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Acórdão 563/2003, de 25 de Maio

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Sumário

Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 23.º, n.º 1, 26.º, n.os 1 e 3, alínea b), 31.º, n.º 2, 32.º, n.º 2, 34.º, segunda parte, e 36.º do Decreto-Lei n.º 86/98, de 3 de Abril (aprova o regime jurídico do ensino da condução) (Proc. 578/98).

Texto do documento

Acórdão 563/2003

Processo 578/98

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I - O pedido e os seus fundamentos

1 - O Provedor de Justiça requereu, em Junho de 1998, ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa (CRP), a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 21.º, n.º 1, 23.º, n.º 1, 25.º, n.os 2, 4 e 5, 26.º, n.os 1 e 3, alínea b), 27.º, 31.º, n.º 2, 32.º, n.º 2, 34.º, segunda parte, e 36.º do Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril (aprova o regime jurídico do ensino da condução).

As normas em causa estabelecem como segue:

«Artigo 21.º

Instrutores

1 - O ensino de condução só pode ser ministrado por indivíduo legalmente habilitado para todas as modalidades.

...............................................................................

Artigo 23.º

Impedimento

1 - Não podem ministrar o ensino de condução os indivíduos que:

a) Sejam examinadores de condução ou trabalhem, a título gratuito ou oneroso, nos centros de exame;

b) Se encontrem inibidos de conduzir pela prática de contra-ordenação grave ou muito grave, enquanto durar aquela inibição.

...............................................................................

Artigo 25.º

Licenças de instrutor

...............................................................................

2 - O candidato a instrutor deve frequentar curso de formação, organizado nos termos a fixar em regulamento, após o que é submetido a exame de admissão a estágio, a realizar pela Direcção-Geral de Viação.

...............................................................................

4 - Após aprovação em exame final, nos termos a definir em regulamento, é emitida licença de instrutor com carácter definitivo.

5 - Periodicamente e nos termos regulamentares, os instrutores ficam sujeitos à frequência de curso de actualização de conhecimentos, com aproveitamento, sem o qual não podem proceder à revalidação da licença de que são titulares.

...............................................................................

Artigo 26.º

Cancelamento e caducidade da licença de instrutor

1 - É cancelada a licença do instrutor que infringir o disposto no n.º 1 do artigo 1.º ou na alínea d) do n.º 7 do artigo 2.º, sem prejuízo de reabilitação, nos termos da lei geral.

...............................................................................

3 - Caduca a licença de instrutor cujo titular:

...............................................................................

b) Não se submeta ou reprove em qualquer dos exames determinados nos termos do artigo 27.º

Artigo 27.º

Exames especiais

1 - Surgindo fundadas dúvidas sobre a aptidão física, mental ou psicológica ou sobre a capacidade de um candidato a instrutor ou de um instrutor para o exercício da profissão, pode o director-geral de Viação, por despacho fundamentado, determinar que aqueles sejam submetidos a exame médico, psicológico ou a novo exame final de instrutor.

2 - Constituem motivo para dúvidas sobre a aptidão ou capacidade referidas no número anterior a prática, num período de três anos, de três contra-ordenações à legislação rodoviária, ao ensino e a exames de condução.

Artigo 31.º

Subdirector

...............................................................................

2 - Só pode ser subdirector de escola de condução o instrutor que, não se encontrando em qualquer das situações previstas nos artigos 22.º e 23.º, conte, pelo menos, três anos de exercício ininterrupto de funções e que, no termo daquele período, frequente curso de formação de subdirector de escola de condução, sendo aprovado no respectivo exame, prestado na Direcção-Geral de Viação.

...............................................................................

Artigo 32.º

Director

...............................................................................

2 - Apenas pode ter acesso à função de director o subdirector que, não se encontrando em qualquer das situações previstas nos artigos 22.º e 23.º, tenha exercido ininterruptamente aquelas funções no período dos últimos dois anos.

...............................................................................

Artigo 34.º

Inabilidade e impedimento

Ao subdirector e director de escola é aplicável, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 22.º e 23.º

Artigo 36.º

Cancelamento e caducidade das licenças de subdirector e de director

O cancelamento ou a caducidade da licença de instrutor implicam, respectivamente, o cancelamento ou a caducidade das licenças de subdirector ou de director.» 2 - O requerente pediu a apreciação e declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas identificadas, por entender que as mesmas violam a reserva de competência legislativa parlamentar constante do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, e pediu igualmente a declaração de inconstitucionalidade consequente de todas as normas que naquelas tenham o seu fundamento.

Para sustentar a sua pretensão, alegou, em síntese, o requerente:

Todas as normas em apreço visam limitar e condicionar o acesso e exercício de três profissões, a saber, a de instrutor, subdirector e director de escola;

Todas elas estabelecem requisitos sem o cumprimento dos quais é possível começar licitamente a exercer alguma daquelas profissões ou continuar a exercê-las;

Mostra-se, assim, em causa a liberdade de exercício de profissão, na sua vertente inicial, de escolha e ingresso na profissão, e contínua, de exercício da mesma;

A liberdade de exercício de profissão está prevista no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição, integrando-se no título II da parte I da lei fundamental;

Deste modo, é aplicável às restrições a esta liberdade, ex vi artigo 17.º, o regime orgânico previsto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, isto é, está reservada exclusivamente à Assembleia da República a competência para legislar sobre tal matéria, salvo autorização ao Governo;

O Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril, foi aprovado pelo Governo ao abrigo da sua competência legislativa prevista no artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, isto é, a chamada competência concorrencial;

Desconhece-se a existência de lei de autorização legislativa válida ao tempo da aprovação do decreto-lei em causa, sendo certo que a não invocação expressa de autorização legislativa pelo diploma em apreço sempre produziria uma desconformidade com a Constituição, por violação do artigo 198.º, n.º 3;

Estando o Governo a legislar em matéria da competência exclusiva da Assembleia da República, sem a respectiva autorização legislativa, há que considerar as normas deste decreto-lei que incidam sobre essa matéria como organicamente inconstitucionais;

Declarada a inconstitucionalidade das normas em apreço, hão-de ter-se por consequentemente inconstitucionais todas as normas que apenas devem a sua subsistência àquelas, como sejam as que prevêem contra-ordenações para a violação das normas impugnadas e as que regulam procedimentos de concessão das licenças para o exercício das profissões em causa.

3 - Notificado do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Primeiro-Ministro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.

4 - Discutido em plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.

II - Questão prévia. Delimitação do objecto do pedido

5 - O Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril, foi submetido a apreciação parlamentar, ao abrigo do disposto nos artigos 162.º e 169.º da Constituição, a requerimento do grupo parlamentar do PSD (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-B, n.º 18, de 27 de Abril de 1998), tendo sido apresentadas várias propostas de alteração, subscritas pelos grupos parlamentares do PSD, do CDS-PP e do PCP e ainda pelo deputado Moreira da Silva (PSD) (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-B, n.º 27, de 4 de Julho de 1998).

Na sequência dessa apreciação parlamentar, veio a ser aprovada e publicada a Lei 51/98, de 18 de Agosto, que, entre outros, alterou os artigos 21.º, n.º 1, 25.º, n.os 4 e 5, e 27.º do referido Decreto-Lei 86/98, os quais integravam o objecto do presente processo.

Além disso, verifica-se que, quer nas propostas de alteração apresentadas pelo PCP quer nas propostas apresentadas pelo deputado Moreira da Silva, o n.º 2 do artigo 25.º do Decreto-Lei 86/98 é referido através de um ponteado.

Suscita-se deste modo a questão de saber se é ainda invocável a inconstitucionalidade orgânica de tais normas constantes da versão originária do Decreto-Lei 86/98.

5.1 - O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos da aprovação de uma lei de emendas, no quadro jurídico-constitucional anterior às alterações introduzidas pela Lei Constitucional 1/97, de 20 de Setembro, que estiveram na origem da redacção do actual artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa, isto é, no quadro de um processo ratificativo então previsto no artigo 172.º da Constituição.

Fê-lo nos Acórdãos n.os 415/89 e 786/96 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º vol., t. I, pp. 507 e segs., e 34.º vol., pp. 23 e segs., respectivamente).

No Acórdão 415/89, o Tribunal começou por lembrar as divergências doutrinárias a propósito do instituto da ratificação de decretos-leis (na versão originária da Constituição), nomeadamente na perspectiva do efeito da ratificação expressa de decretos-leis organicamente inconstitucionais por invasão governamental das matérias de exclusiva competência da Assembleia da República, citando as opiniões de Rui Machete, «Ratificação de decretos-leis organicamente inconstitucionais», Estudos sobre a Constituição, vol. I, pp. 281 e segs., Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 1980, pp. 347-348, Jorge Miranda, «A ratificação no direito constitucional português», Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 547 e segs., e Luís Nunes de Almeida, «O problema da ratificação parlamentar de decretos-leis organicamente inconstitucionais», Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 619 e segs. Recordou-se em seguida a jurisprudência produzida quer pela Comissão Constitucional (Parecer 7/79, in Pareceres da Comissão Constitucional, 7.º vol., pp. 301 e segs.) quer pelo próprio Tribunal Constitucional (Acórdãos n.os 174/87 e 266/87, publicados no Diário da República, 2.ª série, n.º 159, de 14 de Julho de 1987, pp. 8677 e segs., e 1.ª série, n.º 197, de 28 de Agosto de 1987, pp. 3333 e segs., respectivamente). E, depois de analisar as alterações introduzidas nos artigos 172.º e 165.º, alínea c), da Constituição, pela revisão constitucional de 1982 - designadamente a circunstância de ter deixado de existir um acto positivo de ratificação, pois apenas se passou a prever a recusa de ratificação e a alteração do decreto-lei -, que deram lugar a uma orientação doutrinal dominante no sentido da não convalidação de decretos-leis organicamente inconstitucionais (Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., p. 654, Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, pp. 231-232, António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas, Constituição da República Portuguesa, p. 203, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 222, e Jorge Simão, Da Ratificação dos Decretos-Leis, p. 32), disse o Tribunal Constitucional:

«[...] Não se afigura indispensável para a solução do caso dos autos resolver expressamente questões como a de saber se, face ao texto constitucional saído da revisão de 1982, ainda se pode falar de ratificação expressa, ou, até, se no caso de ser aprovada uma lei de alteração ao decreto-lei ratificando, tal lei tem como efeito, genericamente, inviabilizar que para o futuro possa ser invocada a eventual inconstitucionalidade orgânica de qualquer das suas normas.

Na verdade, ainda que se admita que a figura da ratificação expressa deixou de ter assento constitucional - como parece resultar do que se escreveu no citado Acórdão 266/87 - e que a mera aprovação de uma lei de alterações, na sequência de um processo desencadeado ao abrigo do artigo 172.º da Constituição, não pode ter como efeito impedir a invocação, a partir da entrada em vigor dessa lei, de eventuais inconstitucionalidades orgânicas que afectassem originariamente normas do decreto-lei ratificando, a questão não fica inteiramente resolvida para todos os casos.

Com efeito, sempre será necessário ressalvar, pelo menos, a hipótese de a lei de alterações reproduzir as normas organicamente inconstitucionais do decreto-lei submetido à sua apreciação. Em tal caso, é inegável que a Assembleia da República assume ou adopta tais normas como suas ao mantê-las inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respectiva fonte.

Mas, para além de tais normas expressamente reproduzidas na lei de alteração, não serão igualmente de ressalvar aquelas normas que, de forma implícita, a Assembleia da República não pode ter deixado de querer manter inalteradas, porquanto constituem um pressuposto logicamente necessário e indispensável de todas as restantes normas constantes do decreto-lei originário e da própria lei de alteração? A resposta a esta questão parece dever ser claramente afirmativa.

Na verdade, admita-se que se deve entender que, com a lei de alteração, se não produz, em princípio, qualquer confirmação, sanação, convalidação ou conversão das normas do decreto-lei que não hajam sido objecto de transposição para aquela lei. Ainda assim, porém, se há-de reconhecer que seria manifestamente absurdo que, no caso de decreto-lei cuja própria existência se centra numa determinada norma, relativamente à qual todas as restantes são puramente acessórias ou instrumentais, essa mesma norma - essencial - pudesse vir a ser questionada do ponto de vista da sua constitucionalidade orgânica, depois de a Assembleia da República, embora a não tivesse expressamente reproduzido na referida lei de alteração, a havia implicitamente assumido como norma sua, manifestando inequívoca vontade política de a manter na ordem jurídica.

Assim sendo, não se vê como se possa sustentar que seja possível continuar a invocar a inconstitucionalidade orgânica de uma tal norma depois da entrada em vigor da lei de alteração. Essa tese só poderia, com efeito, assentar em argumentos de puro formalismo jurídico, inteiramente artificial e completamente desligado da razão de ser da atribuição constitucional de uma reserva de competência legislativa ao Parlamento: é que, por essa via, se iria contrariar frontalmente a vontade política desse mesmo Parlamento, já inequivocamente manifestada.

[...]» Por seu turno, no Acórdão 786/96, depois de se sustentar que, após a revisão constitucional de 1982, «a não recusa de ratificação não pode eliminar retroactivamente os vícios de inconstitucionalidade [orgânica]» e que «a vontade política presente na não recusa de ratificação também não se confunde com uma vontade dirigida à situação em que juridicamente se encontre o decreto-lei e que possa precludir, por esse motivo, a intervenção fiscalizadora do Tribunal Constitucional», escreveu-se:

«[...] Reconhece-se, todavia, que tais argumentos, válidos, em geral, para a mera não recusa de ratificação, não têm relevância absoluta num caso em que foram introduzidas alterações no diploma e em que foram rejeitadas propostas de alteração relativamente às normas cuja constitucionalidade orgânica é questionada. Em tal caso, foi desencadeado um processo legislativo autónomo, exigente nos respectivos pressupostos (de iniciativa de pelo menos 10 deputados) e que veio a culminar com uma nova lei. Embora se trate de um processo legislativo específico, destinado a produzir alterações, haverá, quanto às normas objecto de projecto de propostas de alteração, mas não alteradas, uma decisão positiva da Assembleia da República ou, noutros termos, uma assunção da anterior intenção legislativa (cf. Jorge Miranda, ob. cit., p. 520, que, apesar de rejeitar valor confirmativo à não recusa de ratificação, o não exclui quanto às normas objecto de propostas de alteração).

Ora, na situação que se analisa, não só houve a aprovação de emendas ao diploma como foram expressamente rejeitadas propostas de alteração da norma agora impugnada. Consequentemente, o argumento da necessidade de preservação da função essencial do artigo 168.º da Constituição e da delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental deixa de ser pertinente.

A possibilidade, efectivamente utilizada, de uma discussão na especialidade das normas impugnadas e da sua reafirmação num novo processo legislativo assegura a iniciativa parlamentar e ilustra uma verdadeira vontade legislativa.

Através do uso de tal faculdade, a não recusa de ratificação não se esgota numa vontade política, assumindo-se como verdadeira intenção legislativa.

Assim, embora num plano lógico-formal seja questionável qualquer superação da inconstitucionalidade orgânica por esta assunção legislativa (porque, na realidade, também a recusa da ratificação apenas faz cessar a vigência do diploma após a sua publicação) e não se possa atribuir a esta vontade legislativa uma eficácia sanatória ou uma supressão retroactiva da inconstitucionalidade, também é verdade que a justificação da invocação da inconstitucionalidade orgânica, num plano funcional, não se verifica.

É certo que não há paralelismo absoluto entre o significado da confirmação de actos anuláveis e esta situação (isto é, a da não recusa da ratificação acompanhada da rejeição de propostas de alteração), porque aqui o princípio subjacente não é, como no direito civil, a pura realização do interesse concreto de quem pode arguir a anulabilidade, mas o valor objectivo da preservação da distribuição da competência legislativa entre órgãos autónomos do Estado, como emanação da separação dos poderes e do sistema do controlo democrático dos poderes. Todavia, a vontade positiva manifestada após a rejeição das propostas de alteração, inserida num específico processo legislativo, revela que foi assegurado o sistema de controlo democrático inerente à delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental.

Assim, a declaração de inconstitucionalidade orgânica do diploma não se justificaria para o cumprimento da função de controlo parlamentar da decisão legislativa, função já plenamente cumprida pelo processo de alteração do diploma, nos termos do artigo 172.º, n.º 2, da Constituição.

Deste modo, conclui-se que a inconstitucionalidade orgânica de um diploma, a que não foi recusada a ratificação, após discussão de propostas de alteração, não é pertinentemente invocável, não sendo exigível pela função de preservação da delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental.

[...]» Recentemente, no Acórdão 368/2002 (Diário da República, 2.ª série, n.º 247, de 25 de Outubro de 2002, pp. 17780 e segs.), em que se desenvolveu o entendimento expresso nos mencionados Acórdãos n.os 415/89 e 786/96, disse o Tribunal:

«[...] Da jurisprudência transcrita - que se não vê razão para inflectir e aqui se reitera - retira-se que, tendo em conta 'a função de controlo parlamentar da decisão legislativa', a aprovação de uma lei de emendas, ao abrigo do antigo artigo 172.º da Constituição, tem como efeito a ininvocabilidade futura da inconstitucionalidade orgânica de, pelo menos, as seguintes normas constantes do decreto-lei alterado por essa mesma lei de emendas:

a) As normas reproduzidas na lei parlamentar;

b) As normas que a Assembleia da República não pode ter deixado de querer manter inalteradas, porquanto constituem um pressuposto logicamente necessário e indispensável de todas as restantes normas contidas no decreto-lei originário e na própria lei de alteração;

c) As normas que, durante o especial processo legislativo parlamentar, foram objecto de propostas de alteração rejeitadas.

[...] O n.º 5 do artigo em causa não foi objecto de qualquer proposta de alteração, constando do texto entregue pelo PS, no artigo 16.º, n.º 5, a indicação (igual) e no texto apresentado pelo PCP o preceito é substituído por um ponteado.

Ora, neste contexto, é evidente que foi assegurada a possibilidade de iniciativa parlamentar quanto à alteração do preceito em causa e que se revelou uma clara vontade política dos subscritores das propostas de alteração de manter inalterado o n.º 5 do artigo 16.º, o que permite concluir no sentido de que essa imutabilidade traduz - para usar a linguagem do Acórdão 786/96 - a 'verdadeira intenção legislativa' da Assembleia da República, que acabou por aprovar alterações à epígrafe e aos n.os 1, 2 e 3 do mesmo artigo, ao qual também acrescentou um n.º 6.

Verifica-se, assim, que também quanto a esta norma se efectivou, de um ponto de vista substancial, 'a função de controlo parlamentar da decisão legislativa', pelo que constituiria puro formalismo, claramente contraditório com a razão de ser da existência constitucional de uma reserva legislativa parlamentar e do instituto previsto no antigo artigo 172.º da Constituição - cuja conjugação inculca o intuito de assegurar que não possam subsistir opções político-legislativas contrárias à vontade da Assembleia da República -, vir eventualmente a declarar a sua inconstitucionalidade orgânica. Não é, pois, já invocável a inconstitucionalidade orgânica da norma constante do artigo 16.º, n.º 5, do Decreto-Lei 26/94.

[...]» 5.2 - Tendo em conta esta jurisprudência, conclui-se que deixou de ser invocável o vício de inconstitucionalidade orgânica relativamente às normas do decreto-lei em apreço que, apesar de terem sido objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade, foram alteradas (e, portanto, revogadas) pela Lei 51/98, a saber, as constantes dos artigos 21.º, n.º 1, 25.º, n.os 4 e 5, e 27.º A mesma conclusão vale no que se refere à norma do artigo 25.º, n.º 2, do mesmo decreto-lei. Na verdade, tendo em conta que o artigo 172.º da CRP não sofreu modificações substanciais em 1997 (compare-se com o actual artigo 169.º), entende-se agora também que «foi assegurada a possibilidade de iniciativa parlamentar quanto à alteração do preceito em causa [o preceito do n.º 2 do artigo 25.º]», não se justificando a sua eventual declaração de inconstitucionalidade orgânica. Solução diferente «constituiria puro formalismo, claramente contraditório com a razão de ser da existência constitucional de uma reserva legislativa parlamentar e do instituto previsto no antigo artigo 172.º da Constituição [actual artigo 169.º]».

6 - Importa todavia apurar se, quanto a tais normas - isto é, quanto às normas constantes dos artigos 21.º, n.º 1, 25.º, n.os 2, 4 e 5, e 27.º do Decreto-Lei 86/98, na sua versão originária -, subsiste interesse no conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade.

O Tribunal Constitucional tem entendido - como se escreveu no Acórdão 255/2002 (Diário da República, 1.ª série-A, n.º 155, de 8 de Julho de 2002, pp.

5237 e segs.) - «que se não justifica a utilização do mecanismo da fiscalização abstracta sucessiva relativamente a normas já revogadas sempre que não ocorra um interesse jurídico relevante - um interesse prático apreciável, ou seja, desde que se possa presumir que uma eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral apenas viria a afectar um número muito reduzido de situações. Em tais casos, o Tribunal tem optado por considerar desajustada a utilização da fiscalização abstracta sucessiva, entendendo não tomar conhecimento do pedido por inutilidade superveniente».

No Acórdão 187/2003 (Diário da República, 2.ª série, n.º 114, de 17 de Maio de 2003, pp. 7512 e segs.), o Tribunal considerou, invocando acórdãos anteriores, que, atendendo à diminuta utilidade de uma eventual declaração de inconstitucionalidade quanto a situações residuais que pudessem estar eventualmente pendentes - uma vez que nas situações resolvidas à luz das normas entretanto revogadas estava excluída a possibilidade de serem afectadas por tal declaração -, o conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade dessas normas deixa de ter interesse juridicamente relevante, «já que seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta para (residuais) casos concretos em que a aplicação da norma subsistiu. Nesses casos residuais, os possíveis beneficiários da eventual declaração de inconstitucionalidade poderão obter idêntico efeito suscitando a inconstitucionalidade da norma sub iudice em impugnação contenciosa do acto de indeferimento do pedido de acesso à actividade» que aí estava em causa.

Ora, no caso dos autos, as razões que têm sido invocadas na jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional justificam a conclusão no sentido de que não subsiste um interesse prático apreciável na apreciação da inconstitucionalidade das normas constantes da versão originária do Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril, relativamente às quais se verificou ter deixado de ser invocável o vício decorrente da falta de aprovação parlamentar.

No mesmo sentido aponta também o curto período que decorreu entre a data da entrada em vigor daquele diploma (90 dias após a data da respectiva publicação, nos termos do seu artigo 54.º) e a data da entrada em vigor da Lei 51/98, de 18 de Agosto.

Em face do exposto, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, por inutilidade superveniente, relativamente às normas constantes dos artigos 21.º, n.º 1, 25.º, n.os 2, 4 e 5, e 27.º do Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril.

7 - Por último, sublinhe-se que a circunstância de vir invocada apenas a inconstitucionalidade orgânica das normas impugnadas torna carecida de sentido a apreciação desse vício relativamente às normas vigentes no ordenamento jurídico após a publicação da mencionada Lei 51/98, uma vez que esta foi aprovada pela Assembleia da República.

Aliás, o respeito pelo princípio do pedido impediria tal apreciação. Na verdade, de acordo com o entendimento que vem sendo seguido por este Tribunal, o princípio do pedido obsta ao conhecimento das normas constantes de diplomas que alteram aqueles que constituem o objecto do pedido, pelo menos quando, como acontece no caso dos autos, das alterações introduzidas resulte «uma modificação substancial das normas, dando origem, assim, a normas substancialmente novas, ou seja, a normas que expressem uma diferente opção política do legislador» (cf. Acórdão 57/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 30.º vol., pp. 141 e segs., e Acórdão 368/2002, já referido).

Em síntese, e considerando a delimitação que acaba de ser feita: a questão relevante para efeitos de apreciação de constitucionalidade, a título principal, consiste em saber se as normas constantes dos artigos 23.º, n.º 1, 26.º, n.os 1 e 3, alínea b), 31.º, n.º 2, 32.º, n.º 2, 34.º, segunda parte, e 36.º do Decreto-Lei 86/98 violam a reserva de competência legislativa parlamentar prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República.

III - Análise da questão de constitucionalidade

8 - Nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a matéria respeitante a «direitos, liberdades e garantias».

Ora, o decreto-lei cujas normas são objecto de análise foi emitido ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, nos termos da qual o Governo pode «fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República». Por outras palavras, este decreto-lei foi emitido no âmbito da chamada competência concorrencial.

Importa, assim, esclarecer se as normas atrás assinaladas tocam de forma substancial aspectos relativos a direitos, liberdades e garantias, constituindo, por isso, matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP.

O requerente invoca que as normas em apreciação «visam limitar e condicionar o acesso e exercício de três profissões» - a de instrutor, subdirector e director de escola de condução.

A liberdade de escolha de profissão encontra-se prevista no artigo 47.º, n.º 1, da Constituição - disposição incluída no título II da parte I, que é precisamente subordinado à epígrafe «Direitos, liberdades e garantias».

Nesta conformidade, e porque a liberdade de profissão faz parte dos direitos, liberdades e garantias pessoais, estando sujeita ao regime especialmente previsto para esta categoria de direitos fundamentais no mencionado artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, toda a definição inicial e substantiva de questões atinentes ao acesso a uma profissão e ao exercício - ou à privação do exercício - dessa profissão constitui matéria da reserva relativa de competência legislativa parlamentar.

8.1 - O Tribunal Constitucional já por várias vezes concluiu pela inconstitucionalidade orgânica de normas reguladoras de matérias atinentes à liberdade de profissão.

Assim, no Acórdão 188/92 (Diário da República, 2.ª série, n.º 191, de 20 de Agosto de 1992, pp. 7740 e segs.), este Tribunal apreciou a norma constante do n.º 2 do artigo 10.º do Decreto-Lei 282/86, de 5 de Setembro, que foi o primeiro diploma legal a regular a actividade de segurança privada. A norma em causa estabelecia uma incompatibilidade entre o exercício de actividade como pessoal de segurança privada e o exercício de qualquer cargo ou função na administração central, regional ou local, bem como com o exercício de qualquer actividade profissional remunerada sob a autoridade e direcção de qualquer outra entidade.

No referido aresto, o Tribunal Constitucional veio a julgar tal norma organicamente inconstitucional, por considerar que a criação daquela incompatibilidade «constitui uma verdadeira restrição a um direito fundamental», inscrevendo-se no âmbito da reserva de competência legislativa parlamentar prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da lei fundamental, atinente aos direitos, liberdades e garantias.

Esta conclusão viria a ser integralmente confirmada no Acórdão 172/95 (Diário da República, 2.ª série, n.º 134, de 9 de Junho de 1995, p. 6394), que apreciou a mesma norma.

Por outro lado, no Acórdão 283/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 19.º vol., pp. 387 e segs.), em que se analisou uma norma respeitante às condições de inscrição na Câmara dos Solicitadores, aprovada através do Decreto-Lei 376/87, de 11 de Dezembro, não precedido de autorização legislativa, o Tribunal julgou-a inconstitucional por violar a reserva de competência parlamentar, na conjugação dessa reserva em matéria de associações públicas com a reserva em matéria de direitos, liberdades e garantias. E, no Acórdão 464/91 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20.º vol., pp. 549 e segs.), depois de se referir à reserva de competência legislativa parlamentar em matéria de associações públicas, o Tribunal afirmou:

«[...] E, embora seja questionável qual o alcance da reserva neste ponto, dúvidas não há de que nela se incluem necessariamente as regras relativas à própria inscrição na associação, inscrição que, condicionando o exercício da profissão em causa, é, por esse facto, matéria de direitos, liberdades e garantias, sujeita a reserva de autorização legislativa, nos termos dos artigos 47.º, n.º 1, e 168.º, n.º 1, alínea c) [hoje, alínea b)], da Constituição.» Tal decisão, confirmada em acórdãos subsequentes, viria a dar origem à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da referida norma, através do Acórdão 347/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pp. 99 e segs.), onde se afirmou que «a definição de quem reúne as condições legais para se inscrever na Câmara dos Solicitadores inclui-se na reserva parlamentar, havendo, por isso, de constar de lei formal ou de decreto-lei do Governo, devidamente autorizado para o efeito».

A consideração de que a fixação de condições específicas para o exercício de determinada profissão ou actividade profissional se enquadra no contexto da liberdade de escolha de profissão regulada no artigo 47.º da lei fundamental e, portanto, constitui matéria da exclusiva competência legislativa da Assembleia da República, por tratar de matéria de direitos, liberdades e garantias, em nada foi contrariada pelo Acórdão 367/99 (Diário da República, 2.ª série, n.º 58, de 9 de Março de 2000, pp. 4649 e segs.), que não julgou organicamente inconstitucionais normas constantes de diplomas legislativos governamentais disciplinadoras do exercício de funções docentes, no âmbito do ensino superior público. É que nesse aresto se esclareceu expressamente:

«[...] Não está em causa qualquer restrição à liberdade de escolha de profissão (n.º 1), pois ao recorrido no presente processo não foi vedada a opção pela actividade docente, apenas o exercício dessa mesma actividade em mais de um estabelecimento de ensino sofreu limitações.

[...] E de afastar é igualmente a recondução do regime que incorpora à figura das incompatibilidades, área em que a intervenção legislativa restritiva é expressamente admitida pelo texto constitucional (artigo 269.º, n.º 5), mas que nos arrastaria para o âmbito do direito à escolha de profissão, com todas as limitações que isso implica. A dupla limitação a que o recorrido se encontra sujeito não o coloca perante a obrigação de optar por um emprego preterindo outro, antes condiciona o exercício de uma determinada actividade, em acumulação com outra, à obtenção de uma autorização prévia e à submissão a um limite horário.

[...]» Assinale-se ainda que o Tribunal já reconheceu que a reserva legislativa parlamentar em matéria de direitos, liberdades e garantias, abrange «tudo o que seja matéria legislativa, e não apenas as restrições do direito em causa [no caso, o direito ao recurso contencioso]» (Acórdão 128/2000, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 247, de 25 de Outubro de 2000, pp. 17331 e segs.).

A jurisprudência referida viria a ser confirmada no já mencionado Acórdão 255/2002, onde se concluiu que «as normas constantes do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei 231/98, ao fixarem requisitos de que depende o exercício das diversas profissões ligadas à actividade de segurança privada, se encontram feridas de inconstitucionalidade orgânica por violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, com referência ao artigo 47.º da mesma lei fundamental».

Nesse aresto, afirmou-se:

«[...] Dispõe este artigo 47.º, n.º 1, que a liberdade de escolha e de exercício da profissão fica sujeita às 'restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua capacidade'. Todavia, como assinala Jorge Miranda (Manual de Direito Constitucional, vol. VI, 3.ª ed., Coimbra Editora, p. 502), 'as restrições têm de ser legais', e como a competência para legislar sobre restrições aos direitos, liberdades e garantias pertence exclusivamente ao Parlamento (salvo autorização ao Governo), daí decorre a inevitável inconstitucionalidade orgânica das normas em apreço. Para J. J. Gomes Canotilho, no domínio dos direitos fundamentais (mesmo no âmbito dos direitos, liberdades e garantias), 'a reserva de lei não possui apenas uma dimensão garantística em face das restrições de direito; ela assume também uma dimensão conformadora-concretizadora desses mesmos direitos' (Direito Constitucional, 5.ª ed., Almedina, 1992, p. 801).

Aliás, ainda que se entenda que em algumas das alíneas do n.º 1 e do n.º 2 do mencionado artigo 7.º do Decreto-Lei 231/98 se não prevêem verdadeiras e próprias restrições, mas antes se revelam tão-só limites imanentes da liberdade de profissão, a conclusão será sempre idêntica. É que, como vimos, a reserva parlamentar abrange 'tudo o que seja matéria legislativa e não apenas as restrições' (Acórdão 128/2000, citado, e no mesmo sentido, J. J.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., nota VIII ao artigo 168.º, p. 672).

Ora, os requisitos enunciados no n.º 1 do artigo 7.º são todos eles condições - ainda que, nalguns casos, ultrapassáveis sem dificuldade (assim, o requisito da plena capacidade civil) - cujo preenchimento é indispensável para exercer a profissão nele referida, e cuja falta impede, pois, a escolha e o exercício desta.

Desde logo pelo seu efeito, tal norma regula matéria legislativa, não se limitando a proteger, promover ou ampliar o exercício da liberdade de escolha de profissão, nem a executar em aspectos de pormenor a regulação do seu exercício [...]» 8.2 - Da leitura das normas constantes dos artigos em análise no presente processo resulta que tais normas não se limitam a regular aspectos de execução do exercício da profissão, antes estabelecem requisitos condicionantes do acesso, do exercício e da privação do exercício da profissão.

Assim, com efeito:

O artigo 31.º, n.º 2, bem como o artigo 32.º, n.º 2, fixam habilitações para o acesso e exercício da profissão, sem as quais os candidatos não poderão ser admitidos como instrutores de condução, subdirector e director de escola de condução;

O artigo 23.º, n.º 1, e o artigo 34.º, segunda parte, estabelecem impedimentos que vedam o acesso às profissões de instrutor, subdirector e director de escola de condução;

O artigo 26.º, n.os 1 e 3, alínea b), assim como o artigo 36.º determinam condições de privação de exercício de profissão, ao fixarem condições de cancelamento e caducidade da licença de instrutor.

Nestes termos, as normas do Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril, em apreciação, ao fixarem requisitos que condicionam o acesso às profissões de instrutor, subdirector e director de escola de condução, ou ao regularem o exercício e a privação do exercício de tais profissões, encontram-se feridas de inconstitucionalidade, por violação da reserva relativa de competência legislativa parlamentar estabelecida na alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição.

IV - A questão da inconstitucionalidade consequente

9 - No seu requerimento, o Provedor de Justiça acrescenta que, «declarada a inconstitucionalidade das normas em apreço, hão-de ter-se por consequentemente inconstitucionais todas as normas que apenas devem a sua subsistência àquelas».

O requerente terá, deste modo, pretendido requerer ainda que, uma vez declarada a inconstitucionalidade das normas que identificou, fosse, consequentemente, declarada a inconstitucionalidade de todas as normas que apenas a essas devessem a sua subsistência. Tal seria o caso das normas «que prevêem contra-ordenações para a violação das normas impugnadas e as que regulam procedimentos de concessão das licenças para o exercício das profissões em causa».

A inconstitucionalidade consequente não resulta do confronto directo e imediato de um acto com a Constituição, mas é antes, como ensina Jorge Miranda, «a que inquina certo acto, por inquinar outro de que ele depende» (Manual de Direito Constitucional, t. II, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1991, p. 341). J.

J. Gomes Canotilho e Vital Moreira chamam-lhe inconstitucionalidade derivada ou reflexa, por ser «produzida pela inconstitucionalidade da norma cuja validade é pressuposto necessário da legitimidade da norma em causa» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra Editora, 1993, p. 993; cf. ainda J. J. Gomes Canotilho, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, p. 268). Por seu turno, Carlos Blanco de Morais explica que «se um acto depende de outro e este último for inconstitucional, o primeiro também o será por arrastamento, falando-se neste caso em inconstitucionalidade consequente» (Justiça Constitucional, t. I, Coimbra Editora, 2002, p. 193); e, mais adiante, na mesma obra, refere que «a inconstitucionalidade consequente opera em cascata, através da propagação da relação de desvalor de uma norma principal, para as normas dela dependentes» (p. 198).

Ora, quanto a este pedido do requerente, uma questão prévia importa, desde logo, resolver.

Por força do disposto no artigo 51.º, n.os 1 e 5, da Lei do Tribunal Constitucional, o pedido de fiscalização abstracta da constitucionalidade de normas jurídicas deve especificar, designadamente, as normas cuja apreciação se requer, e o Tribunal Constitucional só poderá declarar a inconstitucionalidade de normas cuja apreciação lhe tenha sido requerida.

Vale, assim, aqui o princípio do pedido, tendo o Tribunal Constitucional já considerado que, «como corolário daquele princípio, pertence ao autor do pedido o ónus de identificar, especificando-a, a norma de direito ordinário que pretende ver declarada inconstitucional com força obrigatória geral», e que está vedada ao Tribunal «a integração do pedido, já que aos requerentes, e só a eles, compete circunscrever o tema a decidir (ne eat judex ultra vel extra petita partium)» (Acórdão 31/84, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 91, de 11 de Abril de 1984, pp. 1261 e segs.).

E deve entender-se que o princípio do pedido vale mesmo quando esteja em causa uma eventual declaração de inconstitucionalidade consequente, derivada ou reflexa.

É que, como refere Carlos Blanco de Morais, «o n.º 5 do artigo 51.º da Lei do Tribunal Constitucional, à luz do 'princípio do pedido', determina que o mesmo Tribunal em sede de fiscalização abstracta sucessiva só possa declarar a inconstitucionalidade consequente de normas cuja apreciação haja sido requerida», sendo certo que «não pode o Tribunal Constitucional [...] declarar oficiosamente a inconstitucionalidade consequente de normas instrumentais de outras normas já julgadas inconstitucionais, se as primeiras não tiverem sido autonomamente impugnadas» (Justiça Constitucional, cit., p. 199).

Ora, o requerente não identificou as normas que pretendia ver declaradas inconstitucionais a título consequencial. Sublinhe-se, aliás, que o Provedor de Justiça concluiu o seu requerimento pedindo tão-somente a «declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas contidas nos artigos 21.º, n.º 1, 23.º, n.º 1, 25.º, n.os 2, 4 e 5, 26.º, n.os 1 e 3, alínea b), 27.º, 31.º, n.º 2, 32.º, n.º 2, 34.º, segunda parte, e 36.º do Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril».

Nestes termos, por falta de identificação das normas que se pretende impugnar, não pode o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do pedido, nesta parte.

V Decisão

10 - Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, das normas constantes dos artigos 23.º, n.º 1, 26.º, n.os 1 e 3, alínea b), 31.º, n.º 2, 32.º, n.º 2, 34.º, segunda parte, e 36.º do Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril (aprova o regime jurídico do ensino da condução);

b) Não tomar conhecimento, por inutilidade superveniente, do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 21.º, n.º 1, 25.º, n.os 2, 4 e 5, e 27.º do mesmo diploma;

c) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade consequente das normas, não especificadas no pedido, que devam a sua subsistência às ora declaradas inconstitucionais.

Lisboa, 18 de Novembro de 2003. - Maria Helena Brito - Maria Fernanda Palma - Mário Torres - Benjamim Rodrigues Rui Moura Ramos - Artur Maurício - Paulo Mota Pinto - Gil Galvão - Pamplona de Oliveira [vencido quanto à alínea a) e, em parte, quanto à alínea b) da decisão, conforme declaração em anexo] - Maria dos Prazeres Beleza [vencida quanto à alínea a), nos termos da declaração junta pelo Sr. Conselheiro Bravo Serra] - Bravo Serra [vencido quanto à alínea a) da decisão, nos termos da declaração de voto junta] - Luís Nunes de Almeida.

Declaração de voto

Votei vencido quanto à alínea a) da decisão, por razões muito próximas das enunciadas na declaração de voto do Exmo. Conselheiro Bravo Serra.

Em meu entender, a matéria em causa não está, por natureza, integrada no capítulo de direitos, liberdades e garantias, razão pela qual não poderá concluir-se, sem mais, que ocorra inconstitucionalidade orgânica das normas em apreço.

Quanto à alínea b), concordo com a decisão, mas entendo, não sem algumas dúvidas, que relativamente a normas já revogadas se não justifica, de todo, o mecanismo da fiscalização abstracta sucessiva para determinar a inconstitucionalidade orgânica dessas normas. - Pamplona de Oliveira.

Declaração de voto

Votei vencido quanto ao ponto constante da alínea a) da decisão pela essencialidade das razões que indiquei na declaração de voto que apus ao Acórdão, deste Tribunal, n.º 255/2002, citado no presente aresto, sendo que perfilho a óptica segundo a qual os normativos ora declarados inconstitucionais não se diferenciam substancialmente, quanto à matéria neles regulada, daqueloutras normas que foram objecto de apreciação no mencionado Acórdão 255/2002, razão pela qual, no que toca a tais normativos, continuo a defender o mesmo ponto de vista, que sufraguei naquela declaração, o que me conduz ao entendimento de que estes últimos, não prescrevendo em matéria de direitos, liberdades e garantias, não se integram na reserva relativa de competência da Assembleia da República. - Bravo Serra.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2004/05/25/plain-172101.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/172101.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1984-04-17 - Acórdão 31/84 - Tribunal Constitucional

    Declara com força obrigatória geral a inconstitucionalidade das normas constitutivas dos Dedretos-Leis nºs 381/82, de 15 de Setembro, 434-A/82, de 29 de Outubro, na parte em que aprovou o Regulamento de Disciplina do Pessoal Civil dos Estabelecimentos Fabris das Forças Armadas, e 393/82, de 20 de Setembro, por violação do disposto na alínea d) do artigo 56º e alínea a) do nº 2 do artigo 58º da Constituição, na sua versão originária.

  • Tem documento Em vigor 1986-09-05 - Decreto-Lei 282/86 - Ministério da Administração Interna

    Regula a actividade das empresas privadas de segurança.

  • Tem documento Em vigor 1987-08-28 - Acórdão 266/87 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade material superveniente das normas do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 356/79, de 31 de Agosto, e do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 10-A/80, de 18 de Fevereiro e a inconstitucionalidade orgânica do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 356/79 e do Decreto-Lei n.º 10-A/80, na parte em que dispõem sobre funcionários da Administração Pública, e até à entrada em vigor da Resolução da Assembleia da República n.º 180/80, de 2 de Junho, que ratificou o Decreto-Lei n.º 10-A/80.

  • Tem documento Em vigor 1987-12-11 - Decreto-Lei 376/87 - Ministério da Justiça

    Aprova a lei orgânica das secretarias judiciais e o estatuto dos oficiais de justiça.

  • Tem documento Em vigor 1992-12-03 - Acórdão 347/92 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DA NORMA CONSTANTE DO ARTIGO 204 DO DECRETO LEI NUMERO 376/88, DE 11 DE DEZEMBRO, (SOB A EPÍGRAFE 'INSCRICAO NA CÂMARA DOS SOLICITADORES'), NA PARTE EM QUE ALTERA O DISPOSTO NO ARTIGO 49, ALÍNEA A) DO DECRETO LEI NUMERO 483/76, DE 19 DE JUNHO, (NORMA QUE ESTABELECE, COMO CONDICAO PARA A INSCRIÇÃO NA CÂMARA DOS SOLICITADORES, SER-SE LICENCIADO OU BACHAREL EM DIREITO, COM DIPLOMA VÁLIDO EM PORTUGAL), POR VIOLAÇÃO DO ARTIGO 86, NUMERO 1, ALÍNEA T), (...)

  • Tem documento Em vigor 1994-02-01 - Decreto-Lei 26/94 - Ministério do Emprego e da Segurança Social

    Estabelece o regime de organização e funcionamento das actividades e serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho, previstos no artigo 13º do Decreto-Lei 441/91, de 14 de Novembro. Aprova o regime sancionatório das contra-ordenações verificadas ao disposto neste diploma, fixando coimas para o efeito e cometendo ao Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho e á Direcção-Geral da Saúde a fiscalização do cumprimento do disposto no presente Decreto-Lei.

  • Tem documento Em vigor 1997-09-20 - Lei Constitucional 1/97 - Assembleia da República

    Aprova a quarta revisão da Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de 1976, e fixa normas para aplicação no tempo de alguns dos preceitos revistos. Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-04-03 - Decreto-Lei 86/98 - Ministério da Administração Interna

    Aprova o regime jurídico do ensino da condução.

  • Tem documento Em vigor 1998-07-22 - Decreto-Lei 231/98 - Ministério da Administração Interna

    Regula o exercício da actividade de segurança privada.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-18 - Lei 51/98 - Assembleia da República

    Altera o Decreto-Lei 86/98, de 3 de Abril que aprovou o regime jurídico do ensino da condução.

  • Tem documento Em vigor 2002-07-08 - Acórdão 255/2002 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 7.º, nº 1, alíneas a), b), c), d), e), f), g) e h), e 2, alíneas a) e b), e das normas dos nºs 1 e 2 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 231/98, de 22 de Julho, que regula o exercício da actividade de segurança privada (processo nº 647/96 e processo nº 624/99, incorporado).

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2011-09-14 - Acórdão do Tribunal Constitucional 362/2011 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas do Decreto-Lei n.º 211/2004, de 20 de Agosto (exercício das actividades de mediação imobiliária e de angariação imobiliária): a) da norma contida no n.º 2 do artigo 4.º; b) das normas constantes dos artigos 6.º, n.º 4, alínea c), 25.º, n.º 2, alínea b), e 44.º, n.º 1, alínea d), na parte em que se reportam à violação e aos efeitos da condenação na sequência da violação do preceituado no n.º 2 do artigo 4.º do mesmo diploma. (...)

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