Acórdão 515/2000/T. Const. - Processo 46/00. - Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - José Manuel Patrão dos Santos veio impugnar judicialmente a liquidação da taxa relativa à instalação abastecedora de combustíveis líquidos, ar e água que a Câmara Municipal de Sintra, invocando o Regulamento de Taxas em vigor para o ano de 1994 e ao abrigo do seu artigo 42.º, n.º 5, entende ser devida a título de taxa de ocupação da via pública pela existência de uma instalação abastecedora de carburantes que, no entender do impugnante, está "inteiramente em propriedade particular, com abastecimento no interior da propriedade".
A Câmara de Sintra contestou a impugnação deduzida, tendo suscitado a questão da incompetência do tribunal para apreciar a questão.
O Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa, por decisão de 16 de Junho de 1997, depois de considerar improcedente a excepção deduzida, julgou a impugnação procedente e anulou a liquidação efectuada.
2 - A Câmara Municipal de Sintra, não se conformando com tal decisão, interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), defendendo que a taxa em questão tem plena cobertura ou na alínea c) ou na alínea o) do artigo 11.º da Lei 1/87, de 6 de Janeiro - Lei das Finanças Locais -, e que o facto gerador da referida taxa é a renovação da licença de funcionamento do posto de abastecimento em causa, considerando verificados todos os condicionalismos que permitem qualificar a quantia exigida como uma taxa verdadeira e própria, pelo que devia ser revogada a decisão da 1.ª instância.
O recorrido, José Manuel Patrão dos Santos, nas suas alegações defendeu o entendimento de que, no caso em apreço, não se trata de uma taxa mas antes de um verdadeiro imposto, uma vez que se não verificam os necessários requisitos para qualificar o pagamento exigido como taxa, pelo que além de ilegal "a exigência da quantia em causa ofende ainda o disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa".
O STA, por Acórdão de 24 de Novembro de 1999, decidiu negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Para assim concluir, o STA, com fundamento na jurisprudência do Tribunal Constitucional, entendeu que "sofrendo o artigo 42.º, n.º 5, da Tabela de Taxas aprovada pela Assembleia Municipal de Sintra em 20 de Outubro de 1989, em que se fundou a liquidação impugnada, de inconstitucionalidade orgânica, é ilegal a liquidação efectuada à sua sombra".
Face a esta decisão, o representante do Ministério Público junto do STA veio interpor recurso obrigatório de constitucionalidade, pretendendo que o Tribunal Constitucional aprecie se a norma do artigo 42.º, n.º 5, da Tabela de Taxas da Câmara Municipal de Sintra, publicada no edital 230/89, afronta a Constituição por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea i) (versão de 1989).
3 - Foram produzidas as pertinentes alegações, tendo o Ministério Público concluído pela forma seguinte:
"1.º Padece de inconstitucionalidade orgânica e formal, por violação dos princípios consagrados na constituição fiscal, a norma regulamentar que autoriza a Câmara Municipal de Sintra a liquidar taxa directamente incidente sobre instalações abastecedoras de combustíveis líquidos inteiramente situadas e abastecidas em terrenos privados, já que o montante pecuniário devido não corresponde a qualquer utilidade ou contraprestação facultada pela autarquia.
2.º Na verdade, não é facultada ao particular que explora na sua propriedade o referido posto de combustíveis a utilização de qualquer bem colectivo ou semipúblico e não sendo a referida taxa configurável como uma contraprestação de quaisquer despesas da Câmara inerentes às diligências que devam preceder a renovação da licença de exploração.
3.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida."
Pelo seu lado, José Manuel Patrão dos Santos, ora recorrido, também alegou, formulando uma única conclusão, pela qual "adere sem reservas à posição manifestada pelo digno procurador-geral-adjunto, e conclui nos mesmos termos".
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos. - 4 - Nos presentes autos foi recusada a aplicação da norma do artigo 42.º, n.º 5, da Tabela de Taxas aprovada pela Assembleia Municipal de Sintra em 20 de Outubro de 1989 por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição (versão de 1989).
Vejamos antes de mais o teor da norma em causa.
O edital 230/89 aprovou a Tabela de Taxas da Câmara Municipal de Sintra, que entrou em vigor, como consta do próprio edital, em 2 de Dezembro de 1989.
O artigo 42.º da Tabela, que se insere no capítulo IX, sobre "As instalações abastecedoras de carburante líquidos, ar e água", estabelece o seguinte:
"Artigo 42.º
Bombas de carburantes líquidos - cada uma e por ano:
1) ...
...
5) Instaladas inteiramente em propriedade particular com abastecimento no interior da propriedade - 235 520$00."
De acordo com a decisão recorrida, o posto de abastecimento de carburante de que é proprietário José Manuel Patrão dos Santos está integralmente instalado em terreno privado, exigindo a Câmara Municipal de Sintra a quantia de 2 364 620$00 a título de taxa de instalações abastecedoras de carburantes líquidos, ar e água relativa ao ano de 1995.
A decisão recorrida recusou a aplicação da norma em causa com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
Será assim?
5 - As autarquias locais gozam de autonomia financeira de acordo com o que se preceitua no artigo 240.º da Constituição (versão de 1989, hoje artigo 238.º). As receitas das autarquias "incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços" (n.º 3 do artigo 241.º).
De facto, o artigo 4.º da Lei das Finanças Locais então em vigor (Lei 1/87, de 6 de Janeiro - hoje substituída pela Lei 42/98, de 29 de Março) prevê como receitas do município, entre outras, o produto da cobrança de taxas por licenças concedidas pelo município, o produto da cobrança de taxas ou tarifas resultantes da prestação de serviços e as provenientes da gestão do seu património.
A competência legal para o estabelecimento de taxas municipais (e do respectivo montante) encontra-se prevista no Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, no seu artigo 39.º, n.º 2, alínea l), na redacção da Lei 18/91, de 12 de Junho, sendo atribuída à assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal.
Uma vez encontrada a entidade com competência para fixar taxas municipais, constata-se que o âmbito dessa competência está nitidamente demarcado pela lei (artigo 11.º da Lei das Finanças Locais) que define quais os benefícios ou utilidades proporcionados aos munícipes como contrapartida do pagamento de uma taxa.
De entre os fundamentos susceptíveis de, legalmente, poderem levar ao estabelecimento de uma taxa municipal, importa salientar a concessão do domínio público e aproveitamento dos bens de utilização pública e prestação de serviços ao público por parte das repartições ou dos funcionários municipais. As restantes utilidades ou benefícios elencados no preceito não têm aplicação ao caso em apreço.
Podendo os municípios criar taxas e fixar, sempre através das assembleias municipais, os respectivos montantes, não podem porém criar impostos ou tributos que devam ser tratados como impostos, uma vez que a criação e a definição dos elementos essenciais destes tributos estão sujeitas a reserva de lei parlamentar [artigo 106.º, n.º 2, e artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição - revisão de 1989].
No caso dos autos, concluiu-se que "a norma impositora do encargo em apreciação, porque criada por diploma não emanado pela Assembleia da República (ou pelo Governo, devidamente credenciado por aquela)" deve "ser considerada como enfermando do vício de inconstitucionalidade orgânica". Constata-se, assim, que a decisão recorrida considerou o encargo em questão ou como um imposto ou como uma contribuição especial, que, não sendo imposto, deve ser tratada como se, de facto, o fosse, isto é, sujeita à reserva de lei do Parlamento.
Vejamos.
6 - A averiguação sobre a conformidade constitucional do regime jurídico de uma dada receita pública impõe a determinação prévia da sua natureza. A determinação da natureza de taxa ou imposto de um certo tributo tem consequências diversas face ao regime constante da Constituição em vigor no momento da criação do encargo (revisão de 1989).
De facto, a criação de impostos e a definição dos seus elementos essenciais estão sujeitas a reserva de lei formal (ou a decreto do Governo dependente de autorização), enquanto as taxas podem ser estabelecidas por regulamento.
Importa, assim, apurar se o encargo que recai sobre as instalações abastecedoras de carburantes líquidos, ar e água, quando instaladas inteiramente em propriedade particular, com abastecimento no interior da propriedade, a que se reportam os autos, tem a natureza de uma taxa ou de um imposto, ou ainda de um tributo que deva ser tratado como um imposto.
A lei geral tributária, aprovada pelo Decreto-Lei 398/98, de 17 de Dezembro, no seu artigo 4.º, n.º 2, dá-nos um conceito legal de taxa quando estabelece que "as taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem de domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares".
Este Tribunal, para distinguir o imposto da taxa tem utilizado como critério geral o de saber se a prestação exigida tem carácter unilateral - correspondente ao imposto ou bilateral ou sinalagmático - correspondente à noção de taxa (cf. Acórdãos n.os 76/88 e 348/86, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., p. 331, e 8.º vol., p. 93, e, mais recentemente, o Acórdão 410/2000, tirado em plenário, de 3 de Outubro de 2000, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 22 de Novembro de 2000). Assim, estar-se-ia perante um imposto sempre que a obrigação do seu pagamento não esteja ligada a qualquer contraprestação específica por parte do Estado.
Segundo Teixeira Ribeiro (Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, p. 262), o "imposto é uma prestação pecuniária, coactiva e unilateral, sem carácter de sanção, exigida pelo Estado com vista à realização de fins públicos". A taxa, segundo o mesmo autor ("Noção jurídica de taxa", in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117.º, pp. 289 e segs.), "e a quantia coactivamente paga pela utilização individualizada de bens semipúblicos" (isto é, de bens que "satisfazem, além de necessidades colectivas, necessidades individuais, necessidades de satisfação activa, cuja satisfação exige a procura das coisas pelo consumidor") "ou como preço autoritariamente fixado de tal utilização".
Refere ainda o mesmo autor, "precisamente porque os bens semipúblicos satisfazem necessidades individuais, o Estado já pode conhecer quem é que particularmente pretende utilizá-los e pode, por conseguinte, tornar essa utilização dependente de, ou relacioná-la com, o pagamento de certa quantia. Se o fizer, tal quantia ou é paga voluntariamente, e temos uma receita patrimonial, ou o é coactivamente, e temos uma taxa".
Assim, enquanto os "impostos são prestações pecuniárias, coactivas, unilaterais e definitivas, sem carácter de sanção, exigidas a detentores de capacidade contributiva por entes que exercem funções públicas, com vista à realização destas", nas taxas, "à prestação do particular corresponde uma contraprestação específica, uma actividade do Estado ou de outros entes públicos especialmente dirigida ao respectivo obrigado, actividade esta que se há-de concretizar na prestação de um serviço público, no acesso à utilização de bens do domínio público ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares" (v. José Casalta Nabais, in Contratos Fiscais, Coimbra, 1994, p. 236).
Quando a actividade do Estado ou de outro ente público pela qual se exige ao particular o pagamento de uma certa quantia se traduz na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares, só se está perante uma taxa se essa remoção possibilitar a utilização individualizada e efectiva de um bem semipúblico. Se tal não acontecer, a quantia a pagar terá a natureza de um imposto (cf. Teixeira Ribeiro, in Revista Legislação e de Jurisprudência, citada, p. 292).
A menos que se entenda que se está perante a figura das contribuições especiais que, como se referiu, devem ser tratadas como impostos, quer sejam contribuições de melhoria (imposições instituídas com o fundamento económico-financeiro de tributar os aumentos de valor dos bens dos contribuintes imputáveis a obras financiadas pelos entes públicos e para o qual os devedores em nada contribuíram), quer sejam contribuições para maiores despesas (encargos destinados a obrigar os respectivos devedores a contribuir para as maiores despesas públicas imputáveis às suas actividades económicas). Estas contribuições especiais determinadas por maiores despesas públicas ou por aumentos de valor resultantes de investimentos públicos são, no entender de Nuno Sá Gomes ("Alguns aspectos jurídicos e económicos controversos da sobretributação imobiliária no sistema fiscal português", in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 387, Abril-Junho de 1997, p. 67), "impostos preponderantemente locais".
Tem, portanto, de se concluir que, para preencher o conceito de taxa, tem de existir uma contraprestação, que nem sempre pode significar para o particular o gozo de uma vantagem ou benefício nem tem de constituir o exacto correspectivo económico de um serviço ou de uma actividade da Administração. Assim, "a sinalagmaticidade que subjaz ao conceito de taxa não se alcança com qualquer prestação por parte do Estado: se esta não tem de representar sempre um benefício ou vantagem, e se não tem de existir uma exacta equivalência económica entre o pagamento do particular e a acção individualizada do Estado, a contraprestação há-de, pelo menos, apresentar uma natureza material [...] deverá ser possível identificar na esfera do cidadão o uso de um bem semipúblico" (P. Pitta e Cunha, J. Xavier de Bastos e A. Lobo Xavier, "Conceitos de taxa e imposto", in revista Fisco, n.os 51/52, p. 6).
7 - No caso em apreço, a Câmara Municipal de Sintra liquidou ao recorrido, proprietário de um posto de abastecimento de carburante, a taxa de instalações abastecedoras de carburantes líquidos, ar e água, de acordo com o n.º 5 do artigo 42.º da Tabela de Taxas da Câmara Municipal, nos termos do qual são taxadas as bombas de carburantes líquidos "instaladas inteiramente em propriedade particular com abastecimento no interior da propriedade".
Ora, através de uma taxa como a que vem identificada nos autos, o obrigado ao pagamento não beneficia da utilização dos serviços de repartição ou funcionários municipais nem da remoção de qualquer obstáculo jurídico ao exercício da actividade em causa. Assim, a imposição da taxa em apreciação apenas poderia fundar-se na ocupação do domínio público e aproveitamento de bens de utilização pública.
Porém, é manifesto que este tipo de contrapartida não pode concretizar-se na situação dos autos: de facto, estando o posto de abastecimento instalado inteiramente em terreno privado e decorrendo também na propriedade privada todos os actos relativos ao abastecimento e actividades complementares (como vem provado nos autos - ponto 3), a actividade de abastecimento das viaturas não implica qualquer utilização de bens semipúblicos, inexistindo qualquer conexão da taxa exigida com a ocupação de bens públicos, não sendo sequer possível ligá-la a uma eventual renovação de licença ou a quaisquer diligências que o município deva realizar para a conceder, como bem refere o Ministério Público nas suas alegações.
Não tem assim a referida taxa de instalações abastecedoras de combustíveis nem natureza nem estrutura sinalagmática, pois o respectivo montante não é contraprestação ou contrapartida de nada.
Não existindo qualquer contrapartida para a exigência do encargo em causa que represente a utilidade recebida pelo particular, o pagamento da quantia imposta no caso não constitui uma taxa, mas antes um imposto. E tendo sido criado através de simples edital camarário, foi violado o artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa (versão de 1989).
De acordo com tudo quanto fica exposto, o presente recurso tem de improceder.
III - Decisão. - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucional a norma do n.º 5 do artigo 42.º do edital camarário n.º 230/89, de 6 de Novembro, que aprovou a Tabela de Taxas da Câmara Municipal de Sintra, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa (versão da Lei 1/89, de 8 de Julho); e,
b) Em consequência, negar provimento ao presente recurso, confirmando o acórdão recorrido na parte impugnada.
Lisboa, 29 de Novembro de 2000. - Vítor Nunes de Almeida - Artur Maurício - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida.