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Acórdão 455/2008, de 29 de Dezembro

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma, extraída da conjugação dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e 1038.º, alíneas f) e g), do Código Civil, interpretada no sentido de que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento a falta de comunicação do locatário ao locador da celebração de um contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial sito no prédio arrendado

Texto do documento

Acórdão 455/2008

Processo 546/08

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

1 - Relatório. - Nísia Odete Pereira Ferreira Blanco instaurou acção de despejo contra Graça Fernandes, Lda., pedindo a declaração da resolução do contrato de arrendamento relativo à loja do prédio sito na Rua Cesário Verde, n.º 3-C, em Lisboa, e a condenação da ré na entrega do local à autora, livre de pessoas e bens, e no pagamento das rendas vencidas e vincendas até à efectivação dessa entrega. Alegou, em síntese, que a ré, locatária da referida loja, celebrou, em 1 de Maio de 2003, com Vítor Augusto Gonçalves Dias e Sandra Cristina Carrilho Galvão um contrato, denominado de cessão de exploração, por via do qual eles passariam a explorar por sua conta o estabelecimento comercial aí instalado, pelo prazo de 12 meses, renovável por iguais e sucessivos períodos, mediante o pagamento da quantia mensal de (euro) 650,00, actualizável anualmente, mas fê-lo sem pedir autorização à senhoria e também sem fazer a comunicação legal referida no artigo 1038.º, alínea g), do Código Civil, que impõe ao locatário a obrigação de comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos quando permitida ou autorizada, resultando da precedente alínea f) a obrigação de o locatário não proporcionar o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar.

Por despacho saneador do 7.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, de 13 de Abril de 2007, o pedido de resolução do contrato de arrendamento foi julgado improcedente por se haver entendido que a ré não estava obrigada a pedir autorização à autora para celebrar tal contrato nem tinha de proceder à comunicação a que se reporta a alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil, pelo que da omissão desses actos não resultava a possibilidade de resolução do contrato de arrendamento. Após recordar que, nos termos do n.º 1 do artigo 111.º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, não é havido como arrendamento do prédio urbano (...) o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração de um estabelecimento comercial [...] nele instalado, o despacho saneador desenvolveu a seguinte argumentação:

«O referido contrato é um contrato atípico ou inominado, que não se identifica nem com o arrendamento, nem com o trespasse e cujo regime jurídico não se encontra expresso na lei.

O que há de característico em tal contrato não é a cedência da fruição do imóvel nem a do gozo do mobiliário ou do recheio que nele se encontra, mas a cedência temporária do estabelecimento como um todo, uma universalidade, uma unidade económica mais ou menos complexa.

Através desse contrato não se dá a transmissão do direito ao arrendamento, não envolvendo o mesmo a transferência definitiva do estabelecimento nem sequer a transferência do arrendamento sobre o imóvel, como sucede no trespasse, já que o cedente conserva a titularidade da relação locatícia.

Nesse contrato, o negócio não incide directamente sobre o prédio, sendo este apenas um dos elementos do estabelecimento comercial propriamente dito, não ocorrendo consequentemente uma transmissão do arrendamento, sendo o cedente quem perante o senhorio continua a responder, como locatário, perante qualquer violação contratual que seja fundamento de resolução.

Como sustenta a ré, decorre de todo o exposto que a lei exclui o mencionado contrato de cessão de exploração do âmbito do contrato de locação, sujeitando-o ao princípio da liberdade contratual (a este propósito, vide, por todos, a posição do Exmo. Juiz Conselheiro Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª edição, Livraria Almedina, pág. 647 e seguintes).

A este propósito também já o Tribunal Constitucional se pronunciou no Acórdão 289/99, de 12 de Maio (DR, 2.ª série, de 14 de Julho de 1999), e no Acórdão 77/2001, de 14 de Fevereiro (DR, 2.ª série, de 26 de Março de 2001), no sentido de que a falta de comunicação ou de autorização do senhorio a que aludem as alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, estando em causa a cessão de exploração do estabelecimento, não é contrária à Constituição, antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se consagram nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, do diploma fundamental, e não constituindo fundamento para a resolução do contrato (vide também obra citada, pág. 648).

Assim, sendo certo que o contrato que a ora ré celebrou com Vítor Dias e Sandra Galvão foi um contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial, conclui-se que a pretensão da autora não pode proceder, porquanto a ré não estava obrigada a pedir autorização à autora para celebrar tal contrato nem tinha que proceder à comunicação a que se reporta a alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil, pelo que não se verifica existir qualquer fundamento para a resolução do contrato de arrendamento existente entre autora e ré.»

Contra esta decisão apelou a autora para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando, em suma, que a comunicação ao locador da cessão de exploração pelo locatário é obrigatória, nos termos do artigo 1038.º, alínea g), do Código Civil, e tinha de ser feita no prazo de 15 dias a contar da respectiva escritura, resultando da falta dessa comunicação a ineficácia da cessão em relação ao senhorio e fundamento de resolução do contrato de arrendamento.

A ré apelada contra-alegou, sustentado a confirmação da decisão recorrida e logo aduzindo que a interpretação do teor das alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil no sentido de que a cessão de exploração de estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado em termos de a sua validade estar condicionada à prévia autorização do senhorio e de o arrendatário estar sujeito ao dever de comunicação ao senhorio após a sua realização, constituindo qualquer dessas faltas fundamento de despejo previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU, como o faz a recorrente, constitui inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, que aqui desde já se invoca para os devidos e legais efeitos, uma vez que pelos atrás referidos acórdãos do Tribunal Constitucional [Acórdãos n.º s 289/99 e 77/2001] ficou assente que a cessão de exploração de estabelecimento comercial não é contrária à Constituição, antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se consagram nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, da CRP, e não constituindo fundamento para a resolução do contrato de arrendamento.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22 de Abril de 2008, foi julgada procedente a apelação da autora, revogada a decisão apelada, declarado resolvido o contrato de arrendamento e condenada a ré na entrega do locado, livre de pessoas e bens, e no pagamento da quantia de (euro) 132,50 por cada mês que decorrer até essa efectiva entrega. Para alcançar essa solução, o referido acórdão desenvolveu a seguinte fundamentação:

«4.2. O inquilino está ou não obrigado a notificar ao senhorio a cessão de exploração do locado, no prazo de 15 dias contados a partir da data da celebração desse contrato?

4.2.1. A questão que aqui cumpre dirimir - e que se consubstancia na interpretação do estatuído na alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil ('São obrigações do locatário: ... comunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada' - sendo esses 'títulos' os enunciados na alínea f) desse mesmo normativo) - originou jurisprudência e doutrina não só diversa mas diametralmente oposta.

O que será, talvez, pouco agradável tendo em conta a previsão do n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil e a necessidade de garantir à comunidade a segurança e certeza jurídicas pelas quais esta tanto anseia.

Porém, a verdade é que os princípios interpretativos estabelecidos pelo legislador nos três números do artigo 9.º do aludido Código permitem essas divergências desde que a interpretação proposta tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expressa (n.º 2).

Ainda assim, esse não é o único critério a atender, pois o julgador terá sempre que ter em conta as condições específicas do tempo em que a norma jurídica está a ser aplicada (n.º 1) e que presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (n.º 3, cabendo acrescentar que por soluções acertadas se deve entender aquelas que são eticamente conformes à hierarquia de valores que estrutura e dá consistência ao tecido social comunitário, ou, mais simplesmente, as que cabem nos limites da boa fé, dos bons costumes e do fim económico e social do direito - artigo 334.º do Código Civil).

Mas, repete-se, essas regras não são entendidas de um modo uniforme e, por isso, são tão diversamente aplicadas - daí a necessidade dos acórdãos para uniformização de jurisprudência (artigos 732.º-A e 732.º-B do CPC).

4.2.2. Só que a tudo isto acresce que, como avisava Marco Túlio Cícero no século I AC, o tempora o mores, e, sopesando bem todas as consequências sociais que resultaram da predominância dada, durante décadas, aos interesses dos inquilinos sobre os dos senhorios, a comunidade começou a inverter esse seu entendimento e essa sua prática - e, em boa verdade, esse predomínio, no caso dos arrendamentos para fins comerciais e industriais, dada a concreta natureza dos interesses em colisão, não é nem ética nem sociologicamente sustentável (v. artigos 334.º e 335.º do Código Civil, especialmente este último).

O NRAU - que consubstancia o mais recente (actual) pensamento legislativo - e, em particular, a nova redacção dada ao n.º 2 do artigo 1109.º do Código Civil, é disso um sinal evidente, um sinal que o julgador não pode ignorar, nomeadamente porque tem como função social e institucional administrar a justiça em nome do povo (n.º 1 do artigo 202.º da Constituição da República).

Em termos puros e simples, quando estão em causa arrendamentos para fins comerciais e industriais, passou a considerar-se que não podem suscitar-se dúvidas quanto à existência de um efectivo dever de informação do inquilino ao senhorio quanto às exactas condições em que o espaço locado está a ser usado (isto exactamente porque o cedente não perde a qualidade de arrendatário, ao contrário do que acontece com o trespassante).

4.2.3. Não se ignora, portanto, a opinião jurídica do falecido Conselheiro Aragão Seia - ou a jurisprudência do Tribunal Constitucional igualmente citada na sentença que agora se sindica - mas é igualmente inequívoco que os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça mais recentes (inter alia, todos in www.dgsi.pt/jstj, acórdãos de 9 de Outubro de 2006 - relator Faria Antunes, e de 10 de Julho de 2007 - relator Salvador da Costa) propõem já a solução jurídica que veio a ser consagrada nesse novo artigo 1109.º do Código Civil, a saber: que nos casos de celebração, pelos arrendatários, de contratos de cessão de exploração, é obrigatória a comunicação de tais acordos aos senhorios, no prazo de 15 dias, sob pena de permitir a estes últimos peticionar em juízo a resolução dos contratos de arrendamento firmados com tais inquilinos - que como tal permanecem não obstante o novo contrato - e o consequente despejo desses locados.

E o supra transcrito texto do artigo 1038.º, que é o aplicável à situação sub judice (artigo 12.º do Código Civil), permitia e permite essa interpretação, totalmente conforme às regras enunciadas no artigo 9.º daquele Código.

4.2.4. E porque assim é, não pode manter-se a decisão recorrida, antes havendo que julgar procedentes as conclusões das alegações do recurso intentado pela ora apelante, e, por essa razão, com o que se revoga a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, declarar resolvido o contrato de arrendamento relativo à loja do prédio urbano sito na Rua Cesário Verde, n.º 3-C, em Lisboa, inscrito na matriz da freguesia de Penha de França sob o artigo 515, e condenar a ré a entregar imediatamente essa loja à autora, livre de pessoas e bens, bem como a pagar a esta demandante a quantia de (euro) 132,50 por cada mês que decorrer até à entrega efectiva do locado.»

Notificada deste acórdão, a ré apelada, ora recorrente, veio do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade da «interpretação adoptada na decisão recorrida segundo a qual a cessão de exploração (ou locação) de estabelecimento comercial instalado em prédio arrendado se encontra abrangida na hipótese das referidas alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, em termos de a sua validade estar sujeita ao dever de comunicação ao senhorio após a sua realização, pelo que a falta dessa comunicação constituía fundamento de despejo previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU (já que os factos ocorreram no âmbito da lei antiga - RAU), interpretação essa que é manifestamente violadora do princípio da igualdade - como, aliás, já anteriormente se alegara - atentas as anteriores decisões proferidas no âmbito da mesma legislação pelo douto Tribunal Constitucional nos seus Acórdãos n.º s 289/99, de 12 de Maio, e 77/2001, de 14 de Fevereiro, já referidos, assim compatibilizando o conflito de direitos que se consagrou nos artigos 61.º, n.º 1, [e 62.º, n.º 1,] da Constituição da República Portuguesa».

Neste Tribunal, a recorrente apresentou alegações, concluindo:

«1. A interpretação das normas constantes das alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil no sentido de que na cessão de exploração comercial (ou locação de estabelecimento) a sua validade está sujeita ao dever de comunicação ao senhorio, após a sua realização, pelo que a falta dessa comunicação constitui fundamento para despejo ao abrigo do disposto na alínea f) [do n.º 1] do artigo 64.º do RAU, é manifestamente violadora do disposto no artigo 61.º da CRP e do principio da igualdade, atentas as anteriores decisões proferidas no âmbito dessa mesma legislação por este mesmo douto Tribunal, por seus doutos Acórdãos n.º s [289]/99, de 12 de Maio, e 77/2001, de 14 de Fevereiro.

2. Os factos a que se refere a presente acção reportam-se ao ano de 2004, sendo certo que o contrato de cessão de exploração tem a data de 1 de Maio de 2003 e a contestação da acção foi apresentada em 20 de Fevereiro de 2004.

3. A legislação nova a que os M.mos Juízes Desembargadores se reportam - NRAU, Lei 6/2006 - entrou em vigor apenas em Fevereiro de 2006 e, nos termos da aplicação das leis no tempo, não é claramente aplicável aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, nem expectável que as partes regulem os seus comportamentos à luz de uma lei futura.

4. O tratamento de situações como as que decorreram no âmbito dos processos cujos acórdãos atrás referirmos aconselha a que a decisão de considerar dispensável essa notificação prevista nas alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil se mantenha, a fim de que factos idênticos, processados em períodos de vigência de uma idêntica legislação, não sejam tratados de forma desigual.

5. Decorre de todo o exposto que a interpretação dada em conformidade com o explanado no ponto 1 destas alegações é inconstitucional, violando quer o disposto no artigo 61.º, n.º 1, da CRP, quer ainda o princípio da igualdade.

Nestes termos e nos mais do direito aplicável, deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, em face disso, deve este Venerando Tribunal proferir um juízo de inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal a quo às normas contidas nas alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, com a redacção ocorrida ao tempo da vigência do RAU (2004), no sentido de que a falta de comunicação aí prevista constituía no caso de cessão ou locação de estabelecimento fundamento de despejo previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU, pois só assim se fará Justiça!»

A autora apelante, ora recorrida, contra-alegou, propugnando a improcedência do recurso.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.

2 - Fundamentação. - 2.1. A fim de definir, com precisão, o objecto do presente recurso, cumpre salientar que, como resulta do precedente relatório, a autora, tendo inicialmente fundado o pedido de resolução do contrato de arrendamento quer na omissão do pedido de autorização para a celebração do contrato de cessão de exploração do estabelecimento, quer na omissão da comunicação da celebração desse contrato, veio, na apelação por ela interposta, a cingir o fundamento do pedido a esta última causa.

Por outro lado, embora a discussão travada nos autos pelas partes se tenha centrado no reconhecimento, ou não, da consagração legal desse dever de comunicação e na constitucionalidade dessa exigência, a sua relevância jurídico-prática sempre esteve associada à consequência que, a vingar a tese da existência do dever de comunicação, derivava da sua violação: o reconhecimento do direito de o senhorio resolver o contrato de arrendamento com o fundamento previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 64.º do RAU [1. O senhorio só pode resolver o contrato se o arrendatário: (...) f) Subarrendar ou emprestar, total ou parcialmente, o prédio arrendado, ou ceder a sua posição contratual, nos casos em que estes actos são ilícitos, inválidos por falta de forma ou ineficazes em relação ao senhorio, salvo o disposto no artigo 1049.º do Código Civil; (...)].

Constitui, assim, objecto do presente recurso a questão da constitucionalidade da norma, extraída da conjugação dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), do RAU e 1038.º, alíneas f) e g), do Código Civil, interpretados no sentido de que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento a falta de comunicação do locatário ao locador da celebração de um contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial sito no prédio arrendado.

2.2. O n.º 1 do artigo 1085.º do Código Civil dispunha - regra que foi transferida para o artigo 111.º, n.º 1, do RAU - que não era havido como arrendamento a cessão de exploração de estabelecimento comercial [ou locação de estabelecimento, designação que o legislador por vezes utilizara no passado (cf., designadamente, os artigos 1682.º-A, n.º 1, alínea b), do Código Civil, aditado pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de Novembro, 246.º, n.º 2, alínea c), do Código das Sociedades Comerciais, e 80.º, n.º 2, alínea m), do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 207/95, de 14 de Agosto, na redacção do Decreto-Lei 40/96, de 7 de Maio) e que veio a consagrar no artigo 1109.º do Código Civil, na redacção dada pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro (que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano - NRAU)], entendida como o contrato pelo qual se transfere temporária e onerosamente, para outrem, juntamente com o gozo do prédio [prédio arrendado, entenda-se, já que se o cedente do estabelecimento for simultaneamente proprietário do prédio estaremos na presença de um contrato misto de arrendamento para comércio e de locação de estabelecimento - cf. Manuel Henrique Mesquita, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 129.º, pp. 79-80], exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado. Essa explicitação legal do afastamento da equiparação a arrendamento visou primacialmente não submeter a cessão da exploração de estabelecimento comercial (em prédio arrendado) às regras específicas do contrato de arrendamento, designadamente a regra vinculística da renovação obrigatória, antes valendo quanto a ela as regras comuns da liberdade contratual (cf. Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 7.ª edição, Coimbra, 2003, pp. 644 e seguintes).

Face ao teor das alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil - que se mantém inalterado desde a versão originária desse diploma - , verificou-se persistente divergência doutrinal e jurisprudencial quanto à questão de saber se sobre o locatário incide quer o dever de obter autorização do locador para a celebração de contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial a funcionar no prédio locado, quer o dever de comunicar ao locador essa cessão, ou apenas o dever de efectuar esta comunicação, ou nenhum desses deveres.

A tese da inexistência dos deveres de obtenção de autorização do locador para a celebração do contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial e de comunicação da efectiva celebração de tal contrato assentava desde logo, quanto ao primeiro dever, num argumento de maioria ou paridade de razão extraído da expressa determinação legal (cf. artigo 1118.º, n.º 1, do Código Civil, substituído pelo artigo 115.º, n.º 1, do RAU) da desnecessidade de autorização para a celebração de trespasse, sendo certo que enquanto no trespasse ocorre transferência definitiva da titularidade do estabelecimento, a cessão de exploração transfere pro tempore a mera fruição do estabelecimento (cf., nesse sentido, ainda perante a legislação anterior ao Código Civil, Orlando de Carvalho, Critério e Estrutura do Estabelecimento Comercial, I - O Problema da Empresa como Objecto de Negócios, Coimbra, 1967, p. 603; e, já na vigência do Código Civil, Rui de Alarcão, «Sobre a transferência da posição do arrendatário no caso de trespasse», Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLVII, 1971, pp. 21-54, em especial p. 27, nota 12, F. M. Pereira Coelho, Arrendamento, Coimbra, 1984, p. 204, nota 1, e Paulo de Tarso Domingues, «A locação de empresa», Revista de Direito e Economia, anos XVI a XIX, 1990-1993, pp. 539-566, em especial pp. 559-566; em sentido oposto, entendendo que, face ao silêncio do artigo 1085.º do Código Civil (ou artigo 111.º do RAU) quanto à possibilidade de cessão da exploração sem necessidade de autorização do senhorio, em contraste com a expressa dispensa dessa autorização para o trespasse, constante do artigo 1118.º (artigo 115.º do RAU), não haveria lugar à aplicação analógica desta última norma, mantendo aplicação as regras gerais da locação, carecendo a cessão de exploração de estabelecimento de autorização e comunicação ao senhorio, cf. Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição, Coimbra, 1986, pp. 532-533, anotação 7 ao artigo 1085.º, e Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações (Parte Especial) - Contratos, 2.ª edição, Coimbra, 2001, p. 294).

Por outro lado, a negação da existência de qualquer dos dois referidos deveres era derivada da constatação de que do contrato de cessão da exploração de estabelecimento comercial não resultava qualquer cessão de posição contratual (o locatário cedente da exploração do estabelecimento continuava a ser a contraparte do locador no contrato de arrendamento), nem sublocação, nem comodato, pelo que não se verificava nenhuma das três situações em que (taxativamente) a alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil condicionava a possibilidade de o locatário proporcionar a outrem o gozo da coisa à obtenção de prévia autorização do locador, nem, consequentemente, nenhuma das situações em que, nos termos da subsequente alínea g), estava obrigado a comunicar a cedência da coisa por algum dos «referidos títulos» (cessão da posição contratual, sublocação ou comodato): neste sentido, Aragão Seia, obra citada, pp. 647-648.

Uma terceira via, considerando não exigida a autorização do locador, mas devida a comunicação da cessão - por imprescindível para possibilitar ao senhorio a fiscalização do negócio realizado, designadamente para, nos termos do n.º 2 do artigo 111.º, apurar se terá ocorrido alguma das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 115.º (que determina não haver trespasse quando a transmissão não for acompanhada de transferência, em conjunto, das instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o estabelecimento, ou quando, transmitido o gozo do prédio, passe a exercer-se nele outro ramo de comércio ou indústria ou quando, de um modo geral, lhe seja dado outro destino), hipótese em que o contrato passa a ser havido como arrendamento do prédio - , tem sido defendida, na doutrina, entre outros, por M. Januário da Costa Gomes, Arrendamentos Comerciais, 2.ª edição, Coimbra, 1991, pp. 76-77; Jorge Henrique da Cruz Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3.ª edição, Coimbra, 2001, pp. 611-618; António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 6.ª edição, Lisboa, 2001, p. 212; Jorge Manuel Coutinho de Abreu, curso de Direito Comercial, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2003, pp. 310-319; cf., por último, a anotação de Fernando de Gravato Morais ao acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 17 de Junho de 2004, P. 1092/04 («Comunicação da cedência do gozo do imóvel ao senhorio no caso de locação de estabelecimento», Cadernos de Direito Privado, n.º 10, Abril/Junho 2005, pp. 60-68), constando, quer do acórdão quer da anotação, desenvolvidas referências às posições doutrinais e jurisprudenciais que têm subscrito cada uma das três teses em presença, referências para as quais se remete (apenas se aditando a menção aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Outubro de 2006, P. 06A2463, de 14 de Outubro de 2006, P. 06A2756, e de 10 de Julho de 2007, P. 07B2409, com texto integral disponível em www.dgsi.pt/jstj).

Como é sabido, a aludida controvérsia doutrinal e jurisprudencial veio a ser resolvida pela Lei 6/2006, na redacção dada ao n.º 2 do novo artigo 1109.º do Código Civil, que, sob a epígrafe Locação de estabelecimento, e inserido na Subsecção VIII - Disposições especiais do arrendamento para fins não habitacionais, dispõe:

«1 - A transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou de parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado, rege-se pelas normas da presente subsecção, com as necessárias adaptações.

2 - A transferência temporária e onerosa de estabelecimento instalado em local arrendado não carece de autorização do senhorio, mas deve ser-lhe comunicada no prazo de um mês.»

Trata-se, porém, de normação inaplicável ao caso dos autos, em que o contrato de cessão do estabelecimento comercial foi celebrado em 1 de Maio de 2003, tendo a presente acção sido instaurada em 26 de Janeiro de 2004.

2.3. No Acórdão 289/99 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 43.º vol., p. 547), este Tribunal - em recurso interposto do acórdão do STJ, de 19 de Março de 1998, que confirmara a improcedência de acção de resolução de contrato de arrendamento comercial fundada na falta de pedido de autorização e na falta de comunicação, por parte do locatário, de cedência de exploração de estabelecimento comercial instalado no prédio locado - não julgou inconstitucionais as normas das alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, quando interpretadas no sentido de que a falta de comunicação ou de autorização do senhorio não constituem fundamento para resolução do contrato de arrendamento, estando em causa a cessão de exploração do estabelecimento.

Para atingir esta conclusão, desenvolveu-se a seguinte fundamentação:

«II - 1. Segundo o disposto nas alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, são obrigações do locatário [n]ão proporcionar a outrem o gozo total ou parcial da coisa por meio de cessão onerosa ou gratuita da sua posição jurídica, sublocação ou comodato, excepto se a lei o permitir ou o locador o autorizar, e [c]omunicar ao locador, dentro de 15 dias, a cedência do gozo da coisa por algum dos referidos títulos, quando permitida ou autorizada.

A decisão sob censura qualificou o negócio jurídico celebrado entre o réu e mulher e a sociedade Álvaro Pinto Correia & Filhos, Lda., como um contrato de cessão de exploração comercial, concluindo seguidamente que da mesma se não 'justificaria, nem autorização nem levar ao conhecimento do senhorio'.

Significa isto, pois, que o acórdão impugnado veio interpretar aquelas alíneas de sorte a que a cessão de exploração de um estabelecimento comercial, levada a efeito pelo detentor desse estabelecimento, que arrendou determinado local para a sua instalação, não está dependente de prévia autorização do senhorio e comunicação ao mesmo da realização desse negócio.

E é esta interpretação que as recorrentes, por intermédio do vertente recurso, impugnam do ponto de vista da sua validade constitucional, pois que, na sua óptica, ela violaria o que se dispõe no n.º 1 do artigo 62.º da Lei Fundamental.

Dispõe-se neste preceito constitucional que [a] todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.

E é essa garantia que as recorrentes consideram violada com a interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça fez da norma constante da alínea g) do artigo 1038.º do Código Civil, ao nela se não abranger, no conceito de cessão onerosa ou gratuita da posição jurídica do arrendatário a cessão de exploração do estabelecimento comercial ou industrial instalado na coisa locada.

No aresto ora impugnado foi sublinhado que 'em nada foi afectada a posição contratual das senhorias' porquanto '(c)ontinua a ser o mesmo, o arrendatário' e a transferência 'incidiu, directamente, sobre o estabelecimento comercial do réu, só abrangendo, digamos indirectamente, bens nele porventura existentes e o arrendamento'.

2. De acordo com a noção legal, o arrendamento urbano é o contrato pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante retribuição (cf. artigo 1.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro).

A natureza jurídica do direito do arrendatário tem sido objecto de controvérsia na doutrina portuguesa.

Autores como Paulo Cunha, Luís Pinto Coelho, Dias Marques, Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro podem ser apontados como defensores da tese da realidade do direito de locatário, enquanto que outros, como Inocêncio Galvão Teles, Pinto Loureiro, Gomes da Silva, Pires de Lima, Manuel Henrique Mesquita, Adriano Vaz Serra, João de Matos, Cunha e Sá, Rodrigues Bastos, Pereira Coelho, Manuel Januário Gomes, Antunes Varela e António Santos Lessa se postam como sustentando aquilo que, comummente, se designa por concepção personalista (cf. Jorge Pinto Furtado, in Manual do Arrendamento Urbano, 1996, pp. 52 e 53, nota 64).

A mais impressiva (e, quiçá maioritária) jurisprudência, por seu turno, tem, nos feitos à mesma submetidos, optado por aquilo que se pode desenhar como seguindo uma perspectiva iluminada pela tese personalista do direito do locatário.

Como é sabido, esteia-se esta tese na circunstância de o Código Civil parecer, na noção contida no seu artigo 1022.º, 'reflectir... a imagem tradicional da locação como contrato obrigacional e não real -, o que é transponível para a noção utilizada no artigo 1.º do RAU (cf. António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 4.ª edição, p. 56).

Em abono da defesa do arrendamento como um direito real, não poderá deixar de citar-se José de Oliveira Ascensão (Direito Civil - Reais, 4.ª edição refundida, p. 471), que ensina que o 'direito de arrendamento é inerente ao prédio e atribui o aproveitamento deste', pelo que, '[e]m consequência, não é atingido por quaisquer transmissões, em vida ou por morte, do direito concorrente que limita', defendendo que '[e]ste princípio vem hoje estabelecido em geral para a locação do artigo 1057.º'.

Por outro lado, Manuel Henrique Mesquita (Obrigações Reais e Ónus Reais, 1990, p. 176) escreve:

'[...] as manifestações normativas da realidade apenas se verificam após a efectivação da relação de uso ou fruição da coisa locada - e a relação jurídica locativa, conforme vimos, nasce por mero efeito do contrato de locação, não pressupondo, por conseguinte, a entrega da coisa ao locatário. Em segundo lugar, porque, mesmo depois de instaurada a relação de uso ou fruição, a posição jurídica do locatário continua a ser disciplinada, quanto a alguns dos seus efeitos ou vicissitudes, em função e à luz de uma relação intersubjectiva estabelecida entre ele e o locador, consubstanciada no contrato locativo. O direito do locatário não chega a autonomizar-se da sua matriz contratual, sendo disciplinado pela lei, não apenas no seu momento genético, mas também para além dele, como uma das faces da relação negocial de cooperação de que promana.'

Torna-se claro que este Tribunal não tem, in casu, que tomar qualquer posição sobre a controvérsia de que se vem dando notícia, havendo, apenas, que não deixar passar em claro que, mesmo que se sustentasse que o contrato de arrendamento não tem natureza essencialmente pessoal, como diz Pereira Coelho (Direito Civil - I Arrendamento, Sumários das lições ao Ciclo Complementar de Ciências Jurídicas em 1980-1981, pp. 19 e seguintes), que pugna por não haver argumentos decisivos para essa concepção afastar, não é de desprezar o facto de a lei equiparar, por vezes, o direito do arrendatário aos direitos reais para determinados efeitos.

Abordando a relevância do arrendamento, conquanto numa outra perspectiva, este Tribunal teve ocasião de dizer no seu Acórdão 267/95 (publicado na 2.ª série do Diário da República, de 20 de Julho de 1995):

"8 - Seja, porém, qual for em definitivo a natureza jurídica do direito ao arrendamento (real ou obrigacional), uma coisa é certa: um tal direito é, em certa medida, protegido pelo artigo 62.º da Constituição, ou seja, pela garantia constitucional do direito de propriedade.

Vejamos em que medida.

O artigo 62.º, n.º 1, da Constituição garante o direito à propriedade privada e à sua transmissão, 'nos termos da Constituição', isto é, dentro dos limites e termos definidos noutros pontos da Lei Fundamental, competindo ao legislador definir o conteúdo e limites do direito de propriedade privada [artigo 168.º, n.º 1, alíneas b) e j), da Constituição].

Elemento essencial do direito de propriedade é o direito de não de ser privado dela, que a Constituição não garante em termos absolutos, prevendo-se no n.º 2 do artigo 62.º apenas o direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e o direito à percepção de uma indemnização no caso de requisição ou de expropriação por utilidade pública."

3. Perante esta parametrização, torna-se claro que, no caso sub specie, e para que se não tenda a precipitar um raciocínio com base no qual, não podendo o arrendamento ser desligado do direito garantido pelo n.º 1 do artigo 61.º do Diploma Básico, a interpretação normativa sub specie constitucionis se figuraria como feridente de tal garantia, há que levar mais longe a análise da questão.

Efectivamente, não pode o problema em apreço ser desligado de uma outra óptica, justamente aquela que consiste no desenho do que, no caso, se postava, ou seja, aquilo que os tribunais judiciais deram como assente (e que, de todo em todo, este Tribunal não pode, no dito caso, pôr em crise) e que consistiu em se tratar uma situação de cessão de exploração do estabelecimento.

Como se sabe, a relação de arrendamento é susceptível de sofrer, como qualquer outra relação jurídica, modificações subjectivas, ou seja, aquelas que operam no plano dos sujeitos.

No que se refere ao arrendamento com um fim que não seja o de habitação, a doutrina tem considerado apenas como modificações subjectivas da relação jurídica os seguintes casos: simples cessão da posição contratual; subarrendamento; trespasse de estabelecimento comercial ou industrial; e cessão de escritório, consultório ou estúdio de profissão liberal (para alguma doutrina - cf. Jorge Pinto Furtado, ob. cit., p. 442 - ainda aí se incluem os casos de subarrendamento).

Não importando, para o caso, as situações previstas no artigo 122.º do RAU (redacção e numeração operadas pelo Decreto-Lei 257/95, de 30 de Setembro) - a que corresponde ao artigo 1120.º do Código Civil - , não se vai sem dizer que as restantes situações se encontram reguladas no artigo 1059.º, n.º 2, do Código Civil, e no artigo 115.º do RAU.

Quanto às situações de cessão da posição contratual e de subarrendamento, exigem expressamente os artigos 424.º, n.º 1, ex vi do artigo 1059.º, n.º 2, um e outro do Código Civil - quanto à cessão da posição de arrendatário - , 1038.º, alínea f), do mesmo corpo de leis e 44.º do RAU - quanto ao subarrendamento - o consentimento do senhorio.

Tratando-se de um estabelecimento comercial, convém efectuar um mui perfunctória discorrer sobre o respectivo conceito e aquilo que tem sido vincado como a diferenciação entre os seus trespasse e cessão de exploração.

Assim, Pinto Furtado (ob. cit., pp. 486 a 488) defende que o estabelecimento comercial deve ser visualizado como um 'complexo de bens patrimoniais congregados pelo empresário para a realização da sua actividade económica', acrescentando:

'Complexo de bens que envolverá, pois, não apenas as coisas materiais ou corpóreas, mas também as coisas imateriais ou incorpóreas, com valor económico, que lhe dão aisance instrumental - como, designadamente, o aviamento, ou seja aquela qualidade em clientela e organização que está para o estabelecimento comercial como a fertilidade do solo está para a organização de uma exploração agrícola, ou como o nome ou insígnia do estabelecimento.

[...] temos ainda um nítido afloramento de semelhante perspectiva jurídico-positiva universalizante na facti species do artigo 115.º do RAU.

[...] O estabelecimento comercial ou industrial, a que se reporta este preceito, constitui portanto o que na dogmática se denomina universalidade.'

De seu lado, Oliveira Ascensão ('Estabelecimento comercial', in Revista da Ordem dos Advogados, ano 47, 1987, I, P. 14), doutrina no sentido de que:

'O estabelecimento comercial é uma universalidade de facto: é uma coisa colectiva, unificada pela aptidão para o desempenho de uma função produtiva.

[...] que há um sentido técnico de estabelecimento comercial, entendido agora como complexo de situações jurídicas. Neste sentido, o estabelecimento comercial é uma universalidade de direito. É ponto em que nos não podemos deter; mas também não vemos motivo nenhum para fugir à qualificação. O estabelecimento comercial, como situação jurídica, cai inteiramente naquela noção, pois é um complexo de situações jurídicas (ou uma situação jurídica complexa) juridicamente unificadas para efeitos da sua sujeição a vicissitudes comuns.'

Também Ferrer Correia ('Reivindicação do estabelecimento comercial como unidade jurídica', in Estudos Jurídicos, II, 1969, pp. 262 e seguintes) defende que 'é como verdadeira unidade jurídica, e não apenas como unidade económica, que o estabelecimento comercial deve ser concebido'.

Dada a sua relação com a cessão da exploração de estabelecimento, não é despicienda a citação da seguinte passagem do mesmo autor: 'a chamada concessão de exploração comercial ou industrial (rectius: locação de estabelecimento) não é redutível a tantos contratos distintos e autónomos quantos os singulares elementos componentes da universalidade. Designadamente, o negócio jurídico não poderá ser qualificado como arrendamento, sem embargo de envolver a transferência para o locatário, por todo o tempo do contrato, do uso do prédio onde o estabelecimento está instalado.' (p. 265).

Ainda Pinto Furtado, e agora a propósito do trespasse, é do entendimento de que:

'Além disso, entende-se pacificamente que ele [o trespasse] envolverá, por outro lado, necessariamente, uma transferência definitiva do estabelecimento. A mera transmissão pro tempore não forma um trespasse - asserção que hoje parece seguramente confirmada pela destrinça que o Regime estabelece entre trespasse, referido no artigo 115.º, e concessão ou cessão da exploração, que contempla no seu artigo 111.º' (p. 490).

Também Manuel Januário Gomes considera que os conceitos de trespasse e de cessão de exploração são distintos, porquanto no caso do primeiro haverá 'sempre que ocorrer uma transferência definitiva e unitária do estabelecimento comercial' (Arrendamentos comerciais, 1991, 2.ª ed., pp. 162 e 163), enquanto que o segundo 'consiste numa forma de negociação do estabelecimento comercial traduzida numa transferência temporária e onerosa do seu gozo ou exploração' (dita obra, p. 61).

4. Sem se ter que tomar partido - já que isso se situa fora dos poderes cognitivos deste Tribunal - sobre o que se deva entender por cessão de exploração efectuada pelo recorrido, tal como foi dado por assente pelo Supremo Tribunal de Justiça (e que, aliás, se encontra apoiada por autores tais como Orlando de Carvalho, Rui Alarcão, Pereira Coelho e M. Januário Gomes - quanto a este último, veja-se a obra já citada, p. 77), é evidente que havemos de tomar por assente que na interpretação do artigo 1038.º, alínea g), do Código Civil, que aqui é objecto de recurso, foi considerado que aquela cessão não alterou a relação jurídica estabelecida entre as recorrentes, como locadoras, e o recorrido, como arrendatário, qualidade que, no entender daquele alto tribunal, se manteve inalterada quanto, nomeadamente, às suas obrigações.

É, pois, neste plano que se tem de verificar da existência ou não da alegada contrariedade com a Constituição da norma contida na alínea g) [e também a da alínea f)] do artigo 1038.º do Código Civil no entendimento segundo o qual, havendo cessão do estabelecimento comercial instalado em local arrendado, o arrendatário não necessita da autorização do senhorio para efectuar essa cessão, nem de lha comunicar, tal como foi entendido pelo acórdão recorrido.

Neste contexto, há que não olvidar que, como se sublinhou no Acórdão deste Tribunal n.º 425/87 (publicado no Diário da República, 2.ª série, de 5 de Janeiro de 1988), tomando por referência o 'direito de propriedade privada, dir-se-á, desde logo, que a conflitualidade existente entre o senhorio e o inquilino radica numa base obrigacional, derivando os direitos e deveres respectivos de um contrato entre ambos celebrado...'.

Assim sendo, e atentos os direitos e obrigações das partes no contrato de arrendamento para comércio ou indústria razoavelmente admissíveis e que, porventura, no prisma do senhorio, se podem configurar como tendo incidência nos poderes de uso, fruição e disposição do seu direito sobre a coisa locada (quiçá podendo acarretar uma sorte de 'limitações' àqueles poderes), não se pode dizer que o proprietário do locado (ou quem sobre ele tenha poderes de uso e fruição, caso não seja proprietário) fique afectado ou veja alteradas mais gravosamente essas 'limitações' decorrentes do arrendamento que livremente antes celebrou no desfrute da sua autonomia contratual e na decorrência dos poderes de fruição que tinha sobre essa mesma coisa.

É que, esse anterior contrato, com toda a corte de eventuais 'limitações' que dele promanem para o livre e incondicionado exercício do direito de propriedade sobre o locado (ou um outro direito de conteúdo patrimonial, não passando em claro, que, como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 331, o espaço semântico-constitucional do direito de propriedade não se limita à proprietas rerum) continua intocado e sujeito a toda a regulamentação que o pauta, continuando a ser exigível pelo locador que o arrendatário cumpra as obrigações inerentes a esse contrato, mantendo-se, pois, de pé os mesmíssimos direitos, obrigações e ónus decorrentes do contrato.

O que, com a cessão, ocorreu foi unicamente uma alteração subjectiva da gestão do estabelecimento, tido como uma universalidade e da qual faz parte o próprio local onde o mesmo se encontra instalado, estabelecimento esse que continua a ser o mesmo e titulado pelo mesmo arrendatário sobre o qual, como se disse, continuam a impender as mesmas obrigações que defluem do contrato de arrendamento.

Na interpretação de que se cura, a posição das ora recorrentes, no que tange ao seu direito de propriedade sobre a coisa locada não deve, por isso, considerar-se 'tocada' ou, pelo menos, apresentar maiores 'limitações' do que aquelas que eventualmente já decorriam do contrato de arrendamento que celebraram com o locatário.

E isto, é evidente, mesmo que para quem perfilhe a perspectiva de que o contrato de arrendamento, mesmo para comércio e indústria, é um contrato intuitus personae (questão sobre a qual, atento o que acima se disse já, este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa não tem aqui que tomar posição), por isso que o mesmo mantém o seu objecto, continuando a ser as mesmas as partes contratantes e as condições e cláusulas a que tal contrato obedece.

Mas, mesmo para quem não perfilhe na sua integralidade uma fundamentação como a que se veio de expor, por isso que poderia defender que a mesma, levada às últimas consequências, porventura conduziria a que não fossem consideradas como contrárias à Constituição todas as alterações da pessoa do arrendatário (verbi gratia, nos casos de trespasse ou de outras situações de cessão do arrendamento) sem que houvesse necessidade de comunicação ou autorização do senhorio, o que é certo é que, tratando-se, como no caso se trata, de uma cessão de exploração de um estabelecimento comercial ou industrial, a manutenção do contrato de arrendamento onde tal estabelecimento se sedia ou situa, com dispensa de autorização e comunicação de e ao senhorio, não deixará de ser perspectivável como uma protecção desse mesmo estabelecimento e, dessa sorte, de protecção da própria livre iniciativa económica consubstanciada na exploração do estabelecimento.

Não se divisa, assim, que a interpretação, seguida pelo aresto recorrido e de harmonia com a qual a falta de comunicação ou de autorização do senhorio a que aludem as alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, não constitui fundamento para resolução do contrato de arrendamento, estando em causa a cessão de exploração do estabelecimento, seja contrária à Constituição, antes compatibilizando o eventual conflito dos direitos que se consagram nos artigos 61.º, n.º 1, e 62.º, n.º 1, desde diploma fundamental.»

O juízo de não inconstitucionalidade constante deste Acórdão 289/99 foi reiterado no Acórdão 77/2001, proferido em recurso em que os recorrentes (autores vencidos em acção de resolução do contrato de arrendamento fundada em cedência, pelo locatário, da exploração de um estabelecimento comercial instalado no locado sem que tivesse obtido autorização dos locadores ou lhes tivesse sido efectuada qualquer comunicação) sustentavam a inconstitucionalidade material, por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da justiça e do Estado de direito e ainda por violação do direito de propriedade, da norma da alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil, entendida no sentido de que não abarca na sua previsão a hipótese de cessão da exploração de estabelecimento comercial ou industrial e de que, em consequência, este negócio se pode realizar sem autorização prévia do senhorio e sem necessidade de comunicação posterior ao negócio. Após se reproduzir a parte relevante da fundamentação do Acórdão 289/99, acrescentou-se no Acórdão 77/2001:

«3.1. Há que convir que a interpretação dada pelo Tribunal da Relação do Porto no acórdão sob recurso à norma da alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil é, de todo em todo, similar àquela interpretação que foi objecto da análise no Acórdão de que imediatamente acima se encontra transcrita uma parte.

Daí que a corte argumentativa utilizada no dito Acórdão 289/99 seja, cabalmente, transponível para o caso sub specie e concernentemente à norma da alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil, no entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação do Porto.

A isto acresce que se não vislumbra da alegação produzida pelos recorrentes qualquer argumento que tenha virtualidade, ainda que mínima, e que possa abalar a mencionada corte argumentativa.

Sublinhar-se-á, tão-somente, que nenhuma das dimensões do princípio da igualdade, como sejam a proibição do arbítrio, a proibição de discriminação e a obrigação de diferenciação, foi violada pelo sentido normativo seguido pelo acórdão sob censura quanto ao preceito de que agora se trata.

De facto, a cessão de exploração de estabelecimento comercial ou industrial não é equivalente às restantes situações invocadas nas alegações: sublocação e trespasse. Qualquer uma destas apontadas situações expressamente previstas na alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil são consideradas, ao contrário daquela, pela doutrina, como casos de modificação subjectiva da relação jurídica (cf. Jorge Pinto Furtado, referido no Acórdão 289/99, e na passagem ali transcrita).

Desse modo, não se pode falar de qualquer tratamento desigual, porquanto desiguais são as situações confrontadas.

No que respeita aos princípios da justiça e do Estado de direito não se divisa em que é que a norma contida na alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil, na aludida interpretação, os possa violar, tanto mais quanto é certo que, quanto a esse ponto, nenhum desenvolvimento se alcança da alegação que foi produzida pelos recorrentes que suporte, em termos minimamente aceitáveis, essa pretensa violação.

Motivos pelos quais se haverá de concluir pela inexistência de qualquer violação da Constituição.»

2.4. A recorrente entende que o critério normativo acolhido no acórdão recorrido viola o princípio da igualdade, fundamentalmente por contrastar com anteriores decisões do Tribunal Constitucional, que, na sua tese, para situações idênticas, teriam imposto a adopção de entendimentos opostos.

Esta arguição é claramente improcedente.

É sabido que não compete ao Tribunal Constitucional determinar qual a interpretação mais correcta do direito ordinário aplicável ao caso, cabendo-lhe apenas sindicar se a interpretação efectivamente acolhida nas decisões recorridas - interpretação que tem de ser recebida como um dado da questão de constitucionalidade - respeita ou desrespeita os princípios e as normas constitucionais.

Perante divergências jurisprudenciais - designadamente tão vincadas e reiteradas como as verificadas a propósito da questão de saber se a cessão da exploração de estabelecimento comercial instalado em local arrendado estava sujeita a autorização do e a comunicação ao senhorio, ou apenas a comunicação, ou nem a uma nem a outra - , é óbvio que, na prática, se criam situações de desigualdade, sendo casos idênticos objecto de soluções diferentes consoante a corrente jurisprudencial em que se inserem os tribunais que os decidem. Mas tal não representa a verificação de uma situação de inconstitucionalidade normativa por violação do princípio da igualdade, enquanto imposição ao legislador ordinário do dever de não consagrar soluções arbitrárias.

Por outro lado, a circunstância de, nos dois aludidos Acórdãos, o Tribunal Constitucional ter decidido que não era constitucionalmente imposto que o legislador consagrasse o dever de o locatário obter autorização do senhorio para a cessão da exploração do estabelecimento comercial instalado no local arrendado e de comunicar ao locador a efectivação da cessão autorizada, não impõe, como sua decorrência lógica, que se tenha por constitucionalmente proibida a consagração de qualquer um desses deveres. O que naqueles Acórdãos se decidiu foi que, consideradas as diferenças entre os títulos referidos na alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil (cessão da posição contratual, subarrendamento e comodato) e a cessão de exploração de estabelecimento comercial instalado em local arrendado, o princípio constitucional da igualdade não impunha ao legislador ordinário que estabelecesse para esta cessão os mesmos condicionalismos fixados para aquelas três figuras; e que, por outro lado, a interpretação normativa que dispensava a autorização do e a comunicação ao senhorio não violava, de forma intolerável, o direito de propriedade deste, antes o conciliava com o direito de iniciativa económica do locatário.

No presente caso - sem qualquer contradição com a anterior jurisprudência deste Tribunal - , dir-se-á que o critério normativo, seguido na decisão recorrida, de que a cessão de exploração deve ser comunicada ao senhorio (sem exigência de obtenção de prévia autorização) não viola o princípio da igualdade, desde logo porque nem sequer equipara integralmente esta situação às três expressamente previstas nas alíneas f) e g) do artigo 1038.º do Código Civil, relativamente às quais se exige cumulativamente a autorização e a comunicação, e depois porque, atentas as razões invocadas para a afirmação do dever de comunicação (legítimo interesse do senhorio em conhecer a identidade de quem efectivamente usufrui do local arrendado e direito que lhe assiste de controlar o preenchimento dos requisitos do contrato de cessão, ao abrigo dos n.º s 2 dos artigos 111.º e 115.º do RAU), a imposição deste dever nada tem de arbitrário, desnecessário ou inadequado.

Ao que acresce que, tratando-se de um dever de fácil execução e que não interfere (ao contrário da exigência de autorização) com a decisão do locatário sobre o modo por ele tido por mais vantajoso para a exploração do seu estabelecimento, não se vislumbra como possa sustentar-se que tal solução viola o direito de iniciativa económica, consagrado no artigo 61.º, n.º 1, da CRP.

Improcedem, assim, os fundamentos em que a recorrente alicerçou a sua tese da inconstitucionalidade do critério normativo adoptado no acórdão recorrido.

2.5. A recorrente centrou a sua argumentação fundamentalmente na impugnação da correcção da interpretação do direito ordinário segundo a qual o locatário deve comunicar ao senhorio a cessão de exploração de estabelecimento comercial instalado no local arrendado e na acusação de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade e do direito de iniciativa económica privada, do critério normativo que afirma a existência desse dever.

Porém, aceitando-se a consagração legal e a constitucionalidade da imposição desse dever, a violação da Constituição pode ser colocada numa outra perspectiva: a da eventual violação do princípio da proporcionalidade por se considerar excessivo o sancionamento do incumprimento desse dever com a resolução do contrato de arrendamento, apreciação que é consentida pelo artigo 79.º-C da LTC, e aliás já encarada por este Tribunal.

Na verdade, a problemática da violação do princípio da proporcionalidade no âmbito da previsão legal das causas de resolução do contrato de arrendamento já foi apreciada por este Tribunal, no Acórdão 302/2001, em recurso de decisão que decretara o despejo de todo o prédio locado (rés-do-chão e 1.ª andar), com fundamento em cedência gratuita de apenas uma sala do 1.º andar, não autorizada pelo nem comunicada ao senhorio. Sustentava a recorrente que a norma do artigo 64.º, n.º 1, alínea f), do RAU, ao não permitir a redução do contrato de arrendamento, nos casos de incumprimento ou violação de apenas parte do mesmo, e ao não prever a consequente subsistência da parte ou partes não afectadas pela violação verificada, violava o princípio da proporcionalidade constitucionalmente consagrado. O Tribunal decidiu, por maioria, negar provimento ao recurso, não julgando inconstitucional a norma questionada. Reconhecendo não existirem obstáculos a que a aplicação do princípio da proporcionalidade, inicialmente restrita à conformação dos actos dos poderes públicos e à protecção dos direitos fundamentais, se estenda ao domínio das relações jurídico-privadas, como princípio geral de direito, conformador não apenas dos actos do poder público mas também, pelo menos em certa medida, dos actos de entidades privadas e inspirador de soluções adoptadas pela própria lei no domínio do direito privado, o aludido Acórdão acabou por concluir que num sistema de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio caracterizado pela existência de causas tipificadas, e num sistema em que a resolução do contrato fundada no incumprimento por parte do arrendatário tem necessariamente de ser decretada pelo tribunal, não se afigura desrazoável, arbitrário nem excessivo que o incumprimento traduzido em cedência do imóvel pelo arrendatário, sem autorização do senhorio, constitua fundamento de resolução do contrato pelo senhorio, ainda que se trate de mera cedência parcial.

Na perspectiva ora em apreço, importa começar por salientar que, apesar do pacífico entendimento do carácter taxativo da enumeração das causas de resolução do contrato de arrendamento por iniciativa do senhorio, constante dos artigos 1093.º do Código Civil e 64.º do RAU, ele não impediu que fosse sustentado, na doutrina e na jurisprudência, que da verificação do preenchimento de qualquer uma dessas situações não decorria inexoravelmente a atribuição ao locador do poder de requerer a resolução do contrato [O NRAU, na redacção dada ao artigo 1083.º do Código Civil, substituiu a tipificação taxativa de fundamentos, prevista no artigo 64.º, n.º 1, do RAU, por um critério de base, formulado em termos de cláusula geral - o incumprimento, por qualquer das partes, de obrigações contratuais que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento - , complementado por previsões específicas, de carácter meramente exemplificativo, de situações de incumprimento pelo arrendatário, justificativas da resolução pelo senhorio, sendo certo que a aplicação das previsões específicas não pode ser desligada da ponderação do factor de valoração enunciado na cláusula geral (Joaquim de Sousa Ribeiro, «O novo regime do arrendamento urbano: contributos para uma análise», Cadernos de Direito Privado, n.º 14, Abril/Junho 2006, pp. 3-24, em especial pp. 20-21, republicado em Direito dos Contratos - Estudos, Coimbra, 2007, pp. 307-343, em especial pp. 336-337; no mesmo sentido, cf. Maria Olinda Garcia, A Nova Disciplina do Arrendamento Urbano, Coimbra, 2006, p. 23; e Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, Arrendamento Urbano, Lisboa, 2006, pp. 167-168).]

Para fundar tais soluções, a jurisprudência e a doutrina sublinharam que nada impedia a aplicação ao contrato de arrendamento da regra do artigo 802.º, n.º 2, do Código Civil (O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância), disposição esta que encerra um princípio geral da resolução dos contratos que [o artigo 1093.º do Código Civil] não deve ter querido afastar (V. G. Lobo Xavier, «Contrato de arrendamento: interpretação; Aplicação do prédio a ramo de negócio diverso do convencionado e teoria do acessório», anotação ao acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 1 de Fevereiro de 1979, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 116.º, n.º s 3709 a 3711, pp. 105-118, 153-160 e 179-182, em especial p. 180 e notas 30 e 31, com referência a diversas decisões judiciais, principalmente em casos de afectação parcial do prédio locado a fim diverso do convencionado), e isto independentemente do recurso à invocação da figura do abuso de direito (local citado, nota 32). Como se referiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Julho de 1997, P. 96B916 (texto integral disponível em www.dgsi.pt/jstj) - que, embora reconhecendo ter a locatária violado a alínea f) do artigo 1038.º do Código Civil ao consentir que, sem autorização dos locadores, uma sociedade indicasse, na escritura da sua constituição, como sua sede o local arrendado, considerou tratar-se de violação de «escassa importância», que não justificava a aplicação da sanção da resolução do contrato - : «O artigo 64.º do RAU, ao tipificar os fundamentos de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, revela ser a resolução a última sanção, como razão extrema, excluída para infracções mínimas, as de escassa importância, as que de modo algum frustram o plano contratual ou afectam a base de confiança própria de um contrato intuitus personae, como é o arrendamento».

Relativamente à consagração legal do direito do locador não informado da transmissão por trespasse de obter o despejo do locado, Antunes Varela («Acção de despejo», Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, 1983, tomo IV, pp. 15-23, em especial p. 19) referia que «A falta de comunicação do trespasse do estabelecimento ao locador (dono do imóvel onde o estabelecimento se encontra instalado) é severamente (talvez excessivamente, em face do espírito da actual legislação locatícia e até porque o senhorio não pode opor-se à cessão do direito ao arrendamento), sancionada com o direito de despejo», sanção que adiante qualifica de «severíssima». E A. Ferrer Correia («Sobre a projectada reforma da legislação comercial portuguesa», Revista da Ordem dos Advogados, ano 44, Maio 1984, pp. 5-43, em especial pp. 40-41) considerava «manifestamente excessiva» a sanção para a omissão do dever de comunicação do trespasse consistente na atribuição ao senhorio do direito de resolução do contrato, considerando preferível, embora de difícil sustentação face aos textos legais vigentes, a solução, preconizada por Orlando de Carvalho, de, enquanto a notificação não tivesse lugar, o senhorio ter o direito de ignorar a cessão realizada, com todas as consequências inerentes [Já no domínio do NRAU, Ricardo Costa («O Novo Regime do Arrendamento Urbano e os negócios sobre a empresa», Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais - Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, vol. I, Coimbra, 2007, pp. 479-523, em especial pp. 504-505] realça a severidade, o excesso e a desproporção do direito ao despejo como sanção pela omissão de comunicação do trespasse].

Apesar de estas acusações de excessiva severidade e desproporção da atribuição ao senhorio do direito de despejo por omissão da comunicação da efectivação de trespasse, que implica uma transferência definitiva do gozo do locado para terceiro, valerem, eventualmente com acrescida força, para a outorga de similar direito de resolução como sanção para a omissão de comunicação da cessão - por definição, meramente temporária - de exploração de estabelecimento comercial, afigura-se que, tudo considerado, elas não serão suficiente para fundamentar um juízo de inconstitucionalidade da solução legal por violação do princípio da proporcionalidade.

O reduzido leque de tipos de sanção aplicável ao incumprimento do contrato por parte do locatário, face à multiplicidade de possíveis violações dos diversos deveres que o oneram, torna inevitável que sanção da mesma gravidade seja aplicável a violações contratuais de desigual repercussão. E, como assinalava João Baptista Machado («Resolução do contrato de arrendamento - Prazo para a propositura da acção», em Obra Dispersa, vol. I, Braga, 1991, pp. 3-30, em especial pp. 18-19): Se, por força da renovação imposta (artigo 1095.º), o arrendatário goza duma posição de privilégio - em detrimento do interesse do senhorio - , bem se compreende que, em contrapartida, sobre ele impenda um mais estrito dever de cumprir rigorosamente, ponto por ponto, as suas obrigações contratuais. (...) E é assim que nós vemos postas como fundamentos legais do arrendamento certas infracções contratuais que, nos quadros do regime comum da resolução legal, não seriam suficientes para a justificar [Efectivamente, em inúmeras hipóteses, particularmente fora dos grandes centros, os factos previstos nas alíneas a), e), f), g) e i), segunda parte, do artigo 1093.º, n.º 1, atendendo ao interesse do credor terão «escassa importância». Representam, contudo, formas de inadimplemento e o senhorio não tem outro meio de reagir contra elas que não seja a acção de resolução]. (...) Sintetizando, deve pois dizer-se que, em princípio, só ao arrendatário cumpridor a lei pretende conferir tutela especial do regime proteccionista dos arrendamentos urbanos; e que, por isso, contra o arrendatário que é mau cumpridor ele põe um meio fácil de reacção, facultando-lhe amplamente o exercício do despejo imediato - ou seja, o direito de resolução.

Analisado o quadro legal vigente, tal como foi interpretado na decisão recorrida, no seu conjunto, há que concluir que a solução em causa não se mostra, de forma manifesta, violadora do princípio da proporcionalidade.

3 - Decisão. - Em face do exposto, acordam em:

a) Não julgar inconstitucional a norma, extraída da conjugação dos artigos 64.º, n.º 1, alínea f), do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro, e 1038.º, alíneas f) e g), do Código Civil, interpretados no sentido de que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento a falta de comunicação do locatário ao locador da celebração de um contrato de cessão de exploração do estabelecimento comercial sito no prédio arrendado; e, consequentemente,

b) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, na parte impugnada.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) unidades de conta.

Lisboa, 23 de Setembro de 2008. - Mário José de Araújo Torres (relator) - Benjamim Silva Rodrigues - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1731584.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-11-25 - Decreto-Lei 496/77 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Civil aprovado pelo Decreto Lei 47344, de 25 de Novembro, nos domínios, e quanto à parte geral, do direito internacional privado, fixação da maioridade, regime do domicílio legal dos menores e aquisição da personalidade jurídica das associações. Revê ainda, no direito da família, a disciplina do casamento (e do divórcio), da filiação, da adopção e dos alimentos e, no direito sucessório, a posição do cônjuge sobrevivo.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1990-10-15 - Decreto-Lei 321-B/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Aprova o regime do arrendamento urbano.

  • Tem documento Em vigor 1995-08-14 - Decreto-Lei 207/95 - Ministério da Justiça

    Aprova o Código do Notariado.

  • Tem documento Em vigor 1995-09-30 - Decreto-Lei 257/95 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    INTRODUZ ALTERAÇÕES AO REGIME DO ARRENDAMENTO URBANO (RAU), APROVADO PELO DECRETO LEI 321-B/90, DE 15 DE OUTUBRO. AS ALTERAÇÕES CONSTANTES DO PRESENTE DIPLOMA REPORTAM-SE AOS ARRENDAMENTOS DESTINADOS AO COMERCIO, INDÚSTRIA E AO EXERCÍCIO DE PROFISSÕES LIBERAIS E, BEM ASSIM, AOS CONTRATOS DESTINADOS A OUTROS FINS NAO HABITACIONAIS. O PRESENTE DIPLOMA NAO E APLICÁVEL AOS CONTRATOS CELEBRADOS ANTES DA SUA ENTRADA EM VIGOR.

  • Tem documento Em vigor 1996-05-07 - Decreto-Lei 40/96 - Ministério da Justiça

    Altera (primeira alteração) o Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto.

  • Tem documento Em vigor 1998-02-26 - Lei 13-A/98 - Assembleia da República

    Altera a lei orgânica sobre a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2006-02-27 - Lei 6/2006 - Assembleia da República

    Aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), que estabelece um regime especial de actualização das rendas antigas, e altera o Código Civil, o Código de Processo Civil, o Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de Novembro, o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Registo Predial. Republica em anexo o capítulo IV do título II do livro II do Código Civil.

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