Assento 4/86
Recurso extraordinário n.º 5/85
Acórdão
1 - O Digmo. Procurador-Geral-Adjunto interpôs recurso extraordinário da resolução deste Tribunal tomada em sessão de 23 de Julho de 1985, no processo 69551, com fundamento no disposto nos artigos 6.º, 7.º e 8.º da Lei 8/82, de 26 de Maio.
O recurso baseia-se nos seguintes fundamentos:
a) Na aludida resolução concedeu-se o visto ao contrato celebrado entre a Câmara Municipal de Aguiar da Beira e Manuel Mendes Pereira referente à empreitada de pavimentação de 10000 m2 de arruamentos em calçada à fiada nas povoações de Coja e Barranhe, no valor de 7200000$00, não obstante a Assembleia Municipal ter fixado em 7000000$00 o montante a partir do qual a execução de empreitadas se realizará obrigatoriamente mediante concurso público;
b) Porém, na resolução deste Tribunal tomada em sessão de 21 de Maio de 1985, no processo 42128, recusou-se o visto ao contrato celebrado entre a Câmara Municipal de Santo Tirso e a firma José da Silva Campos, C.ª, Lda., referente à empreitada de rectificação e pavimentação dos arruamentos anexos ao estádio, escola preparatória e Largo da Tranquilidade, na vila de Anes, no valor de 14562860$00, em virtude de a Assembleia Municipal ter fixado em 10000000$00 o montante a partir do qual a execução de obras realizará obrigatoriamente mediante concurso público;
c) Em ambos os contratos de empreitada violou-se o disposto no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 390/82, de 17 de Setembro;
d) Verifica-se, assim, que, no domínio da mesma legislação, este Tribunal proferiu decisões que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, são opostas, pelo que se encontram preenchidos os pressupostos enunciados no artigo 6.º da citada Lei 8/82 para que o Tribunal fixe jurisprudência por meio de assento.
2 - O pedido foi liminarmente indeferido com o fundamento de não se verificar a alegada contradição de julgados, porquanto o princípio estabelecido no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 390/82 não pode ser visto isoladamente, mas antes em estreita articulação com o n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 146-C/80, de 22 de Maio.
3 - Não se conformando com esta decisão, o Digmo. Procurador-Geral-Adjunto deduziu reclamação para o plenário deste despacho de indeferimento, nos termos do n.º 1 do artigo 9.º da Lei 8/82, com a seguinte fundamentação:
a) A verificação sobre se as condições dos contratos são as mais vantajosas para o Estado, consignada no n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 146-C/80, não pode sobrepor-se aos princípios de interesse e ordem pública contidos noutros preceitos legais, como é o caso enunciado no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 390/82;
b) O Tribunal de Contas não pode ter atribuições tão latas em matéria de visto que lhe permitam sancionar procedimentos que contrariam frontalmente a lei;
c) No caso do contrato celebrado pela Câmara Municipal de Aguiar da Beira é inequívoco que o valor da empreitada excedeu o montante fixado pela respectiva Assembleia Municipal, e o facto de o excesso ser pequeno é irrelevante, pois, a ser tomado em consideração, permitiria cair no domínio da arbitrariedade;
d) Existe, pois, contradição de julgados.
4 - Aceite a reclamação, por decisão maioritária, tomada em Acórdão de 4 de Fevereiro de 1986, foi entendido que se estava em presença de duas decisões, opostas proferidas no domínio da mesma legislação, relativamente à mesma questão fundamental de direito, pelo que se encontravam preenchidos os pressupostos estabelecidos nos artigos 6.º a 8.º da Lei 8/82 para poder conhecer-se da matéria do recurso.
Cumprido o disposto nos n.os 2 do artigo 9.º e 1 do artigo 10.º da Lei 8/82, cumpre decidir desde já.
5 - A resolução de 21 de Maio de 1985, que recusou o visto ao referido contrato celebrado com a Câmara Municipal de Santo Tirso, assentou nos seguintes considerandos:
a) A Assembleia Municipal de Santo Tirso fixou em 10000000$00 o montante a partir do qual a execução de obras públicas se realizará obrigatoriamente mediante concurso público, deliberação que não pode ser alterada durante o período do mandato do órgão autárquico, como se determina no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 390/82, de 17 de Setembro;
b) Este normativo contém um princípio de interesse e ordem pública, de acatamento obrigatório por parte do órgão executivo autárquico;
c) O limite fixado não se pôs no momento da abertura do concurso com indicação do valor que serve de preço base, mas no momento da apreciação das propostas e dos valores nestas apresentados para efeitos de eventual adjudicação do contrato;
d) Só assim ficam suficientemente acautelados os princípios estabelecidos pelo legislador, pois de outra forma se frustraria a intenção que presidiu à fixação do limite do valor abaixo do qual já não se torna obrigatória a abertura do concurso público, ao mesmo tempo que corresponde à interpretação que melhor se coaduna com o funcionamento dos mecanismos constantes dos n.os 3 a 5 do mesmo dispositivo legal; por outro lado, se tivesse tido aberto o concurso público, a Administração teria direito a não fazer a adjudicação quando todas as propostas, incluindo a mais conveniente, oferecessem preço global superior à base de licitação, como se estabelece na alínea b) do n.º 1 do artigo 92.º do Decreto-Lei 48871, de 19 de Fevereiro de 1969, aplicável subsidiariamente às autarquias por força do artigo 15.º do citado Decreto-Lei 390/82;
e) No caso em apreciação foi aberto apenas concurso limitado.
6 - No que respeita ao contrato celebrado pela Câmara Municipal de Aguiar da Beira, visado em 23 de Julho de 1985, não se encontram indicadas as razões do visto, como em situações idênticas nunca acontece, uma vez que a concessão do visto não é acompanhada da sua fundamentação, dando-se como boa a justificação apresentada no processo.
No entanto, certo é que a situação é aparentemente idêntica à anteriormente relatada, tendo tido resolução diversa.
Na verdade, foi aberto concurso limitado com a base de licitação de 65O$00/m2, o que se traduziria no custo global da obra de 6500000$00, valor inferior ao fixado pela Assembleia Municipal, de 7000000$00.
Acontece que, segundo informa a Câmara Municipal, os preços entretanto subiram, daí tendo resultado que o limite foi ultrapassado em 200000$00.
Apesar desta diferença, o contrato foi visado.
7 - É neste contexto que o problema tem de ser analisado.
Conforme ficou referido, o n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei 390/82, de 17 de Setembro, estabelece que cabe aos órgãos deliberativos das autarquias locais fixar, sob proposta dos executivos, o valor a partir do qual a execução das obras públicas se realizará obrigatoriamente mediante concurso público, o qual não poderá ser alterado durante o período do mandato dos órgãos autárquicos.
Na sequência desta disposição, o artigo 3.º determina que podem ser adjudicadas, mediante concurso limitado, as obras de valor inferior ao limite estabelecido pela assembleia deliberativa.
O problema que surge é o de saber se o limite estabelecido se deve reportar apenas ao montante da abertura do concurso ou também ao da adjudicação.
A letra da lei vai manifestamente mais no segundo sentido, pois num caso fala-se em "valor [...] a partir do qual a execução das obras públicas [...] se realizará, obrigatoriamente, mediante concurso público» e no outro emprega-se a expressão "podem ser adjudicadas», sendo certo que a execução se faz de acordo com o preço estabelecido na adjudicação, uma vez que "a adjudicação é a decisão pela qual o dono da obra aceita a proposta do concorrente preferido» (artigo 95.º do Decreto-Lei 48871, de 19 de Fevereiro de 1969).
Também a razão de ser do preceito vai no mesmo sentido, dentro da orientação seguida na resolução antes referida, pois de outro modo facilmente se poderia abrir concurso limitado com base inferior à do limite fixado, sabendo-se antecipadamente que este seria ultrapassado, o que frustraria o propósito da lei.
Acresce que nem sempre é possível, sequer, atender ao momento da abertura do concurso, uma vez que, com frequência, não existe um preço de base. Daí que, nestes casos, só seja possível considerar o momento da adjudicação, o que implicaria uma dualidade de critérios.
Em consequência, não pode deixar de entender-se que o limite estabelecido pela Assembleia Municipal se reporta também à adjudicação, e não apenas ao preço base do concurso.
8 - Deste modo, o Tribunal defere o pedido de fixação de jurisprudência formulado pelo Ministério Público firmando o seguinte assento:
Os limites a que se referem os n.os 1 e 2 do artigo 2.º e a alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei 390/82, de 17 de Setembro, para abertura de concurso limitado, têm de ser respeitados não só quanto ao preço de base de abertura do concurso mas também no momento da adjudicação.
Não são devidos emolumentos.
Comunique-se e cumpra-se oportunamente o disposto no artigo 11.º da Lei 8/82, de 26 de Maio.
Desapensem-se e voltem a arquivar-se os processos anexos.
Lisboa, 1 de Julho de 1986. - António Luciano Pacheco de Sousa Franco - Francisco Pereira Neto de Carvalho [votei o assento, mas fiquei vencido quanto à eliminação, por maioria, de uma parte final, por entender que a análise do problema não deveria deter-se no ponto onde ficou.
De facto, num dos casos referidos, entre o limite fixado pela Assembleia Municipal e o valor da adjudicação há uma diferença de 4562860$00, enquanto no outro essa diferença não ultrapassa os 200000$00.
Neste segundo caso, a Câmara Municipal veio informar que se tinha verificado uma subida de preços entre a data do estudo inicialmente feito e o momento da adjudicação, que outros aumentos tinham ocorrido entretanto e que, a realizar-se novo concurso, os custos da obra seriam consideravelmente mais elevados, o que a ninguém aproveitaria.
Ora, nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 146-C/80, de 22 de Maio, "o visto do Tribunal de Contas tem por fim verificar se os documentos a ele sujeitos estão conformes com a lei em vigor e se os encargos deles resultantes têm cabimento em verba orçamental legalmente aplicável, bem como, tratando-se de contratos, se as suas condições são as mais vantajosas para o Estado».
Dentro deste condicionalismo, não deve o Tribunal deixar de apreciar a globalidade das situações, de modo a evitar que, pela aplicação de uma interpretação demasiado restrita da lei, vá pôr em causa aqueles mesmos princípios de interesse e ordem pública que a lei procura salvaguardar.
No caso concreto, o interesse principal consiste em que as obras se realizem nas melhores condições pelo menor custo possível. Se tudo indica que a abertura do novo concurso se irá traduzir em aumentos de encargos, e não em diminuição, parece claro que a salvaguarda do interesse público se encontra em manter o concurso já realizado.
É por isso que a articulação do disposto nos artigos 2.º e 3.º do Decreto-Lei 390/82 com o n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 146-C/80 é o que melhor salvaguarda o interesse público. Por outro lado, a faculdade concedida ao Tribunal por esta última disposição, porque atribuída por lei, não corresponde, de modo algum, a um procedimento contrário à lei.
Decerto esta faculdade deve ser utilizada com parcimónia e grande ponderação, mas, porque imposta por lei, não deve ser ignorada nas decisões do Tribunal.
Em consequência, ao assento deveria, em meu entender, acrescentar-se o seguinte:
"No entanto, tendo em conta a faculdade que lhe é conferida pela parte final do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 146-C/80, de 22 de Maio, e por salvaguarda dos princípios de interesse e ordem pública subjacentes às disposições indicadas, o Tribunal de Contas, mediante justificação suficiente, pode aceitar que o total dos encargos da empreitada, resultantes de concurso limitado, seja superior ao montante fixado pela Assembleia Municipal, desde que:
a) Na altura da abertura do concurso houvesse justificadas razões para admitir que os preços dos concorrentes não ultrapassariam o limite estabelecido pela Assembleia Municipal;
b) Os elementos disponíveis permitam concluir que da anulação do concurso limitado e da abertura do subsequente concurso público venham a resultar encargos ainda mais elevados.»] - António Rodrigues Lufinha [vencido, pelos seguintes fundamentos:
O interesse público não se compadece com delongas na realização das obras públicas, sobretudo quando tais delongas se relacionam com aspectos de carácter formal e, mais ainda, quando esses atrasos possam conduzir, especialmente em períodos de inflação acentuada, ao encarecimento dos custos finais das obras.
O concurso destina-se essencialmente a facilitar à Administração a escolha e selecção das propostas mais favoráveis à realização daquele interesse. Por isso, a opção entre o concurso público e o concurso limitado terá de fazer-se necessariamente no momento em que se decide a sua abertura, partindo do preço base da obra, que normalmente faz parte do projecto. E de acordo com os limites legais.
Em nenhum normativo se impõe a anulação desse concurso com fundamento em terem as propostas excedido os limites que caracterizam o tipo de concurso adaptado.
Para depois da apresentação das propostas, a lei apenas se preocupa em fixar os critérios de adjudicação da obra, nos quais é também o interesse público que merece especial relevo, não se fazendo qualquer alusão ao tipo de concurso realizado (artigo 90.º do Decreto-Lei 48871).
E a mesma orientação ressalta do artigo 92.º desse decreto-lei quando confere ao dono da obra o direito de não fazer a sua adjudicação.
Direito este que é confiado somente ao dono da obra e, ainda assim, não a título imperativo, mas meramente facultativo.
O que está em consonância com outra faculdade idêntica de, nos casos previstos no n.º 4 do artigo 5.º do Decreto-Lei 211/79, até ser possível dispensar a própria realização do concurso.
E é compreensível, dado ser manifesto que não é no tipo de concurso que está a garantia de salvaguarda do interesse público.
Nestes termos, não há apoio legal nem sequência lógica para que seja no acto da concessão do visto que se pretenda impor a inutilização do concurso, aberto com observância dos preceitos legais aplicáveis pela entidade a quem a lei confira o direito de tomar as medidas adequadas para salvaguarda dos interesses em causa.
Pelo exposto, não dou a minha concordância ao presente acórdão] - José Castello Branco (vencido, pelas razões invocadas no voto do Exmo. Conselheiro Rodrigues Lufinha) - Alberto Leite Ferreira - Orlando Soares Gomes da Costa - Alfredo José de Sousa [votaria na segunda parte do projecto do assento, que foi rejeitada por maioria, embora com formulação diversa da apresentada pelo Exmo. Conselheiro Relator, pelas seguintes razões:
1.º Nos contratos de empreitada, o visto, além do mais, tem por objectivo verificar se "as suas condições são as mais vantajosas» para a autarquia, sendo apenas condição da produção dos respectivos efeitos financeiros (artigos 1.º, n.º 2, in fine, e 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei 146-C/80, de 22 de Maio, conjugado com o artigo 16.º do Decreto-Lei 390/82, de 17 de Setembro);
2.º O vício de que enferma a deliberação que adjudica uma empreitada por valor superior ao limite fixado pela Assembleia Municipal no âmbito de concurso limitado regularmente aberto constitui mera anulabilidade (vício de forma), sanável se não impugnada tempestivamente (artigo 89.º do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março);
3.º Daí que o visto deva ser perspectivado mais no sentido da eficácia financeira do contrato do que na legalidade do acto administrativo, devendo relevar apenas os vícios que impliquem nulidade;
4.º Não obstaria, pois, ao visto o facto de a adjudicação ter sido feita por preço superior ao limite nas circunstâncias referidas no n.º 2.º, desde que se verifiquem condições mais vantajosas para a autarquia, designadamente por a adjudicação em ulterior concurso público implicar preço necessariamente superior ou delongas incompatíveis com a urgência da obra] - Pedro Tavares do Amaral (vencido, pelas razões invocadas no voto do Exmo. Conselheiro Rodrigues Lufinha). - Fui presente, João Manuel Fernandes Neto.