Assento 4/87
Recurso extraordinário n.º 2/87
Acórdão
1 - O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto interpôs recurso extraordinário, nos termos dos artigos 6.º, 7.º e 8.º da Lei 8/82, de 26 de Maio, da resolução deste Tribunal tomada em sessão de 27 de Janeiro de 1987 nos processos n.os 30038/86 e 35204/86, que recusou o "visto» aos diplomas de provimento de Altamiro Barbosa Machado e Maria Irene Magalhães de Assunção Montenegro como professores associados, de nomeação definitiva, da Universidade do Minho.
Alega, em síntese:
a) Em tais diplomas de provimento invocam-se, como disposições legais permissivas, o artigo 1.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 323/84, de 9 de Outubro, os artigos 19.º, n.º 1, 23.º, n.º 1, 24.º, n.os 1 e 2, 41.º, 67.º, n.º 2, 68.º, n.os 1 e 5, 70.º, n.os 1, 3 e 4, e 71.º, n.os 1, 2, 3 e 6, do Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU);
b) Porém, com base nas mesmas disposições legais e para o mesmo cargo foram visados em sessão ordinária de visto os diplomas de provimento respeitantes a António Sérgio Duarte Pousada (processo 68588/86, sessão de 1 de Agosto de 1986), Luís Manuel Menezes Guimarães de Almeida (processo 20320/86, sessão de 8 de Abril de 1986), Maria Isabel Pereira Lucas Calado Ferreira (processo 105661/85, sessão de 3 de Março de 1986), Maria Raquel da Graça Pinto Valença (processo 105660/85, sessão de 3 de Março de 1986), João Fernando Alves Ferreira (processo 111932/85, sessão de 21 de Novembro de 1985), Maria Virgínia Mendes Gregório (processo 105015/85, sessão de 7 de Novembro de 1985) e José Joaquim da Costa Cruz Pinto (processo 105017/85, sessão de 7 de Novembro de 1985);
c) Assim, no domínio da mesma legislação, e relativamente à mesma questão fundamental de direito, o Tribunal proferiu decisões opostas, pelo que estão preenchidos os pressupostos para que seja fixada jurisprudência por meio de assento.
2 - Admitido liminarmente o recurso, foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 9.º da Lei 8/82, tendo o Sr. Secretário de Estado do Orçamento mandado remeter a este Tribunal a informação prestada pelo Sr. Director-Geral da Administração e da Função Pública, na qual, depois de judiciosas considerações, se sustenta a doutrina da resolução recorrida.
Do mesmo modo, o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto, em muito douto parecer de fls. 22 e seguintes, opina no mesmo sentido e propõe a seguinte fórmula de assento:
A nomeação definitiva dos professores associados depende do decurso do prazo de cinco anos na categoria, de elaboração de um relatório pormenorizado da actividade pedagógica e científica que hajam desenvolvido nesse período, de parecer favorável do conselho científico e, sobretudo, da deliberação tomada por maioria dos professores catedráticos em exercício efectivo de funções.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
3 - Antes de entrar na análise da questão objecto deste recurso, e a despeito da sua admissão liminar, impõe-se um rápido reexame da verificação dos seus pressupostos.
Estabelece o artigo 6.º da Lei 8/82:
Se no domínio da mesma legislação o Tribunal de Contas proferir duas decisões que, relativamente à mesma questão fundamental de direito, sejam opostas, pode a Administração, pelo membro do Governo competente, ou o Ministério Público, requerer que o Tribunal fixe jurisprudência por meio de assento.
O texto do artigo logo patenteia que a sua fonte de inspiração foi o artigo 763.º do Código de Processo Civil. Daí que a sua interpretação deva atender aos critérios e princípios há muito firmados na doutrina e na jurisprudência sobre os pressupostos da admissibilidade do recurso para o tribunal pleno e que assim se podem esquematizar:
a) Que o conflito diga despeito à mesma questão fundamental de direito;
b) Que tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação;
c) Que as decisões assentem sobre soluções opostas;
d) Que as decisões em oposição tenham sido proferidas em processos diferentes ou em incidentes diferentes do mesmo processo; e
e) Que a decisão anterior tenha transitado em julgado.
4 - Não é difícil concluir que no caso vertente se verificam todos os requisitos apontados.
Em todos os casos se tratava de nomeação de professores associados da Universidade do Minho de entre professores auxiliares de nomeação definitiva, por aplicação analógica do disposto no artigo 23.º do ECDU, isto é, logo nomeados também definitivamente sem observância dos preceitos dos artigos 19.º, n.º 3, 20.º e 21.º do mesmo Estatuto, que prevêem a sua nomeação inicial por um período de cinco anos e a tramitação necessária para a subsequente nomeação definitiva.
Os preceitos legais invocados foram rigorosamente os mesmos e já atrás indicados, não tendo sofrido qualquer alteração do regime jurídico aplicável na pendência dos respectivos processos.
E, apesar disso, as soluções adoptadas foram opostas e contraditórias, pois que, enquanto nos processos referidos os diplomas de provimento foram visados em sessão ordinária de "visto», a resolução recorrida recusou o "visto» com fundamento na inobservância do disposto nos artigos 20.º, n.os 1 e 2, e 21.º, n.º 1, e na impossibilidade de utilização por via analógica do regime do artigo 23.º, em razão de não existir uma verdadeira lacuna e de se estar perante uma norma excepcional, insusceptível de aplicação analógica, nos termos do artigo 11.º do Código Civil.
Mostram-se, assim, verificados os pressupostos que condicionam a admissibilidade do recurso, sendo certo que ao seu conhecimento não faz obstáculo a circunstância de a decisão de recusa ter sido tomada em sessão plenária do Tribunal e as restantes em sessão ordinária de "visto», por expressa estatuição do artigo 8.º da Lei 8/82.
5 - Entremos, pois, no objecto do recurso.
A questão que nele se põe já ficou linearmente equacionada: tudo se resume em saber se os professores auxiliares de nomeação definitiva, quando nomeados professores associados, o são desde logo também a título definitivo, ou antes, por falta de uma norma como a do artigo 23.º, a sua nomeação inicial é sempre por cinco anos, nos termos do artigo 19.º, n.º 3, que valerá independentemente do provimento definitivo ou provisório do candidato.
A resolução recorrida aceitou a última solução, fundando-se, basicamente, nos dois argumentos seguintes:
Por um lado, não existe qualquer lacuna no que respeita à nomeação dos professores associados cujo regime está completo e acabado nos artigos 19.º, 20.º e 21.º, estabelecendo-se nestes últimos as condições da sua nomeação definitiva;
Por outro lado, ainda que existisse lacuna, ela não poderia ser integrada por analogia através da utilização da norma do artigo 23.º, dada a sua natureza de norma excepcional (cf. o artigo 19.º, n.º 2), atenta a proibição do artigo 11.º do Código Civil.
A argumentação é, aparentemente, inatacável.
Vejamos, todavia, o problema com mais demora.
6 - E comecemos pela análise do artigo 11.º do Código Civil, que estatui:
As normas excepcionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva.
Importa fixar o sentido exacto deste preceito, relembrando antes de mais que a doutrina largamente dominante distingue a analogia da interpretação extensiva com apelo à ideia de que na interpretação extensiva o intérprete estende a norma a situações não abarcadas pela sua letra, mas compreendidas no seu espírito (minus dixit quam voluit), enquanto na analogia se estendem as disposições de uma lei sobre certo caso a um outro não contemplado nem na sua letra nem no seu espírito com base na semelhança ou identidade que este caso apresenta com o primeiro ou com as relações jurídicas reguladas nessa lei (cf., por todos, Cabral de Moncada, Lições de Direito Civil, 2.ª ed., I, 189, Pires de Lima e Antunes Varela, Noções Fundamentais do Direito Civil, 4.ª ed., 1.º, 161).
Deve, porém, desde já acautelar-se que a fronteira entre a analogia e a interpretação extensiva nem sempre apresenta a clareza que os conceitos adiantados deixam fazer crer.
Assim, Miguel Reale (Lições Preliminares de Direito, 10.ª) escreve a p. 293:
A interpretação extensiva representa até certo ponto uma forma de integração, existindo entre ela e a analogia, não uma diferença qualitativa, mas de grau ou de momento no processo de integração sistemática.
E Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 327) adverte, a propósito da interpretação do artigo 11.º:
Há que entender este preceito a partir do significado que nele se atribui à interpretação extensiva e ter presente o referido critério fundamental: só a segurança jurídica pode justificar a não aplicação analógica de uma norma cujo princípio valorativo é de per si transponível para casos análogos.
Assim sendo e tomando por interpretação extensiva aquela que permite aplicar uma norma a casos não cobertos pela sua letra [...] mas abrangidos pelo seu espírito, diríamos que o artigo 11.º permite, afinal, a analogia legis, e só não permite a analogia juris. Com efeito, como distinguir a interpretação extensiva naquele sentido de analogia legis ou extensão analógica (extensão teleológica) das normas?
Tudo isto vem a propósito de se deixar acautelado que, por um lado, nem sempre uma dada situação se apresenta claramente como de interpretação extensiva ou de integração analógica e, por outro lado, talvez nem fosse necessário recorrer à analogia, bastando a interpretação extensiva do citado artigo 23.º, que abrangeria no seu espírito o caso dos autos.
Adiante veremos melhor que outra será a solução.
7 - É tempo de entrar na análise dos preceitos do ECDU, aprovado pelo Decreto-Lei 448/79, de 13 de Novembro, ratificado, com emendas, pela Lei 19/80, de 16 de Julho, que ao caso directamente respeitam.
Começaremos por fazer referência à enumeração que o artigo 2.º faz do pessoal docente universitário, fornecendo-nos a hierarquização seguinte:
a) Professor catedrático;
b) Professor associado;
c) Professor auxiliar;
d) Assistente;
e) Assistente estagiário.
E salientaremos que, em princípio, a nomeação inicial de todas estas categoria de docentes é feita provisoriamente por períodos variáveis, prevendo a lei as condições em que a nomeação dos professores catedráticos, associados e auxiliares se transforma em definitiva.
Estatui, com efeito, o artigo 19.º:
1 - O provimento de professores catedráticos e associados é feito por nomeação.
2 - Os professores catedráticos, fora do caso previsto no artigo 23.º, são inicialmente nomeados por um período de dois anos.
3 - Os professores associados são nomeados inicialmente por um período de cinco anos.
O artigo 25.º, por sua vez, estabelece:
1 - Os professores auxiliares são providos provisoriamente por contrato de duração igual a um quinquénio.
2 - A nomeação definitiva dos professores auxiliares efectua-se mediante deliberação do conselho científico, observado o disposto no artigo 20.º, com as necessárias adaptações.
3 - ...
Os artigos 20.º e 21.º estabelecem a tramitação do processo de nomeação definitiva dos professores catedráticos e associados (extensivo aos professores auxiliares, como dito ficou), exigindo-se a apresentação ao conselho científico de um relatório pormenorizado da actividade pedagógica e científica que hajam desenvolvido, com indicação dos trabalhos realizados e publicados, das dissertações efectuadas e de outros elementos relevantes, relatório que será objecto de parecer por parte de dois professores catedráticos designados pelo conselho científico, e, finalmente, a deliberação favorável tomada pela maioria dos professores catedráticos em exercício efectivo de funções.
Este é o esquema legal de nomeação dos professores catedráticos, associados e auxiliares, naturalmente resumido ao que para os autos interessa.
Dissemos, todavia, que a nomeação inicial é, em princípio, provisória e acrescentaremos agora que o princípio prevê apenas (ao menos de forma explícita) uma única excepção: a do artigo 23.º, que preceitua:
Os professores associados de nomeação definitiva que forem nomeados professores catedráticos ficam providos, a título definitivo, em lugares dessa categoria.
Quer isto significar que a nomeação de professores catedráticos pode não ser inicialmente provisória, mas logo definitiva, se for feita de entre professores associados já de nomeação definitiva.
E a nomeação dos professores associados, quando feita de entre professores auxiliares de nomeação já definitiva?
É a esta pergunta que a resolução impugnada responde pela forma já atrás dita: não estando a situação prevista no transcrito artigo 23.º e contendo este uma norma excepcional, não pode ser-lhe aplicado o mesmo regime, face à proibição da extensão analógica pelo artigo 11.º do Código Civil.
Assim, a nomeação será sempre inicialmente por um período de cinco anos, com possibilidade de conversão em definitiva, observados os trâmites e os pressupostos enunciados nos artigos 20.º e 21.º
É, efectivamente, uma resposta que os textos legais consentem, mas que se não apresenta como a única, nem como a mais correcta.
Vejamos:
8 - Caberá antes do mais surpreender a ratio do particular regime do artigo 23.º para aquilatar do seu ajustamento também ao caso dos professores auxiliares de nomeação definitiva.
E não será difícil concluir que a razão de ser desse regime está na tendencial comunicabilidade da nomeação definitiva.
Por outras palavras: a nomeação definitiva (vitalícia se lhe usa também chamar) de um funcionário tende a manter-se na progressão e na promoção desse funcionário, ou seja no seu acesso profissional.
E dizemos no seu acesso profissional para ressalvar as situações de ingresso ou de mudança, onde, por razões óbvias, a lei consagra frequentemente nomeações provisórias.
Não é essa, todavia, a regra do acesso na carreira.
E temos como certo que a passagem do professor auxiliar a professor associado caracteriza inequivocamente um acesso na carreira. A transcrição que fizemos do artigo 2.º do Estatuto, que, sintomaticamente, se chama da Carreira Docente Universitária, teve já o propósito de evidenciar a hierarquização das respectivas categorias, possibilitando agora a conclusão de que se trata de categorias de acesso.
Aliás, o princípio acabado de enunciar, de manutenção da natureza da investidura no preenchimento de lugar filiado directamente em lugar anterior, é abertamente admitido pela doutrina.
A este propósito, escreve João Alfaia (Conceitos Fundamentais ..., p. 390), afirmando-o como doutrina geral:
O preenchimento de um lugar que se filia directamente em lugar anterior é decisivamente influenciado pela natureza do vínculo que ligava o funcionário à Administração através do lugar de origem, salvo nos casos de comissão de serviço, requisição e reocupação de lugar cativo.
E logo adiante, a p. 391, especifica:
No caso de promoção, o funcionário que é titular de investidura definitiva, ao preencher lugar superior da mesma carreira, mantém neste a natureza do vínculo anterior.
Finalmente, é curioso anotar que, sem valor decisivo, mas como elemento indiciário, o próprio Estatuto a que nos estamos reportando faz utilização desse princípio, quando no seu artigo 88.º (disposições finais e transitórias) preceitua:
1 - Serão providos na categoria e em lugares de professor associado, a título definitivo ou provisório, consoante o seu provimento anterior:
a) Os actuais professores extraordinários e agregados [...];
b) Os actuais professores auxiliares [...] e os actuais equiparados a professor auxiliar, habilitados, uns e outros, com o grau de doutor ou equivalente, desde que, aplicado o regime previsto nos n.os 1 e 2 do artigo 87.º, seja emitido parecer favorável sobre o currículo científico e pedagógico.
É mais uma afloração daquele princípio da manutenção da natureza do vínculo, precisamente em relação a situações de flagrante paralelismo, em termos de mal se compreender um tratamento diferenciado.
Dissemos "é mais uma afloração» para adiantar o entendimento que temos de que também o artigo 23.º é uma afloração desse princípio, o que tem importantes repercussões na tese que vimos desenvolvendo e que é tempo de afirmar abertamente: a da possibilidade de aplicação analógica do mesmo artigo 23.º
É o que vamos explicitar melhor.
9 - A resolução impugnada assentou sem discussão na natureza excepcional da norma do artigo 23.º
E por isso, a sua conclusão dificilmente poderia ser outra: como norma excepcional, a sua aplicação analógica estava interdita pelo artigo 11.º do Código Civil.
Daí que - e bem na sua óptica - tenha arredado a sua aplicação e decidido a recusa do "visto».
Depois do que atrás dissemos, todavia, fica posta em crise a sua natureza de norma excepcional.
É este, aliás, um campo em que os autores se esforçam por clarificar ideias, afinando o conceito de norma excepcional.
Como é sabido, a norma excepcional é normalmente caracterizada como apresentando um regime oposto ao da norma geral, enquanto que a norma especial consagra uma disciplina nova e diferente, mas não em directa oposição com a disciplina geral. "Normas excepcionais», escrevem P. Lima e A. Varela (em Noções Fundamentais de Direito Civil, 4.ª ed., 1.º, p. 69), "são as que, regulando um sector relativamente restrito de relações com uma configuração particular, consagram, para o efeito, uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundada em razões especiais, privativas daquele sector de relações.»
Mas o conceito exige que se faça precisões.
E Oliveira Ascensão (em O Direito - Introdução e Teoria Geral), depois de a p. 386 encarecer que "a categoria regra excepcional necessita de ser fundada num suporte mais sólido», conclui a p. 387 que "não basta uma apreciação da regra isoladamente tomada: impõe-se uma valoração de conjunto daquela regra e de toda a ordem jurídica, que permite determinar se corresponde às orientações fundamentais desta ou se, pelo contrário, dela se afasta por razões específicas do caso concreto».
Na mesma linha de pensamento se inscrevem as considerações de Baptista Machado, quando escreve (ob. cit., p. 95):
Por força do artigo 11.º, as normas excepcionais não comportam aplicação analógica. Para se ter uma norma por excepcional, para efeitos deste artigo, será necessário verificar se está ou não perante um verdadeiro ius singulare, isto é, perante um regime oposto ao regime regra e directamente determinado por razões indissoluvelmente ligadas ao tipo de casos que a norma excepcional contempla.
E, mais impressivamente, adverte a p. 187 (nota 1):
Assim como, e antes do mais, nos deveremos certificar se a norma que aparentemente nos aparece como excepcional não representará antes o afloramento de um princípio ou critério normativo que, por inadvertência, recebeu apenas uma expressão avulsa insuficiente no sistema da lei.
Do mesmo modo, Nuno de Sá Gomes (em Introdução ao Estudo do Direito, lições, 1979-1980, p. 543) escreve:
Ora, pelo que se refere às normas excepcionais, convém esclarecer que não basta uma excepcionalidade formal, não basta estarmos perante regra que contrarie outra mais geral, é indispensável que o teor normativo contrarie um princípio fundamental de direito, que se traduza num ius singulare, estabelecido contra rationis iuris, num direito contrário aos princípios de que fala Enneccerus.
As transcrições foram longas, mas revelam-se úteis à compreensão do rigoroso conceito de norma excepcional, tão importante à dilucidação do problema em análise.
Parece-nos agora seguro concluir que a norma do artigo 23.º, por representar a afloração de um princípio geral de manutenção da natureza do vínculo na promoção, corresponde às orientações fundamentais da ordem jurídica (O. Ascensão), não é directamente determinada por razões indissoluvelmente ligadas ao tipo de casos que contempla (B. Machado), não contraria um princípio fundamental de direito (N. Sá Gomes), não caracteriza, em suma, um verdadeiro ius singulare e só este é insusceptível de extensão analógica.
10 - Com o que não terá ficado tudo resolvido, pois sempre se poderá contrapor - como o faz a resolução impugnada - que, não existindo aqui uma situação lacunosa, debalde se demonstrou a possibilidade de aplicação analógica do citado artigo 23.º
O recurso à analogia pressupõe, efectivamente, a existência de uma lacuna, que vem a traduzir-se numa "incompleição do sistema normativo que contraria o plano deste» e que reclama e merece solução jurídica.
Ora - dir-se-á -, a nomeação dos professores associados encontra-se, de forma completa e acabada, regulada nos artigos 19.º, 20.º e 21.º do Estatuto, pelo que não há qualquer lacuna, quer de previsão, quer de regulamentação.
A conclusão afigura-se aligeirada e incorrecta.
Também aqui importa precisar o conceito de lacuna, o que demanda alguma reflexão.
Em primeiro lugar, importa advertir, como faz Karl Larenz, citando Binder, (em Metodologia da Ciência do Direito, tradução, Fundação Gulbenkian, 2.ª ed., p. 132), que "a ocorrências de uma lacuna não significa que não seja possível decidir com fundamento na lei (mediante subsunção lógico-formal), mas sim e só que a decisão, por essa via possível, não é apropriada, quer dizer, não é teleologicamente justificada».
E o que atrás ficou dito já, a esta luz, adiantaria alguma coisa neste domínio.
Em segundo lugar, cumpre lembrar que a doutrina costuma distinguir entre lacunas "patentes» e lacunas "latentes» (ou ocultas).
Demos novamente a palavra aos autores.
Assim K. Larenz (ob. cit., p. 450) escreve:
Existe uma lacuna oculta quando, segundo a teleologia imanente da lei, a regra legal carece de uma restrição que a lei não formula. A integração da lacuna faz-se então pelo aditamento da restrição postulada, de harmonia com o sentido da lei.
E. B. Machado (ob. cit., p. 196) é ainda mais sugestivo quando explicita:
A lacuna teleológica será latente ou oculta quando a lei contém, na verdade, uma regra aplicável a certa categoria de casos, mas por modo tal que, olhando ao próprio sentido e finalidade da lei, se verifica que essa categoria abrange uma subcategoria cuja particularidade ou especialidade, valorativamente relevante, não foi considerada. A lacuna traduzir-se-ia aqui na ausência de uma disposição excepcional ou de uma disposição especial para essa subcategoria de casos.
Assim precisado o conceito de lacuna, parece poder dizer-se que a norma do artigo 19.º, n.º 3, que estabelece que "os professores associados são nomeados inicialmente por um período de cinco anos», cobrindo completa e genericamente a globalidade das nomeações de professores associados, deveria conter uma restrição idêntica à do seu n.º 2, por aplicação analógica do artigo 23.º à subcategoria de professores associados nomeados de entre professores auxiliares de provimento definitivo.
E nisto se traduziria a lacuna latente ou oculta do sistema.
Explicitemos melhor, avançando um dado até agora silenciado e que parece decisivo para este ponto em particular e para a solução do problema objecto deste recurso.
11 - O ECDU, aprovado pelo Decreto-Lei 448/79, de 13 de Novembro, sofreu alterações introduzidas pela Lei, de ratificação, n.º 19/80, de 16 de Julho.
Uma dessas alterações respeita, precisamente, à nomeação dos professores auxiliares e trouxe uma novidade de grande transcendência.
Com efeito, na redacção originária do seu artigo 25.º dizia-se:
1 - Os professores auxiliares são providos por contrato de duração igual a um quinquénio.
2 - À recondução de professores auxiliares é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 31.º
E na redacção da lei de ratificação passou a estabelecer-se nesse mesmo artigo 25.º:
1 - Os professores auxiliares são providos provisoriamente por contrato de duração igual a um quinquénio.
2 - A nomeação definitiva dos professores auxiliares efectua-se mediante deliberação do conselho científico, observado o disposto no artigo 20.º, com as necessárias adaptações.
3 - ...
Não é dífil captar o sentido da alteração e as profundas consequências daí resultantes. [Note-se que os trabalhos preparatórios a que tivemos acesso (A. R., I, n.os 16 e 19, de 15 e 23 de Fevereiro de 1980) não se referem ao ponto específico.]
Bastará acentuar, por um lado, que a nomeação definitiva, originariamente admitida apenas para os professores catedráticos e associados, estendeu-se agora aos professores auxiliares e, por outro lado, que o condicionalismo posto a essa nomeação definitiva vem a coincidir com o preexistente para aqueles professores catedráticos e associados, pela expressa remissão feita para o artigo 20.º a estes respeitante.
A aproximação está feita, o paralelismo é manifesto e resta agora extrair as ilações pertinentes.
Passou então a existir a possibilidade de a nomeação de professores associados recair em professores auxiliares de nomeação definitiva.
E a pergunta já atrás formulada ganha agora plena justificação.
Comunica-se-lhes ou não a natureza definitiva do vínculo?
Com o fazer esta pergunta está-se já a afirmar a existência de uma "lacuna superveniente» que a doutrina abertamente consagra (cf. K. Larenz ob. cit., p. 437).
O ponto, como já se deixou entrever, não foi regulamentado na versão original: o artigo 23.º só se reporta aos professores associados.
Nem tinha que sê-lo.
Não sendo admitida a nomeação definitiva dos professores auxiliares, não havia que cuidar da manutenção de definitividade quando ascendessem a professores associados.
Não havia, assim, qualquer lacuna, o que tem também o interesse de permitir afirmar que o silêncio da lei não era aquele "silêncio eloquente» de que falam os autores para significar que os casos silenciados o foram por querer a lei excluí-los.
Não é esse o sentido do silêncio do artigo 23.º
Originariamente, porque não podia mesmo referir-se aos professores auxiliares.
Supervenientemente, porque a lei de ratificação, alterando o artigo 25.º no sentido de admitir a sua nomeação definitiva, não teve o cuidado de extrair daí todas as consequências e proceder aos ajustamentos daí decorrentes.
Nem deverá causar estranheza um tal lapso em se tratando de legisladores diferentes, o segundo a enxertar emendas e aditamentos ao texto, aliás extenso, que o primeiro concebeu e formulou como um todo coerente e articulado.
Crê-se, aliás, que outros pontos ficaram por ajustar, designadamente os preceitos dos artigos 34.º (pessoal contratado além do quadro) e 84.º (quadros de professores).
Admitida que foi a nomeação definitiva dos professores auxiliares, impor-se-ia a dotação das universidades com quadros desses docentes, revelando-se de algum modo incongruente que permaneçam sempre na situação de contratados além dos quadros.
Em todo o caso, o diploma continuou a prever apenas quadros para os professores catedráticos e associados, revelando-se aqui - ao que nos parece - outro ponto de desajustamento às alterações introduzidas pela lei da ratificação.
12 - Em abono da tese aqui defendida pode, finalmente, aduzir-se um argumento que arranca da unidade e coerência do sistema jurídico e que encontra significativo apoio no artigo 10.º, n.º 4, do Decreto-Lei 185/81, de 1 de Julho (Estatuto da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior Politécnico), onde o problema aqui em apreciação foi expressamente contemplado, com acolhimento da solução preconizada.
Estatui, com efeito, esse n.º 4:
Os professores do ensino superior politécnico de nomeação definitiva que forem nomeados para outra categoria da mesma carreira do quadro a que pertençam ou para lugares do quadro do pessoal docente de outra escola do ensino superior politécnico são sempre providos a título definitivo.
É a formulação acabada do regime que ficou defendido e a consagração formal do princípio da manutenção do vínculo para uma situação que apresenta com a dos autos um flagrante paralelismo.
13 - Depois de tudo o que ficou exposto parece ter ficado suficientemente demonstrado que o regime do artigo 23.º do ECDU vale também para a nomeação de professores associados de entre os professores auxiliares de nomeação definitiva, com recurso a extensão analógica, uma vez que se não está perante uma norma excepcional, mas antes perante um afloramento do princípio geral da manutenção de definitividade da nomeação no acesso de uma carreira.
14 - Pelos fundamentos expostos acordam no plenário do Tribunal de Contas:
a) Em conceder provimento ao recurso, revogando a resolução de 27 de Janeiro de 1987 tomada nos processos n.os 30038 e 35204/86 e decidindo que sejam visados os respectivos diplomas de provimento;
b) Em resolver o conflito de jurisprudência, tirando o seguinte assento:
Os professores auxiliares de nomeação definitiva que forem nomeados professores associados ficam providos, a título definitivo, em lugares desta categoria.
Lisboa, 13 de Outubro de 1987. - António Luciano Pacheco de Sousa Franco - José António Mesquita (relator) - Francisco Pereira Neto de Carvalho - Pedro Tavares do Amaral - Orlando Soares Gomes da Costa - Alfredo José de Sousa - João Manuel Fernandes Neto - João Pinto Ribeiro. - Fui presente, José Alves Cardoso.