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Acórdão 185/2000/T, de 27 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 185/2000/T. Const. - Processo 176/99. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - RAR - Refinarias de Açúcar Reunidas, S. A., deduziu impugnação contra a liquidação adicional da contribuição industrial grupo A referente ao exercício de 1981. O Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto, por decisão de 3 de Fevereiro de 1999, recusou a aplicação da norma constante dos artigos 1.º e 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei 128/82, de 23 de Abril, que veio extinguir parcial e retroactivamente a isenção de tributação dos rendimentos das "obrigações do Tesouro, curto prazo, 1981, 1.ª série". O tribunal a quo considerou que o parâmetro de constitucionalidade seria o texto resultante da 4.ª revisão constitucional, não obstante tratar-se de rendimentos auferidos em 1981. Em consequência, e em virtude da consagração constitucional expressa da proibição da retroactividade da lei fiscal, julgou a norma inconstitucional. Concomitantemente, considerou, também, tal norma violadora do princípio da confiança.

2 - O Ministério Público interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 1.º e 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei 128/82, de 23 de Abril, que vieram dar nova redacção ao artigo 23.º do Código da Contribuição Industrial.

Junto do Tribunal Constitucional, o Ministério Público apresentou alegações, que concluiu do seguinte modo:

"1.º É materialmente inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei 128/82, de 23 de Abril, enquanto elimina, com efeitos retroactivos, reportados ao ano de 1981, a isenção da contribuição industrial de que beneficiavam os rendimentos de títulos da dívida pública, limitando tal isenção apenas à parcela dos rendimentos que não excedesse 20 000 contos.

2.º A aplicação de tal norma, realizada por sentença proferida após a consagração constitucional do princípio da proibição da retroactividade da lei fiscal, deverá ter em conta o texto constitucional em vigor à data da prolação da decisão recorrida, conformando-se com a inovatória redacção atribuída ao n.º 3 do artigo 103.º da Constituição pela Lei Constitucional 1/97.

3.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade material constante da decisão recorrida."

A recorrida não contra-alegou.

3 - Tudo visto, cumpre decidir.

II - Fundamentação. - 4 - Os preceitos impugnados têm a seguinte redacção:

"Artigo 1.º

Os artigos 23.º [...] do Código da Contribuição Industrial passam a ter a seguinte redacção:

'Artigo 23.º

Consideram-se proveitos ou ganhos realizados no exercício os provenientes de quaisquer transacções ou operações efectuadas pelos contribuintes em consequência de uma acção normal ou ocasional, básica ou meramente acessória, e designadamente os derivados:

...

3.º De rendimentos de bens ou valores mantidos como reserva ou para fruição;

...'

Artigo 3.º

...

2 - A alteração introduzida no artigo 23.º é aplicável aos rendimentos de títulos da dívida pública auferidos durante o exercício de 1981, mas apenas à parte desses rendimentos que exceda 20 000 contos."

O artigo 23.º, n.º 3, na redacção inicial, ressalvava expressamente os rendimentos provenientes "de quaisquer títulos de dívida pública". A alteração legislativa operada pelo diploma de 1982 traduziu-se, portanto, na supressão desta ressalva.

5 - O Ministério Público considera, no mesmo sentido, aliás, da decisão recorrida, que o parâmetro de constitucionalidade, in casu, deve ser o texto resultante da 4.ª Revisão Constitucional que, no artigo 103.º, n.º 3, consagrou expressamente a proibição de retroactividade em matéria fiscal.

Porém, um dos fundamentos da recusa de aplicação por inconstitucionalidade da norma em apreciação não se prende directamente com tal questão. Com efeito, o Tribunal Tributário de 1.ª Instância do Porto, na decisão recorrida, considerou que a norma em causa viola o princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático.

Confrontar-se-á, nessa medida, e em primeiro lugar, a norma que constitui objecto do presente recurso com o princípio da confiança.

6 - O Decreto-Lei 228/80, de 16 de Julho, que veio regulamentar as condições de emissão do empréstimo público denominado "Obrigações do Tesouro FIP 1980", consagrou, no artigo 4.º (na redacção do Decreto-Lei 323/80, de 23 de Agosto), a garantia do pagamento dos reembolsos e dos juros dos títulos e certificados representativos das obrigações emitidas e a isenção de todos os impostos.

Por seu turno, o artigo 4.º do Decreto-Lei 198/81, de 9 de Julho, veio estabelecer idêntico regime fiscal para o empréstimo público denominado "Obrigações do Tesouro, curto prazo, 1981, 1.ª série".

Verifica-se, assim, que um dos incentivos que o Estado criou para levar o público a subscrever os referidos empréstimos públicos foi isentar os respectivos rendimentos de todos os impostos.

Porém, o Decreto-Lei 128/82, de 23 de Abril, dando nova redacção ao artigo 23.º do Código da Contribuição Industrial, veio, com eficácia retroactiva (relativamente aos rendimentos auferidos em 1981), "isentar" (ainda que por via da alteração da norma de incidência) apenas parcialmente de imposto os rendimentos que, de acordo com o regime anterior, estavam totalmente isentos.

7 - O Tribunal Constitucional, no Acórdão 410/95 (Diário da República, 2.ª série, de 16 de Novembro de 1995), apreciou a conformidade à Constituição da norma contida no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 215/89, de 1 de Julho, quando interpretada no sentido de não salvaguardar a subsistência de uma determinada categoria de benefícios fiscais adquiridos antes de 31 de Dezembro de 1988, implicando tal norma, nessa medida, que os mesmos caducassem. Nesse aresto, citando, entre outros, o Acórdão 66/84 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4.º vol., 1984, pp. 35 e segs.), o Tribunal, depois de admitir que a Constituição, na redacção então em vigor, não proibia toda a retroactividade fiscal, considerou que o princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de direito democrático, só exclui a possibilidade de leis fiscais, retroactivas, "quando se esteja perante uma retroactividade intolerável, que afecte de forma inadmissível e arbitrária os direitos e expectativas legitimamente fundados dos cidadãos contribuintes". De seguida, e citando agora o Acórdão 287/90 (Diário da República, 2.ª série, de 20 de Fevereiro de 1991), o Tribunal afirmou o seguinte:

"A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:

a) Afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda

b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes [...]

Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária."

Em consequência, o Tribunal Constitucional julgou a norma então em apreciação inconstitucional, por violação do princípio da confiança.

8 - Ora, no presente caso, a norma em apreciação também viola o princípio da confiança, independentemente de hoje se seguirem critérios mais restritivos e mesmo que não se considere que esses critérios mais restritivos já vigorariam, antes da revisão constitucional de 1997.

Com efeito, o legislador, depois de consagrar uma isenção total de impostos, para tornar mais apelativa a subscrição de um empréstimo público, veio alterar, retroactivamente, o quadro legal, substituindo a isenção total por uma isenção parcial.

Os subscritores, que formaram a sua decisão, naturalmente, em função do regime favorável em vigor, viram, em face dessa mutação retroactiva, desfavorável e inesperada da ordem jurídica, as suas legítimas expectativas quebradas, sem que para o efeito se descortine qualquer fundamento específico digno de tutela.

Verifica-se, pois, no caso dos autos, uma retroactividade intolerável, porque injustificadamente desfavorável para o contribuinte, e, desse modo, constitucionalmente inadmissível, porque violadora do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático.

Sublinhe-se que o que se deixa dito não é afectado pela circunstância de a "isenção" parcial resultar, não da entrada em vigor de uma nova norma de isenção (mais restrita), mas, sim, da alteração da norma de incidência. Com efeito, a alteração legislativa operada, não obstante situar-se, formalmente, no plano da delimitação do que se considera enquadrável numa dada categoria de proveitos ou ganhos, implica, numa perspectiva substancial, uma verdadeira restrição (derrogação, dir-se-ia) da isenção consagrada no quadro legislativo então em vigor.

Sustentar o contrário significaria admitir que o Estado pudesse restringir materialmente e com eficácia retroactiva (afrontando, desse modo, as legítimas expectativas dos particulares) o benefício fiscal anteriormente conferido.

9 - Alcançada esta conclusão, afigura-se inútil proceder à apreciação da conformidade da norma em questão com o disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição (na redacção resultante da 4.ª revisão constitucional).

III - Decisão. - 10 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide julgar inconstitucional as normas contidas no n.º 3 do artigo 23.º do Código da Contribuição Industrial, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 128/82, de 23 de Abril, e no n.º 2 do artigo 3.º do mesmo decreto-lei, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, confirmando, consequentemente, o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.

Lisboa, 28 de Março de 2000. - Maria Fernanda Palma - Paulo Mota Pinto - Guilherme da Fonseca - Bravo Serra (com a declaração de voto idêntica à aposta pelo Exmo. Conselheiro Presidente, para a qual, com vénia, remeto) - José Manuel Cardoso da Costa (com a declaração junta).

Declaração de voto. - 1 - No precedente acórdão pôde evitar-se uma tomada de posição sobre a relevância ou a pertinência do quadro constitucional emergente da revisão de 1997, para a análise, no caso, da questão da admissibilidade de uma norma de imposição retroactiva, porque (no seguimento, de resto, do que ocorrera já com a decisão recorrida) veio a concluir-se pela inconstitucionalidade de tal norma logo com base em violação do princípio da confiança, ínsito na ideia ou na concepção do Estado de direito democrático - ou seja, e afinal, logo com base no parâmetro constitucional menos estrito (e desenvolvido jurisprudencialmente) à luz do qual a mesma questão haveria já de apreciar-se anteriormente àquela revisão.

Nada tendo a objectar a uma tal metodologia decisória (e mesmo acompanhando-a), ser-me-á lícito, no entanto, deixar claro que, por minha parte, considero - ao contrário do que foi entendido seja ainda na decisão recorrida, seja pelo Exmo. Representante do Ministério Público neste Tribunal - que só a esse parâmetro constitucional (o antecedente à revisão de 1997) cabia atender na espécie: é que estava em causa, não só uma norma muito anterior a tal revisão, como ainda e sobretudo (mas decerto) a sua aplicabilidade a um pressuposto tributário correspondente a um período (o do ano de 1981) igualmente muito anterior a ela. Ora esta circunstância - e não o facto de se estar perante uma "aplicação" (aliás, no caso, "recusa de aplicação") judicial dessa norma posterior à mesma revisão, como foi a da decisão recorrida - é que é relevante para determinar a "Constituição fiscal" relevante no caso: assim, procurei mostrar na declaração de voto que juntei ao Acórdão 172/00, tirado no processo 762/98, para a qual aqui remeto.

2 - Posto isto, e analisando a norma, então, exclusivamente (como o acórdão faz) nesse quadro constitucional - ou seja, face unicamente ao princípio da confiança, enquanto exigência "genérica" da ideia do Estado de direito -, acabei, todavia, por inclinar-me no sentido da sua não inconstitucionalidade.

É certo que a hipótese em apreço não tem exactamente o mesmo recorte de outras em que o Tribunal concluiu também nesse sentido (da não inconstitucionalidade) - e, nomeadamente, da versada no Acórdão 11/83, em que estava em causa um imposto extraordinário, criado em circunstâncias de emergência. Mas a verdade é que, do meu ponto de vista, tão-pouco a sua semelhança maior ocorre com qualquer das situações versadas nos Acórdãos n.os 409/89, 216/90 ou 410/95, e, em especial, com a deste último, que era a da extinção retroactiva de um benefício fiscal, em que se concluiu em sentido oposto.

É que, no caso, mais do que da extinção de um benefício fiscal estabelecido (ou, muito provavelmente, apenas "concretizado") por um diploma avulso (o Decreto-Lei 198/81), do que se tratou foi da alteração de uma regra "estrutural" da incidência da contribuição industrial, a qual se fez "funcionar" logo na primeira e imediata liquidação posterior, e consequente cobrança, desse imposto, a realizar na época normalmente prevista para o efeito. Ou seja: tratou-se de alteração relativa a um imposto "periódico" anual e, portanto, a uma situação fiscal de carácter "permanente", alteração essa que, vindo a projectar-se ainda (é certo) sobre rendimentos do ano anterior (1981), gerou, nessa medida, a "obrigação" de um pagamento que, segundo as regras normais, só caberia efectuar, em todo o caso, no período tributário (1982) em curso à data sua entrada em vigor, e em momento desse período posterior à mesma data.

Ora, ao contrário do que expressamente se entendeu no acórdão que antecede, inclinei-me a pensar que a circunstância assinalada devia ter-se como relevante para a solução do caso - e isso à luz do que ensaiei evidenciar sobre a diferente natureza das situações de retroactividade fiscal, objecto da jurisprudência do Tribunal, em "O enquadramento constitucional do direito dos impostos em Portugal: a jurisprudência do Tribunal Constitucional", no vol. II de Perspectivas Constitucionais (Coimbra, 1997, p. 418), lugar para onde me permito remeter. Ao que acresce - e este aspecto das coisas não será menos relevante - que, à época, a prática legislativa, gerando situações como a sub judicio, não era infrequente (e, porventura, até era a "habitual"). - José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1832577.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1980-07-16 - Decreto-Lei 228/80 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Tesouro

    Estabelece as condições regulamentares em que será emitido um empréstimo interno amortizável denominado «Obrigações do Tesouro - FIP, 1980».

  • Tem documento Em vigor 1980-08-23 - Decreto-Lei 323/80 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Tesouro

    Altera o Decreto-Lei n.º 228/80, de 16 de Julho, que estabelece as condições regulamentares em que será emitido um empréstimo interno amortizável denominado «Obrigações do Tesouro - FIP, 1980».

  • Tem documento Em vigor 1981-07-09 - Decreto-Lei 198/81 - Ministério das Finanças e do Plano

    Estabelece as condições regulamentares em que é emitido o empréstimo interno denominado «Obrigações do Tesouro, curto prazo, 1981, 1.ª série».

  • Tem documento Em vigor 1982-04-23 - Decreto-Lei 128/82 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Orçamento

    Altera o Código da Contribuição Industrial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 45103 de 1 de Julho de 1963.

  • Tem documento Em vigor 1983-10-20 - Acórdão 11/83 - Tribunal Constitucional

    Referente à apreciação pelo Tribunal Constitucional da constitucionalidade dos artigos 1.º e 3.º do Decreto n.º 32/III da Assembleia da República, que cria um imposto extraordinário sobre rendimentos colectáveis sujeitos a contribuição predial, imposto de capitais e imposto profissional.

  • Tem documento Em vigor 1989-07-01 - Decreto-Lei 215/89 - Ministério das Finanças

    Aprova o estatuto dos benefícios fiscais e altera os Códigos de IRS e de IRC.

  • Tem documento Em vigor 1997-09-20 - Lei Constitucional 1/97 - Assembleia da República

    Aprova a quarta revisão da Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de 1976, e fixa normas para aplicação no tempo de alguns dos preceitos revistos. Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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