadãos portugueses residentes na área desse círculo e que tenham nascido no território da região.
Analisar-se-á o sentido e alcance das normas transcritas, indagando da sua conformidade ou não à Constituição.
III - A fundamentação.
1 - Previamente, deverá levantar-se a questão de saber se o regime eleitoral regional pode integrar os estatutos das regiões autónomas ou se, ao contrário, ali se faz valer a reserva de lei comum da Assembleia da República [Constituição da República Portuguesa, artigo 167.º, alínea j)].
É que não só os estatutos têm uma natureza marcadamente organizatória, como a sua aprovação (e alteração) no Parlamento depende da iniciativa exclusiva das assembleias legislativas regionais (Constituição da República Portuguesa, artigo 228.º, n.os 1 e 4).
As normas sobre eleições regionais, regulando a escolha e composição dos órgãos próprios das regiões, apresentam uma vertente organizatória que afirma a sua conexão funcional com a matéria do Estatuto.
A eventual objecção à inclusão de normas sobre eleições em lei estatutária residirá na recusa da identidade da sua força jurídica e do seu regime de aprovação e alteração (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., 1985, nota V ao artigo 228.º e nota III ao artigo 233.º; cf., ainda, Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, p. 302, e «Estatuto da Região Autónoma da Madeira e eleição da Assembleia Regional, anotação ao Acórdão 183/89 do TC», in O Direito, ano 121, 1989, II, pp. 355 e segs.).
Porém, a afirmação da possibilidade de os estatutos integrarem normas versando matéria eleitoral não implica necessariamente uma identidade de força jurídica e de regime de aprovação e alteração. Mas a resposta a este problema já não tem aqui oportunidade.
2 - A questão da constitucionalidade das normas do artigo 10.º, n.os 2 e 3, do Decreto 293/V.
No quadro das disposições estatutárias que regulam a eleição para a Assembleia Legislativa Regional, o artigo 10.º do Decreto 293/V vem definir os círculos eleitorais e os critérios que determinam o número de deputados a eleger: a cada município corresponde um círculo, que elege um deputado por cada 4000 eleitores recenseados ou fracção superior a 2000 (n.os 1 e 2).
Haverá sempre, pelo menos, dois deputados por cada círculo (n.º 3).
A determinação da norma do artigo 10.º, n.º 3, do Decreto 293/V, de que «cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados», não convoca, em primeira mão, ao contrário do que se pretende no pedido, o princípio da representação proporcional, mas um outro, o princípio da igualdade do sufrágio ou da igualdade eleitoral dos cidadãos.
Com efeito, o problema da igualdade do voto na repartição dos mandatos tem, em primeira linha, que ver com o princípio da igualdade, na sua dupla determinação de atribuição de igual peso numérico ao voto (Zählwert) e de igual valor quanto ao resultado (Erfolgswert), e não com o princípio da representação proporcional. E tanto é assim que, em sistemas jurídicos onde foi deferida ao legislador ordinário a tarefa de conformar os princípios básicos do direito eleitoral, tem a jurisprudência constitucional entendido que a igualdade de voto na repartição dos mandatos não depende em grau decisivo da adopção do sistema maioritário ou proporcional de representação, sendo compatível com qualquer dos dois (é o caso do direito constitucional alemão, conforme informa Konrad Hesse, Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland, 16.ª ed., Heidelberga, 1988, p. 57, máxime nota 14, referindo a jurisprudência constitucional; cf., igualmente, Richter/Schuppert, Casebook Verfassungsrecht, Munique, 1987, pp. 451 e segs.).
A observância do princípio da igualdade do voto na repartição dos mandatos não coenvolve a adopção de um ou outro dos sistemas de representação.
Todavia, o legislador constitucional português optou pelo sistema de representação proporcional e ligou-o de tal modo à ideia de genuinidade da representação democrática que o erigiu em limite material de revisão da Constituição [Constituição da República Portuguesa, artigo 288.º, alínea h)].
Será, pois, no quadro do sistema de representação por que se optou que terá de ser aferido o grau de respeito pelo princípio da igualdade do sufrágio.
A divisa de Mirabeau, de que «o Parlamento deve ser um mapa reduzido do povo», é um forte elemento caracterizador da tradição do constitucionalismo republicano. Na Constituição Portuguesa de 1976, a ideia de representação no Parlamento como «espelho da sociedade política» (Leibholz) tem primazia na conformação do sistema eleitoral, determinando-lhe um figurino de representação proporcional e avultando mesmo sobre qualquer outra ideia, nomeadamente o desiderato de obtenção de maiorias estáveis.
Sobre o sistema eleitoral na Constituição, afirmam G. Canotilho e Vital Moreira:
«de acordo com a CRP, o sistema eleitoral é um método para obter uma mais fiel representação do universo político-ideológico do País, e não um instrumento para fabricar maiorias parlamentares a todo o custo. O sistema proporcional há-de garantir duas coisas: a) que todas as correntes políticas minimamente significativas obtenham representação, fazendo eleger candidatos seus; b) que as várias correntes políticas obtenham representação em proporção da sua quota de votos, sem discrepâncias significativas» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., Coimbra, 1985, p. 21).
O sistema de representação proporcional exige, por princípio, círculos eleitorais plurinominais. Onde o sufrágio for uninominal, o sistema de representação será necessariamente maioritário. A propósito afirmam G.
Canotilho e Vital Moreira: «o sistema proporcional exige listas plurinominais, a fim de distribuir a pluralidade de deputados proporcionalmente aos votos de cada força concorrente. E não basta que cada círculo eleja mais do que um deputado; torna-se necessário que eleja um número de deputados suficientemente grande para ser divisível de modo a atribuir mandatos a todas as forças políticas que obtenham uma percentagem significativa de votos [...]» (ob. cit., p. 162).
Por sua vez, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 183/88, (Diário da República, 1.ª série, n.º 190, de 18 de Agosto de 1988), considerou, mesmo face às especificidades das regiões autónomas, «a existência de círculos uninominais contrária ao princípio da representação proporcional fixado, em geral, no n.º 5 do artigo 116.º da Constituição e, em especial para as assembleias regionais, n.º 2 do artigo 233.º».
A norma do artigo 10.º, n.º 3, do Decreto 293/V, ao determinar que «cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados», não vem senão obviar à inconstitucionalidade decretada pelo Tribunal Constitucional - resultante da violação do princípio da representação proporcional -, que decorreria se se deixasse funcionar pura e simplesmente, sem qualquer correctivo, a regra da correspondência de votos a mandatos, constante do artigo 10.º, n.º 2, naqueles casos em que tal regra de correspondência implicasse a existência de apenas um mandato por círculo.
Assim, a questão que se põe é a do modo de funcionamento do princípio da igualdade do voto na repartição dos mandatos, no quadro de um sistema eleitoral estruturado com base no princípio da representação proporcional.
Sublinhe-se que a realização do desiderato da igualdade do voto na repartição dos mandatos obteria a sua melhor concretização com a existência de apenas um círculo eleitoral: num sistema de círculo eleitoral único maximizar-se-ia a proporcionalidade e a igualdade. À medida que se retalha o universo eleitoral em círculos de dimensões menores, vai-se distorcendo a proporcionalidade e diminuindo a igualdade de valor quanto ao resultado do voto.
A Constituição, porém, não impõe uma proporcionalidade absoluta.
A subdivisão do universo eleitoral numa pluralidade de círculos, só por si, não vai contra o princípio da proporcionalidade na conversão de votos em mandatos. Decerto que há que reconhecer que, se se levar longe de mais tal subdivisão - de tal modo que a cada círculo venha a corresponder um número demasiado escasso de mandatos, insusceptível de reflectir o universo de opções políticas dos cidadãos eleitores -, então será a própria ideia de representação proporcional a ser manifestamente desfigurada.
E se, nessa estratégia de pulverização, os círculos a que coubesse apenas um mandato - em virtude do funcionamento sem correctivos da regra da correspondência de votos a mandatos - viessem a ser, em homenagem à salvaguarda do sistema proporcional e à sua exigência de círculos plurinominais, beneficiados com a atribuição de mais mandatos, poder-se-ia mesmo deparar com um qualquer expediente de «engenharia eleitoral», contrário ao princípio da igualdade do voto na repartição dos mandatos.
Haveria aí uma sobrevalorização do voto nesses pequenos círculos.
No entanto, esse desvirtuamento da igualdade de valor quanto ao resultado do voto teria de ser patente, de tal modo que configurasse uma verdadeira «engenharia eleitoral». Nesse caso, poderia um juízo sobre a conformidade ao princípio constitucional da igualdade resultar num julgamento de inconstitucionalidade - e aí seria já o princípio da proporcionalidade na conversão de votos em mandatos a ser também posto em causa.
Mas a apreciação dos limites de organização do universo eleitoral haverá de ter em conta as especificidades desse universo, sendo também no plano da sua avaliação concreta que se concluirá ou não pela razoabilidade das soluções legislativas, ou seja, pela existência ou não de desfiguração do modelo constitucional-eleitoral.
Ora, se à luz dessas especificidades se não mostra desfigurado o sistema de representação proporcional pela existência de pequenos círculos a que caiba um número escasso de mandatos, então os círculos plurinominais deverão ser aí vistos como condição de salvaguarda do princípio da representação proporcional. E a igualdade do voto na repartição dos mandatos terá de ser aferida nos quadros desse sistema.
É que o sistema proporcional destina-se a garantir que o espectro de opções dos eleitores seja fielmente retratado no quadro dos mandatos resultantes. É inegável a adequação do princípio da representação proporcional à democracia partidária consagrada na Constituição e à dimensão pluralista que lhe vai ligada.
2.1 - Na situação em apreço concorrem especificidades, designadamente geográficas, que haverão de ser ponderadas num juízo de constitucionalidade.
Mesmo sem atribuir um valor determinante à possibilidade de «argumentação a partir do resultado» (Folgenorentierung), deve chamar-se a atenção para que, no caso vertente, atendendo ao último recenseamento eleitoral, se chegará à existência de apenas três círculos (Porto Moniz, Porto Santo e São Vicente) em que a uninominalidade haja de ser corrigida através do funcionamento da norma do artigo 10.º, n.º 3, do Decreto 293/V.
Confronte-se, para tanto, o seguinte mapa:
Actualização do recenseamento eleitoral de 1990, relativo aos eleitores inscritos em Maio de 1990, nos concelhos da Região Autónoma da Madeira (ver documento original) Face ao número de eleitores recenseados, a aplicação das normas do artigo 10.º, n.os 2 e 3, do Decreto 293/V levaria à seguinte distribuição de deputados: Calheta - 2; Câmara de Lobos - 5; Funchal - 23; Machico - 4; Ponta do Sol - 2; Porto Moniz - 2; Porto Santo - 2; Ribeira Brava - 2; Santa Cruz - 5;
Santana - 2, e São Vicente - 2.
Observa-se, assim, que:
a) A ratio média deputado-eleitor, no conjunto da Região, é de 1/3756;
b) A ratio média, nos círculos beneficiados, é de 1/2963 em São Vicente, de 1/1682 em Porto Santo e de 1/1461, em Porto Moniz.
Mesmo ali, onde a disparidade entre a ratio média e a ratio dos círculos beneficiados é maior, não chega a atingir a relação de 1/3.
Sublinhe-se que o número total de eleitores dos círculos beneficiados é de 12835, num total de 191590 eleitores (menos de 7%).
Por outro lado, o aumento do número de deputados por aplicação da regra do artigo 10.º, n.º 3, é de apenas três num total de 51, sendo certo que um dos círculos - o de São Vicente - se aproxima de um número de eleitores capaz de eleger dois deputados sem o funcionamento daquela regra (6001 - 5927 = 74).
A sobrerrepresentação do voto nos três círculos eleitorais beneficiados é, pois, insignificativa no conjunto do eleitorado da Região Autónoma da Madeira. E essa sobrerrepresentação vem evitar a entorse à representação plural que resultaria de deixar sem expressão o resto eleitoral que não tivesse contribuído para a eleição do representante único (o que o Tribunal Constitucional não admitiu no Acórdão 183/88). Aí não vai implicada uma constrição inconstitucional da igualdade eleitoral.
Deste modo, o legislador, ao editar as normas do artigo 10.º, n.os 2 e 3, não se afastou de uma solução de razoabilidade quanto ao respeito pelo princípio da igualdade do voto na repartição dos mandatos no quadro de um sistema de representação proporcional.
2.2 - A questão de constitucionalidade das normas em apreço poderá ainda colocar-se na perspectiva da sua ligação à norma do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto 293/V, indagando se do funcionamento daquelas normas no quadro de uma repartição do universo eleitoral em que a cada município corresponde um círculo não sai infringido o princípio da proporcionalidade na conversão de votos em mandatos, em si mesmo considerado.
É verdade que a regra da coincidência dos círculos eleitorais com os municípios, consagrada no artigo 10.º, n.º 1, não se inclui no âmbito do pedido de apreciação de inconstitucionalidade.
Mas do que se trata é ainda de avaliar, no quadro em que operam, as normas do artigo 10.º, n.os 2 e 3. O que é saber se o funcionamento dessas normas no âmbito da repartição do universo eleitoral determinado pelo artigo 10.º, n.º 1 - e conduzindo à existência de um considerável número de círculos a que é distribuído um escasso número de mandatos -, é susceptível de pôr em causa o princípio da representação proporcional.
As especificidades, designadamente geográficas - aquelas que estão na base da autonomia regional -, não deixam de interferir na configuração concreta dos círculos eleitorais, justificando a coincidência destes com os municípios (um dos municípios, Porto Santo, é ele próprio uma ilha). É, aliás, uma coincidência com tradição no nosso regime eleitoral-democrático, quanto à eleição em causa, ao que não é estranho o carácter reduzido do espaço eleitoral.
A configuração do universo eleitoral nos termos em que determina a norma do artigo 10.º, n.º 1, do Decreto 293/V não se afigura, pois, irrazoável nem constitucionalmente inadmissível.
E se o sistema eleitoral resultante das normas em apreço conduz à existência de sete círculos de escassa dimensão - com apenas dois deputados - num conjunto de 11 círculos, também é verdade que àqueles sete círculos correspondem 14 deputados, sendo os restantes 37 eleitos em círculos de média ou grande dimensão (tendo em conta que, em face da reduzida dimensão do universo eleitoral, os círculos a que correspondem quatro e cinco deputados hão-de ter-se por círculos médios).
No quadro de um sistema de repartição dos círculos eleitorais por municípios, a diminuição do número mínimo de eleitores necessários à eleição de cada deputado poderia constituir um modo de evitar a existência de círculos uninominais. Mas isso implicaria uma sobrecarga do número de deputados regionais quando, atento o universo eleitoral em causa, o divisor a que se refere a norma do artigo 10.º, n.º 2, se não afigura uma opção do legislador passível de censura constitucional.
A solução que é dada pelas normas do artigo 10.º, n.os 2 e 3, no quadro do n.º 1 do artigo 10.º, ainda se contém, pois, dentro de limites toleráveis, não resultando daí desfigurado o princípio da proporcionalidade da conversão de votos em mandatos de tal modo que resulte num julgamento de inconstitucionalidade.
3 - A questão da constitucionalidade das normas dos artigos 10.º, n.º 4, e 11.º do Decreto 293/V.
Ao definir os círculos eleitorais para a eleição da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, o artigo 10.º do Decreto 293/V dispõe assim:
1 - Cada município constitui um círculo eleitoral, designado pelo respectivo nome.
2 - ....................................................................................................................
3 - ....................................................................................................................
4 - Haverá ainda mais um círculo, compreendendo os cidadãos portugueses nascidos na Região e residentes fora dela, em território nacional ou estrangeiro, o qual elegerá dois deputados.
O artigo 11.º, n.º 2, define os sujeitos com capacidade eleitoral activa no círculo a que se refere o artigo 10.º, n.º 4. A identidade do problema fará com que as duas normas mereçam o mesmo juízo de constitucionalidade ou inconstitucionalidade.
Suscita-se, assim, a questão de saber se, face à Constituição da República, é possível ou não atribuir aos cidadãos não residentes na Região Autónoma da Madeira, mas aí nascidos, o direito de voto para a Assembleia Legislativa Regional. O que é saber se o Estatuto, sujeito que é à Constituição (artigo 3.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa), pode ou não definir um círculo eleitoral de «fora da Madeira».
A consideração das normas em apreço orientar-se-á, desde logo, a um primeiro critério: o que é dado pelo recorte constitucional da autonomia das regiões e a determinação de suas linhas de influência.
Atende-se, pois, nas normas dos artigos 6.º e 227.º, n.º 3, da Constituição da República:
Art. 6.º - 1 - O Estado é unitário e respeita na sua organização os princípios da autonomia das autarquias locais e da descentralização democrática da Administração Pública.
2 - Os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autónomas dotadas de estatutos político-administrativos e de órgãos de governo próprio.
Art. 227.º ...
3 - A autonomia político-administrativa regional não afecta a integridade da soberania do Estado e exerce-se no quadro da Constituição.
Afirmam-se, ali, o princípio constitucional geral da unidade do Estado e a coexistência da autonomia regional com a integridade da soberania do Estado.
A Constituição garante a descentralização política das regiões, mas proíbe qualquer forma de pluralismo estadual, de autonomia constitucional. Como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira, «as regiões [...] não possuem nenhum dos atributos e dos poderes inerentes à soberania do Estado [...]».
O problema que se põe é o de saber se a criação de um círculo eleitoral, nos termos do artigo 10.º, n.º 4, do Decreto 293/V, com a atribuição do direito de voto a cidadãos não residentes na Madeira, em função do critério do nascimento na Região, é compatível com a cidadania, como status único de ligação dos indivíduos à República, se, com isso, se põe ou não em causa a estrutura unitária da comunidade política.
As normas em apreço supõem a existência de novas categorias jurídico-políticas, como as de «povo madeirense» ou «cidadão madeirense», dando lugar à atribuição de direitos políticos a um determinado conjunto de cidadãos em razão do seu nascimento na Região da Madeira. Assumem o entendimento de uma comunidade nacional «fragmentada», de todo incompatível com a estrutura constitucional do Estado, operam em sentido contrário ao que Rudolf Smend chama «efeito de integração».
As noções de «povo madeirense» ou de «cidadão madeirense» não se enquadram nos limites da autonomia, tal como é constitucionalmente definida.
As normas de competência atributivas de capacidade eleitoral activa aos cidadãos nascidos na Região Autónoma da Madeira, mas aí não residentes, configuram uma situação idêntica à que liga os cidadãos ao Estado. Trata-se, face à Constituição, de um espúrio vínculo de cidadania.
A propósito escreve Jorge Miranda: «admitir o voto de cidadãos não residentes equivaleria a criar uma qualidade pessoal, uma espécie de subcidadania regional, incompatível com a unidade da cidadania portuguesa (artigo 4.º) e com a unidade do Estado» (cf. «O direito eleitoral na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., Lisboa, 1978, p. 484).
A introdução no ordenamento jurídico de novas categorias, como a de «povo da Madeira» ou de «cidadão da Madeira», ultrapassa o recorte constitucional da autonomia, ao dotar as regiões de características de estadualidade que a Constituição lhes não reconhece.
3.1 - As normas em apreço são ainda estranhas à caracterização das regiões autónomas como pessoas colectivas territoriais de direito público interno. As regiões são entidades jurídicas territoriais, dentro do Estado, têm no seu território o limite dos seus poderes. «A colectividade que lhes serve de substrato pessoal é o conjunto dos cidadãos residentes [...]» (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., Coimbra, 1985, p. 351).
A admissão de deputados eleitos para a Assembleia Regional por cidadãos residentes fora da Região Autónoma é incompatível com a sua natureza territorial.
É verdade que a Constituição não afirma expressamente o critério da residência na determinação do colégio eleitoral regional. Mas, como afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira, «não precisava de dizê-lo: a assembleia representa, a nível regional, os cidadãos da RA e, sendo esta uma pessoa colectiva territorial infra-estadual, os cidadãos da RA são os cidadãos aí residentes» (cf. ob. cit., p. 375).
A interpretação do silêncio da Constituição, naquele plano, não poderá ser indiferente às normas constitucionais expressas sobre o colégio eleitoral das autarquias: os eleitores dos órgãos de poder local são os residentes na área de cada freguesia, concelho e região administrativa, que, tal como as regiões autónomas, são entidades jurídicas colectivas territoriais (cf. artigos 246.º, n.º 1, 251.º, 252.º e 260.º da Constituição).
O território é, pois, fundamento e ponto de referência da autonomia regional (artigo 227.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). As características de territorialidade e infra-estadualidade das regiões implicam que o território seja o quadro limite da actuação dos seus poderes.
A Comissão Constitucional já teve ocasião de se pronunciar sobre a questão em análise.
Fê-lo, primeiro, no parecer 26/80, ao apreciar a constitucionalidade do decreto da Assembleia da República n.º 322/I, que continha o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira; depois, no parecer 11/82, ao apreciar a constitucionalidade do Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto (Lei Eleitoral para a Assembleia Regional dos Açores).
Em ambos os casos, a Comissão considerou inconstitucionais normas de conteúdo similar às que aqui são objecto de apreciação, havendo por violados os princípios da unicidade da cidadania e da unidade do Estado (cf. pareceres da Comissão Constitucional n.os 26/80 e 11/82, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 13.º, pp. 183 e segs., e vol. 19.º, pp. 57 e segs., respectivamente).
E no Acórdão 136/90 do Tribunal Constitucional (Diário da República, 1.ª série, n.º 126, de 1 de Junho de 1990, p. 2425) pode ler-se:
[...] Na verdade, nos termos da constituição vigente, as regiões autónomas são entidades públicas territoriais ou de base territorial, sendo a colectividade que lhes serve de substracto pessoal constituída por todos os cidadãos portugueses que aí residam, independentemente do seu lugar de nascimento.
Não existe uma «subcidadania» regional determinada pelo lugar de origem (nascimento na respectiva região autónoma).
Sendo as regiões entes colectivos territoriais de direito interno e o seu substracto pessoal composto por residentes, só os residentes poderão participar no «contrato político» em que consiste a eleição para a Assembleia Legislativa Regional. Como salienta Böckenförde, a autorização democraticamente concedida aos órgãos políticos exige continuidade e assume a forma de garantia e responsabilidade, funda um sistema de imputação jurídica (cf. «Democracia e rappresentanza», in Quaderni constituzionali, ano X, n.º 2, 1985, p. 249).
3.2 - As normas dos artigos 10.º, n.º 4, e 11.º, n.º 2, do Decreto 293/V violam, pois, desde logo, as normas constantes dos artigos 4.º (unidade da cidadania), 6.º (forma unitária do Estado) e 227.º, n.os1 e 3 (incidência territorial da autonomia, limitação da autonomia pela integridade da soberania do Estado), da Constituição da República.
Justifique-se, por último, a não consideração da norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto 293/V, que, por lapso manifesto, constitui também objecto do pedido: o enunciado desta norma é, evidentemente, estranho à questão de constitucionalidade ali suscitada.
IV - A decisão.
Nestes termos, o Tribunal decide:a) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas do artigo 10.º, n.os 2 e 3, do Decreto 293/V da Assembleia da República;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas dos artigos 10.º, n.º 4, e 11.º, n.º 2, do mesmo decreto.
Lisboa, 22 de Janeiro de 1991. - Maria da Assunção Esteves - Fernando Alves Correia - Messias Bento - Vítor Nunes de Almeida - Alberto Tavares da Costa - Armindo Ribeiro Mendes [vencido, quanto à decisão da alínea a), nos termos da declaração de voto junta] - Antero Alves Monteiro Dinis [vencido, quanto à decisão da alínea a), pelas razões constantes da declaração de voto do Sr.
Conselheiro Ribeiro Mendes] - José de Sousa e Brito [vencido, quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração junta] - António Vitorino [vencido, quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto junta] - Luís Nunes de Almeida [vencido, quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto junta] - Mário de Brito [vencido, quanto à alínea a) da conclusão, nos termos da declaração de voto junta] - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
1 - Não pude acompanhar a posição que fez maioria no sentido de que os n.os 2 e 3 do artigo 10.º do Decreto da Assembleia da República n.º 293/V não estavam afectados de inconstitucionalidade material.Procurarei indicar seguidamente as razões da minha discordância.
2 - O Presidente da República suscitou, na presente fiscalização preventiva de constitucionalidade, a dúvida sobre se a elevação dos números de recenseados necessários para eleger deputados regionais, visada por este decreto, não implicaria um desrespeito do princípio da conversão de votos em mandatos, nomeadamente por força da norma que garante que cada círculo, por menos populoso que seja, eleja sempre dois deputados. Pode ler-se no pedido por si subscrito que, de facto, «podem estar a criar-se discrepâncias significativas com círculos maiores que beneficiem de idêntica representação.
Ora, é necessário, para que haja proporcionalidade, estabelecer uma razão sensivelmente uniforme entre o número de eleitores e o número de eleitos, aplicável às diversas circunstâncias».
Importa ver brevemente o modo como o presente decreto visa alterar a regulamentação vigente desde 1976, constante do Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril, diploma elaborado pelo Governo Provisório, ao abrigo da Lei Constitucional 6/75, de 26 de Março, e ressalvado transitoriamente pelo artigo 302.º, n.º 3, da versão originária da Constituição da República de 1976 (a que corresponde hoje o artigo 279.º do texto resultante da segunda revisão constitucional).
3 - De harmonia com o artigo 6.º deste Estatuto Provisório, a Assembleia Regional (hoje Assembleia Legislativa Regional) é composta por deputados regionais, «eleitos mediante sufrágio universal, directo e secreto, de harmonia com o princípio da representação proporcional e por círculos eleitorais». Os círculos eleitorais correspondem a cada um dos concelhos compreendidos pela Região Autónoma, devendo ser designados pelo respectivo nome (artigo 7.º, n.º 1). Cada um desses círculos elegerá «um deputado por cada 3500 eleitores recenseados ou fracção superior a 1750» (artigo 7.º, n.º 2). Os deputados serão eleitos por listas apresentadas pelos partidos políticos, isoladamente ou em coligação, concorrentes em cada círculo eleitoral, sendo os resultados eleitorais apurados através da aplicação, dentro de cada círculo, do sistema de representação proporcional e do método da média mais alta de Hondt (artigo 12.º).
O Decreto 293/V mantém nestes pontos substancialmente o sistema atrás descrito. Refere-se ao princípio da representação proporcional o seu artigo 9.º, o artigo 10.º dispõe que cada município constitui um círculo eleitoral, designado pelo respectivo nome, continuando o apuramento de resultados eleitorais a fazer-se através do sistema de representação proporcional e do método da média mais alta de Hondt. De inovador quanto ao sistema vigente - não falando agora da solução que foi considerada inconstitucional neste acórdão - só é possível indicar o seguinte:
Cada círculo eleitoral elege um deputado por cada 4000 eleitores recenseados ou fracção superior a 2000 (anteriormente, os números correspondentes eram 3500 e 1750);
Cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados.
Considerando os dados de recenseamento eleitoral respeitantes ao ano de 1990, fornecidos pelo STAPE e referidos no acórdão, verifica-se que estão inscritos em toda a Região Autónoma 191590 eleitores, sendo o círculo mais populoso do ponto de vista eleitoral o do Funchal (com 90421 eleitores) e o menos populoso o de Porto Moniz (com 2923 eleitores). Se, por hipótese, tivesse havido eleições para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira em 1990, o número de deputados deste órgão seria de 56 nos termos da legislação de 1976, número que se reduziria a 51 se já estivesse em vigor o regime jurídico constante do decreto em apreciação.
A repartição dos deputados seria diversa, consoante cada uma das regulamentações em confronto.
De harmonia com o Estatuto Provisório, o Funchal elegeria 26 deputados, ao passo que os círculos de Porto Moniz e de Porto Santo elegeriam apenas um deputado cada (dois círculos uninominais). Haveria círculos com dois deputados (Ponta do Sol, Santana e São Vicente), com três (Calheta e Ribeira Brava), com cinco (Machico e Santa Cruz) e com seis deputados (Câmara de Lobos).
Aplicando a nova legislação, esta diversidade seria drasticamente reduzida. O círculo do Funchal elegeria menos três deputados (23, portanto), os círculos de Câmara de Lobos e Santa Cruz cinco deputados cada um, o círculo de Machico quatro deputados e os restantes sete círculos dois deputados cada um.
A comparação do resultado da aplicação de cada uma das soluções, a de 1976 e a constante do Decreto 293/V, permite facilmente concluir que nos 11 círculos existentes apenas quatro mantêm o mesmo número de deputados, verificando-se uma redução de um deputado em quatro círculos, uma redução de três deputados no círculo do Funchal e um aumento de um deputado nos círculos menos populosos de Porto Moniz, de Porto Santo e de São Vicente, por força da «garantia» constante do n.º 3 do artigo 10.º em apreciação.
Cabe perguntar se é, de um ponto de vista constitucional, lícito ao legislador proceder à presente alteração, sendo certo que, em caso de resposta afirmativa, se estará perante uma mera concretização legítima dos poderes de conformação que cabem à Assembleia da República. Para responder a tal questão importará analisar quais os parâmetros constitucionais que vinculam o legislador ordinário nesta matéria eleitoral, devendo desde já sublinhar-se que a Constituição Portuguesa contém normas imperativas exigentes em tal matéria, diferentemente de outras constituições estrangeiras.
4 - A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas (artigo 2.º da Constituição). A soberania popular reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição. «O povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico e das demais formas previstas na Constituição». (Artigo 10.º, n.º 1, da Constituição.) Os princípios gerais de direito eleitoral constam do artigo 116.º da lei fundamental. Depois de estabelecer que o sufrágio directo, secreto e periódico constitui a regra geral de designação dos titulares dos órgãos electivos da soberania, das regiões autónomas e do poder local, o n.º 5 do mesmo artigo 116.º estabelece a imposição de que a conversão dos votos em mandatos se faça de harmonia com o princípio da representação proporcional. Constitui limite material de revisão constitucional o sistema de representação proporcional [artigo 288.º, alínea h), segunda parte].
No que toca à Assembleia da República, a Constituição estabelece que os deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode também determinar a existência de um círculo eleitoral nacional (artigo 152.º, n.º 1). O número de deputados por cada círculo, exceptuado o círculo nacional, quando exista, «e proporcional ao número de cidadãos eleitores nele inscritos» (artigo 152.º, n.º 2). Os deputados à Assembleia da República são eleitos segundo o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt (artigo 155.º, n.º 1), não podendo a lei estabelecer limites à conversão dos votos em mandatos por exigência de uma percentagem de votos nacional mínima (artigo 155.º, n.º 2 - princípio da proibição de cláusulas-barreiras).
Relativamente às regiões autónomas, as assembleias legislativas regionais são eleitas «por sufrágio universal, directo e secreto, de harmonia com o princípio da representação proporcional». Diferentemente do que sucede quanto à Assembleia da República, o legislador ordinário não está constitucionalmente vinculado à aplicação do método da média mais alta de Hondt.
No título VII da Constituição, dedicado ao poder local, estabelece-se que a organização das autarquias locais compreende uma assembleia eleita dotada de poderes deliberativos, a par de um órgão colegial executivo perante aquela responsável. Essa assembleia terá de ser eleita «por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos residentes, segundo o sistema da representação proporcional» (artigo 241.º, n.º 2). Quando forem criadas regiões administrativas, as futuras assembleias regionais serão constituídas «por membros eleitos directamente pelos cidadãos recenseados na área da respectiva região e por membros, em número inferior ao daqueles, eleitos pelo sistema de representação proporcional e pelo método da média mais alta de Hondt, pelo colégio eleitoral constituído pelos membros das assembleias municipais da mesma área designados por eleição directa» (artigo 260.º).
Das normas indicadas pode concluir-se que a Constituição vigente acolheu o sistema da representação proporcional (abreviadamente, RP) relativamente a diferentes assembleias políticas ou autárquicas, utilizando em sinonímia as expressões princípio e sistema de representação proporcional [vejam-se, além das normas referidas, as dos artigos 145.º, alínea h), e 166.º, alínea g)], resultando a proibição de cláusulas-barreiras nas eleições de outras assembleias, que não a da República, do artigo 117.º da Constituição (princípio da representatividade eleitoral dos diferentes partidos). Pode, por isso, afirmar-se, com Gomes Canotilho e Vital Moreira, que o princípio democrático tem uma dimensão representativa «assente no sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico (artigo 10.º), num sistema eleitoral informado pelo princípio proporcional (artigo 116.º, n.º 5) e no pluralismo partidário (artigo 51.º)» (Constituição da República Portuguesa, 2.º vol., 2.ª ed., Coimbra, 1985, p. 17). Segundo os mesmos comentadores, «o elemento essencial do sistema eleitoral democrático é o princípio da proporcionalidade na eleição das assembleias representativas e demais órgãos colegiais directamente eleitos», princípio esse que se reduz, afinal, «a garantir que ao menos nos órgãos representativos esteja configurada a diversidade de representações e orientações político-ideológicas que estruturam politicamente a sociedade» (ob. cit., 2.º vol., pp. 20 e 21). A nossa Constituição parte do princípio de que «o sistema eleitoral é um método para obter uma mais fiel representação do universo político ideológico do País, e não um instrumento para fabricar maiorias parlamentares a todo o custo. O sistema proporcional há-de garantir duas coisas: a) que todas as correntes políticas minimamente significativas obtenham representação fazendo eleger candidatos seus; b) que as várias correntes políticas obtenham representação em proporção da sua quota de votos, sem discrepâncias significativas» (G. Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2.º vol., p. 21).
5 - Vejamos, pois, se foram acolhidos pelo legislador do novo Estatuto os preceitos constitucionais acima analisados no presente caso.
Comecemos pela divisão dos círculos eleitorais e pela atribuição de deputados a cada círculo.
Neste plano impõe dizer-se desde logo que a coincidência dos círculos eleitorais com os municípios não é uma imposição constitucional, tratando-se da solução que o Estatuto Provisório de 1976 criou a título transitório para a Região Autónoma da Madeira, diferentemente do que sucede quanto aos Açores (em que os círculos coincidem com cada uma das nove ilhas do arquipélago). Nada fazia prever que tal Estatuto vigorasse durante mais de 13 anos, o que ficou a dever-se à rejeição por inconstitucionalidade de uma versão de Estatuto definitivo em 1980 e à caducidade de uma proposta de lei por força da dissolução da Assembleia da República em 1985.
O Presidente da República não impugnou a constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 10.º deste decreto da Assembleia da República, que estabelece a mesma solução de fazer coincidir os círculos eleitorais com os municípios existentes nas ilhas da Madeira e de Porto Santo. Nada há em si de constitucionalmente ilegítimo no acolhimento de tal solução. Impõe, porém, afirmar-se que tal solução não pode acarretar uma desfiguração da RP, nomeadamente no caso de se pretender que a Assembleia Legislativa Regional tenha um número de deputados da ordem da meia centena.
A tese que fez maioria considera que o princípio da autonomia regional pode justificar certas entorses ao princípio da igualdade do sufrágio, isto é, ao princípio de que a cada cidadão deve caber um voto de igual peso (one person, one vote), sustentando ainda a mesma tese que a Constituição não impõe uma proporcionalidade estrita e rigorosa na determinação dos círculos e na repartição dos mandatos. A necessidade de que os eleitores residentes na ilha de Porto Santo se agrupassem num círculo seria uma exigência decorrente das «características geográficas, económicas, sociais e culturais» que estão na base das aspirações autonomistas das populações insulares que fundamentam o sistema constitucional da autonomia regional (artigo 227.º da Constituição).
Sem negar que a insularidade acarrete determinadas consequências no plano da concretização legislativa da autonomia regional, não pode concluir-se dessa circunstância que, por exemplo, o concelho de Porto Moniz, aquele que menos eleitores recenseados tem na ilha da Madeira, haja também de constituir um círculo eleitoral que eleja dois deputados regionais num universo de 51 deputados.
A solução do decreto em apreciação conduz às seguintes consequências: se a Região Autónoma da Madeira constituísse um círculo único, o quociente da divisão do número de eleitores recenseados pelos mandatos de deputados regionais atingiria o valor de 3756. Através da criação de 11 círculos, verifica-se que os valores da divisão do número dos recenseados pelos mandatos conferidos a cada círculo atinge o seu valor mais alto no caso da Ribeira Brava (4992) e o seu valor mais baixo no caso do círculo de Porto Moniz (1461). Quer dizer, no caso em análise, a relação de proporcionalidade de eleitores recenseados por referência ao número de mandatos do círculo de Porto Moniz e do da Ribeira Brava cifra-se no número de 3,41. A um eleitor de Porto Moniz correspondem quase três eleitores e meio na Ribeira Brava, atendendo ao «peso numérico» dos respectivos votos...
Cabe às jurisdições constitucionais fazer respeitar o princípio da igualdade do sufrágio, como sucedeu com o Supremo Tribunal Federal Norte-Americano nas célebres decisões Reynolds v. Simse Westburry v. Sanders, de 1964, em que se estabeleceu claramente o princípio de que a Constituição da União impõe uma igualdade entre o número de eleitores de cada circunscrição para efeitos de eleição dos representantes no Congresso, não podendo a oscilação admissível ultrapassar margens estreitas. No caso das eleições de Chiba, o Supremo Tribunal Japonês considerou inconstitucional uma eleição em que em certa circunscrição a distorção da relação de eleitores atingia o valor de cinco para um, sendo certo que a lei eleitoral só admitia primitivamente distorções máximas de dois para um (decisão de 14 de Abril de 1976, podendo ver-se extractos dessa decisão em W. F. Murphy e Joseph Tanenhaus, Comparative Constitucional Law-Cases and Commentaries, Nova Iorque, 1977, pp. 566-571). Também o Conselho Constitucional Francês foi chamado recentemente a fiscalizar o modo como o legislador tinha recortado as circunscrições eleitorais na Nova Caledónia, considerando constitucionalmente ilegítimas variações do tipo das aqui encontradas.
Sem se ignorar as distorções que a existência de deputados de «contingente» provoca em certos sistemas políticos que acolhem a RP (como é o caso da vizinha Espanha), crê-se que o princípio de igualdade eleitoral dos cidadãos (artigo 10.º, n.º 1, da Constituição) implica a ilegitimidade constitucional das soluções que provocam oscilações da gravidade das acima detectadas nos casos dos círculos da Ribeira Brava e de Porto Moniz, em relação aos quais não podem encontrar-se justificações defensáveis, do tipo das acolhidas na posição que fez vencimento quanto aos Açores na extinta Comissão Constitucional (veja-se o parecer 11/82, in Pareceres da Comissão Constitucional, 19.º vol., 1984, Lisboa, pp. 57 e segs., e os votos de vencido do então relator e do ora signatário quanto à solução legislativa constante da Lei Eleitoral para os Açores).
6 - Mas a solução constante dos n.os 2 e 3 do artigo 10.º do Decreto 293/V é patentemente inconstitucional na sua globalidade, em virtude do peso relativo de círculos exíguos (de dois deputados) no conjunto de círculos, circunstância que acarreta a desfiguração da RP.
Já no parecer 29/78 da extinta Comissão Constitucional, a propósito de uma versão da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, esse órgão entendia que, no caso de eleição da Assembleia da República, o «limite substantivo inultrapassável» era o que resultava da imposição «de não frustar a regra da proporcionalidade, elevada a limite material de revisão constitucional». A Comissão Constitucional afirmava de seguida que tal regra «ficaria frustrada, por exemplo, se o País fosse dividido em círculos com um número insignificante de deputados» (in Pareceres da Comissão Constitucional, 7.º vol., Lisboa, 1980, p. 60).
Também na doutrina, Gomes Canotilho e Vital Moreira - a propósito do caso paradigmático da Assembleia da República - referem que a liberdade legislativa na criação dos círculos eleitorais está longe de ser total. É que, por um lado, a divisão dos círculos eleitorais não pode ser arbitrária, devendo basear-se em critérios objectivos, tomando em conta, em especial, a divisão administrativa do território; e, por outro lado, «o sistema de representação proporcional, que é um princípio fundamental de direito eleitoral [cf. artigos 116.º, n.º 5, e 290.º, alínea h)], implica que os círculos eleitorais têm de ter uma dimensão mínima que não defraude aquele sistema» (ob. cit., 2.º vol., p. 156).
No dizer dos mesmos constitucionalistas, tais limites «são tanto mais importantes quanto é certo que a manipulação do número e da divisão dos círculos eleitorais tem sido, em Portugal e no estrangeiro, um dos mais privilegiados instrumentos de manipulação política, especialmente no sentido de fabricar maiorias artificiais» (ibid.).
Uma outra exigência da RP é a de que não haja círculos uninominais, exigência que foi afirmada por este Tribunal no seu Acórdão 183/88 (in Diário da República, 1.ª série, n.º 190, de 18 de Agosto de 1988).
Ora, se é certo que a solução em apreciação eliminou os círculos uninominais [que seriam, por força dos números, de 4000 e 2000 eleitores estabelecidos no n.º 2 do artigo 10.º deste decreto, os de Porto Moniz, de Porto Santo e de São Vicente (cf. citado Acórdão 183/88)], a verdade é que uniformizou sete círculos, pela atribuição a cada um de dois deputados, não obstante os respectivos eleitores recenseados em 1990 oscilarem entre um máximo de 9985 no círculo da Ribeira Brava e um mínimo de 2923 no de Porto Moniz.
É bem conhecido, porém, que os sistemas de RP resultam profundamente desvirtuados nos casos em que «os mandatos são atribuídos segundo uma fórmula de RP em muitos círculos de tamanho pequeno» (Dieter Nohlen, Two Incompatible Principles of Representation, in A. Lijphart e B. Grofmam, Choosing an Electoral System - Issues and Alternatives, Nova Iorque, 1984, p.
83). Nesses casos, de facto, o limiar efectivo de representação é muito alto, o que acarreta um grau considerável de desproporcionalidade ao sistema globalmente considerado, podendo torná-lo misto de sistema maioritário - sistema de RP. Como escreve James Hogan, «o ponto decisivo na RP é a dimensão das circunscrições (constituencies): quanto maiores as circunscrições, isto é, quanto maior o número de membros que elegem, tanto mais acentuadamente se aproximará o resultado da proporcionalidade. Por outro lado, quanto menor for a circunscrição, isto é, quanto menos membros atribuir, mais radical será o afastamento da proporcionalidade ... O sistema da proporcionalidade, na medida em que se conformar com o princípio da proporcionalidade, irá em direcção da multiplicação [de partidos]» (transcrito em Douglas W. Rae, The Political Consequences of Electoral Laws, New Haven e Londres, 1971, p. 115; veja-se nesta obra a representação gráfica e numérica das relações de proporcionalidade quanto aos mandatos atribuídos às diferentes circunscrições nas pp. 116 e segs.).
De harmonia com o Estatuto Provisório, se tivesse havido eleições em 1990, os deputados regionais eleitos em círculos diminutos (de um ou dois membros) representariam apenas 14% do total (oito em 56). Se tivesse entrado em vigor a solução considerada inconstitucional pelo Acórdão 183/88, tal percentagem teria sido de 22%. Com a solução em apreciação, mais de um quarto dos deputados teriam sido eleitos em círculos de dois lugares (14 em 51, ou seja, 27,4%).
Parece óbvio que a existência de um círculo único na Região garantiria uma proporcionalidade máxima. Mas está longe de tratar-se da única solução defensável. Acontece, porém, que basta transpor as percentagens verificadas no último acto eleitoral para a Assembleia Legislativa Regional (o realizado em 9 de Outubro de 1988; veja-se o mapa oficial da eleição, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 250, de 28 de Outubro de 1988) para os eleitores inscritos em 1990 para se verificar que a nova solução legislativa em apreciação acentuaria a distorção já existente; se então o partido maioritário, com 62,36% dos votos validamente expressos, obteve 41 mandatos num total de 55 (isto é, 74,5%), o mesmo partido obteria em 1990, com os dados actuais do recenseamento, 42 mandatos num total de 56 (75%) se fosse aplicada a solução da legislação de 1976 e 39 mandatos num total de 51 (isto é, 76,47%) com a solução constante do decreto da Assembleia da República. Em contrapartida, o segundo partido mais votado, com 16,79% dos votos, veria diminuir a sua percentagem de mandatos no total, tal como o partido menos votado, que ainda conseguiu eleger deputados regionais em 1988.
Importa acentuar ainda que as considerações feitas não partem do princípio da conformidade constitucional da solução em matéria eleitoral do Estatuto Provisório de 1976, como é óbvio. Mas servem para demonstrar que a nova solução agrava a desproporcionalidade do sistema em vigor, sendo claramente desconforme com as imposições da lei fundamental (artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2).
Por último e no que toca à invocada distinção do sistema de RP por este decreto, remete-se para a argumentação expendida nos diferentes votos de vencido, em especial nos dos Exmos. Conselheiros Luís Nunes de Almeida, António Vitorino e Sousa Brito. - Armindo Ribeiro Mendes.
Declaração de voto
Vencido, quanto à alínea a) da conclusão, por entender que os n.os 2 e 3 do artigo 10.º violam os princípios da proporcionalidade (artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2, da Constituição) e da igualdade (artigo 10.º, n.º 1, da Constituição) do sufrágio.1 - A Constituição não impõe uma regra de integral proporcionalidade, sem restrições nem excepções. A integral adopção de uma regra da proporcionalidade levaria a atribuir a cada candidatura o número de mandatos proporcional aos votos recebidos em rodo o território eleitoral. Ora, a exigência de que «a conversão dos votos em mandatos» (artigo 116.º, n.º 5), nomeadamente dos órgãos electivos das regiões autónomas [artigos 116.º, n.º 1, 233.º, n.º 2, e 288.º, alínea h)], se faça «de harmonia com o princípio da representação proporcional» (artigos 116.º, n.º 5, e 233.º, n.º 2) obriga apenas positivamente a que apenas o sistema eleitoral resultante, deste ponto de vista da conversão de votos em mandatos, tenha as características de um «sistema proporcional» [artigos 116.º, n.º 5, e 288.º, alínea h)].
A proporcionalidade é uma consequência constitucional da igualdade do sufrágio, e esta configura um aspecto do direito ao sufrágio. A transferência, na primeira revisão, da menção da igualdade do sufrágio do n.º 2 do artigo 48.º da versão originária da Constituição para o n.º 1 do artigo 10.º não significou um enfraquecimento deste direito político fundamental, mas um reforço da ligação do direito ao sufrágio igual ao próprio princípio democrático. Todos os cidadãos são iguais, e essa igualdade exprime-se na igual ponderação da sua vontade na formação da vontade política. O princípio proporcional visa garantir o igual peso de cada voto e assim realizar a igualdade democrática dos cidadãos: não só contam igualmente, mas também influem igualmente. A igualdade do valor da contribuição de cada voto para o resultado eleitoral (do valor do resultado do voto) garante maximamente a igualdade do poder político que cada eleitor exerce ao votar. Sendo a igualdade quanto à influência no resultado das eleições uma dimensão constitucional do direito fundamental ao sufrágio enunciado no artigo 49.º, está, nos termos do artigo 17.º, sujeita ao regime do artigo 18.º, todos da Constituição. Por consequência, quaisquer restrições legais «devem limitar-se ao necessário para salvaguadar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos» (n.º 2 do artigo 18.º); além de necessariamente gerais e abstractas e não retroactivas, tais restrições «não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial» (n.º 3 do mesmo artigo) do direito a sufrágio igual. Assim, o princípio da proporcionalidade só permite restrições que não o descaracterizam (compatíveis com o sistema proporcional) e que sejam necessitadas pela consideração de outros princípios constitucionais. Temos aqui a dimensão negativa do princípio da proporcionalidade.
Quais os critérios da necessidade do ponto de vista da consideração de outros interesses ou princípios constitucionalmente relevantes e da compatibilidade com o sistema proporcional das possíveis restrições? Os preceitos especiais relativos às eleições para a Assembleia da República, que, pela sua importância, a Constituição regula com mais pormenor, são reveladores dos limites apertados em que a ponderação de outros interesses e conexos princípios reconhecidos constitucionalmente pode justificar restrições a uma regra de proporcionalidade integral ou pura. Assim, é sabido que o método da média mais alta de Hondt implica o favorecimento dos grandes partidos, enquanto o método dos restos maiores favorece as listas menos votadas (cf.
Maurice Duverger, Institutions politiques et droit constituonnel, 14.ª ed., 1975, I, p. 119). A opção pelo primeiro (artigo 155.º, n.º 1) justifica-se porque, sendo inevitável algum favorecimento em qualquer método, é um interesse atendível o aumento da funcionalidade que para o sistema político pode resultar da maior estabilidade governativa, que a concentração partidária pode facilitar. Esta mesma razão, e, ainda, nomeadamente, os interesses em maior personalização da escolha, melhor representação de interesses regionais, correcção da tendência para a assimetria no recrutamento geográfico do pessoal político e democraticamente indesejável, justificará também o carácter meramente facultativo da existência de um círculo eleitoral nacional (artigo 152.º, n.º 1), que é a única maneira de garantir a integral proporcionalidade.
Mas o desvio assim justificado é limitado pela exigência da proporcionalidade entre o número de eleitores de cada círculo eleitoral e o número de mandatos (n.º 2 do artigo 152.º). Pela mesma razão da prevalência do respeito pelo sistema proporcional, se terá de considerar inconstitucional a proliferação de círculos com poucos mandatos (neste sentido, os Pareceres da Comissão Constitucional n.os 29/78, Pareceres, 7.º vol., p. 60, e 11/82, Pareceres, 19.º vol., p. 86, e o Acórdão deste Tribunal n.º 1883/88, Diário da República, 1.ª série, de 18 de Agosto de 1988, pp. 3437 e seg.). Também a proibição da discriminação resultante de cláusulas-barreiras - estabelecida no n.º 2 do artigo 155.º - é uma proibição de descaracterizar o sistema, tanto mais significativa das valorações constitucionais quanto tais cláusulas têm sido admitidas, embora com protestos de parte da doutrina, pela jurisprudência constitucional de Estados que adoptam o sistema proporcional - como a República Federal da Alemanha e a Áustria, em nome do interesse na facilitação da formação de governos -, e de maiorias parlamentares estáveis, que é típico do sistema eleitoral maioritário.
Importa acentuar que a dupla dimensão do princípio da igualdade, na atribuição de igual peso numérico ao voto e de igual valor quanto ao resultado, que se tem de considerar consagrada na Constituição, implica a adopção do sistema proporcional e, mais do que isso, o tratamento de qualquer desvio da proporcionalidade integral como restrição ao direito à igualdade do sufrágio, sujeita ao regime de restrições de direitos políticos fundamentais. A jurisprudência constitucional alemã (BVerfGE 1,208,244), que considerou o princípio da igualdade do voto compatível com o sistema maioritário, entende então essa igualdade apenas como igualdade de valor numérico, por em tal sistema «não poder haver igual valor de resultado para todos os votos, seja qual for o sentido político em que são dados, porque só resultam os votos que são dados ao candidato vencedor». Só porque a Lei Eleitoral consagrou o sistema proporcional é que nesta concepção (ibid., p. 242), através do princípio da igualdade (artigo 3.º da Grundgesetz), passou a existir um direito político fundamental a «igual valor de resultado do voto». Também segundo o Tribunal Constitucional Austríaco, «por direito de sufrágio igual só pode entender-se o contrário de direito plural ou de classe [...] exigir, para além disso, que cada voto tenha a mesma força, o mesmo valor útil ou de resultado, cai fora do princípio da igualdade do direito de sufrágio, até mesmo fora do domínio da possibilidade» (VfS1g 1381/31). É a partir deste entendimento que as jurisprudências constitucionais alemã e austríaca têm admitido cláusulas-barreiras, contrariadas pela doutrina que pretende deduzir das respectivas constituições o direito a igual valor de resultado do voto (por todos, na doutrina alemã, Hans Meyer, em Handbuch des Staatsrechts, ed. J. Isensee e P. Kirchhof, II, 1987, § 38, n.os 20 e segs., e, na austríaca, Manfred Nowak, Politische Grundrechte, 1988, pp. 398 e segs.).
Ora, a Constituição Portuguesa consagra claramente a dupla dimensão do direito de sufrágio igual, pelo que as orientações jurisprudenciais alemã e austríaca não são aceitáveis neste particular.
2 - Quanto às eleições para as assembleias legislativas regionais, há a considerar ainda, sem prejuízo das considerações feitas, o conjunto de interesses e princípios relacionados com a autonomia regional, que impõem o respeito pelas «características geográficas, económicas, sociais e culturais» e pelas «históricas aspirações autonomistas das populações insulares», em ordem a promover a participação democrática dos cidadãos, o desenvolvimento económico-social e a promoção e defesa dos interesses regionais, bem como o reforço da unidade nacional e dos laços de solidariedade entre todos os portugueses (artigo 227.º, n.os 1 e 2).
Resta saber se os n.os 2 e 3 do artigo 10.º do Decreto 293/V da Assembleia da República respeitam o sistema proporcional, de modo a não o descaracterizarem, e se as restrições ao princípio da proporcionalidade que estabelecem são necessárias.
Tenho para mim que a resposta a ambas as questões deve ser negativa.
Impondo a Constituição uma interpretação do sistema proporcional em que as excepções à regra da proporcionalidade integral têm de ser justificadas segundo o regime do artigo 18.º, há que julgar a possível inconstitucionalidade dos n.os 2 e 3 do artigo 10.º do Decreto 293/V, tendo em vista os seus efeitos sobre o sistema proporcional.
Das disposições em questão resulta que a maioria dos círculos eleitorais, tendo em conta a actualização do recenseamento eleitoral de 1990, referida no acórdão, ou seja, sete círculos em 11, têm dois deputados. Ora, os círculos com dois mandatos implicam que a percentagem necessária para garantir representação à minoria é de 33,4% e a necessária à maioria para garantir maioria de mandatos é de 66,7%: pode não se ter mandato com quase um terço dos votos e não se ter maioria de mandatos com quase dois terços de votos. Há tendência para impedir a formação de maioria - daí se falar aqui de sistema minoritário - e para um sistema de dois partidos (como no sistema maioritário). Os círculos de dois mandatos contrariam a própria lógica do sistema proporcional.
Por outro lado, mais de metade dos eleitos (52,8%) incluir-se-iam em círculos com cinco ou menos mandatos: 10 em 11 - todos menos o círculo do Funchal.
Ora, em círculos de cinco mandatos ainda são necessários 16,6% dos votos para garantir à minoria representação. Tais círculos permitem assim desvios grosseiros à proporcionalidade. A média de deputados por círculo é de 4,6, substancialmente inferior à de todos os 16 sistemas proporcionais da OCDE considerados por Dieter Nohlen (»Panorama des proportionelles», Pouvoirs, 32, 1985, pp. 38 e 39). A média correspondente nas eleições para a Assembleia da República é de 11,36. Estas características não são típicas, afastando-se excessivamente do modelo proporcional.
Passando a considerar o funcionamento previsível do sistema, partindo das percentagens obtidas pelos partidos nas eleições de 9 de Outubro de 1988 e aplicando a actualização do recenseamento já referida, pode calcular-se o desvio de proporcionalidade do sistema (relativamente à integral proporcionalidade). Esse desvio calcula-se somando as diferenças entre as percentagens de votos e de mandatos de todos os partidos concorrentes e dividindo por dois (porque a conta dos desvios a mais e a menos duplica o desvio). Obtém-se um desvio de 13,73, que, subtraído a 100, dá um índice de proporcionalidade de 86,87.
Ora, o índice de proporcionalidade média nos 17 sistemas proporcionais (16 europeus e Israel) considerados comparativamente em 1982 por Richard Rose (em Choosing an Electoral System, ed. A. Lijphart e B. Grofman, 1984, p. 75) é de 94, sendo o índice madeirense mais próximo da média dos sete sistemas não proporcionais considerados por Rose, que é de 86. O índice correspondente nas eleições de 1987 para a Assembleia da República é de 90.
Se for usado o critério de Nohlen (loc. cit.) para determinar O grau de proporcionalidade do sistema, pelas percentagens de votos mínima suficiente para maioria absoluta e máxima insuficiente para maioria absoluta, obtêm-se na Região Autónoma da Madeira os valores de 35,4 e de 57,6, respectivamente (calculados pela actualização do recenseamento, considerando os cinco partidos com percentagem de votos superior à média requerida para eleger um deputado e dando ao partido maioritário, primeiro, os eleitores com maior quociente eleitoral e depois os eleitores com menor quociente eleitoral, segundo os círculos).
Finalmente, verifica-se uma diferença máxima de quociente eleitoral (ou número médio de votos por deputado) entre os círculos de Porto Moniz e da Ribeira Brava, pela qual são necessárias 3,41 vezes mais de votos para eleger um deputado neste último círculo do que no primeiro.
Terá de concluir-se que da soma de todas estas características resulta uma acentuada desfiguração do sistema proporcional, o que torna, só por si, inconstitucionais os n.os 2 e 3 do artigo 1.º do Decreto 293/V, por violação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade de sufrágio.
3 - Mas seria necessário pagar tal restrição ao princípio da proporcionalidade para respeitar a coincidência dos círculos eleitorais com os municípios, que o princípio da autonomia tenderia a justificar? Decerto que não. Não seria indispensável aumentar inconvenientemente o número de deputados para corrigir o desvio. A criação de um círculo regional adicional aos círculos municipais permitiria conciliar os princípios da igualdade e da proporcionalidade, por um lado, e da autonomia, por outro. Bastaria, para tanto, adoptar um sistema semelhante ao alemão ou ao proposto pelo deputado Jorge Miranda, da Acção Social-Democrata Independente, como alteração do artigo 155.º da Constituição (cf Marcelo Rebelo de Sousa, Os Partidos Políticos no Direito Constitucional Português, 1983, pp. 646 e 647), por exemplo. Mas não compete ao Tribunal indicar a solução. - José de Sousa e Brito.
Declaração de voto
Votei vencido a conclusão da alínea a) por entender que o artigo 10.º do decreto da Assembleia da República viola o disposto no artigo 233.º, n.º 2, da Constituição, isto é, viola o princípio da representação proporcional na eleição da Assembleia Legislativa Regional, com os fundamentos seguintes.
I
1 - Preliminarmente à análise da conformidade constitucional à luz do princípio da representação proporcional não pode deixar de se atentar na especial circunstância de a matéria em apreço, versando sobre o sistema eleitoral para a Assembleia Legislativa Regional, constituir objecto da reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 167.º, alínea j), da Constituição (»Eleições dos titulares dos órgãos de governo próprio das regiões autónomas e do poder local, bem como dos restantes órgãos constitucionais eleitos por sufrágio directo e universal»).Ora, ao constar de um decreto da Assembleia da República que aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, poderia pertinentemente colocar-se a dúvida de saber se não estaremos perante uma inconstitucionalidade formal resultante do facto de tal matéria não poder, por natureza, ser integrada naquele Estatuto Político-Administrativo.
Esta questão já havia sido suscitada no âmbito da própria Assembleia da República, em 1988, a quando da aprovação do Decreto 99/V, pelo qual se alterava a redacção do n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril. Foi então ponderado pela Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República se seria admissível uma iniciativa legislativa avulsa da Assembleia Regional da Madeira sobre matéria eleitoral que comportava uma alteração ao Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira sem que concomitantemente aquele órgão de governo próprio da Região desse cabal cumprimento à obrigação constitucional de proceder à aprovação da proposta de um estatuto político-administrativa definitivo, nos termos do artigo 294.º da Constituição, na redacção decorrente da primeira revisão constitucional de 1982 (»Os estatutos provisórios das regiões autónomas estarão em vigor até serem promulgados os estatutos definitivos, a elaborar nos termos da Constituição»).
Como tive ocasião de explicitar nessa ocasião e na referenciada sede, nada obstava a tal iniciativa avulsa de alteração das normas do Estatuto Provisório sobre matéria eleitoral, desde que se entendesse que com tal labor legislativo não se estava verdadeiramente a proceder a uma alteração do Estatuto Político-Administrativo da Região, mas tão-somente a inovar em matéria de regime eleitoral que apenas formalmente integrava o Estatuto Provisório, e ainda desde que se considerasse que tal alteração legislativa não estava vinculada à especial tramitação de aprovação e modificação dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas (nos termos dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 228.º da Constituição).
A mesma questão foi aflorada pelo acórdão do Tribunal Constitucional que recaiu sobre o citado decreto parlamentar em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade (e que viria, aliás, a pronunciar-se pela sua inconstitucionalidade). A tal respeito escreveu-se nesse aresto (Acórdão 183/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 190, de 18 de Agosto de 1988):
Trata-se, portanto, de uma proposta de alteração do EPRAM, sobre matéria eleitoral, apresentada pela ARM.
E desde logo poderiam levantar-se algumas questões de constitucionalidade:
1.ª questão: a da possibilidade de os estatutos das regiões autónomas e suas alterações versarem matéria eleitoral, possibilidade que é negada por J. J.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., 1985, nota V ao artigo 228.º e nota III ao artigo 233.º;
2.ª questão: a da possibilidade de haver alterações ao EPRAM, uma vez que, por força do artigo 294.º da Constituição (n.º 3 do artigo 302.º na sua versão originária), «os estatutos provisório das regiões autónomas estarão em vigor até serem promulgados os estatutos definitivos, a elaborar nos termos da Constituição»;
3.ª questão: a da competência das assembleias regionais para fazerem propostas de leis de alteração em matéria eleitoral, nos casos em que esta matéria se contenha nos estatutos das regiões autónomas.
Certo é, porém, que nenhuma destas questões foi posta no requerimento do Presidente da República.
Desta citação resulta que, na ocasião, o Tribunal Constitucional entendeu não se dever pronunciar sobre as referidas questões de constitucionalidade apenas porque elas não eram suscitadas no requerimento de apreciação preventiva subscrito pelo Presidente da República. Mas, ao equacioná-las, o Tribunal reflectia o teor de diversas opiniões doutrinárias que à data já tinham sido emitidas e foram retomadas a propósito dessse acórdão.
Com efeito, os autores citados no aresto (Canotilho e Vital Moreira) escrevem a este propósito (op. cit., pp. 374 e 375):
Deve notar-se que o regime eleitoral regional não é matéria de estatuto regional, mas antes de lei comum da AR (ou de decreto-lei autorizado) (v. nota V ao artigo 228.º).
No mesmo sentido se pronuncia Jorge Miranda, em comentário ao citado acórdão do Tribunal Constitucional (in O Direito, ano 121.º, 1989, II, Abril-Junho), onde escreve que «se, por conseguinte, o estatuto de qualquer das regiões autónomas contiver normas sobre outras matérias que não as atinentes às atribuições e ao sistema de órgãos regionais (e a zonas conexas), elas deverão ter-se por inconstitucionais - formalmente inconstitucionais, por excesso de forma ou, mais rigorosamente, por violação das regras de iniciativa legislativa dos artigos 170.º e 228.º, conjugadas com as dos artigos 229.º e 233.º)». E acrescentava ainda o mesmo autor, no comentário citado (ob. cit., p. 364), que «foi realmente pena que o acórdão não tivesse abordado - não tenha podido abordar, em virtude do princípio do pedido (artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82, de 15 de Novembro) - as questões que refere no n.º 2.2: saber se os estatutos das regiões autónomas podem versar matéria eleitoral; saber se pode haver alterações ao Estatuto da Região Autónoma da Madeira, ainda provisório; saber se a Assembleia Regional da Madeira pode propor alterações a esse Estatuto em matéria eleitoral. Ainda bem, todavia, que teve consciência delas e que explicitamente as enunciou.
2 - A questão assim colocada pela doutrina depende essencialmente da interpretação da matéria que deve entender-se como estatutária por natureza e das consequências que daí advêm para as demais que, não o sendo, eventualmente possam integrar formalmente os estatutos político-administrativos das regiões autónomas.
Sobre o entendimento constitucional do âmbito das matérias estatutárias, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., p. 354):
O princípio fundamental a ter em conta nesta matéria é o de que o estatuto regional é o estatuto de uma pessoa colectiva e, neste sentido, uma lei organizatória. Ele deve, pois, abranger todas - e deve abranger apenas - as matérias directamente definidas por esse objecto, designadamente:
atribuições das regiões autónomas (cf. artigo 229.º) e sua delimitação em relação às de outras pessoas colectivas territoriais (Estado, autarquias locais):
formação, composição e competência dos órgãos regionais e estatuto dos respectivos titulares (v. artigo 233.º, n.º 5). Em suma, o estatuto regional deve regulamentar as matérias previstas nos artigos 229.º a 235.º da Constituição em tudo aquilo que não esteja reservado para lei comum da AR, como sucede, por exemplo, com a lei eleitoral, a lei do sistema de planeamento e a lei do regime orçamental [artigo 167.º, alínea f), artigo 168.º, alíneas m) e p), respectivamente].
No mesmo sentido escreve Jorge Miranda (comentário citado, ob. cit., p. 364):
A função de cada estatuto político-administrativo (sublinhe-se político-administrativo) consiste em definir as atribuições regionais (artigo 229.º da Constituição) e o sistema de órgãos de governo próprio da região (artigo 233.º); ou, em geral, em desenvolver, explicitar ou concretizar as normas do título VI da parte III da lei fundamental, adequando-as às especificidades e às circunstâncias mutáveis dessa região; não consiste em estabelecer os princípios de toda a vida política, económica, social e cultural que aí se desenrola, porque isso cabe à Constituição - que é a Constituição da República, e não só do continente.
Do exposto resulta que, no entender dos citados autores, as matérias atinentes ao sistema eleitoral para as assembleias legislativas regionais não integram, natureza, o âmbito dos estatutos político-administrativos das regiões autónomas. Nesta óptica, exigindo as matérias eleitorais um tratamento unitário, postulado pelos diversos normativos constitucionais que se lhes referem [cf., entre outros, artigos 49.º, 116.º, 167.º, alíneas a) e j), 139.º, n.º 3, alínea c), 136.º, alínea b), e 288.º, alínea h)], a sua repartição, no tocante às regiões autónomas, pelas leis eleitorais e pelos estatutos prejudicaria tal unidade de tratamento e acarretaria a inconstitucionalidade formal dos correspondentes normativos estatutários.
3 - Posto isto, é bem certo que o presente requerimento de apreciação preventiva da constitucionalidade do Decreto da Assembleia da República n.º 293/V não suscita a questão da insusceptibilidade de integração no Estatuto Político-Administrativo da Madeira das matérias eleitorais sobre as quais versa o pedido do Presidente da República. Sem embargo, o Tribunal, por tal facto, não está impedido de a apreciar, porquanto, se é verdade que o Tribunal só pode declarar a inconstitucionalidade de normas cujas apreciação tenha sido requerida pelo Presidente da República, não é menos verdade que o pode fazer com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada.
Assim sendo, nada impediria o Tribunal Constitucional de apreciar o disposto nos artigos 10.º e 11.º do decreto à luz da sua admissibilidade estatutária, isto é, à luz do critério da constitucionalidade do tratamento em sede de estatutos político-administrativos de matéria eleitoral que, por natureza, não integra o «núcleo definitório» desses estatutos.
Trata-se, desde logo, de um tema não isento de dificuldades, uma vez que, à semelhança do que sucede com as denominadas «matérias de interesse específico das regiões autónomas», também aqui a Constituição não contém nenhum preceito que elenque as matérias de natureza estatuária, às quais só será possível chegar através de uma interpretação dos preceitos constitucionais constantes do título VII da parte III da lei fundamental e da sua compaginação com os demais normativos constitucionais que versam as autonomias regionais, desde logo o artigo 6.º, que define a natureza unitária do Estado.
Não foi este, contudo, o caminho seguido pelo Tribunal nem no Acórdão 183/88 nem no presente aresto. Mas cumpre registar que entre um e outro a jurisprudência constitucional fez um certo caminho que, em meu entender, ainda peca por ser demasiado tímido.
Com efeito, onde em 1988 se deixou intocada a questão porque não suscitada pelo Presidente da República, desta feita dela se toma lateralmente conhecimento, ainda que não optando pela solução da inconstitucionalidade, mas sem que o percurso assim percorrido apareça devidamente fundamentado. Dito de outro modo: o Tribunal, no presente aresto, reflecte sumariamente sobre a questão (embora não suscitada pelo requerente), não coonesta a tese da inconstitucionalidade formal que tem vindo a ser propugnada pela doutrina e implicitamente profere um juízo de admissibilidade constitucional de tratamento nos estatutos político-administrativos de matéria de natureza eleitoral, que, por natureza, neles não caberia nos termos constitucionais.
Admitindo, sem conceder, que tal solução não ofende, em concreto, a lei fundamental (e juízo bem diferente decerto não poderia deixar de ser emitido se, em vez de matéria eleitoral, que em parte é conexa com matérias organizatórias dos estatutos político-administrativos, estivéssemos confrontados com disposições atinentes a direitos, liberdades e garantias, por exemplo), afigura-se-nos que o Tribunal deveria ter ido mais longe e explicitado que não se pronuncia pela inconstitucionalidade nesta óptica em função de uma interpretação conforme à Constituição, interpretação essa, aliás, não isenta de algumas dificuldades de aplicação prática.
Com efeito, o tratamento de matéria eleitoral nos estatutos político-administrativos aparece com um cavalier estatutário, como uma normação «atraída» pela vocação organizatória do estatuto, que só poderia nele figurar na precisa e estrita medida em que dessa «integração estatutária» não resultasse a derrogação de nenhuma norma constitucional, desde logo da norma que confere aos deputados, aos grupos parlamentares e ao Governo da República o poder de iniciativa legislativa sobre matéria, nos termos do artigo 170.º da Constituição. Dito de outro modo: embora integrando o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, o quadro normativo que regula o regime eleitoral da respectiva assembleia regional, que constitui reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República [cf.
artigo 167.º, alínea j), da Constituição], tão beneficiará, por natureza, do especial regime jurídico daqueles estatutos, podendo ser alterado por lei avulsa da Assembleia da República, sob iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares ou do Governo da República, ou ainda, nos termos do artigo 170.º, n.º 1, da Constituição, da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, não beneficiando, por isso, do especial regime de alteração dos estatutos político-administrativos das regiões consagrado nos n.os 2, 3 e 4 do artigo 228.º da lei fundamental.
Sem embargo, tal interpretação conforme à Constituição sempre acarretará a necessidade de, em cada caso, compaginar o seu desiderato com a natureza de lei ordinária de valor reforçado de que usufruem os estatutos político-administrativos das regiões autónomas, para efeitos de afastar um eventual juízo de ilegalidade das alterações avulsas por lei da Assembleia da República do regime eleitoral para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira constante do Estatuto Político-Administrativo da Região, com fundamento na natureza não estatutária de tais matérias e tendo em vista garantir a observância da norma constitucional sobre a inicitiva legislativa (artigo 170.º).
Por estas razões entendi que o Tribunal deveria ter dedicado maior atenção à questão acabada de expor.
II
1 - Analisando agora o fundamento do meu voto de vencido quanto à conclusão da alínea a) do acórdão, poderei sinteticamente dizer que, acompanhando e subscrevendo o essencial da brilhante argumentação deduzida pela Sr.ª Conselheira Relatora, afasto-me da sua conclusão por divergir da aplicação ao caso dos pertinentes princípios invocados, como passarei a indicar.2 - É entendimento generalizado na doutrina nacional e estrangeira que a caracterização de um sistema eleitoral assenta em duas vertentes fundamentais:
Por um lado, no princípio de representação corporizado nesse sistema, isto é, nos objectivos de ordem política da representação política por ele propiciada, nos fins últimos do sistema;
Por outro lado, na fórmula de decisão, isto é, na concreta fórmula ou metodologia de conversão dos votos em mandatos.
No caso vertente, o do sistema da representação proporcional, o princípio de representação consiste no objectivo de reflectir na composição do órgão electivo com a maior exactidão possível o universo das forças sociais e dos grupos políticos existentes na sociedade. O critério essencial de um sistema de representação proporcional é o de garantir a optimização dessa representação política pela correspondência entre o universo parlamentar e o universo das opções político-partidárias dos eleitores. Os sistemas de representação proporcional, neste contexto, visam politicamente aproximar-se de um modelo ideal de optimização da proporcionalidade e, consequentemente, do pluralismo de representação partidária no órgão electivo.
Contudo, como cumpre reconhecer, ao princípio de representação característico de um sistema de representação proporcional correspondem múltiplas formulações concretas, em fase das quais se pode concluir que não existem sistemas integralmente proporcionais, embora o grau de proporcionalidade de cada sistema permita distinguir entre aqueles que apenas asseguram uma proporcionalidade mitigada e os que mais amplamente permitem uma representação proporcional menos distorcida e, consequentemente, mais próxima da pluralidade de opções partidárias expressas pelos eleitores através do sufrágio.
Paralelamente, é entendimento corrente na doutrina que em todos os sistemas eleitorais podemos encontrar elementos típicos do princípio da representação proporcional e elementos típicos do princípio da representação maioritária. Isto é, podemos encontrar elementos maioritários num sistema que, na sua resultante global, pode ser considerado como proporcional, tal como se detecta a existência de elementos de proporcionalidade nos sistemas que se norteiam por um princípio de representação maioritário.
A este respeito é significativo o quadro comparativo da proporcionalidade nos sistemas de representação proporcional e nos de representação maioritária, fornecido por Richard Rose (»En torno a las opciones en los sistemas electorales: alternativas políticas y técnicas», in Revista de Estudios Políticos, n.º 34, Julho-Agosto de 1983, p. 97):
(ver documento original) Deste quadro resulta que existem sistemas de representação maioritária cuja resultante global é mais proporcional que a decorrente de certos sistemas considerados na sua essência como de representação proporcional. O que só se pode explicar analisando em cada caso as razões de distorção da proporcionalidade nesses sistemas de representação proporcional, razões essas que, por via de regra, andam associadas a dois elementos fundamentais:
Por um lado, à concreta fórmla de decisão adoptada, isto é, a metodologia de conversão de votos em mandatos;
Por outro lado, à dimensão das circunscrições.
3 - Analisemos, pois, a questão da dimensão das circunscrições, que é aquela que mais relevantemente se coloca neste caso para efeitos de análise da observância do princípio da representação proporcional. A representação proporcional pressupõe, em regra, circunscrições plurinominais, mas nem todas as circunscrições plurinominais, por o serem, garantem efectivamente uma resultante proporcional. Como escreve James Hogan (Elections and Representation University College, Cork, Cork University Press, 1945, pp. 13 e 18), «o ponto decisivo da representação proporcional é a dimensão das circunscrições: quanto mais vastas forem as circunscrições, ou seja, quanto maior for o número de membros que elegem, mais de perto o resultado se aproximará da proporcionalidade. Pelo contrário, quanto mais pequena for a circunscrição, ou seja, quanto menor for o número de membros que elege, mais radical será a distância que a separa da proporcionalidade».
Nesta ordem de ideias, as circunscrições plurinominais típicas dos sistemas de representação proporcional costumam dividir-se em três grupos: as de diminuta dimensão (entre 2 e 6 deputados), as de média dimensão (entre 6 e 15 deputados) e as de grande dimensão (acima de 15 deputados). O que torna desde logo a escolha da dimensão das circunscrições como um elemento extremamente relevante para a obtenção de uma resultante final efectivamente proporcional.
Sobre o significado dessa escolha para o desiderato final do sistema eleitoral pronunciou-se Douglas W. Rae (The Political Consequences of Electoral Laws, edição revista, Yale University Press, New Haven, 1975, p. 119) nos seguintes termos:
A fórmula eleitoral destinada a produzir a proporcionalidade depende em larga medida da dimensão das circunscrições em termos da sua própria eficácia.
Dimensões muito pequenas - digamos de três lugares - frustram a mais eficaz fórmula de representação proporcional nos seus efeitos.
De igual forma escreve, a este propósito, Dieter Nohlen (»Panorama des proportionelles», in Pouvoirs, Revue française d'études constitutionnelles et politiques, n.º 32, p. 34):
Nas pequenas circunscrições, os mandatos só muito imperfeitamente contemplam de forma adequada todos os partidos políticos. A vantagem de que beneficiam os grandes partidos nas circunscrições eleitorais - considerada ao nível do país no seu conjunto - gera consideráveis diferenças entre a percentagem de votos e a percentagem de mandatos, de tal maneira que a regra da proporcionalidade, como regra de decisão, quando aplicada às pequenas circunscrições [de três a cinco lugares], não conduz à representação proporcional. Tal significa, portanto, que o voto em sistema proporcional nas pequenas circunscrições conduz a um sistema de representação maioritário.
A este propósito parece elucidativo o quadro comparativo da dimensão das circunscrições nos países das Comunidades Europeias que adoptam o sistema de representação proporcional:
(ver documento original) Fonte: Richard Rose, ob. cit., p. 94.
Em face deste quadro, pode-se concluir que nos países referenciados, sem embargo das diferenças e oscilações médias verificadas (entre um mínimo de 4 lugares por circunscrição na Irlanda e um máximo de círculo nacional único na Holanda de 150 deputados), a regra é a de circunscrições eleitorais com mais de cinco/seis deputados por circunscrição. O que se compreenderá melhor se atentarmos na conclusão de Douglas Rae (ob. cit., p. 116) segundo a qual a relação entre o número de mandatos por circunscrição e o grau de proporcionalidade é curvilinear, isto é, à medida que a dimensão das circunscrições aumenta, a desproporção entre a percentagem de votos e a percentagem de mandatos obtida diminui em termos médios, sendo esta diminuição progressiva e verificável sempre até circunscrições com cerca de 15/20 deputados, tendendo a partir daí a estabilizar ou a variar, em termos de desvio médio, de forma insignificante em círculos entre 20 e 100/150 deputados.
4 - Traçado este sucinto panorama da relevância da dimensão das circunscrições no grau de proporcionalidade do sistema eleitoral, importa aplicar as conclusões extraídas ao caso sub judice.
A Constituição da República Portuguesa refere em diversos normativos o princípio da representação proporcional.
Desde logo, no artigo 116.º, em sede de princípios gerais da organização do poder político (princípios gerais de direito eleitoral), refere-se-lhe no seu n.º 5, dispondo que «a conversão dos votos em mandatos far-se-á de harmonia com o princípio da representação proporcional».
No artigo 152.º (círculos eleitorais para a eleição da Assembleia da República) dispõe-se que «o número de deputados por cada círculo do território nacional, exceptuando o círculo nacional, quando exista, é proporcional ao número de cidadãos eleitores nele inscritos». E no artigo 155.º, definindo a fórmula de decisão de conversão dos votos em mandatos de deputados à Assembleia da República, estatui que «os deputados são eleitos segundo o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt».
No artigo 233.º, sobre os órgãos de governo próprio das regiões autónomas, no seu n.º 2, a lei fundamental consagra que «a assembleia legislativa regional é eleita por sufrágio universal, directo e secreto, de harmonia com o princípio da representação proporcional».
Expressão equivalente pode encontrar-se no n.º 2 do artigo 241.º da lei fundamental, enquanto princípio geral do poder local, onde se dispõe que «a assembleia será eleita por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos residentes, segundo o sistema da representação proporcional».
Explicitando este preceito no que concerne às assembleias das regiões administrativas, o artigo 260.º da Constituição estipula que «a assembleia regional é constituída por membros eleitos directamente pelos cidadãos recenseados na área da respectiva região e por membros, em número inferior ao daqueles, eleitos, pelo sistema da representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt, pelo colégio eleitoral constituído pelos membros das assembleias municipais da mesma área designados por eleição directa».
Finalmente, no artigo 288.º, enquanto limite material ao poder de revisão constitucional, consagra-se, na alínea h), «o sistema de representação proporcional».
Em face deste quadro, parece podermos concluir que a diversidade da nomenclatura constitucional aponta para o entendimento segundo o qual a nossa lei fundamental utiliza as expressões «sistema de representação proporcional» e «princípio de representação proporcional» com certa fungibilidade, compreendendo em tais referências quer o que designamos por princípio de representação, quer o que identificamos como fórmula de decisão do sistema eleitoral de representação proporcional. A que acresce que, apenas no tocante à Assembleia da República, se foi ao pormenor de individualizar o critério da proporcionalidade como elemento norteador da definição dos círculos eleitorais (artigo 152.º, n.º 2).
Este tratamento normativo coonesta a ideia de que a Constituição aponta para uma preocupação central de optimização da representação proporcional, a que acresce, no mesmo sentido, a proibição do estabelecimento de cláusulas-barreiras, constante do n.º 2 do artigo 155.º, no que concerne à eleição da Assembleia da República.
Ora, até por contraste com o disposto no n.º 2 do artigo 152.º, já aludido, é de concluir que na definição das circunscrições eleitorais a Constituição deixou ao legislador, nos demais casos, uma certa margem de liberdade na escolha do critério ou dos critérios legais a adoptar em cada caso. Ponto é que esses critérios respeitem sempre os limites do sistema de representação proporcional quanto à dimensão das circunscrições, e que são, em meu entender, os que atrás referi.
5 - Neste contexto, a Constituição permite ao legislador, na definição das circunscrições eleitorais na eleição para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira, a escolha entre vários métodos possíveis, desde que aquele que venha a ser escolhido se possa considerar como observando os fins últimos do sistema de representação proporcional.
Como resulta do que já se deixou exposto, a questão da dimensão das circunscrições tem uma influência decisiva na resultante final do sistema e, consequentemente, na aferição do seu grau de proporcionalidade.
Consideração que, aliás, o acórdão acolhe expressamente com base numa fundamentação que, no essencial, é convergente com o que penso sobre a matéria e já atrás deixei expresso. Só que a comunhão no plano dos princípios conduz a conclusões divergentes na sua aplicação prática.
O decreto em apreço consagra um sistema que assenta em dois pressupostos fundamentais:
Por um lado, cada círculo eleitoral corresponde a cada município da Região Autónoma, sendo atribuído a cada círculo assim determinado um mínimo de dois deputados (artigo 10.º, n.os 1 e 3, do decreto);
Por outro lado, a cada círculo eleitoral cabe um deputado por cada 4000 cidadãos eleitores recenseados e mais um por cada fracção de recenseados superior a 2000 (artigo 10.º, n.º 2, do decreto).
Da conjugação destas disposições resulta, de acordo com o recenseamento actualizado de 1990, o seguinte quadro:
(ver documento original) O quadro demonstra que 7 das 11 circunscrições elegem apenas dois deputados, sendo, pois, circunscrições de diminuta ou mesmo exígua dimensão, o que, por si só, distorce a proporcionalidade, por definição. Do total de circunscrições apenas uma não se pode considerar como de pequena dimensão (a do Funchal), sendo assim a única que potencia a aplicação dos critérios típicos de um sistema de representação proporcional.
A atribuição «por contingente» de um mínimo de dois deputados por círculo, se bem que visando afastar a inconstitucionalidade resultante da existência de círculos uninominais (cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/88, citado), não constitui, pois, por si só, solução que garanta o efectivo respeito do princípio da proporcionalidade.
Considerando agora a resultante global do sistema, dos 51 deputados a eleger, 28 são eleitos por circunscrições de pequena dimensão (14 dos quais em circunscrições exíguas de apenas 2 deputados) e 23 são eleitos na única circunscrição que não produz distorção da proporcionalidade.
Comparando, ainda na óptica da resultante global do sistema, o modelo do decreto com o sistema em vigor desde 1976, poder considerar-se que a solução em apreço conduz a resultados globais menos proporcionais do que o anterior regime: quer porque se passa de 8 deputados em 56 eleitos por circunscrições pequenas de 2 deputados (14% do número total de membros da assembleia) para 14 deputados em 51 eleitos em circunscrições de 2 deputados (o que representa 27,4% do número total de membros), quer ainda porque, aplicando a este sistema os resultados das eleições para a Assembleia Regional de 1988, verificamos que o «bónus» do partido mais votado aumenta (em 1988, a 62,36% dos votos corresponderam 75% dos mandatos, e, com o actual sistema, à mesma percentagem de votação corresponderiam 76,47% dos mandatos).
Do exposto resulta que, quer na concreta conformação dos círculos, quer na perspectiva resultante global do sistema, há uma efectiva compressão do princípio da representação proporcional e que a eliminação das circunscrições uninominais acaba por produzir resultados que, no seu conjunto, são ainda menos proporcionais. Tal compressão é, aliás, reconhecida no Acórdão, que a justifica ou, pelo menos, considera tolerável em função do princípio da autonomia regional, questão que adiante retomarei.
6 - O decreto em apreço consagra um sistema eleitoral que pode ainda ser questionado na óptica do princípio da igualdade do voto, como se refere no Acórdão. Nesta perspectiva, cumpre reconhecer que, por definição, todos os sistemas eleitorais comportam uma certa desigualdade de votos, ponto é que tal desigualdade não seja excessiva ou intolerável ou não seja fruto de uma específica preocupação de «engenharia eleitoral» em a gerar.
Considerando os métodos de distribuição dos mandatos pelos círculos eleitorais, o sistema vigente para a Assembleia da República, de acordo com o recenseamento de 1990, permite concluir que, num universo de 226 deputados (excluídos os dos círculos da emigração) e de 8112570 eleitores, o quociente geral de eleição de um deputado é de 35896 eleitores por deputado.
Considerando a aplicação do critério legal (distribuição dos mandatos pelos círculos segundo o método de Hondt), teremos que o círculo do porto elegerá o seu último deputado com 35212 votos (menos 680 votos que o quociente geral) e o círculo da Guarda elegerá o seu último deputado com 43423 votos (7527 votos acima do quociente geral), considerando assim apenas os valores limites do deputado «menos dispendioso», em termos de votos, e do «mais dispendioso». Deste quadro resulta que, em termos de igualdade do voto, verifica-se uma amplitude de variação de 22% do quociente geral (entre 1,9% abaixo do quociente geral no Porto e 20% acima do quociente geral na Guarda).
Aplicando o critério à Assembleia Legislativa Regional da Madeira, teremos que o deputado «menos dispendioso» será eleito em Porto Moniz por 1461 votos (2115 votos abaixo do quociente geral) e o «mais dispendioso» será eleito na Ribeira Brava por 4992 votos (1416 votos acima do quociente geral). Donde resulta uma amplitude de variação de cerca de 98% do quociente geral (entre 59% abaixo do mesmo e 39% acima dele).
Embora estas amplitudes de variação sejam impressionantes pela sua expressão numérica, afigura-se-me que por si só não constituem uma violação do princípio da igualdade do voto, atendendo a que as discrepâncias mais significativas em relação ao quociente geral apenas se verificam em duas circunscrições (Porto Moniz e Porto Santo), podendo considerar-se, apesar de tudo, que a resultante global do sistema, na sua expressão mais relevante (em 8 dos 11 círculos), consagra oscilações votos/deputado eleito entre cerca de 3300/1 deputado (Ponta do Sol) e 4900/1 deputado (Ribeira Brava).
Este tipo de discrepâncias verifica-se, aliás, na generalidade dos sistemas eleitorais onde se adopta um modelo de distribuição dos mandatos pelos círculos que resulta da confluência entre deputados atribuídos por contingente (mínimo de x deputados por círculo) e deputados atribuídos por um quociente baseado no número de recenseados ou sua fracção. É, por exemplo, o caso espanhol, cuja lei eleitoral consagra que existirão dois deputados por circunscrição e mais um por cada 144500 habitantes ou fracção superior a 70000. Neste sistema, o deputado «menos dispendioso» é eleito por 33000 votos (em Soria) e o deputado mais «dispendioso» é eleito por 141200 votos (em Madrid). Assim, em Espanha, sendo o quociente geral de 100000 eleitores por deputado, a amplitude de variação é de 108% do quociente geral (entre 67% abaixo desse quociente e 41,2% acima dele).
Adite-se que, precisamente por esta razão, o sistema eleitoral espanhol tem sido seriamente contestado, não na óptica da violação do princípio da igualdade do voto, mas sim na óptica da limitação à representação proporcional que tal metodologia inevitavelmente comporta (cf., a este propósito, Dieter Nohlen, «Los sistemas electorales entre la ciencia y la ficción.
Requisitos históricos y teóricos para una discusión racional», in Revista de Estudios Políticos, n.º 42, Novembro-Dezembro de 1984, pp. 7 e segs.).
No limite, poderá dizer-se que a questão da igualdade do voto está menos dependente da fórmula de decisão do que da própria dimensão das circunscrições eleitorais. Com efeito, mesmo nos sistemas de representação maioritária, a contestação aos seus resultados é feita na óptica da fórmula de decisão e do «desperdício» de votos que a eleição uninominal a uma volta representa à escala nacional para o partido perdedor. Mas já na óptica da dimensão das circunscrições eleitorais, os defensores do sistema maioritário assentam a sua argumentação precisamente no respeito pelo princípio da igualdades do voto garantido na fase da definição dos círculos, na consagração de limites rígidos à variação da sua dimensão e na igualdade de oportunidades dos partidos concorrentes em cada circunscrição para se poderem sagrar como ganhadores à escala nacional.
Cite-se, a propósito, o caso da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal dos Estados Unidos da América (país onde se encontram os melhores exemplos de escola de gerrymandering eleitoral), que tem definido como limite à variação da dimensão de cada círculo uninominal ao nível de Estado federado um máximo de 10% acima ou abaixo do quociente geral desse Estado, desta forma controlando a possibilidade de manipulação dos resultados em função da dimensão das circunscrições eleitorais e simultaneamente garantindo o princípio de igualdade do voto.
7 - Chegado a este ponto, ao considerar que a questão da igualdade do voto é, por si mesma, insuficiente para prefigurar uma violação da Constituição e ao comungar do essencial da argumentação do Acórdão quanto à relevância dos limites das circunscrições eleitorais para efeitos da resultante global proporcional do sistema, cumpre referir finalmente que se me afigura inexistir razão bastante para justificar a assinalada manifesta entorse ao princípio da representação proporcional com base no princípio da autonomia regional.
Na realidade, o decreto em apreço consagra uma solução que fere gravemente o princípio da representação proporcional, sem que a solução encontrada se possa justificar por inelutáveis e inultrapassáveis condicionalismos da Região Autónoma da Madeira, designadamente de ordem geográfica. Com efeito, se no caso dos Açores, a existência de diversas ilhas, pela própria natureza das coisas, ainda poderia constituir um elemento integrante das especificidades regionais em função das quais a autonomia político-administrativa da Região foi concebida, e, consequentemente, justificar a pulverização de círculos eleitorais de diminuta dimensão em virtude do valor maior de garantir a identidade da representação política de cada uma delas, através de um círculo eleitoral próprio, na respectiva assembleia legislativa regional, tal não se verifica na Madeira, onde apenas Porto Santo constitui uma ilha separada (eventualmente a justificar um círculo eleitoral próprio de reduzida dimensão, por efeito de aplicação dos critérios atrás indicados para a Região Autónoma dos Açores) e onde as demais 10 circunscrições se situam na ilha da Madeira, com absoluta contiguidade geográfica entre si, à semelhança do que acontece com as circunscrições eleitorais no continente para a Assembleia da República (os distritos).
É que a coincidência dos municípios com os círculos eleitorais não constitui um postulado da Constituição, mas antes uma livre escolha do legislador, da qual resulta a assinalada entorse ao princípio da representação proporcional.
Mas nada na lei fundamental obriga a essa coincidência. Pelo que outras soluções seriam concebíveis, que, sem comportarem o aumento desmesurado da composição da assembleia legislativa regional, efectivamente garantissem o eficaz funcionamento do sistema de representação proporcional (v. g., o agrupamento num círculo eleitoral de dois ou mais conselhos, a criação de um círculo único à escala regional ou até a destrinça entre círculos de candidatura - coincidentes com cada município - e círculos de apuramento dos resultados - formados com base no agrupamento de concelhos).
A autonomia político-administrativa das regiões autónomas, sendo de base territorial, não é consagrada constitucionalmente como a resultante de uma representação intermunicipal que impusesse o município como matriz das diferentes circunscrições eleitorais. A que acresce que, em bom rigor, o único postulado em termos de definição das circunscrições eleitorais que nos fornece a doutrina e a prática concreta aponta no sentido de não desagregar entidades administrativas por vários círculos eleitorais (v. g., não dividir um Concelho integrando parte ou partes dele em dois ou mais círculos eleitorais), nada impedindo, como sucede nas eleições para a Assembleia da República, que uma circunscrição eleitoral compreenda vários concelhos agregados.
Assim sendo, a tradição de 14 anos de autonomia regional de coincidência dos círculos eleitorais com os municípios não constitui, por si só, em meu entendimento, razão bastante para configurar um interesse regional ancorado no princípio da autonomia regional que legitime a distorção da proporcionalidade que o sistema normativo em apreço produz. Até porque não me parece aceitável que se justifique uma entorse a um princípio constitucional de tão assinalável relevância, como é o princípio da representação proporcional, apenas com base na pretensa tradição de um sistema cuja conformidade constitucional não se pode dar por adquirida como ponto de partida de um juízo de constitucionalidade, nem se pode presumir apenas por força do decurso do tempo e da ausência de iniciativas de fiscalização da respectiva constitucionalidade.
Daí o meu voto de vencido, por entender que há violação do princípio da representação proporcional constante do n.º 2 do artigo 233.º da Constituição. - António Vitorino.
Declaração de voto
Votei vencido na parte em que o acórdão se não prenunciou pela inconstitucionalidade das normas constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 10.º do Decreto da Assembleia da República n.º 293/V, que aprova o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, pelas seguintes razões:1 - A Constituição Portuguesa consigna, no seu artigo 13.º, o princípio da igualdade e estabelece, no artigo 10.º, n.º 1, que «o povo exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico», ou seja, consagra, como princípio básico atinente ao exercício do poder político, a igualdade de sufrágio.
Essa igualdade de sufrágio, assente na regra one man, one vote, one value, implica não só a proibição do voto plural, como também a exclusão de todos e quaisquer artifícios tendentes a conceder, na prática, ao voto de certos cidadãos um peso superior ao voto dos restantes.
Questão particularmente conhecida e tratada pela jurisprudência e pela doutrina, neste domínio, é a que se refere à delimitação das circunscrições eleitorais e à atribuição de mandatos a cada uma das circunscrições.
Na verdade, para que o voto de todos os cidadãos seja efectivamente igual, o número de eleitores de cada circunscrição há-de ser idêntico (no caso de círculos uninominais) ou, então, o número de mandatos atribuídos a cada circunscrição há-de ser proporcional ao respectivo número de eleitores (no caso de círculos plurinominais).
Por isso, os desvios a esta regra ou se encontram especialmente previstos na Constituição - como acontece no artigo 152.º, n.º 2, da nossa lei fundamental, para o caso dos círculos de fora do território nacional - ou só poderão ser admitidos em casos excepcionais, fundados em circunstâncias particularmente atendíveis, e desde que não afectem de forma significativa a igualdade do sufrágio, encarada, agora, numa perspectiva mais geral.
Há, pois, que determinar se foram ultrapassados os limites constitucionalmente admissíveis para os desvios ao princípio da igualdade nesta matéria.
2 - Desde 1962 (caso Baker v. Carr) que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América tem vindo a apreciar questões paralelas, considerando geralmente como inadmissíveis desvios superiores a 20% entre circunscrições (caso Chapman v. Meier).
Aliás, numa jurisprudência assaz sugestiva, a Supreme Court afirmou que «o legislador representa pessoas, não árvores ou hectares», já que «é eleito por eleitores, não por quintas ou cidades ou interesses económicos». Assim, «se um Estado federado decidir que o voto dos cidadãos numa parte do Estado pesará duas vezes, cinco vezes ou 10 vezes o valor do voto dos cidadãos noutra parte desse Estado, há-de entender-se que o direito de voto dos que residirem na parte desfavorecida foi efectivamente diminuído», sendo, por outro lado, «evidente que o efeito dos projectos de recorte de circunscrição eleitorais que atribuíssem o mesmo número de mandatos a um número desigual de eleitores seria idêntico», ou seja, igualmente ilegítimo (caso Reynolds v. Sims, in P. G. Kauper e F. X. Beytagh, Constitucional Law Cases and Materials, 5.ª ed., 1980, pp. 997 e segs.).
E a mesma Supreme Court esclarece, de forma igualmente sugestiva, que, «na medida em que o direito de voto de um cidadão for diminuído, é-o igualmente a sua qualidade de cidadão. O peso do voto de um cidadão não pode depender do seu domicílio. O número de habitantes é necessariamente o ponto de partida e o critério dominante nos litígios respeitantes à delimitação das circunscrições eleitorais» (id., ibid.).
Por seu turno, o Tribunal Constitucional Alemão, em sentença de 22 de Maio de 1963, mandou alterar a delimitação dos círculos eleitorais, considerando que a delimitação então vigente se tinha «tornado inconstitucional, na medida em que já não correspondia manifestamente à repartição da população e em que já não se podia esperar que a distorção fosse reabsorvida», pelo que o legislador deveria «modificar a delimitação das circunscrições, reconduzindo os desvios dos círculos sobrepovoados ou subpovoados relativamente à média nacional a um número constitucionalmente aceitável» (Jean-Claude Béguin, Le contrôle de constitutionnalité des lois en République fédérale d'Allemagne, Paris, 1982, p. 278).
Também o Supremo Tribunal Japonês se tem debruçado sobre o assunto (designadamente nas suas decisões de 14 de Abril de 1976, de 7 de Novembro de 1983 e de 17 de Julho de 1985), considerando que a Constituição impõe a igualdade de representação e apontando, segundo parece, para a inadmissibilidade de a diferença de representatividade ultrapassar a relação de 1 para 3 - neste sentido, por sentença de 17 de Fevereiro de 1987, julgou inconstitucional a delimitação dos círculos para a eleição do conselho departamental de Tóquio, em que o desvio atingia a relação de 1 para 3,4 (cf. Mamiko Ueno, Principe d'égalité et droit de vote, policop., Aix-en-Provence, 1989).
Finalmente, refira-se a jurisprudência do Conselho Constitucional Francês, que, a propósito das eleições para a assembleia do território da Nova Caledónia, emitiu duas importantes decisões - 196 DC e 197 DC, de 8 e 23 de Agosto de 1985, respectivamente -, onde afirma expressamente que os critérios de delimitação das circunscrições hão-de ser «essencialmente» demográficos, embora possam não o ser «exclusivamente», e acaba por aceitar, tendo em conta «outros imperativos de ordem geral», que entende poder ser levado em conta, «numa medida limitada», um desvio entre circunscrições na relação de 1 para 1,83, depois de ter rejeitado um desvio na relação de 1 para 2,13 (cf. Louis Favoreu e Loïc Philip, Les grandes décisions du Conseil constitutionnel, 4.ª ed., Paris, 1986, pp. 677 e segs.).
3 - No caso vertente, e de acordo com as normas em causa, os círculos eleitorais para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira ficam assim constituídos, segundo os dados do último recenseamento eleitoral, no que se refere ao número de eleitores que os compõem, ao número de mandatos que lhes são respectivamente atribuídos e ao número de eleitores por mandato:
(ver documento original) No total, a Região Autónoma da Madeira conta com 191590 eleitores recenseados, que se distribuirão por 11 círculos eleitorais, sendo o número médio de eleitores por mandato de 3756, já que o número total de mandatos será de 51.
Verifica-se, pois, que o desvio existente entre o círculo com maior número de eleitores por mandato - Ribeira Brava, com 4992 - e o número médio é de 33%, enquanto o desvio entre o círculo com menor número de eleitores por mandato - Porto Moniz, com 1461 - e o mesmo número médio atinge percentagem ainda mais elevada, da ordem dos 61%.
Por outro lado, o desvio entre circunscrições atinge a relação de 1 para 3,41 - ou seja, excede manifestamente a relação de 1 para 3 - no caso de Porto Moniz (1461), quando comparado com a Ribeira Brava (4992).
Importa, pois, averiguar se uma distorção como esta, que, como vimos, conduz a que o peso relativo do voto de um eleitor de Porto Moniz seja 3,41 vezes superior ao do voto de um eleitor da Ribeira Brava, é compaginável com o princípio constitucional da igualdade de sufrágio.
4 - A conclusão que mais imediatamente se retiraria dos números apontados e que, pelo menos aparentemente, coincidiria com a jurisprudência de tribunais congéneres estrangeiros seria a da inadmissibilidade constitucional da solução ora preconizada.
Todavia, em sentido contrário sempre se poderia invocar, em primeiro lugar, que a desigualdade apenas se manifesta verdadeiramente em relação à atribuição de dois mandatos - um em Porto Moniz e um em Porto Santo - num total de 51 mandatos de deputados regionais, o que torna a desigualdade muito limitada e com consequências quase despiciendas.
Em segundo lugar, tal desigualdade, num dos casos, encontraria justificação na circunstância de se ter pretendido salvaguardar a autonomia, enquanto circunscrição eleitoral, de um espaço geográfico que coincide com o de uma das ilhas do arquipélago (Porto Santo), sendo certo que a sobrerepresentação constituiria o preço a pagar para ultrapassar a dificuldade resultante da existência de círculos uninominais no quadro de um sistema de representação proporcional. E a isto acresceria que, no outro caso, puramente remanescente - o de Porto Moniz -, o desvio à regra se justificaria, porque apenas marginal, para se poder manter a coincidência entre divisão eleitoral e divisão administrativa.
Muito embora cada um destes argumentos, de per si, não deva ser considerado suficiente para afastar a violação do princípio da igualdade de sufrágio, admite-se que a sua combinação possa ter peso suficiente para se considerar que, in casu, se encontra justificado o desvio decorrente das normas impugnadas quanto ao respeito pelo aludido princípio.
5 - Todavia, as normas questionadas pelo Presidente da República, constantes dos n.os 2 e 3 do artigo 10.º do decreto da Assembleia da República em causa, violam irremediavelmente o princípio da proporcionalidade, designadamente quando apreciadas no contexto do n.º 1 do mesmo artigo 10.º, que faz coincidir os círculos eleitorais com os municípios.
A representação proporcional encontra-se expressamente consagrada na Constituição e tem de ser aplicada nas eleições para as assembleias legislativas regionais. Com efeito, a lei fundamental, no seu artigo 116.º, que regula os princípios gerais do direito eleitoral, estabelece que «a conversão dos votos em mandatos far-se-á de harmonia com o princípio da representação proporcional» (n.º 5), sendo certo que o artigo 233.º, n.º 2, acrescenta, para o caso que nos interessa, que «a assembleia legislativa regional é eleita por sufrágio universal, directo e secreto, de harmonia com o princípio da representação proporcional»; este relevo constitucional concedido à representação proporcional encontra, porém, o seu expoente máximo no artigo 288.º, que, ao estabelecer os limites materiais da revisão constitucional, inclui entre eles «o sistema de representação proporcional» na «designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local» [alínea h)].
Ora, este princípio é ferido de forma inaceitável pelo sistema instituído pelas normas em apreço.
Na verdade, consoante assinalam Gomes Canotilho e Vital Moreira, cuja doutrina é, aliás, citada no Acórdão, «o sistema proporcional há-de garantir duas coisas: a) que todas as correntes políticas minimamente significativas obtenham representação, fazendo eleger candidatos seus; b) que as várias correntes políticas obtenham representação em proporção da sua quota de votos, sem discrepâncias significativas» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., p. 21).
Assim sendo, para verificar se o sistema ora instituído pelas normas impugnadas é ou não compatível com a Constituição, cumpre averiguar, primeiro, qual a sua efectiva configuração para, posteriormente, se poder aferir da conformidade dessa configuração com os índices exigíveis a um verdadeiro sistema proporcional, quer no que respeita à justiça na representação - relação entre as percentagens de votos obtidos e de mandatos atribuídos -, quer no que se refere à sua operatividade sociológica e política - grau de representatividade das minorias (sobre estas duas vertentes, cf. Bernard Owen, «Aux origines de l'ideé proportionnelle», in Pouvoirs, n.º 32, p. 15).
6 - Consoante resulta dos cálculos efectuados a partir dos critérios estabelecidos nas normas em apreço sobre os dados do último recenseamento eleitoral fornecidos pelo STAPE, existirão na Região Autónoma da Madeira, e para a eleição da respectiva assembleia regional, 11 círculos eleitorais, dos quais sete com dois mandatos cada um, um com quatro mandatos, dois com cinco mandatos cada um, e um com 23 mandatos.
Quer isto dizer que dos 51 deputados 14 (ou seja, 27,5%) passarão a ser eleitos em círculos binominais, sendo certo que tais círculos representam cerca de 64% da totalidade dos círculos eleitorais (sete em 11). Assinale-se que, anteriormente, só oito deputados em 56 (ou seja, 14%) eram eleitos em círculos binominais ou uninominais e que tais círculos eram apenas cinco, num total de 11, não atingindo, pois, a maioria dos círculos.
Por outro lado, pelo sistema ora instituído, 28 dos 51 deputados à Assembleia Regional passam a ser eleitos em círculos com menos de seis mandatos atribuídos, quando, pelo sistema anterior, só 24 dos 56 deputados, seriam, na situação actual do recenseamento, eleitos em círculos dessa dimensão. Isto é, mais de metade dos deputados passarão a ser eleitos em círculos de pequena dimensão.
7 - Desde a já clássica obra de Douglas Rae que é sabido que «o desvio médio entre a votação e a percentagem de mandatos de cada partido varia em proporção inversa da dimensão dos círculos eleitorais: quando a dimensão aumenta, o desvio médio diminui» (The Political Consequences of Electoral Laws, New Haven, 1971, p. 115).
Aliás, a tal conclusão chegam todos os cultores da ciência política moderna, onde se colhem afirmações como, por exemplo: «a percentagem em que um partido deixa de ser penalizado pela sua pequenez tende a aumentar com a diminuição da dimensão dos círculos eleitorais» (Rein Taagepera, The Effect of District Magnitude and Properties of Two-Seat Districts, in Arend Lijphart e Bernard Grofman, Choosing an Electoral System. Issues and Alternatives, p.
93); «têm tentado também reduzir a efectividade da representação proporcional através da redução repetida do número de deputados eleitos em cada círculo», já que tal «aumenta o número de votos perdidos e, consequentemente, as correspondentes discrepâncias entre o apoio popular dos partidos e a respectiva representação» (Enid Lakeman, How Democracies Vote - A Study of Electoral Systems, p. 296); «as diversas dimensões dos círculos eleitorais produzem o seguinte efeito: quanto maior for o círculo, maior será a proporcionalidade» (Dieter Nohlen, Sistemas Electorales del Mundo, 1981, p. 107). Isto não significa que para se respeitar o princípio da proporcionalidade seja necessário consagrar legalmente um círculo eleitoral único, como forma de assegurar uma integral proporcionalidade.
Com efeito, por um lado, e como se assinala no acórdão, o respeito pelo princípio da proporcionalidade não implica a adopção de uma proporcionalidade absoluta; por outro lado, e conforme se encontra amplamente demonstrado na doutrina da especialidade, a proporcionalidade aumenta de força explosiva, por cada mandato a mais, até aos seis mandatos, de forma muito acentuada entre os seis e os 10 mandatos, apenas significativamente entre os 10 e os 20 mandatos, mas tão-só ligeiramente acima deste último número (cf. Douglas Rae, ob. cit., pp. 116 e 117).
Necessário é, pois, tão-só, que cada círculo «eleja um número de deputados suficientemente grande para ser divisível de modo a atribuir mandatos a todas as forças políticas que obtenham uma percentagem significativa de votos» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 162). Esta necessidade, aliás, já havia sido detectada pela Comissão Constitucional, que, a propósito da Lei Eleitoral para a Assembleia da República, assinala:
Aqui, embora a pluralidade de círculos se retire da própria letra constitucional (artigo 152.º, n.º 2), o limite substantivo inultrapassável é o que resulta da imposição de não frustrar a regra da proporcionalidade, elevada a limite material de revisão constitucional [artigo 290.º, alínea h), in fine]. Esta regra ficaria frustrada, por exemplo, se o País fosse dividido em círculos com um número insignificante de deputados. [Parecer 29/78, Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7.º, p. 60].
Eis, pois, a questão: é devidamente assegurada a representação proporcional aí onde 27,5% dos mandatos são disputados em círculos binominais e 55% dos mesmos mandatos são decididos em circunscrições que elegem cinco ou menos deputados? 8 - Na generalidade dos países da Europa Ocidental que adoptam sistemas de representação proporcional, a dimensão dos círculos eleitorais tende a variar, usualmente, entre os seis e os 20 mandatos (cf. Rein Taagepera, ob. cit., p.
91; Dieter Nohlen, «Panorama des proportionnelles», in Pouvoirs, n.º 32, pp. 38 e 39).
Esta rejeição, salvo casos excepcionais ou muito limitados, de círculos eleitorais com menos de seis mandatos radica na circunstância de, em tais círculos, a proporcionalidade não funcionar de forma minimamente adequada.
Assim, Dieter Nohlen não tem rebuço em afirmar que «em matéria de representação proporcional somos confrontados, ainda, em pequenas circunscrições (três a cinco mandatos), com particulares dificuldades de classificação. Nas pequenas circunscrições, os mandatos só muito imperfeitamente conseguem tomar em consideração, de forma adequada, todos os partidos políticos. A vantagem de que beneficiam os grandes partidos nas circunscrições eleitorais - considerada a nível do país no seu conjunto - envolve diferenças consideráveis entre a percentagem de votos e a percentagem dos mandatos atribuídos, de modo que a proporcionalidade como regra de decisão, quando aplicada nas pequenas circunscrições, não conduz à representação proporcional. Isto significa que o voto proporcional nas pequenas circunscrições conduz a um sistema de representação maioritário» (»Panorama ...», cit., p. 34).
Repare-se que círculos pequenos, para este autor, são os de três a cinco mandatos, já que - parece - os de dois mandatos nem sequer são concebíveis.
Esta é também a opinião de Lakeman, já que a propósito desses círculos de dois mandatos afirma que são «demasiado pequenos para permitir uma justa representação dos partidos políticos» (ob. cit., p. 231).
Também Douglas Rae, no seu já referido célebre estudo, considera que os círculos de menos de seis mandatos são «pequenos» e acrescenta que «as fórmulas eleitorais escolhidas para produzir proporcionalidade dependem em larga medida da dimensão dos seus círculos para a sua eficácia» e que «dimensões muito pequenas, digamos, de três mandatos, frustrarão até a mais precisa fórmula de representação proporcional nos seus efeitos práticos» (ob. cit., p. 119).
Tanto parece bastar para que se possa concluir que o sistema adoptado pelas normas em apreço, quer pela elevada percentagem de círculos de dois mandatos que institui, quer por fazer eleger a maioria dos deputados em pequenos círculos onde a proporcionalidade sofre profundas distorções, é radicalmente incompatível com o princípio da representação proporcional constitucionalidade consagrado.
9 - É possível, porém, avançar mais na demonstração da manifesta inconstitucionalidade das normas impugnadas, nesta perspectiva.
Supondo que cada partido manteria em futuras eleições as mesmas percentagens de voto que obteve, em cada círculo, nas últimas eleições para a Assembleia Regional, de acordo com os resultados constantes do mapa mandado publicar pela Comissão Nacional de Eleições (Diário da República, 1.ª série, de 28 de Outubro de 1988), teríamos que as respectivas percentagens de votos e de mandatos seriam as seguintes:
(ver documento original) Verifica-se, assim, dada a dimensão das circunscrições, que o partido mais votado obteria um «benefício» de 14,11%, enquanto todos os outros seriam penalizados. Particularmente significativa e reveladora, porque chocante, é a circunstância de o CDS, apesar de obter mais votos, ser contemplado com menos deputados que a UDP: tal fixar-se-ia a dever ao facto de o CDS conseguir melhores resultados exactamente nos círculos mais pequenos, onde o partido maioritário obtém, geralmente, a totalidade dos mandatos em disputa.
A injustiça do sistema - em termos de representação proporcional - é gritante, não parecendo legítimo ignorar estes números, cujo significado se afigura inegável.
10 - O cálculo das percentagens de mandatos obtidos por cada partido, quando comparadas com as respectivas percentagens de votos, permite detectar alguns índices que claramente colocam o sistema ora adoptado fora dos esquemas comuns da representação proporcional.
Particularmente interessante, neste domínio, é a determinação do denominado índice de distorção da proporcionalidade, correspondente ao quociente da percentagem de mandatos pela percentagem de votos multiplicado por 100 (Francesc Pallarés, «La distorsión de la proporcionalidad en el sistema electoral español. Análisis comparado e hipótesis alternativas, in Revista de Estudios Políticos, n.º 23, p. 235).
Tal índice, para os diversos partidos, seria o seguinte:
PPD/PSD - (76,47 : 62,36) x 100 = 123;
PS - (16,79 : 13,72) x 100 = 81;
CDS - (8,19 : 3,92) x 100 = 47;
UDP - (7,73 : 5,88) x 100 = 76.
Este resultado, quando comparado com o usual nos países europeus que adoptam efectivos sistemas proporcionais, é bastante deficiente, já que quanto mais cada índice se afasta de 100 maior é a distorção, representando os valores superiores a 100 um benefício e os inferiores uma penalização (repare-se, a título de exemplo, que esse índice 100 foi atingido, de acordo com o estudo citado, por partidos liberais na Alemanha, na Bélgica, na Holanda, na Áustria, na Finlândia, na Dinarmarca e na Suécia, com percentagens de votos, respectivamente de 10,6%, 15,6%, 17,9%, 5,4%, 4,3%, 12% e 11%).
Mais significativa ainda é a determinação do denominado índice de proporcionalidade, que se calcula somando as diferenças entre a percentagem de mandatos e de votos de cada partido, dividindo esse número, depois, por 2, e abatendo o resultado a 100.
No caso em presença, o índice de proporcionalidade estaria entre 86 e 87, assim calculado:
100 - {[(76,47 - 62,36) + (16,79 - 13,72) + (8,19 - 3,92) + (7,73 - 5,88) + 2,03 + 0,62 + 0,40] : 2} Ora, retirando o caso da Espanha (onde os estudos demonstraram que as distorções afectavam irremediavelmente a proporcionalidade e onde houve já alterações da legislação), verifica-se que o quadro dos índices de proporcionalidade é o seguinte (apud Richard Rose, «En torno a las opciones en los sistemas electorales: alternativas políticas e técnicas», in Revista de Estudios Políticos, n.º 34, p. 97):
(ver documento original) A mera comparação com este quadro permite, sem margem para quaisquer dúvidas, colocar o sistema propugnado pelas normas em apreciação dentro dos valores médios próprios dos sistemas maioritários (entre 80 e 90) e afastá-lo dos valores médios atingidos pelos sistemas de representação proporcional (entre 90 e 98).
Tudo, pois, confirma a conclusão a que já se chegou: o princípio da representação proporcional é grosseiramente violado pelas normas questionadas.
11 - A isto acresce que os índices de proporcionalidade e de distorção ainda se agravariam mais no caso de o partido maioritário, dentro de certos limites, vir a baixar a sua percentagem de votos e de os partidos da oposição aumentarem as suas percentagens.
Com efeito, nessa hipótese, a diminuição da percentagem de mandatos obtida pelo partido mais votado seria menos significativa que a diminuição dos seus resultados de votação - isto, como se assinalou, desde que não fossem ultrapassados certos limites; ou seja, com as alterações ora introduzidas alarga-se a margem de garantira de sobrerrepresentação do partido mais votado.
Assim sendo, não se vê como recusar que, no caso vertente, se está perante um caso de «engenharia eleitoral».
De qualquer forma, como o acórdão entende que a solução adoptada «ainda se contém, pois, dentro de limites toleráveis, não resultando daí desfigurado o princípio da proporcionalidade da conversão de votos em mandatos, de tal modo que resulte num julgamento de inconstitucionalidade», cabe perguntar se tal jurisprudência significa que o legislador poderia, impunemente, quanto à eleição da Assembleia da República, criar 32 círculos eleitorais de 2 mandatos cada um, mais 5 círculos eleitorais de 4 mandatos cada um e, ainda, 9 círculos eleitorais com 5 mandatos cada um, sendo, assim, 129 dos 235 deputados eleitos em círculos de reduzida dimensão.
É que, na devida proporção, tal corresponderia, na íntegra, ao que ora se julgou não merecer censura para a eleição da Assembleia Legislativa Regional da Madeira e teria, seguramente, como consequência eliminar, por essa única via, vários dos actuais partidos parlamentares, reduzindo ainda outros a uma dimensão meramente regional.
12 - Não se diga, em sentido contrário, que um círculo eleitoral pequeno em qualquer parte do mundo - e, portanto, no continente - já será um círculo médio na Madeira, porque o universo eleitoral é reduzido.
Na verdade, sendo reduzido o universo eleitoral, a consequência estará na correspondente redução do número de círculos, e não na redução do número de mandatos por círculo, porquanto esta última implica um atentado ao princípio da representação proporcional, já que a operação matemática da divisão por quocientes não varia em conformidade com a dimensão do universo eleitoral: para obter um mandato, a percentagem necessária é sempre a mesma e varia com o número total de mandatos a atribuir na circunscrição, independentemente do número absoluto de votos.
E se tal argumento, como vimos, se afigura falacioso, mais valor não deve ser atribuído a qualquer fundamento que esgrima com a «especificidade» regional ou com o princípio autonómico.
Com efeito, não se descortina em que medida a autonomia da Madeira possa ter a ver com a delimitação ou dimensão dos círculos eleitorais ou de que forma tal autonomia possa exigir a coincidência entre círculos eleitorais e municípios. E o mesmo se diga relativamente às especificidades regionais, já que apenas se poderia invocar, nesse sentido, a conveniência de a ilha de Porto Santo constituir uma circunscrição eleitoral autónoma.
Para além disso, não se pode fundar a opção legislativa na circunstância de a coincidência dos círculos eleitorais com os municípios ser «uma tradição no nosso regime eleitoral democrático, quanto à eleição em causa».
Em primeiro lugar, porque as eleições para a Assembleia Regional da Madeira só existem há 15 anos, o que é manifestamente um período de tempo demasiado curto para se poder falar em tradição; em segundo lugar, porque a coincidência em causa foi instituída por um Estatuto provisório e só agora a autonomia madeirense se estabelizará, com a aprovação do seu Estatuto Político-Administrativo definitivo; finalmente, porque nenhuma tradição poderá subsistir se for contrária à Constituição, sob pena de qualquer lei inconstitucional se convalidar pelo mero decurso do tempo.
13 - Para terminar, cumpre apenas assinalar que, no que respeita à eleição das assembleias legislativas regionais, o legislador, estando adstrito a respeitar o princípio da representação proporcional, goza de um grau de liberdade muito maior do que na regulamentação das eleições para a Assembleia da República.
Assim, por exemplo, não está sequer obrigado a dividir o território da Região em círculos eleitorais e a distribuir por esses círculos parcelares todos os mandatos, nem a seguir o método da média mais alta de Hondt.
Tal permitir-lhe-ia adoptar um sistema eleitoral que, mesmo utilizando a área dos municípios como critério de delimitação dos círculos eleitorais, ainda assim respeitasse o princípio de representação proporcional. Bastaria, para tanto, que as distorções resultantes da pequenez dos círculos fossem corrigidas através de um apuramento complementar efectuado a nível regional, o que se poderia fazer sem aumento do número de deputados actualmente existentes e seria mesmo possível com o número de deputados, mais reduzido, que resulta da aplicação das normas impugnadas.
Não existe, pois, qualquer justificação para a grave entorse que o princípio da representação proporcional vai sofrer na Região Autónoma da Madeira.
Entorse que, como se referiu, não pode radicar nas especificidades regionais, pois o que está em causa é a adequação, do ponto de vista matemático, do sistema ora instituído às exigências do regime eleitoral democrático vertido na lei fundamental, e a aplicação das regras matemáticas, tal como a dos princípios constitucionais democráticos, não pode ser diferente no continente e na Região Autónoma da Madeira. - Luís Nunes de Almeida.
1 - O Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril (Estatuto Provisório da Região Autónoma da Madeira), dispõe no artigo 7.º:
1 - Haverá 11 círculos eleitorais, correspondentes a cada um dos concelhos compreendidos pela Região e designados pelo respectivo nome.
2 - Cada um dos círculos referidos no número anterior elegerá um deputado por cada 3500 eleitores recenseados ou fracção superior a 1750.
Este preceito é repetido no artigo 2.º do Decreto-Lei 318-E/76, de 30 de Abril.
Pelo artigo 1.º do Decreto da Assembleia da República n.º 99/V (alteração ao sistema eleitoral para a Assembleia Regional da Madeira), a redacção do n.º 2 daquele artigo 7.º passou a ser a seguinte:
Cada um dos círculos referidos no número anterior elegerá um deputado por cada 4000 eleitores recenseados ou fracção superior a 2000.
Era evidente a preocupação de reduzir o número de deputados.
Mas a norma veio a ser vetada pelo Presidente da República, no seguimento do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 183/88, de 3 de Agosto, que se pronunciou pela sua inconstitucionalidade, nos termos do n.º 1 do artigo 279.º da Constituição.
Fundamento da inconstitucionalidade foi a violação do princípio da representação proporcional na conversão dos votos em mandatos, consagrado, como princípio geral de direito eleitoral, no n.º 5 do artigo 116.º da Constituição e reafirmado, para a eleição da Assembleia Regional, no n.º 2 do artigo 233.º E isto porque, em consequência da alteração introduzida pela norma em questão, a Região Autónoma da Madeira, que já tem dois círculos uninominais - Porto Moniz e Porto Santo -, viria a ter mais um: São Vicente.
O artigo 10.º do Decreto da Assembleia da República n.º 293/V (Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira), enviado ao Presidente da República para promulgação como lei, depois de dizer no n.º 1 que «cada município constitui um círculo eleitoral, designado pelo respectivo nome», dispõe no n.º 2:
Cada um dos círculos referidos no número anterior elege um deputado por cada 4000 eleitores recenseados ou fracção superior a 2000.
Trata-se, como se vê, de uma norma igual à do n.º 2 do artigo 7.º do Estatuto Provisório, na redacção dada pelo Decreto 99/V, atrás referido.
Mas, certamente para obviar à inconstitucionalidade em que o diploma anterior havia incorrido, insere o novo diploma uma norma (n.º 3 do mesmo artigo 10.º) impondo que cada círculo eleja, pelo menos, dois deputados. Diz-se aí, como efeito:
Cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados.
É a constitucionalidade das duas normas - as dos n.os 2 e 3 do artigo 10.º - que o Presidente da República põe em dúvida, à face ainda dos preceitos constitucionais citados.
2 - Antes de apreciar essa inconstitucionalidade, entendeu o Tribunal que devia conhecer da questão de saber se os estatutos das regiões autónomas podem versar matéria eleitoral.
Já no Acórdão 103/88 se pôs essa questão. Simplesmente, o Tribunal não a examinou, porque ela não era suscitada pelo Presidente da República. E o entendimento estão seguido mereceu o aplauso do Prof. Jorge Miranda na anotação que fez ao acórdão em O Direito, ano 121.º, 1989, II (Abril e Junho), pp. 364.
Nada tenho a acrescentar ao que a tal propósito ficou dito nesse Acórdão e ao que consta do comentário que lhe é feito na referida anotação.
Mas, vencido na questão prévia, cumpre-me, todavia, pronunciar-me sobre a questão de fundo, isto é, sobre a possibilidade de os estatutos das regiões autónomas versarem matéria eleitoral.
3 - Acerca do âmbito objectivo dos estatutos regionais, isto é, do conjunto das matérias que podem, e devem, ser reguladas pela lei estatutária, escreveram J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 2.º vol., 1985, nota V ao artigo 228.º (naturalmente à face da versão de 1982):
O princípio fundamental a ter em conta nesta matéria é o de que o estatuto regional é o estatuto de uma pessoa colectiva e, neste sentido, uma lei organizatória. Ele deve, pois, abranger todas - e deve abranger apenas - as matérias directamente definidas por esse objecto, designadamente:
atribuições das regiões autónomas (cf. artigo 229.º) e sua delimitação em relação às de outras pessoas colectivas territoriais (Estado, autarquias locais);
formação, composição e competência dos órgãos regionais e estatuto dos respectivos titulares (v. artigo 233.º, n.º 5). Em suma, o estatuto regional deve regulamentar as matérias previstas nos artigos 229.º a 235.º da Constituição em tudo aquilo que não esteja reservado para lei comum da AR, como sucede, por exemplo, com a lei eleitoral, a lei do sistema de planeamento e a lei do regime orçamental [artigo 167.º, alínea f), e artigo 168.º, alíneas m) e p), respectivamente].
Em concordância com este ponde de vista, disseram os mesmos autores na nota III ao artigo 233.º:
Deve notar-se que o regime eleitoral regional não é matéria de estatuto regional, mas antes de lei comum da AR (ou de decreto-lei autorizado).
Na anotação ao referido Acórdão 103/88 diz, por sua vez, o Prof. Jorge Miranda (também à face da 1.ª revisão da Constituição), justificando o seu entendimento de que os estatutos das regiões autónomas não podem, sob pena de inconstitucionalidade, versar matéria eleitoral:
A função de cada estatuto político-administrativo (sublinhe-se político-administrativo) consiste em definir as atribuições regionais (artigo 229.º da Constituição) e o sistema de órgãos de governo próprio da região (artigo 233.º); ou, em geral, em desenvolver, explicitar ou concretizar as normas do título VI da parte III da lei fundamental, adequando-as às especificidades e às circunstâncias mutáveis dessa região; não consiste em estabelecer os princípios de toda a vida política, económica, social e cultural que aí se desenrola, porque isso cabe à Constituição - que é a Constituição da República e não só do continente.
O estatuto não é uma Constituição, com amplitude potencialmente ilimitada;
tem estrutura de lei ordinária, ainda que reforçada; não pode assimilar-se ao Estatuto de Macau (o qual, por se reportar a território não integrado no Estado Português, teria necessariamente de possuir natureza constitucional, como decorre do artigo 296.º).
Por outro lado, competindo a iniciativa originária do estatuto ou das suas alterações (como bem se compreende) à assembleia regional (artigo 228.º), se o estatuto pudesse incluir qualquer matéria, ficaria, por esse modo, limitado o poder de iniciativa dos deputados, dos grupos parlamentares ou do Governo da República relativamente a essa matéria (artigo 170.º). A Assembleia pode, certamente, apresentar propostas de lei «no respeitante» à região sobre qualquer objecto (artigo 170.º, n.º 1, segunda parte), o que não se justifica é transformar essa matéria em matéria estatutária.
Finalmente, quanto às eleições, em especial, não se esqueça o tratamento homogéneo que recebem da Constituição, quer no plano dos grandes princípios substantivos (artigos 49.º e 116.º), quer no da regulamentação legislativa [artigos 167.º, alínea b), e 139.º, n.º 3, alínea g)], quer no da competência do Presidente da República [artigo 136.º, alínea b)], quer ainda no plano dos limites materiais da revisão constitucional [artigo 290.º, alínea h)].
Esse tratamento unitário e reforçado - compreensível por causa da importância fulcral das eleições em democracia representativa (artigo 10.º, n.º 1) - ficaria afectado se o regime das eleições regionais fosse repartido pelas leis eleitorais e pelos estatutos.
Nada na 2.ª revisão da Constituição põe em causa este entendimento.
E, por mim, nada tenho a contrapor-lhe.
Em seu abono apenas direi que, já na sua redacção originária, o artigo 302.º da Constituição distinguia os estatutos das regiões autónomas da lei eleitoral para as assembleias regionais. Lê-se aí, com efeito, no seu n.º 2:
Até 30 de Abril de 1976, o Governo, mediante proposta das juntas regionais, elaborará, por decreto-lei, sancionado pelo Conselho da Revolução, estatutos provisórios para as regiões autónomas, bem como a lei eleitoral para as primeiras assembleias regionais.
4 - Quanto à questão efectivamente suscitada pelo Presidente da República, ou seja, a da inconstitucionalidade dos n.os 2 e 3 do artigo 10.º do Decreto da Assembleia da República n.º 293/V:
Examinando os dados fornecidos pelo recenseamento eleitoral de 1990 dos eleitores inscritos nos municípios da Região Autónoma da Madeira, que figura no acórdão, conclui-se, no que aqui interessa, o seguinte:
a) Por força da norma especial do n.º 3 do artigo 10.º do Estatuto, cada um dos círculos eleitorais de Porto Moniz, Porto Santo e São Vicente, com 2923, 3364 e 5927 eleitores, respectivamente, passará a eleger dois deputados;
b) Por aplicação da regra do n.º 2 do mesmo artigo 10.º, cada um dos círculos eleitorais de Calheta, Ponta do Sol, Ribeira Brava e Santana elege igualmente dois deputados, apesar de nesses círculos haver, respectivamente, 9671, 6609, 9985 e 8192 eleitores.
Na verdade, o quociente da divisão de 9671, 9985 e 8192 por 4000 é sempre 2 e o resto inferior a 2000, e, quanto ao número 6609, o quociente da sua divisão por 4000 é 1, mas o resto é superior a 2000.
Ou seja, e para utilizar apenas dois casos limites: enquanto no círculo de Porto Moniz 2923 eleitores elegem dois deputados, no círculo da Ribeira Brava os seus 9985 eleitores elegem igualmente o mesmo número de deputados! É evidente a violação do princípio da igualdade do sufrágio ou da igualdade eleitoral dos cidadãos.
E, ao contrário do que se diz no acórdão, não há «especificidades, designadamente geográficas» - salvo, porventura, quanto a Porto Santo -, que justifiquem o «desvirtuamento» do princípio.
Por isso, votei no sentido da inconstitucionalidade dos n.os 2 e 3 do artigo 10.º do decreto em apreciação, isto é, contra a conclusão da alínea a) do acórdão. - Mário de Brito.