Acórdão 417/99/T. Const. - Processo 108/99. - Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - 1 - No Tribunal de Círculo de Anadia, responderam, sob acusação do Ministério Público, os arguidos António Augusto da Costa Vidal, José António Matos da Silva e Costa, João Hêrnani Machado dos Santos e FRIPORTUS, Electromecânica, S. A., tendo sido condenados, por Acórdão de 17 de Fevereiro de 1998:
Os três primeiros arguidos, como co-autores de um crime de desvio de subsídio, previsto e punível pelo artigo 37.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, na pena de 1 ano de prisão e 45 dias de multa (à taxa diária de 5000$00), ficando a execução da pena de prisão suspensa por 2 anos com a condição de em 30 dias demonstrarem ter liquidado as quantias que foram condenados a entregar às entidades de que receberam os financiamentos (5 799 719$00, ao Fundo Social Europeu, e 4 745 224$00, à segurança social);
A arguida FRIPORTUS, pela prática de um crime de desvio de subsídio, previsto e punível pelo artigo 37.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, com referência ao artigo 3.º do mesmo diploma, na pena de 45 dias de multa (à taxa diária de 25 000$00).
Todos os arguidos interpuseram recurso desta decisão.
2 - O Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, tendo apresentado como conclusões das alegações "um extensíssimo texto com 63 números, que se estendem por 22 folhas, o que ainda é agravado pela remissão que é feita para outras peças do processo", "os recorrentes não foram capazes de resumir as razões do seu pedido, apresentando para o efeito um texto a que melhor caberia a designação de verdadeira motivação". Observando que tal circunstância implica falta de conclusões e que a falta de conclusões equivale à falta de motivação, o Supremo Tribunal de Justiça rejeitou o recurso, invocando os artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (Acórdão de 24 de Setembro de 1998, de fl. 1295 a fl. 1320 v.º).
Os arguidos requereram a aclaração e a reforma deste Acórdão, mas o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido (Acórdão de 26 de Novembro de 1998, de fl. 1328 a fl. 1331 v.º).
3 - António Augusto da Costa Vidal, José António Matos da Silva e Costa, João Hêrnani Machado dos Santos e FRIPORTUS, Electromecânica, S. A., vieram então interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, da decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça - para apreciação da constitucionalidade da interpretação dada aos artigos 412.º e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e ao artigo 690.º do Código de Processo Civil - e da decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância - para apreciação da constitucionalidade da interpretação dada aos artigos 2.º, n.º 4, e 70.º a 73.º do Código Penal de 1995, ao artigo 37.º do Decreto-Lei 28/84, de 20 de Janeiro, ao artigo 6.º do Regulamento CEE n.º 2950/83, do Conselho, de 17 de Outubro de 1983, ao n.º 12 do despacho de 26 de Setembro de 1985 do Secretário de Estado do Emprego e Formação Profissional, ao n.º 20 do despacho de 13 de Maio de 1986 do Ministro do Trabalho e Segurança Social, aos artigos 16.º e 28.º do Despacho Normativo 40/88, ao artigo 19.º do Despacho Normativo 94/89, de 13 de Outubro, e ao artigo 9.º, n.os 1 e 3, do Decreto-Lei 242/88, de 7 de Julho.
O conselheiro relator no Supremo Tribunal de Justiça admitiu o recurso interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça exarado de fl. 1295 a fl. 1320 v.º (o acórdão que rejeitou o recurso dos recorrentes), mas não admitiu o recurso interposto do acórdão da 1.ª instância, por este ser passível de recurso ordinário, que foi efectivamente interposto.
4 - No Tribunal Constitucional, os recorrentes concluíram assim as suas alegações:
"1 - O recurso interposto pelos ora recorrentes para o Supremo Tribunal de Justiça foi rejeitado com fundamento no facto de, não obstante estes terem apresentado conclusões conjuntamente com a sua motivação de recurso, estas não deverem ser como tal consideradas por não serem 'capazes de resumir as razões do seu pedido'.
2 - O Tribunal a quo faz aplicação ao processo penal de norma do processo civil, ofensiva e limitativa dos direitos de defesa dos arguidos, constitucionalmente consagrados, designadamente o direito de recorrer das decisões que lhes forem desfavoráveis.
3 - O Tribunal a quo efectua errada aplicação das normas dos artigos 412.º e 420.º do Código de Processo Penal, porquanto se socorre da aplicação supletiva de normas de processo civil que limitam os direitos de defesa dos arguidos.
4 - Ainda que assim não se entenda, e, ao invés, se perfilhar que seria legítima aquela aplicação das normas do processo civil (ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal), sempre se dirá que continua a ser materialmente inconstitucional a aplicação 'desgarrada' da norma do artigo 690.º, n.º 1, desacompanhada do dever constante do n.º 4 do mesmo artigo - face à falta, deficiência ou obscuridade das conclusões, deveria o Tribunal a quo ter convidado os recorrentes a apresentá-las ou corrigi-las, em vez de ter, tão simplisticamente, considerado as conclusões não existentes (existindo elas de facto) e como tal rejeitando o recurso com esse fundamento.
5 - Os direitos de defesa dos arguidos encontram-se 'protegidos' pelo princípio da legalidade, isto é: os direitos de defesa só podem ser limitados ou restringidos por lei vigente à data da prática dos factos, pelo que qualquer interpretação das normas aplicáveis que restrinja tais direitos de defesa dos arguidos, nomeadamente a quantificação, ou metragem, das conclusões, não constante de qualquer disposição legal - em parte alguma da lei de processo penal (ou até de processo civil) se estabelece qual a dimensão, ou quantidade, máxima das conclusões -, constitui frontal ofensa aos direitos de defesa dos arguidos e flagrante ofensa do princípio da legalidade, sendo, portanto, materialmente inconstitucional.
6 - Tendo as normas dos artigos 412.º e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 690.º do Código de Processo Civil, este aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, sido interpretadas e aplicadas de forma a terem violado as disposições dos artigos 18.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as disposições dos artigos 8.º, 10.º e 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e as disposições do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, as quais vigoram na ordem jurídica interna nos termos do disposto nos artigos 8.º e 16.º da Constituição da República Portuguesa, encontra-se a interpretação daquelas normas ferida de inconstitucionalidade material.
Nestes termos, e com o douto suprimento de VV. Exas. (nos termos do disposto no artigo 79.º-C da LOFPTC), devem tais normas ser julgadas inconstitucionais quando interpretadas e aplicadas em termos de ser permitida a rejeição do recurso devido ao tamanho, extensão ou deficiência das conclusões de recurso, sem que lhes seja dada a oportunidade de as corrigir e ou esclarecer, sendo, desse modo, significativa e gravemente restringidos e limitados os direitos de defesa dos arguidos, como é, aliás, de justiça."
Por sua vez, o Ministério Público concluiu:
"1.º É inconstitucional, por violação do princípio das garantias de defesa do arguido, a interpretação das normas constantes dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º do Código de Processo Penal, traduzida em considerar que a falta de concisão das conclusões da motivação do recorrente deve conduzir à liminar rejeição do recurso, sem facultar ao arguido a possibilidade de suprir o vício que o tribunal entende inquinar tal peça processual.
2.º Termos em que deverá proceder o presente recurso."
II - 5 - Através do presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, os recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade das normas dos artigos 412.º e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e do artigo 690.º do Código de Processo Civil, na interpretação que lhes foi dada no acórdão recorrido.
São pressupostos do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional:
Que os recorrentes tenham suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade das normas que pretendem que este Tribunal aprecie;
Que tais normas tenham sido aplicadas no julgamento da causa, como ratio decidendi, não obstante essa acusação de inconstitucionalidade.
Ora, como bem sublinha nas suas alegações o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, a norma do artigo 690.º do Código de Processo Civil não foi aplicada na decisão recorrida - o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Setembro de 1998, exarado de fl. 1295 a fl. 1320 v.º, que rejeitou o recurso dos recorrentes.
Tal norma é invocada pelo Supremo Tribunal de Justiça tão somente para ilustrar a afirmação segundo a qual as conclusões das alegações de recurso devem ser formuladas de modo sintético. Diz-se a esse propósito no acórdão:
"O carácter sintético das conclusões é hoje claramente salientado pelo n.º 1 do artigo 690.º do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro."
Todavia, a decisão de rejeição do recurso fundamentou-se exclusivamente nas normas dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Consequentemente, só essas normas constituem objecto do presente recurso, pois apenas quanto a elas podem dar-se como verificados os pressupostos exigidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.
6 - É o seguinte o teor das normas impugnadas (no texto anterior ao que resulta da Lei 59/98, de 25 de Agosto, tal como aplicado na decisão sob recurso):
"Artigo 412.º
Motivação do recurso
1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
...
Artigo 420.º
Rejeição do recurso
1 - O recurso é rejeitado sempre que faltar a motivação ou for manifesta a improcedência daquele.
..."
Os recorrentes entendem que estas normas, interpretadas no sentido de que o carácter prolixo das conclusões das alegações de recurso conduz à rejeição imediata do recurso, são inconstitucionais, por violação dos artigos 18.º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 8.º, 10.º e 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
7 - O Tribunal Constitucional teve já ocasião de se pronunciar sobre a questão de constitucionalidade que vem suscitada nos presentes autos: a questão de saber se o sentido atribuído no acórdão recorrido aos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal é compatível com a garantia constitucional de que o processo penal assegura "todas as garantias de defesa", consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Nos acórdãos n.os 193/97 (inédito) e 43/99 (Diário da República, 2.ª série, n.º 72, de 26 de Março de 1999, pp. 4494 e seguintes), o Tribunal concluiu que as normas constantes dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal são inconstitucionais quando interpretadas no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a rejeição liminar do recurso penal sem que ao recorrente seja previamente dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de concisão.
O Tribunal entendeu que a exigência de apresentação sintética das conclusões das alegações de recurso, representando embora um valor relacionado com a necessidade de estruturação lógica do procedimento na fase de recurso, não pode constituir um entrave burocrático à realização da justiça.
Na verdade, o n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, ao assegurar todas as garantias de defesa, garante os mecanismos que possibilitem o exercício efectivo do direito de defesa em processo criminal, incluindo o direito ao recurso (duplo grau de jurisdição), no caso de sentenças condenatórias.
Uma interpretação normativa dos preceitos respeitantes à motivação do recurso em processo penal e às respectivas conclusões (artigos 412.º e 420.º do Código de Processo Penal) que faça derivar da prolixidade ou da falta de concisão das conclusões um efeito cominatório, irremediavelmente preclusivo do recurso, sem dar ao recorrente a oportunidade de suprir a deficiência detectada, constitui uma limitação desproporcionada das garantias de defesa do arguido em processo penal, restringindo o seu direito ao recurso e, nessa medida, o direito de acesso à justiça.
Não pode obstar a esta conclusão o princípio da celeridade processual, conatural ao processo penal. A necessidade de proceder a uma compatibilização entre os dois princípios em presença - os princípios da celeridade e da plenitude das garantias de defesa -, dando cumprimento ao artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, exige que, perante conclusões de recurso tidas por não concisas, se dê ao recorrente a possibilidade de aperfeiçoar tais conclusões (à semelhança, aliás, do que hoje dispõe o artigo 690.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Assim sendo, uma interpretação das normas impugnadas que leve à imediata rejeição do recurso, por se entender que a prolixidade ou falta de concisão das conclusões equivale à falta de conclusões e por se entender que a celeridade processual impede a notificação do recorrente para aperfeiçoar a deficiência das conclusões, afecta desproporcionadamente uma das dimensões do direito de defesa, na vertente do direito ao recurso, garantido pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que é inconstitucional.
É essa jurisprudência que aqui se reafirma, remetendo para os fundamentos, mais amplos, constantes dos Acórdãos n.os 193/97 e 43/99.
III - 8 - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a rejeição liminar do recurso penal, sem que ao recorrente seja previamente dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de concisão;
b) Conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 29 de Junho de 1999. - Maria Helena Brito - Artur Maurício - Vítor Nunes de Almeida - Luís Nunes de Almeida.