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Acórdão 353/2007, de 26 de Julho

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Sumário

Julga inconstitucionais, por contrariarem, conjugadamente, o princípio da segurança jurídica derivado do artigo 2.º e o princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, consagrado nos artigos 13.º e 76.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 147-A/2006, de 31 de Julho, integradas pelo despacho do Secretário de Estado da Educação n.º 16 078-A/2006, de 2 de Agosto, na medida em que permitem, no concurso de acesso ao ensino superior no ano de 2005-2006, a melhoria de classificação que decorra da repetição, na 2.ª fase, de exames nacionais finais do ensino secundário aos candidatos que já haviam realizado exame, na 1.ª fase, nas disciplinas de Física (código 615) e Química (código 642), sem que tais provas se mostrem como inquinadas por erro técnico ou irregularidade

Texto do documento

Acórdão 353/2007

Processo 347/07

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

A - Relatório. - 1 - O Ministério Público recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto dos artigos 280.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, e 70.º, n.º 1, alínea a), 71.º, n.º 1, 72.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3, e 75.º-A, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC), do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 25 de Janeiro de 2007, que negou provimento aos recursos interpostos pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e pelo Secretário de Estado da Educação da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em 18 de Outubro de 2006, que decidiu condenar o Ministério da Educação e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior a possibilitar, à ora recorrida Susana Rosa Lopes, a realização de novo exame na disciplina de Química (código 642), no prazo de 15 dias, a contar da data da notificação da sentença e a admitirem a mesma recorrida, no ingresso do curso de Medicina, na Faculdade de Medicina, da Universidade de Coimbra, no ano lectivo de 2006-2007, desde que obtenha média de classificação final igual ou superior à do último candidato admitido a este curso e Universidade, no mesmo ano lectivo, na parte em que aquela mesma decisão recusou aplicar, "com fundamento em inconstitucionalidade material, as normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho, bem como o despacho do Secretário de Estado da Educação n.º 16 078-A/2006, de 2 de Agosto, "face à retroactividade por eles gerada em situação de restrição de direitos e violação do princípio da igualdade, entendido este como limite objectivo de discricionariedade legislativa e lesão de modo injustificado e arbitrário da certeza e consequente confiança dos candidatos à 2.ª fase" do concurso para o ensino superior, no ano lectivo de 2006-2007, na estabilidade da ordem jurídica".

2 - Na parte relevante à compreensão da questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal Constitucional, o acórdão recorrido discreteou do seguinte modo:

"Entendeu, pois, a sentença recorrida, que o Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho [que veio alterar a alínea c) do n.º 2 do artigo 42.º do Decreto-Lei 296-A/98, de 25 de Setembro], ao determinar no seu artigo 2.º (referente à sua vigência) que produzisse efeitos a partir do início de candidatura ao ensino superior no ano lectivo de 2006-2007, veio alterar as regras do procedimento concursal no decurso do mesmo, pelo que consubstancia retroactividade legislativa interditada pelo artigo 18.º, n.º 3, da CRP, que pôs em causa os princípios da protecção da confiança, da segurança jurídica, corolários do Estado de direito democrático, bem como do princípio da igualdade e, em especial, de acesso ao ensino superior em igualdade de oportunidades - artigos 2.º, 13.º e 76.º, n.º 1, todos da CRP, respectivamente.

Alegam os recorrentes que a sentença não consegue preencher os requisitos da intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias já que não justifica que a garantia cultural estabelecida no n.º 1 do artigo 76.º da Constituição possui uma estrutura análoga à dos direitos, liberdades e garantias.

E que, de qualquer forma, se verificaram objectiva e concretamente circunstâncias excepcionalmente gravosas para os alunos que fizeram os exames de Química (código 642) e Física (código 615) e que os colocaram na situação de objectiva e manifesta desvantagem gravemente ofensiva do princípio da igualdade de candidaturas no concurso de acesso e ingresso ao ensino superior do presente ano, que justificavam o despacho em causa. Circunstâncias essas que decorreram do facto de se terem tratado de disciplinas com novos programas, tardiamente aprovados, implicando significativas dificuldades na adaptação dos manuais escolares e dos próprios docentes às novas exigências, sendo disciplinas anuais, sujeitas a um procedimento de exames inicialmente não previsto, que não pôde beneficiar da experiência anterior e para a qual não foi assegurada preparação.

Sendo que, não só os candidatos da 1.ª fase não sabiam quando realizaram os exames da 1.ª fase que iriam ter uma segunda oportunidade, e, consequentemente, sofreram esse stress inicial, como os que apenas se candidataram à 2.ª fase beneficiaram do facto de nessa 2.ª fase já terem disponível, ao invés dos da 1.ª fase, o modelo ou arquétipo da 1.ª prova ocorrida na 1.ª fase, como tiveram mais tempo para estudarem.

E que, já havendo a possibilidade de realizar melhoria na 2.ª fase, conforme decorre da alínea d) do n.º 12 do despacho 3971/2006, de 20 de Fevereiro, este diploma apenas veio permitir, excepcionalmente, a utilização de tal resultado na 1.ª fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior.

Pelo que, que não existiu qualquer restrição de direitos, liberdades e garantias.

Na verdade a simples possibilidade de poderem realizar novo exame constituiu para estes alunos, e só por si, uma oportunidade de atenuar a situação de desvantagem em que se encontravam, sendo esse o objectivo almejado pelos diplomas em análise. Por outro lado, na 2.ª fase, todos os examinandos que à mesma se apresentaram, já puderam beneficiar do contacto prévio com o tipo de prova a que iriam ser sujeitos. É que todos eles haviam tido acesso ao enunciado do exame da 1.ª fase, o qual passou a constituir, objectivamente, um paradigma, ou modelo, do qual puderam extrair dados, orientações e outras achegas, que, por certo, grandemente os beneficiaram na respectiva preparação para o exame a que se apresentaram.

Ora, desse contributo - dado pelo conhecimento do exame da 1.ª fase - não puderam beneficiar os alunos que a esta se apresentaram, uma vez que foram os primeiros a quem se deparou o tipo de exame em causa. Tal já não se verificou relativamente aos que se prepararam para o exame na 2.ª fase, que com serenidade puderam avaliar devidamente o enunciado da 1.ª prova, e, assim, não serem surpreendidos por um exame, que para os alunos da 1.ª fase foi, em termos estatísticos, devastador.

E tal é facilmente detectável na comparação das médias e notas negativas dos alunos que só fizeram exame na 1.ª fase, com as médias e notas negativas dos alunos que só fizeram exame na 2.ª fase.

Pelo que, não se diga que o Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho [que veio alterar a alínea c) do n.º 2 do artigo 42.º do Decreto-Lei 296-A/98, de 25 de Setembro], ao determinar no seu artigo 2.º (referente à sua vigência) que produzisse efeitos a partir do início de candidatura ao ensino superior no ano lectivo de 2006-2007, veio alterar as regras do procedimento concursal no decurso do mesmo, pelo que consubstancia retroactividade legislativa interditada pelo artigo 18.º, n.º 3, da CRP.

Quid juris?

Em primeiro lugar, cumpre aferir se estamos ou não perante um direito análogo a um direito fundamental.

Nos termos do artigo 18.º, n.º 3, da CRP "As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais".

E, nos termos do artigo 17.º da CRP:

"O regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga."

Por sua vez dispõe o n.º 1 do artigo 76.º da CRP que:

"O regime de acesso à universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação ao nível educativo, cultural e científico do País."

Assim, o acesso ao ensino superior, em igualdade de circunstâncias, é um dos vectores dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Os direitos fundamentais de natureza análoga são concretizações dependentes de outros importantes princípios jurídicos, sendo a igualdade de acesso ao ensino superior espelho do princípio da igualdade.

Neste sentido referem Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., revista e ampliada, 1.º vol., Coimbra Editora, pp. 149-151 - que "a garantia de igualdade de oportunidades inerente ao regime de acesso ao ensino superior constitui uma emanação forte do princípio da igualdade, cuja função de protecção anda associada ao princípio da igualdade como 'direito subjectivo público', direito subjectivo público esse que 'constitui inequivocamente uma imposição de igualdade de oportunidades', onde se constata a existência de 'específicos direitos fundamentais de igualdade', como seja o direito de igualdade no acesso à função pública, na escolha da profissão ou no acesso a cargos públicos".

Referem também estes autores in ob. cit., pp. 363-368 e 372 e 373, que o artigo 74.º, n.º 1, da CRP consagra o direito ao ensino que significa, constitucionalmente, o direito de acesso à escola e que mais não é do que "um direito negativo, um direito de liberdade semelhante aos 'direitos, liberdades e garantias', pelo que lhe é aplicável o respectivo regime específico", defendendo, a propósito do artigo 76.º, n.º 1, que o acesso ao ensino superior encontra-se "intimamente conexionado com a liberdade de escolha de profissão (artigo 47.º), pois a qualificação académica universitária é hoje condição (prática e jurídica) de acesso a muitas profissões. Por isso, há-de considerar-se inconstitucional, por atentatório da liberdade de profissão, um regime de contingentação desproporcionado ou arbitrário, que provoque gritantes desigualdades ou que limite ... o acesso ao ensino superior".

A este propósito sublinha Carla Amado Gomes in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 50, pp. 41 e seguintes, que:

"[...] por haver direitos com uma dimensão pessoal no capítulo dos direitos económicos, sociais e culturais, análogos aos direitos liberdades e garantias, que o julgador não pode, sem cometer uma arbitrariedade, excluir (vide, por exemplo, o direito de propriedade). Por outras palavras, se a própria Constituição aceita que, no seu seio, podem existir (dimensões) de direitos, liberdades e garantias, que beneficiam do regime destes (no que aqui importa, análogos aos direitos, liberdades e garantias pessoais) então a interpretação do STA terá de ser conforme a este alargamento."

No mesmo sentido Ana Sofia Firmino (in "A Intimação para Protecção de Direitos, Liberdades e Garantias, apud Novas e Velhas Andanças do Contencioso Administrativo, Estudos sobre a Reforma do Processo Administrativo", sob a coordenação de Vasco Pereira da Silva, Lisboa 2005, pp. 409 e seguintes) quando tentando responder à questão de saber se, em face da cláusula aberta do artigo 17.º da CRP, a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias também poderá funcionar quando estiverem em causa direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos fundamentais refere:

"Parece-nos evidente que deverão ser abrangidos pela intimação os direitos fundamentais de natureza análoga a direitos fundamentais. A separação dos direitos fundamentais em dois títulos não se apresenta, como sabemos radical. Deparamo-nos também com direitos reconduzíveis a direitos, liberdades e garantias no título III da parte I, bem como noutros títulos e partes da Constituição. Porque assim acontece, e porque a direitos de estrutura análoga deve caber um regime idêntico e análogo, a Constituição tomou a opção fundamental, no artigo 17.º, de estatuir que o regime dos direitos, liberdades e garantias se aplicaria aos direitos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga. Ora, se a Constituição optou por aplicar aos direitos análogos um regime idêntico ao aplicável aos direitos, liberdades e garantias enunciados no título II é porque entende que ambos comungam de uma mesma natureza que justifica uma protecção acrescida do Estado. Neste contexto, na medida em que a criação da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias reflecte também ela uma especial preocupação com a tutela célere de certos direitos que, pela sua natureza, espelham de forma mais sensível a posição do cidadão face ao Estado, não podem restar dúvidas de que tal meio processual também se deverá aplicar aos direitos de natureza análoga. Se a natureza dos direitos é análoga, justifica-se plenamente que um meio processual como a intimação se aplique aos direitos, liberdades e garantias de natureza análoga que se encontrem fora do título II."

Pelo que, não se diga, que este artigo 76.º, por estar inserido no título III da parte I da Constituição não é uma concretização do direito fundamental de igualdade previsto no artigo 13.º da CRP.

Neste sentido, v. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 683/99, 584/2000 e 1/99, entre outros.

Assim, e como refere a decisão recorrida, a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias deve ser entendida como "emanação do princípio da tutela efectiva e célere, abrangendo na sua previsão ou âmbito, não apenas os direitos, liberdades e garantias pessoais, como estabelece o artigo 20.º, n.º 5, da CRP, mas também os direitos, liberdades e garantias do título II da parte I, incluindo os de natureza análoga".

Em suma, os artigos 2.º e 76.º da CRP são dotados de aplicabilidade directa, não obstante caber ao legislador ordinário a tarefa de assegurar a sua efectividade e concordância com os direitos constitucionalmente protegidos sendo que as leis que os restrinjam têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do seu conteúdo essencial.

Vejamos então se foram violados através do referido diploma em causa o princípio da igualdade e da confiança constitucionalmente previstos e aqui directamente aplicáveis, como vimos.

Na criação do direito o princípio da igualdade dirige-se directamente ao órgão que legisla a fim de que este, vinculadamente, trate de igual forma os que se acham em situações semelhantes.

Como se diz nos pareceres da Procuradoria-Geral da República, v. 1.º, p. 184 - "A semelhança das situações da vida nunca pode ser total: o que importa é distinguir quais os elementos de semelhança que têm de registar-se - para além dos inevitáveis elementos diferenciadores - para que duas situações devam dizer-se semelhantes em termos de merecerem o mesmo tratamento jurídico".

E, no Parecer 160/79, Gomes Canotilho e Vital Moreira referem: "o princípio da igualdade contém uma directiva essencial dirigida ao próprio legislador: tratar por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual. A qualificação das várias situações como iguais ou desiguais depende do carácter idêntico ou distinto dos seus elementos essenciais. Do que se trata, desde logo, é de uma proibição de arbítrio legislativo, ou seja, de uma inequívoca falta objectiva de apoio material constitucional para a diferenciação ou não diferenciação efectuada pela medida legislativa.

Porém, a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação do legislador, pois o legislador é fundamentalmente livre na determinação dos elementos de comparação que considera decisivos para operar a diferenciação, exigindo-se apenas que esses elementos possam servir de base a critérios de diferenciação objectivamente adequados à prossecução da finalidade proposta. A demonstração de que também outros critérios poderiam ter sido escolhidos para melhor se conseguir a finalidade tida em vista pelo legislador não é suficiente para se produzir uma violação do princípio da igualdade.

De tudo quanto ficou dito há, pois, que reter a ideia de que só há que tratar por igual o que na sua essência for igual. A não discriminação não significa nem pressupõe igualdade jurídica em todas as relações."

Em suma, da doutrina e jurisprudência (nomeadamente os Acordãos do Tribunal Constitucional n.os 358/86, processo 15/86, de 16 de Dezembro, in Diário da República, 2.ª série, n.º 85, de 11 de Abril de 1987, e 142/85, processo 75/83, de 30 de Julho, in Diário da República, 2.ª série, n.º 206, de 7 de Setembro de 1985) resulta a opinião generalizada de que:

Não é exigível uma parificação absoluta no tratamento das situações, mas apenas "o tratamento igual de situações iguais entre si e um tratamento desigual de situações desiguais", de forma que a "disciplina jurídica prescrita seja igual quando uniformes as condições objectivas das hipóteses ou previsões reguladas e desigual quando falte tal uniformidade".

As diferenciações de tratamento de situações aparentemente iguais hão-de justificar-se sempre, e, no mínimo, por um qualquer fundamento ou razão de ser que não se apresente arbitrária ou desrazoável. Isto é, a margem de livre apreciação do legislador não pode corresponder a "impulsos momentâneos ou caprichosos, sem sentido e consequência".

Pelo que, em cada caso concreto, há que examinar se a "discriminação ou desigualdade" é arbitrária ou desrazoável, se tem o sentido de um privilégio injustificado ou se comporta uma justificação objectiva, razoável, não arbitrária.

Bossuyt para a aferição concreta da verificação ou não de discriminação salienta a importância de distinguir:

"a) O motivo, sobre o qual se funda a distinção;

b) O direito, em relação ao qual se pratica a distinção;

c) A arbitrariedade, que distingue precisamente uma discriminação de uma distinção."

Assim, os motivos deveriam ter carácter objectivo e razoável quando perspectivados em função de certo direito, o que implica uma análise casuística da razoabilidade.

E, a arbitrariedade revela, precisamente, o carácter não pertinente do motivo, tendo sempre presente que o legislador conserva um determinado grau de liberdade.

Temos, pois, agora que aferir se o decreto-lei e o despacho em causa foram discriminatórios e em caso afirmativo se existiam motivos justificativos para tal discriminação, isto é, se o mesmo se justificava por a situação dos alunos da 1.ª fase e da 2.ª fase ser substancialmente diversa.

Claro que a possibilidade de realizar melhoria na 2.ª fase já existia, conforme decorre da alínea d) do n.º 12 do despacho 3971/2006, de 20 de Fevereiro.

Mas, essa melhoria não podia ser contabilizada para acesso ao ensino superior apenas podendo contar para média de escola.

E, o referido despacho, ao permitir excepcionalmente, a utilização de tal resultado na 1.ª fase do concurso nacional de acesso ao ensino superior, provocou uma completa alteração das regras de concurso.

Na verdade os candidatos à 1.ª fase acabam por beneficiar de possibilidades de acesso acrescidas em função da escolha da melhor entre duas notas aumentando a probabilidade de entrada no curso que pretendem, desaparecendo a lógica instituída e com que os candidatos podiam contar.

É que os exames de acesso ao ensino superior não são apenas exames de aproveitamento ou não aproveitamento, são exames que graduam os candidatos e que, em função de mais ou menos uma centésima, lhes permitem aceder às vagas existentes para cada curso.

Pelo que as notas não têm só um valor absoluto, mas também um valor relativo em comparação com as notas dos restantes candidatos.

E, não há dúvida, a nosso ver, que permitir a uns alunos a realização de duas hipóteses de obtenção da melhor nota, é manifestamente violador da igualdade de oportunidades de acesso à universidade.

É que, segundo a lei das probabilidades quem tem duas hipóteses tem mais possibilidades de obter o que pretende, relevante principalmente num universo de alunos em que não se coloca a hipótese da nota negativa mas médias elevadíssimas em que são elementos sobretudo de natureza subjectiva que, na maioria dos casos, determinam as centésimas a mais que permitem a entrada no curso que pretendem.

Pelo que, apenas há que aferir se está em causa um motivo para a diferenciação com carácter razoável e objectivo em função do direito em causa.

Vejamos, pois, se no caso sub judice, o Ministério da Educação, tinha qualquer motivo justificativo adequado para o despacho e diploma em causa ou seja, se existiam quaisquer especificidades que no circunstancialismo em causa impunham razões para uma diferenciação entre os estudantes que escolheram a 1.ª fase para a realização dos seus exames e aqueles que escolheram a 2.ª fase.

Pretendem os recorrente que se verificaram objectiva e concretamente circunstâncias excepcionalmente gravosas para os alunos que fizeram os exames de Química (código 642) e Física (código 615) e que os colocaram na situação de objectiva e manifesta desvantagem, gravemente ofensiva do princípio da igualdade de candidaturas no concurso de acesso e ingresso ao ensino superior do presente ano.

Circunstâncias essas que decorreram do facto de se terem tratado de disciplinas com novos programas, tardiamente aprovados, implicando significativas dificuldades na adaptação dos manuais escolares e dos próprios docentes às novas exigências, sendo disciplinas anuais, sujeitas a um procedimento de exames inicialmente não previsto, que não pôde beneficiar da experiência anterior e para a qual não foi assegurada preparação.

Para além disso acrescentam para justificar a medida tomada que:

Os alunos da 2.ª fase, ao contrário dos da 1.ª, já conheciam o tipo de enunciado;

Os alunos que fizeram a prova na 1.ª fase, não sabiam que teriam a oportunidade de a repetir;

As notas médias e negativas dos exames da 2.ª fase terem sido, respectivamente, superiores e inferiores às da 1.ª fase.

Mas não é assim.

Senão vejamos.

Não existe, a nosso ver, no caso concreto, qualquer justificação válida para tal discriminação.

É que, em abstracto, qualquer aluno que opta pela 1.ª fase sabe sempre que quem vai à 2.ª fase já tem acesso ao exame feito na 1.ª fase, sendo essa mais-valia sempre inerente a quem opta por esta 2.ª fase.

Mas, e como refere a recorrida particular, há vários exames a realizar e cada aluno estabelece o seu programa de exames e faz opções entre as várias disciplinas e essas opções são sempre da sua responsabilidade.

Quem opta pela 1.ª chamada a Química, por certo terá optado pela 2.ª fase a outras disciplinas, é uma questão de calendário para cada aluno, que faz as suas opções e corre o risco de, relativamente a cada opção que faz, ter mais sorte ou menos sorte conforme a facilidade do exame em causa.

Mas tal é apenas uma responsabilidade sua, estando todos os estudantes em igualdade de circunstâncias e de responsabilidade nas opções que tomam.

É um dos inconvenientes da obrigatoriedade da decisão, das constantes opções que a vida exige, às quais é sempre inerente uma margem de sorte ou de azar.

Mas, completamente diferente, e ao revês de qualquer justificação válida, coerente ou consistente, é alterar as regras normais do sistema com que todos os alunos contam e responsavelmente se determinaram, e criar uma situação de desigualdade, permitindo a uns uma opção entre a melhor nota de dois exames e a outros apenas uma opção, a nota do único exame que lhes foi permitido fazer.

Quanto ao facto de se tratar de disciplinas com programas novos que introduziram rupturas com a experiência anterior, nos programas tardiamente aprovados e nas consequentes dificuldades da adaptação dos manuais escolares e dos docentes, todos os alunos o sabiam!

Na verdade os novos programas tanto valiam para os alunos da 1.ª fase, como para os alunos da 2.ª fase!

Foram tardiamente aprovados tanto para os alunos da 1.ª fase como para os da 2.ª fase e as dificuldades de adaptação dos manuais e dos próprios docentes às novas exigências foram as mesmas para uns e para outros.

O procedimento de exames foi o mesmo para os alunos da 1.ª fase como para os da 2.ª fase.

E quanto ao facto de os alunos da 2.ª fase terem tido acesso ao enunciado do exame da 1.ª fase, o qual passou a constituir, objectivamente, um paradigma, ou modelo, do qual puderam extrair dados, orientações e outras achegas, tal e como vimos é um facto inquestionável a priori e sempre que existem duas fases!

Sendo que esse conhecimento não constitui uma certeza relativamente ao tipo de exame que vai ser feito e que pode até nem ter nada a ver com o modelo da 1.ª fase.

De qualquer forma sempre em qualquer circunstância os alunos de uma 1.ª fase não podem beneficiar da existência de uma prova!

E, no caso sub judice, mesmo sabendo que estavam em causa programas novos tardiamente aprovados, mesmo assim, e tendo consciência de todos esses riscos os alunos que foram à 1.ª fase quiseram correr esse risco sendo que podiam ter optado por ir à 2.ª fase!

Mas não quiseram ver o tipo de exame, não quiseram ter mais tempo para estudar, quiseram fazer o exame na 1.ª fase e têm que assumir as responsabilidades das suas opções tendo em conta os inconvenientes que conheciam e que puderam ponderar aquando da sua decisão.

Não se venha, também, com o argumento de que houve notas muito baixas nos referidos exames da 1.ª chamada de Física e de Química.

E, também não se diga que os resultados obtidos na 1.ª fase dos exames nacionais de 2006 implicariam a exclusão liminar de 80% dos alunos de Química e 67% dos alunos de Física.

E que as notas médias das classificações destes últimos foram muito superiores e a percentagem de notas negativas destes mesmos alunos muito inferiores, em relação aos alunos que fizeram apenas os exames na 1.ª fase.

É que, tal facto, só por si não significa nada já que existem muitos imponderáveis.

Quem, no caso concreto optou pela 1.ª chamada em maioria? Os melhores ou os piores alunos?

E essa minoria de melhores alunos que foram à 1.ª chamada não podiam ter sido beneficiados por isso!

E, será que as notas da 2.ª chamada foram assim tão diferentes das da 1.ª?

Era razoável que os alunos não contassem com aquele tipo de exame?

E porquê? Desajustamento dos programas à prova? Excessiva dificuldade?

E qual a interferência dos critérios de correcção?

E qual a média das notas na referida 2.ª chamada?

E qual a média dos exames dos alunos que só foram à 2.ª fase?

Conforme resulta de consulta ao site www.dgidc.min-edu.pt/jneweb/estat/ES1(2)fase.pdf a média dos exames de Química, código 642 (programa novo), na 1.ª fase foi de 6,9 para um total de 19 374 provas realizadas correspondentes a 26% de reprovações enquanto que a média dos exames de Química (programa novo) da 2.ª fase foi de 8,8 para 20 218 provas realizadas a que corresponde 18% de reprovações.

E, não nos podemos esquecer que 12 857 alunos foram repetir as provas da 2.ª fase! (fl. 514 dos autos).

Pelo que, atendendo a que na 2.ª fase mais de metade das provas correspondiam a melhorias de nota, e mesmo assim a média apenas foi de apenas 8,8 valores, não podemos tirar grandes conclusões relativamente a diferenças de médias entre a 1.ª fase e a 2.ª fase.

E analisando o quadro das médias relativas a outras disciplinas vemos por exemplo que a média da 2.ª fase de Física (programa novo) foi de 7,3 (sem grande diferença com a 1.ª fase) a que correspondeu uma reprovação de 25%, que na 1.ª fase a média de Matemática foi de 5,9% a que correspondeu 40% de reprovações enquanto a média de Matemática (programa novo) também da 1.ª fase foi de 7,3% a que correspondeu 29% de reprovações!

Pelo que, não se nos afigura qualquer discrepância diferente da que ocorre com outras disciplinas e que tem ocorrido noutros anos.

E, mesmo que as provas da 1.ª fase tivessem um maior grau de exigência, é um risco, inerente à escolha, que de forma alguma justifica a reacção do Ministério, porque provas de dificuldade acrescida acontecem sempre pontualmente, todos os anos, com esta ou aquela disciplina, e apenas devem servir para evitar erros futuros, nunca tendo até ao presente merecido reacção idêntica.

De qualquer forma e se houve erro por parte do Ministério em todo o procedimento (o que não foi assumido como tal) sempre poderia ter dado a todos os estudantes a oportunidade de realizarem duas provas de exame, só dando disso conhecimento aos que se apresentaram à 2.ª fase em momento ulterior ao da realização da prova, para que a igualdade de condições com os que se apresentaram à 1.ª fase se mantivesse.

A este propósito transcreve-se do Acórdão 1/97, processo 845/96, plenário relatado pela conselheira Maria Fernanda Palma a propósito da solicitação do Presidente da República da apreciação da constitucionalidade das normas constantes do Decreto 58/VII, aprovado em 31 de Outubro de 1996 pela Assembleia da República e subordinado ao título "Criação de Vagas Adicionais no Acesso ao Ensino superior":

"[...] A questão da eventual inconstitucionalidade do artigo 1.º do Decreto 58/VII por violação do princípio da igualdade.

13 - As alterações introduzidas pelo artigo 1.º do decreto da Assembleia da República nos critérios de acesso ao ensino superior (definidos anteriormente pelo Decreto-Lei 28-B/96) para os candidatos que realizaram os exames de Setembro poderão produzir discriminações - positivas e negativas - inaceitáveis em face do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição?

A objecção à constitucionalidade salienta, em primeiro lugar, a falta de fundamentação razoável para que os candidatos que fizeram os exames da época de Setembro sejam beneficiários de um critério de acesso não condicionado pelo número de vagas, mas só pela classificação, diferentemente dos que apenas realizaram as suas provas em Julho. Em segundo lugar, invoca uma discriminação negativa dos candidatos que somente foram opositores à 1.ª fase e não vieram a ser colocados no curso e estabelecimento de ensino da sua primeira opção.

É verdade, porém, que a classificação que assegura, nos termos do artigo 1.º do Decreto 58/VII, o direito de ingresso no ensino superior aos candidatos à 2.ª fase relativamente a cada par curso/estabelecimento de ensino é necessariamente superior à do último candidato colocado no mesmo par curso/estabelecimento de ensino na 1.ª fase. Não se registaria, por isso, um manifesto privilégio dos candidatos à 2.ª fase, ponderando apenas o factor classificação.

E, aliás, o problema nem sequer se colocaria se não estivesse em causa uma situação de retroactividade inautêntica ou retrospectividade. Com efeito, uma vez que todos os candidatos puderam ser opositores à 2.ª fase, eles estariam numa óbvia posição de paridade desde que as regras de colocação houvessem sido previamente definidas. A circunstância de as regras de colocação na 2.ª fase terem sido determinadas já depois de os candidatos terem realizado as respectivas provas e, sobretudo, terem manifestado as suas preferências por cursos e estabelecimentos de ensino é que gera, potencialmente, um tratamento discriminatório dos candidatos que não concorreram à 2.ª fase e até mesmo daqueles que, tendo-o feito, não escolheram os cursos e estabelecimentos de ensino que, em absoluto, preferiam, por saberem que não tinham sobrado vagas da 1.ª fase.

Estes candidatos foram, na realidade, surpreendidos por uma mudança de regras superveniente. O tratamento discriminatório não resulta apenas de um favorecimento dos opositores à 2.ª fase (ou, de entre eles, dos que se candidataram a cursos e estabelecimentos sobrelotados, por ter sido essa a sua primeira candidatura ou por terem investido na possibilidade remota de surgimento de novas vagas por desistência de candidatos colocados na 1.ª fase). Esse tratamento discriminatório resulta, outrossim, de um prejuízo dos outros candidatos (não opositores à 2.ª fase ou opositores à 2.ª fase que não escolheram os cursos e estabelecimentos de ensino da sua absoluta preferência).

Assim configurado, este é um problema constitucional de violação da segurança jurídica e da igualdade, conjugadamente, abrangendo uma dimensão de discriminação negativa de uns e o reflexo favorecimento de outros. Na realidade, não é possível deixar de considerar que, para os candidatos não colocados na 1.ª fase no curso e estabelecimento de ensino da sua primeira opção, o leque de perspectivas de colocação no curso e estabelecimento de ensino da sua preferência seria diferente se o concurso da 2.ª fase não fosse restrito às vagas sobrantes.

Com efeito, perante cursos e estabelecimentos de ensino em que as vagas sobrantes são inexistentes ou exíguas, a realização do exame da 2.ª fase para melhoria de nota e a candidatura a tais cursos e estabelecimentos de ensino (jogando fora uma das seis opções) não é uma aposta natural e exigível aos candidatos. E, por outro lado, os candidatos à 2.ª fase acabam por beneficiar de possibilidades de acesso acrescidas em função do aumento das vagas, desaparecendo a lógica instituída e com que os candidatos podiam contar - a do carácter mais vantajoso de uma candidatura à 1.ª fase em conexão com os riscos de uma candidatura circunscrita à 2.ª fase.

14 - Mas não será justificável a discriminação positiva dos candidatos à 2.ª fase, anteriormente sublinhada?

A resposta tem de ser negativa, porquanto a razão invocada - compensar as deficiências dos exames da 1.ª fase - não se verifica adequadamente. Na realidade, uma compensação efectiva exigiria uma regulamentação prévia à realização dos exames da 2.ª fase. Só assim os candidatos atingidos pelos problemas da 1.ª fase poderiam equacionar devidamente o seu interesse em concorrer à 2.ª fase e obter, por essa via, a reparação de prejuízos sofridos anteriormente. Além disso, não se compreende como poderá funcionar como compensação de anteriores prejuízos um sistema que também abrange os candidatos que apenas foram opositores à 2.ª fase e ainda aqueles que, tendo concorrido à 1.ª fase, não foram vítimas das deficiências das provas ou beneficiaram da 2.ª chamada.

O sistema delineado pelo Decreto 58/VII da Assembleia da República institui, deste modo, um favorecimento dos candidatos à 2.ª fase carecido de razoabilidade e adequação ao fim de compensação de prejuízos, ao abranger candidatos que não sofreram qualquer prejuízo anterior e, sobretudo, ao ser editado num momento em que os efectivamente prejudicados - ou, pelo menos, parte deles - não puderam já aproveitar as novas possibilidades oferecidas.

15 - A discriminação negativa dos candidatos à 1.ª fase que não foram opositores da 2.ª fase do concurso nacional será uma discriminação lesiva da igualdade?

Poder-se-á pensar que neste caso, como em outros que foram anteriormente objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade não será violado quando apenas um grupo de sujeitos é abrangido por um benefício enquanto outra categoria não o é. O benefício de uns (se não justificado) não seria verdadeiramente o prejuízo de outros, mas corresponderia somente a um não benefício (cf., nesse sentido, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 609/94, Diário da República, 2.ª série, de 4 de Janeiro de 1995, 563/96, Diário da República, 1.ª série-A, de 16 de Maio de 1996, e 713/96, Diário da República, 2.ª série, de 9 de Julho de 1996).

Todavia, as normas em apreço não geram exclusivamente um não benefício de um grupo de indivíduos, mas redundam numa efectiva diminuição das possibilidades de acesso ao ensino superior daqueles que, segundo as suas expectativas razoáveis, não teriam nada a ganhar com a candidatura à 2.ª fase.

O facto de os estudantes que se candidataram à 1.ª fase (e não foram colocados no curso e estabelecimento da sua primeira opção) não poderem prever as possibilidades de colocação em cursos e estabelecimentos de ensino sem vagas ou com um número exíguo de vagas sobrantes, qualquer que fosse a classificação obtida na 2.ª fase - possibilidades que, todavia, passaram a existir retroactivamente, no sistema do Decreto 58/VII -, corresponde a uma comparativa subtracção de possibilidades de acesso a um grupo de candidatos, precisamente aqueles que se justificaria beneficiar. E isto acontece numa matéria em que a Constituição exige do Estado uma promoção da igualdade (condições de acesso ao ensino superior - artigo 76.º, n.º 1) e não lhe atribui apenas um papel de guardião da igualdade formal, numa matéria, em suma, em que estão em causa projectos de vida dos jovens portugueses.

16 - Em face do anteriormente exposto, conclui-se que as normas em apreço contradizem o princípio da igualdade, consagrado, genericamente, no artigo 13.º e, no que se refere à igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, no artigo 76.º, n.º 1, da Constituição.

Esta conclusão radica no pressuposto de que aquelas normas criaram retroactivamente um quadro legal que, se fosse conhecido anteriormente, teria modificado a representação das possibilidades de acesso ao ensino superior pelos candidatos à 1.ª fase. Deste modo, a violação da igualdade é determinada por uma violação da segurança jurídica, que a modificação retroactiva das regras de avaliação dos resultados de um concurso público implica.

[...] Poder-se-á ainda considerar que as normas agora fiscalizadas também atingem, em si mesmo, o princípio da confiança emanado do artigo 2.º da Constituição?

A uma resposta afirmativa opor-se-á o entendimento de que não merecem protecção expectativas meramente negativas, isto é, no caso concreto, as expectativas dos candidatos à 1.ª fase (que não realizaram os exames da 2.ª fase) de que não teriam acesso ao ensino superior os candidatos à 2.ª fase que, pelo sistema retroactivo das vagas adicionais, o viriam a ter.

Porém, se é verdade que uma tal protecção de expectativas não decorre do princípio do Estado de direito democrático, não será de modo algum correcto afirmar-se que não há nenhumas outras expectativas afectadas pelas alterações das condições de acesso instituídas pelas normas do Decreto 58/VII. São ainda postas em causa as expectativas que se referem ao conhecimento prévio das regras de um concurso público e à manutenção de tais regras até à produção de todos os efeitos legais desse concurso. Não são as expectativas negativas, relativamente a benefícios alheios, ou positivas, relativamente a benefícios próprios com que não se poderia contar, mas as expectativas associadas à manutenção do quadro legal em que se opera um concurso público até ao seu termo, que decorrem da própria segurança jurídica característica do Estado de direito democrático.

18 - Deslocada a questão da violação da confiança para a referida dimensão da segurança jurídica, não tem qualquer cabimento a objecção de que não terá de se verificar qualquer tutela da confiança, porque já se prefigurava a alteração legislativa antes da realização dos exames da 2.ª época, em virtude das recomendações feitas ao Governo pela Assembleia da República.

A confiança em que um concurso realizado segundo um determinado quadro legal obedecerá, até ao apuramento dos candidatos, a esse quadro não é uma mera expectativa, abalável por factos sociológicos ou políticos, mas corresponde a uma dimensão concreta do direito à segurança jurídica. Não seria, assim, exigível a ninguém que não confiasse na manutenção do quadro legal e que esperasse uma alteração retroactiva das regras, critérios e finalidades do concurso nacional de acesso ao ensino superior.

19 - A questão da violação do princípio da confiança é, deste modo, transposta para a dimensão da segurança jurídica derivada do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), devendo entender-se, nesses termos, que as normas questionadas do Decreto 58/VII violam o artigo 2.º da Constituição."

E como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 156/95, de 15 de Março, quando através de lei nova, vão ocorrer implicações nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, tal alteração é inadmissível, intolerável, arbitrária, quando demasiado onerosa e inconsistente, e quando os cidadãos e a comunidade não poderiam contar com ela, "expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico, que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos, impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção e segurança jurídica que esta implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que todos tem de respeitar".

Poder-se-á, assim, concluir que a alteração legislativa, pela sua vigência retroactiva, pôs em causa os princípios da protecção da confiança, da segurança jurídica, corolários do Estado de direito democrático, bem como o princípio da igualdade e, em especial, de acesso ao ensino superior em igualdade de oportunidades - artigos 2.º, 13.º e 76.º, n.º 1, todos da CRP, respectivamente.

Na verdade, se tivesse sido permitido a todos os alunos que foram apenas à 2.ª fase a repetição do exame em igualdade de circunstâncias com os da 1.ª fase, a graduação final dos candidatos aos diversos cursos e o lugar que a aqui recorrida nela ocuparia, certamente que seriam diferentes.

Pelo que, sendo a situação de facto a mesma e o tratamento diferente, é manifesto o acerto da sentença recorrida.

Não se vê, pois, de que circunstâncias especiais é que foram vítimas estes alunos da 1.ª fase que motivou a desigualdade constante do diploma e despacho aqui em causa.

São, pois, violadoras dos parâmetros constitucionais as alterações introduzidas pelos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho, e do despacho 16 078-A/2006, de 2 de Agosto, face à retroactividade por eles gerada em situação de restrição de direitos e violação do princípio da igualdade, entendido este como um limite objectivo da discricionariedade legislativa e lesão de modo injustificado e arbitrário da certeza e consequente confiança dos candidatos à 2.ª fase, na ordem jurídica.

Em suma, nenhum dos argumentos invocados justifica uma diferença de tratamento para os alunos de Física e Química, conforme optaram pela 1.ª ou 2.ª fase destas disciplinas.

Nada há, pois, a censurar à sentença recorrida que, por isso, é de manter.

Em face de todo o exposto acordam os juízes deste TCAN em negar provimento aos recursos e manter a sentença recorrida."

3 - Alegando, no Tribunal Constitucional, o procurador-geral-adjunto concluiu o seu discurso argumentativo do seguinte jeito:

"Artigo 1.º

As normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho, complementadas pelo "acto administrativo geral" consubstanciado no despacho do Secretário de Estado da Educação n.º 16 078-A/2006, de 2 de Agosto, ao introduzirem alteração relevante no procedimento concursal para acesso ao ensino superior no ano de 2006-2007 - facultando a melhoria de classificação que decorra da repetição das segundas provas pelos candidatos que já haviam realizado exame nas disciplinas de Química e Física, sem que tais provas se mostrem como inquinadas por erro técnico ou irregularidade - não se coaduna com os princípios da igualdade no acesso ao ensino superior, da segurança jurídica e da confiança.

Artigo 2.º

Na verdade - e como decorre do decidido por este Tribunal Constitucional no Acórdão 1/97 - tais princípios implicam a manutenção do quadro legal a que obedece determinado procedimento concursal já iniciado, não sendo legítima a sua alteração superveniente e com eficácia retrospectiva, de modo a modificar o leque de oportunidade de acesso ao ensino superior de todos os candidatos, face às regras vigentes no momento em que o concurso se iniciou.

Artigo 3.º

Termos em que deverá, nos termos atrás referidos, confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade material das normas que integram o presente recurso."

4 - A recorrida contra-alegou, suscitando a "questão prejudicial" da ilegitimidade do Ministério Público para interpor o recurso de constitucionalidade, ao abrigo das normas por ele invocadas, e, quanto ao mérito, defendendo a decisão recorrida.

Sintetizando a sua argumentação, a recorrida formulou as seguintes conclusões:

"1 - Liminarmente cumpre concluir que do acórdão proferido pelo digno TCAN, na parte em que supostamente "recusou a aplicação da norma por motivo de inconstitucionalidade", não cabia nem cabe recurso obrigatório a interpor pelo digno Ministério Público ao abrigo do preceituado nos artigos 280.º, n.os 1, alínea a), e 3, da CRP e do artigo 70.º, n.os 1, alínea a), e 3, para este Colendo Tribunal.

2 - Isto porque, contrariamente ao sustentado - o que se alega com a devida vénia -, o sobredito aresto não recusou a aplicação das normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho (e em alguma pretensa medida do despacho, que é acto, do SEE n.º 16 078-A/2006, de 2 de Agosto), com fundamento na sua inconstitucionalidade material, como se lê do sumário e, naturalmente, do corpo do mesmo:

i) "IV - O Tribunal não declarou a inconstitucionalidade da alteração legislativa nem desaplicou o seu artigo 42.º ao caso da recorrida, mas apenas avaliou se o direito, liberdade ou garantia invocado pela recorrida foi efectivamente lesado pelos despachos administrativos e pela alteração legislativa invocada";

ii) Ora, a sentença recorrida não declarou a inconstitucionalidade da alteração legislativa nem desaplicou o seu artigo 42.º ao caso da recorrida, apenas avaliou se o direito, liberdade ou garantia invocado pela recorrida foi efectivamente lesado pelos despachos administrativos e pela alteração legislativa invocada, nunca tendo procedido à declaração de nulidade ou à anulação daqueles nem à declaração de inconstitucionalidade da alteração legislativa e consequente desaplicação daquela norma ao caso concreto. Aliás, num processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a única coisa que está em causa é aferir se estamos perante uma situação de lesão ou de ameaça de lesão do direito/garantia à igualdade de oportunidades no acesso ao ensino, concretamente no ensino superior e, em caso afirmativo, condenar os recorrentes a adoptar ou abster-se de uma determinada conduta. Em suma, o tribunal a quo não declarou qualquer norma inconstitucional nem anula ou declara nulo o despacho de 1 de Agosto, pelo que os mesmos se mantêm na ordem jurídica, limitando-se a constatar que a sua aplicação (da norma e do despacho) lesou a recorrida. - o itálico é por nós levado a efeito.

3 - Ou, por outras palavras, a intimação para protecção ou defesa de direitos, liberdades e garantias, tal como está desenhada na nossa lei processual administrativa, prescinde completamente da existência ou não de actos administrativos e da existência ou não de diplomas com base nos quais esses actos sejam proferidos.

4 - Não se devendo contrapor ao que se vem de concluir o argumento de que se verifica in casu uma recusa implícita de aplicação de normas, pois, para além disso mesmo ser alheio ao processo em causa, do que se tratou concretamente foi de estender os efeitos da norma a outros estudantes por aplicação directa de princípios e direitos constitucionalmente consagrados: não houve, pois e assim, como sustenta o digno Ministério Público, recusa de aplicação do artigo 42.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei 296-A/98, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 147-A/2006, nem aliás alguma vez a mesma foi peticionada.

5 - Nesta medida, encontrando-se a faculdade de recorrer do douto aresto em questão reservada à aluna recorrida, nos termos dos artigos 280.º, n.os 1, alínea b), e 4, da CRP e do artigo 72.º, n.os 1, alínea b), e 2, da LOTC, imperiosa é a conclusão de que o digno Magistrado do Ministério Público, que interpôs o recurso ao abrigo de distintas normas das que foram citadas para o admitir, não está por dever ofício obrigado a interpor recurso para o Tribunal Constitucional, devendo, em consequência, o presente recurso ser rejeitado em razão da falência de pressuposto processual.

6 - Todavia, e assim para o caso de se entender que o presente recurso deve ser admitido, cumpre desde logo concluir que o entendimento perfilhado pelo digno Magistrado do Ministério Público corresponde fundamental e essencialmente, mas não inteiramente, ao sustentado pela aluna recorrida.

7 - Na verdade, concordando-se com as alegações tecidas pelo digno recorrente, interessa todavia realçar que, como decorre da análise da jurisprudência tecida acerca de matérias desta jaez, o Tribunal Constitucional tem aproximado o controlo jurisdicional da igualdade de um controlo da proibição do arbítrio, censurando as distinções de tratamento que não tenham justificação e fundamento material bastante.

8 - Por outras palavras, o controlo jurisdicional do princípio da igualdade tem correspondido a um juízo sobre a conformidade constitucional da racionalidade da norma que sustenta o tratamento diferenciado e não a uma ponderação da similitude ou diferença das situações objecto do referido tratamento: o que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio - controlo que, no respeito pelo princípio da separação de poderes, garante o fundamento material das medidas adoptadas, autolimitando-se no que respeita às opções tomadas pelo órgão ao qual a Constituição confere o exercício, pelo menos de forma primordial, da função executiva.

9 - Sendo assim que, e de forma algo contrária à defendida, o que se alega com a devida vénia, se crê que se tem necessariamente que aquilatar da fundamentação aduzida pela administração a fim de se verificar se a diferenciação de tratamento em causa é ou não legítima, tarefa que, de resto, foi cumprida pelo aresto em análise.

10 - Por conseguinte, importa concluir que a motivação em causa não é suficientemente adequada em vista dos princípios supra mencionados ou não constitui justificação bastante para legitimar a desigualdade criada aos fins que os Ministérios pretendiam atingir - fins que poderiam ter sido atingidos (ou a ilegalidade agravada evitada) por outras formas não lesivas dos direitos daqueles que planearam ir e só foram às segundas chamadas e que, assim, só tiveram uma oportunidade: por exemplo, entre o muito mais, atentas as razões invocadas para a medida extraordinária que já faziam prenunciar as más notas, a distribuição de uma prova modelo a todos os alunos antes da época de exames ou instituindo-se a possibilidade de repetição, mas de forma a não contar a melhor das notas, assumindo estes o risco de ter pior classificação no segundo exame.

11 - Dir-se-á que essa é a conclusão, desde logo, porque as mencionadas circunstâncias excepcionais afectaram não só os alunos da 1.ª fase, como também os alunos que realizaram o exame na 2.ª fase e eram, forçosamente, do conhecimento do Ministério da Educação antes da época de exames, uma vez que não dizem respeito à realização dos exames propriamente dita, mas à forma como decorreu todo o ano lectivo (muito se estranhando, assim, que as mesmas - que, como se afirma, afectaram negativa e intoleravelmente a qualidade da aprendizagem dos alunos do 12.º ano durante todo o ano lectivo só tenham sido consideradas gravosas e lesivas dos interesses dos alunos apenas no dia 13 de Julho - em que teve lugar a prolação do primeiro despacho a conceder tal possibilidade -, data em que se afixaram os resultados e os Ministérios os conheceram: veja-se, aliás, que no próprio Regulamento dos Exames do Ensino Secundário, publicado no Diário da República, 1.ª série-B, n.º 65, de 31 de Março de 2006, quando já haviam decorrido dois terços do ano lectivo, não são referidas quaisquer circunstâncias excepcionais; não foram enviadas para as escolas provas-modelo que servissem de orientação a professores e alunos por forma a minimizar os efeitos negativos de tais circunstâncias; não foram tidas em conta tais circunstâncias na elaboração dos enunciados das provas, quer da 1.ª fase, quer da 2.ª fase, neste contexto, os alunos da 2.ª fase também não usufruíram de privilégios especiais quanto à dificuldade da prova, pois as provas foram sorteadas para cada uma das fases, de acordo com declarações públicas da Ministra da Educação), realidade na qual, ponderada e acertadamente, atentou o douto aresto em análise e, bem assim, a douta sentença proferida em 1.ª instância, confirmada que foi pelo digno TCAN, no âmbito do processo 683/06, aliás, e à semelhança do douto acórdão proferido pelo TCA Sul no âmbito do processo 02402/07.

12 - Não se devendo desenhar a este passo a conclusão, aliás então tecida pelos recorrentes ministeriais, de que essas circunstâncias não abrangiam os alunos que se apresentaram à 2.ª fase, porque estes já estavam alertados para o novo modelo de prova. É que:

i) Em primeiro lugar, o que motivou a repetição ilícita do exame de Química nada tinha que ver com o conhecimento antecipado ou não do tipo de prova, sendo perfeitamente evidente pela leitura do acto que as razões tinham a ver com a alegada circunstância de o ensino e preparação dos alunos de acordo com o programa novo ter sido deficiente e tardio e de as notas terem sido por isso inferiores ao que era habitual - numa palavra, este motivo do acto está antes da questão do conhecimento do tipo de prova, nada tem a ver com este ou irreleva-o prejudicialmente;

ii) depois, no acto (apesar do seu carácter exaustivo e detalhado) nunca se falou ou tentou justificar o mesmo em razão desta circunstância, só podendo entender-se a argumentação como uma tentativa de justificação a posteriori (e como é sabido irrelevante) supostamente tendente a eliminar a ilicitude do acto.

iii) Finalmente, e ao que cremos até decisivamente e como bem sustenta o aresto em apreço, porque a vantagem dos alunos que realizaram o exame na 2.ª fase, no que diz respeito ao contacto prévio com o tipo de prova, é apenas aparente. É sabido (todos os alunos o sabem e mesmo quem elabora os exames) que quem escolhe a 2.ª fase já sabe o enunciado da 1.ª fase, mas esse conhecimento não constitui uma certeza relativamente ao tipo de exame, que pode ser alterado ou mesmo dificultado no sentido de fazer alguma justiça.

13 - Tentando concretizar um pouco mais a ideia fundamental subjacente aos doutos arestos mencionados no corpo das presentes contra-alegações, refira-se que o jogo das opções da realização deste ou daquele exame na 1.ª ou na 2.ª chamada é muito delicado (essa é aliás, como todos sabemos, a maior angústia de qualquer estudante), pois afere-se a dificuldade da matéria, o à vontade na mesma e, quase sempre, a conclusão que se retira centra-se, com um conhecimento prévio que se tem de reputar como suficiente das dificuldades que se sentiu e que se jogam também à volta das razões pelas quais o acto foi proferido, na possibilidade de obter uma melhor nota em resultado da sua opção.

14 - Ou seja, em bom rigor, apesar de com segurança se poder dizer que existe, desconhece-se qual a medida da enorme vantagem concreta que os alunos que foram à 1.ª chamada retiraram desse facto e de, assim, terem tido mais tempo e ponderação para realizar também as restantes disciplinas (não apenas uma) da 2.ª chamada. O que sucedeu foi que a medida extraordinária editada pelo Ministério perturbou esta lógica, permitindo àqueles que foram à 1.ª chamada o gozo de todas as inequívocas vantagens do maior conhecimento, tempo e ponderação da matéria que constitui a raiz da opção entre fazer um exame na 1.ª ou na 2.ª chamada. Numa palavra, destruiu a angústia, com inequívocas vantagens relativas só para si próprios, que todos os alunos têm quando fazem a sua aposta e o seu calendário de exames. E [...] a este ponto nem sequer estamos a referir que a disciplina em causa é, a par com outra (Biologia), específica.

15 - Não se devendo também invocar a anormalidade dos maus resultados obtidos na 1.ª fase a fim de se imprimir uma ideia de suposta vantagem da aluna recorrida em ter ido à 2.ª fase, uma vez que:

Não só o documento então carreado para os autos pelo Ministério da Educação, em que se procede a uma suposta comparação das classificações do exame de Química dos alunos que realizaram só a 1.ª fase com as dos alunos que realizaram só a 2.ª fase, se baseia apenas em meros e simplistas parâmetros descritivos como a média e a percentagem de notas inferiores a 95, sendo assim falacioso e, como tal, não permitindo tirar conclusões fidedignas;

Como o facto de existirem eventualmente melhores notas e menos negativas na 2.ª fase pode ser explicado por um sem número de razões, que não tolhem, nem um pouco, as razões que o acórdão impugnado, recorrendo à experiência das coisas e à normalidade, teceu (é inequívoco que, por regra, quem tem duas hipóteses tem mais possibilidades de obter o que pretende - é a chamada lei das probabilidades...).

16 - A verdade de facto é só uma e essa é que os alunos que repetiram o exame, repetiram-no, tendo assim duas hipóteses de convocar a melhor nota enquanto que a aluna recorrida não teve essa segunda oportunidade. Assim, sendo as mencionadas circunstâncias extraordinárias comuns a todos os alunos que no ano lectivo em causa realizaram o exame nacional de Química, aluna recorrida incluída, deveria a mesma ter também beneficiado da possibilidade de realizar melhorias de classificação para efeitos de ingresso no ensino superior na 1.ª fase do concurso.

17 - Ora, ao não lhe ter sido dada essa possibilidade foi a mesma colocada numa situação de desigualdade e desvantagem face a esses colegas, violando-se, nessa medida, o seu direito a aceder ao ensino superior em igualdade de oportunidades. Ou seja, sendo a situação de facto a mesma e o tratamento diferente, é manifesto o acerto do acórdão recorrido.

18 - Numa palavra, o julgamento tecido a este propósito é imaculado e tão mais isento de críticas quanto o facto de se ter procedido à análise das declarações públicas prestadas pela Ministra da Educação perante a Assembleia da República quando procurou justificar a introdução destas medidas e se constatar que a fundamentação então aduzida [...] nada tem que ver com a que nos Tribunais sempre defendeu: a motivação prendia-se então com a coexistência dos programas antigo e novo (os alunos do primeiro teriam tido boas notas face aos do segundo, inserindo-se a aluna recorrida neste último, que, assim, se encontravam em desvantagem).

19 - Discriminação esta que, natural e necessariamente e como ponderadamente decidiu este Alto Tribunal no Acórdão 1/97, se articula com a segurança e a protecção da confiança, corolários basilares do princípio do Estado de direito, na medida em que se alteraram as regras do procedimento concursal já no decurso deste, com efeitos retroactivos e sem que nada o fizesse prever: se a aluna recorrida tivesse sabido que poderia ter realizado um segundo exame de Química certa e seguramente que teria aproveitado tal possibilidade, inscrevendo-se em ambos os exames e assim aumentando as possibilidades de ingresso no curso que pretendia, tal como sucedeu com os demais colegas.

20 - Efectivamente, em ambos os casos, assentes em pressupostos de facto e de direito similares, constata-se que as normas (ora e então) em causa contradizem o princípio da igualdade, consagrado genericamente no artigo 13.º da Constituição e, no que se refere ao princípio da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, no artigo 76.º, n.º 1, conclusão que radica precisamente no facto de as mesmas normas terem criado retroactivamente um quadro legal que, se fosse conhecido anteriormente, teria modificado a representação das possibilidades de acesso ao ensino superior pelos candidatos à 1.ª fase do concurso, sendo assim que a violação da igualdade foi determinada por uma violação da segurança e da confiança jurídicas que a modificação retroactiva das regras de aplicação dos resultados de um concurso público implica.

21 - Numa palavra, não se descortina a existência de uma justificação constitucionalmente atendível que permita sustentar a diferença de tratamento causada pela norma em apreciação.

22 - Concluiremos alegando que o julgamento não se pode repetir no futuro ou sequer estender-se a outros, porquanto, não referindo já que os alunos teriam de obter sempre classificações superiores à nota mínima de entrada no curso de medicina, o que reduziu o universo dos interessados a um número escasso de alunos, o ano já findou, não sendo assim possível a colocação desses hipotéticos alunos num ano escolar já findo.

Termos em que, devem ser mantidas as decisões jurisdicionais recorridas, com todas as consequências legais".

B - Fundamentação. - 5 - Da questão prévia da legitimidade do Ministério Público.

Sustenta a recorrida, brevitatis causa, que a decisão ora impugnada não recusou a aplicação das normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 147-A/2006, de 2 de Agosto, e do despacho do Secretário de Estado da Educação n.º 16 078-A/2006, de 2 de Agosto, com fundamento na sua inconstitucionalidade material, mas que tão-só avaliou se o direito liberdade ou garantia individual, invocado pela recorrida, foi, efectivamente, lesado pelos despachos administrativos e pela alteração legislativa efectuada por aqueles preceitos, pelo que o Ministério Público carece de legitimidade para interpor o recurso de constitucionalidade, ao abrigo dos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 1, alínea a), estes da LTC.

Não se discute que a decisão recorrida se arrimou a uma concepção do direito de acesso ao ensino superior, com reconhecimento constitucional. Mas essa foi uma tarefa levada a cabo, essencialmente, com vista a dilucidar se a concreta acção administrativa de que a recorrida lançara mão - a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, prevista nos artigos 109.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos - era o meio processual administrativo adequado para fazer valer, em juízo, o direito alegado como ofendido e para apurar se a ora recorrida podia ser havida como titular subjectiva de um direito de acesso ao ensino superior que pudesse ser ofendido pelas referidas normas.

Já, porém, a questão de saber, depois de haver assentado em que a ora recorrida era titular de um direito subjectivo, de natureza fundamental, de acesso ao ensino superior (a questão não seria diferente, no plano do mérito, se ao direito subjectivo se não reconhecesse essa natureza), se esse direito havia sido lesado, foi resolvida, pela decisão recorrida, com base na consideração de que, de facto, esse direito havia sido ofendido, por força da eficácia retrospectiva de tais preceitos, porquanto limitada apenas a certo leque de candidatos, mas que essa eficácia violava "os princípios da protecção de confiança, da segurança jurídica, corolários do princípio do Estado de direito democrático, bem como o princípio da igualdade e, em especial, de acesso ao ensino superior em igualdade de oportunidades - artigos 2.º, 13.º e 76.º, n.º 1, todos da CRP".

Assim sendo, a decisão fundou-se na inconstitucionalidade material de tal regime retrospectivo.

Desta sorte, o Ministério Público tinha legitimidade para interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos em que o fez, por força do disposto nos artigos 280.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.º 1, alínea a), estes da LTC.

Não procede, pois, a questão prévia ou "prejudicial" suscitada.

6 - Da delimitação do objecto do recurso.

6.1 - As normas constitucionalmente sindicadas do Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho, dispõem do seguinte modo:

"Artigo 1.º

Alteração ao Decreto-Lei 296-A/98, de 25 de Setembro

O artigo 42.º do Decreto-Lei 296-A/98, de 25 de Setembro, alterado pelos Decretos-Leis 99/99, de 30 de Março, 26/2003, de 7 de Fevereiro, 76/2004, de 27 de Março e 158/2004, de 30 de Junho, passa a ter seguinte redacção:

"Artigo 42.º

1 - ...

2 - ...

a) ...

b) ...

c) Na 2.ª fase dos exames nacionais do ensino secundário desse ano lectivo, quando o estudante não tenha realizado o mesmo exame na 1.ª fase ou quando tal seja permitido, por despacho fundamentado do membro do Governo com a tutela sobre o ensino secundário, em razão de circunstâncias excepcionais verificadas no processo de avaliação e susceptíveis de prejudicar gravemente os candidatos ou de pôr em causa o princípio da igualdade entre candidaturas."

Artigo 2.º

Vigência

O presente decreto-lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, produzindo efeitos a partir do início do período de candidatura ao ensino superior no ano lectivo de 2006-2007."

Por seu lado, o despacho do Secretário de Estado da Educação n.º 16 078-A/2006, também objecto do recurso de constitucionalidade, tem o seguinte teor:

"Considerando o meu despacho interno n.º 2-SEE/2006, de 13 de Julho;

Considerando que os exames de Química (código 642) e de Física (código 615), integrados na 1.ª fase dos exames nacionais do ensino secundário do presente ano lectivo, se referem a disciplinas com programas novos que introduziram rupturas com a experiência anterior;

Considerando que tais programas foram tardiamente aprovados, implicando dificuldades significativas na adaptação dos manuais escolares e dos próprios docentes às novas exigências;

Considerando que aquelas duas disciplinas, sendo anuais, foram sujeitas a um procedimento de exames inicialmente não previsto, que não pôde beneficiar de experiência anterior e para o qual não foi assegurada adequada preparação;

Considerando que os resultados nos exames de Química (código 642) e Física (código 615) apresentaram valores médios muito inferiores aos verificados em anos anteriores nas mesmas disciplinas;

Considerando que tais resultados, ao contrário do que habitualmente sucede, implicariam este ano excluir liminarmente 80% dos alunos de Química e 67% dos alunos de Física da possibilidade de concorrerem a cursos do ensino superior em que os exames dessas disciplinas constituem provas de ingresso;

Considerando que, não tendo sido apurados erros técnicos ou científicos nas provas, nem irregularidades no procedimento respectivo, há fortes motivos para atribuir ao excepcional conjunto de circunstâncias acima descrito a principal responsabilidade pelos resultados anormalmente baixos que se verificaram este ano naquelas disciplinas;

Considerando, assim, que os resultados verificados no processo de avaliação comprovam que as referidas circunstâncias excepcionais implicaram, efectivamente, um grave prejuízo para os alunos, com reflexo nas condições de sucesso das suas candidaturas ao ensino superior;

Considerando, em particular, que o circunstancialismo excepcional causador desta situação não é, de modo algum, da responsabilidade dos alunos que se apresentaram a exame;

Considerando, ainda, a anormal discrepância entre aqueles resultados e o quadro de resultados obtidos nos exames de Química (código 142) e Física (código 115) pelos alunos abrangidos pelos programas curriculares antigos;

Considerando, consequentemente, que os alunos que fizeram exame nas disciplinas de Química (código 642) e Física (código 615) foram colocados, por razões que lhes não são imputáveis, numa situação de objectiva e manifesta desvantagem, que ofende gravemente o princípio da igualdade das candidaturas no concurso de acesso e ingresso no ensino superior;

Considerando, por outro lado, que a situação verificada nas disciplinas de Química (código 642) e Física (código 615) não é igual à que se verificou em qualquer das outras disciplinas;

Considerando, em particular, que nas únicas outras duas disciplinas anuais que tiveram exames inicialmente não previstos, Biologia e Geologia, os resultados se mostraram em linha com o histórico, revelando que aí as dificuldades de adaptação aos programas novos e respectivos exames não tiveram nem intensidade, nem consequências semelhantes;

Em face de toda a situação excepcional descrita;

Considerando que se verificou no processo de avaliação referente aos exames de Química (código 642) e Física (código 615) um conjunto de circunstâncias excepcionais susceptíveis de prejudicar gravemente estes candidatos ao ensino superior e de pôr em causa o princípio da igualdade entre candidaturas;

Considerando que, para minimizar os prejuízos injustamente causados a estes candidatos e para salvaguardar o princípio da igualdade entre candidaturas, importa permitir, excepcionalmente, que os candidatos que na 1.ª fase dos exames nacionais realizaram exame nas disciplinas de Química (código 642) e Física (código 615) possam, já na 1.ª fase do concurso de acesso e ingresso no ensino superior, utilizar a classificação final do ensino secundário que integre melhorias de classificação resultantes de exames dessas disciplinas realizados na 2.ª fase de exames nacionais deste mesmo ano lectivo;

Considerando, finalmente, que, para efeitos da 1.ª fase do concurso de acesso e ingresso no ensino superior deste ano, está assegurado, pelo disposto no artigo 5.º da deliberação 7/2006, da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior, de 26 de Julho, que relevando tais classificações da 2.ª fase dos exames nacionais para a classificação final do ensino secundário, relevam também, na mesma fase do concurso, como classificação das provas de ingresso previstas:

Ao abrigo da alínea c) do n.º 2 do artigo 42.º do Decreto-Lei 296-A/98, de 25 de Setembro, alterado pelos Decretos-Leis 99/99, de 30 de Março, 26/2003, de 7 de Fevereiro, 76/2004, de 27 de Março, 158/2004, de 30 de Junho e 147-A/2006, de 31 de Julho, e da alínea b) do n.º 1.1 do despacho 11 529/2005 (2.ª série), de 29 de Abril, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 99, de 23 de Maio de 2005, determina-se o seguinte:

No presente ano, em razão de circunstâncias que gravemente prejudicaram os candidatos e puseram em causa o princípio da igualdade entre candidaturas na 1.ª fase dos concursos a que se refere o capítulo V do Decreto-Lei 296-A/98, de 25 de Setembro, alterado pelos Decretos-Leis 99/99, de 30 de Março, 26/2003, de 7 de Fevereiro, 76/2004, de 27 de Março, 158/2004, de 30 de Junho e 147-A/2006, de 31 de Julho, é permitida, excepcionalmente, aos candidatos que na 1.ª fase dos exames nacionais do ensino secundário do ano lectivo de 2005-2006 realizaram exame nas disciplinas de Química (código 642) e Física (código 615) a utilização da classificação final do ensino secundário que integre melhorias de classificação resultantes de exames dessas disciplinas realizados na 2.ª fase de exames nacionais deste mesmo ano lectivo."

6.2 - Como resulta do relatado, o artigo 1.º do Decreto-Lei 147-A/2006 procedeu a uma alteração do regime de acesso ao ensino superior, em termos de poder relevar para a 1.ª fase do seu concurso de acesso a que se refere o capítulo V do referido Decreto-Lei 298-A/98 (diploma que regula esse regime de acesso) a classificação obtida na 2.ª fase dos exames nacionais do ensino secundário, quando a apresentação a exame nacional, nesta fase, seja permitida "por despacho fundamentado do membro do Governo com a tutela do ensino secundário, em razão de circunstâncias excepcionais verificadas no processo de avaliação e susceptíveis de prejudicar gravemente os candidatos ou de pôr em causa o princípio da igualdade entre candidatos".

Tratou-se de uma alteração ao regime que então vigorava, já que, antes, os resultados obtidos na 2.ª fase dos exames nacionais do ensino secundário, desse ano lectivo, apenas poderiam relevar para a 1.ª fase do concurso de acesso ao ensino superior quando o estudante não tivesse realizado o mesmo exame na 1.ª fase.

Por sua vez, o artigo 2.º do mesmo Decreto-Lei 147-A/2006 determinou que esta alteração se aplicasse à candidatura ao ensino superior no ano lectivo de 2006-2007.

E o despacho do Secretário de Estado da Educação n.º 16 078-A/2006 facultou, com fundamento nos considerandos nele elencados e com base na alteração introduzida pelo Decreto-Lei 147-A/2006 ao referido artigo 42.º do Decreto-Lei 296-A/98, "excepcionalmente, aos candidatos que, na 1.ª fase dos exames nacionais do ensino secundário do ano lectivo de 2005-2006, realizaram exame nas disciplinas de Química (código 642) e Física (código 615) a utilização da classificação final do ensino secundário que integre melhorias de classificação resultantes de exames dessas disciplinas realizados na 2.ª fase de exames nacionais deste mesmo ano lectivo".

Ora, a decisão recorrida recusou a aplicação, por violação dos princípios constitucionais da igualdade, da segurança jurídica e da tutela da confiança, não do novo regime, em si próprio, decorrente da referida alteração legislativa, ou seja, não enquanto regime aplicável aos anos lectivos futuros, mas apenas desse regime enquanto regime tornado aplicável já ao ano lectivo de 2005-2006, por mor do disposto no artigo 2.º do referido Decreto-Lei 147-A/2006 e do identificado despacho, daí decorrendo que, pelo facto de terem optado pela realização, nesse ano lectivo, dos exames de Física (código 615) e Química (código 642) do ensino secundário apenas na 2.ª fase e já ter decorrido a prestação dos exames da 1.ª fase, os estudantes (como a aqui recorrida) não poderem, já, apresentar-se ao exame nacional do ensino secundário da 1.ª fase, e de, consequentemente, irem ao exame da 2.ª fase numa situação de não poderem eleger, de entre duas classificações, em tais disciplinas a melhor nota, para efeitos da subsequente candidatura de acesso ao ensino superior.

É, pois, a norma com este sentido, extraída dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho, e do referido despacho do Secretário de Estado da Educação n.º 16 078-A/2006, de 2 de Agosto, que constitui objecto do presente recurso.

Poder-se-á, todavia, cogitar, como faz o Ministério Público, nas suas alegações, embora opinando em sentido positivo, se este despacho se poderá qualificar como "norma" para efeitos de fiscalização concreta da sua constitucionalidade, pois que segundo o disposto no artigo 280.º da Constituição apenas "normas" poderão constituir objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.

Na verdade, poderá argumentar-se, por um lado, que as situações da vida susceptíveis de ficarem atingidas pelos efeitos jurídicos constituídos pelo despacho seriam pré-determináveis, com um relativo grau de certeza, por dizerem respeito apenas aos exames do ensino secundário das disciplinas em causa no ano lectivo de 2005-2006, e, por outro, igualmente, que as pessoas a quem aproveitavam esses efeitos podiam ser concretamente mencionados ou mencionáveis. Estar-se-ia, dentro de tal perspectiva, perante um acto administrativo geral e não perante um acto normativo, perante uma "norma".

Relativamente a este problema importa, desde logo, acentuar que nem todos os autores estão de acordo com as exigências da generalidade e da abstracção, como elementos caracterizadores do acto normativo (cf., entre outros, Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. III, 1989, pp. 89 e segs., e José Manuel Sérvulo Correia, Direito Administrativo, "Lições ao curso do 3.º ano jurídico de 1979/1980", pp. 336 e segs.), conquanto essa concepção, de tipo restritivo, tenha sido a adoptada pela jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal Administrativo anterior à entrada em vigor do Código do Procedimento Administrativo [cf. Acórdão da 1.ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo (STA) de 9 de Junho de 1993, publicado nos Acórdãos Doutrinais do Supremo Tribunal Administrativo, ano XXXIII, n.º 390, p. 640, e a jurisprudência aí citada].

Para esta corrente, a generalidade significa que "a norma, ao contrário do acto administrativo, não tem destinatário ou destinatários determinados, concretamente mencionados ou mencionáveis" e a abstracção que "o seu comando se não esgota num acto singular de aplicação, antes é susceptível de ser aplicado a um número indeterminado de casos, tantos quantas as hipóteses de facto que, no futuro, venham a ocorrer".

Não pode, todavia, desconhecer-se que o conceito de norma adoptado por esta jurisprudência visou resolver os problemas que se punham em tal contencioso, maxime, os relativos à recorribilidade dos actos impugnados e à legitimidade dos recorrentes, ou seja, tratou-se de eleger um conceito funcionalmente adequado ao tipo de contencioso.

Quer isto dizer que os conceitos de norma não têm de ser juridicamente unívocos.

Ora, sobre o conceito de norma para efeitos de fiscalização de constitucionalidade já o Tribunal Constitucional se pronunciou várias vezes, nomeadamente, nos Acórdãos n.os 26/85, 150/86, 80/86, 156/88 e 172/93, todos publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, 5.º vol., p. 7; 7.º vol., t. I, p. 287; ibidem, p. 79; 11.º vol., p. 1057, e 24.º vol., p. 451, e, mais recentemente, nos Acórdãos n.os 421/98, 225/2005 e 407/2006, estes dois últimos tirados em plenário (relativos à insindicabilidade constitucional de cláusulas de convenções colectivas de trabalho), os dois primeiros publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente, 40.º vol., p. 419, 61.º vol., p. 815, e o outro, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.

Em toda esta jurisprudência, entendeu o Tribunal ser necessário adoptar um conceito funcional de norma, adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade adoptado pela nossa Lei Fundamental.

No referido Acórdão 26/85 pode, com efeito, ler-se:

"Assim, o que há-de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos 277.º e seguintes da Constituição, é um conceito funcional de "norma", ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido.

Pois bem: como a Comissão Constitucional já havia acentuado, o que se tem em vista com esse sistema é o controlo dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) - e, em especial, do poder legislativo - ou seja, daqueles actos que contêm uma "regra de conduta" ou um "critério de decisão"."

E no Acórdão 429/93, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 7 de Outubro de 1993, escreveu-se, relativamente à mesma matéria:

"Na verdade, em sede de controlo sucessivo de constitucionalidade, abstracto ou concreto, a fiscalização exercida pelo Tribunal Constitucional é extensiva a quaisquer normas, consoante o inciso acolhido pela Lei Fundamental [n.º 1, alínea a), do artigo 281.º] e, remissivamente, pela Lei 28/82, de 15 de Novembro, sem, no entanto, dispensar o intérprete de lhe determinar o sentido e o alcance exactos.

A elaboração doutrinal e da jurisprudência constitucional apontam para conceder à expressão em causa um largo âmbito de cobertura de actos normativos, "independentemente da sua natureza, da sua forma, da sua fonte ou da sua hierarquia", nas palavras de Gomes Canotilho (cf. Direito Constitucional, 5.ª ed., Coimbra, 1991, p. 1008), por conseguinte atribuindo-lhe um sentido não circunscrito à estatuição meramente formal, sem, no entanto, prescindir da exigência da sua génese no poder normativo do Estado, em acepção lata considerado.

Ou seja, como vem sendo acentuado desde a Comissão Constitucional, o que se visa com o sistema é o controlo dos actos emanados desse poder normativo, o que vale por dizer "daqueles actos que contêm uma 'regra de conduta' ou um 'critério de decisão' para os particulares, para a administração e para os tribunais" (cf. a propósito, o Acórdão 168/88, publicado na 1.ª série do Diário da República de 11 de Outubro de 1988)."

E, no referido Acórdão 421/98, entendeu o Tribunal caber nesse conceito funcional de norma uma cláusula constante de "regulamento" elaborado pela Câmara Municipal de Braga, para a venda de lotes de terreno de construção, que assim dispunha:

"1 - O arrematante requisitará, no dia imediato ao da hasta pública guias para o pagamento, na tesouraria da Repartição de Finanças, do imposto do selo (6% do valor do custo do lote), previsto no artigo 15.º da tabela geral do imposto do selo.

2 - O arrematante requisitará ainda guias para proceder ao pagamento, no prazo de 30 dias após a adjudicação definitiva, do imposto de sisa, na tesouraria da Repartição de Finanças."

Quer isto dizer que o Tribunal Constitucional considerou ter a natureza de norma uma cláusula que instituiu, com eficácia externa, uma determinada obrigação de pagamento de imposto de selo, bem como o respectivo procedimento de cobrança, cujos efeitos operavam apenas em relação a um concreto procedimento de venda de lotes de terreno para construção e relativamente a pessoas também determinadas, na altura da efectivação das regras do procedimento, em função da sua posição de oferentes do maior preço pela compra dos lotes, na arrematação em hasta pública.

No caso sub judicio, não pode ignorar-se, desde logo, a função integrativa, que é desempenhada pelo despacho impugnado, do regime legal constante da alteração que foi introduzida na alínea c) do n.º 2 do artigo 42.º do Decreto-Lei 296-A/98 pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 147-A/2006, conquanto limitada no tempo, correspondendo, deste modo, a uma densificação normativa temporalmente delimitada.

Nesta perspectiva, pode considerar-se que o despacho dá, ainda, corpo ao regime legal constante desse preceito (e do artigo 2.º do mesmo Decreto-Lei 147-A/2006) e que, nesta medida, preenchendo o critério normativo de decisão nele recortado, ele é elemento da respectiva norma ou critério de decisão, relativamente ao acesso ao ensino superior, no ano lectivo de 2005-2006.

Por outro lado, é de referir que é, ainda, o conceito funcional de norma que tem levado o Tribunal Constitucional a incluir no objecto adequado de fiscalização de constitucionalidade as denominadas leis-medida ou leis-providência.

A propósito da apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 20.º do projecto de Decreto-Lei aprovado pelo Conselho de Ministros e registado sob o n.º 329/91, na Presidência do Conselho de Ministros, diploma esse que "define o regime de privatização da PETROGAL, S. A.", diz-se no Acórdão 365/91, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 27 de Agosto de 1991, o seguinte:

"Neste contexto, o normativo em apreço pode considerar-se uma lei individual e concreta que, atendendo aos seus destinatários e ao objectivo visado, não pode deixar de, por isso mesmo, interferir na esfera das relações jurídicas privadas; mas, nem por lhe faltarem as características normais de generalidade e abstracção, usualmente atribuídas às leis, pode tal normativo ser considerado como violador do princípio da separação e interdependência de poderes.

A problemática das leis individuais (leis-medida ou leis-providência), que não é nova na doutrina e jurisprudência constitucionais portuguesas, tem obtido nesta uma solução uniforme e pacífica no sentido da admissibilidade de tal figura (cf. Parecer 13/82, da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, 19.º vol., pp. 142 e segs.; Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 63/91, in Diário da República, 2.ª série, de 3 de Julho de 1991, 157/88, in Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, com referência ao Acórdão 26/85, este publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol., pp. 7 e segs.).

Na doutrina, Jorge Miranda não recusa ("Sentido e conteúdo da lei como acto da função legislativa", in Nos Dez Anos da Constituição, p. 180), "a possibilidade de lei individual, de lei directa ou aparentemente individual, contanto que, por detrás do comando aplicável a certa pessoa possa encontrar-se uma prescrição ou princípio geral". E, mais adiante, "[...] Tudo parece estar em saber-se se a razão da medida concreta e individual que se decreta (tal como o da lei posta perante a Constituição flexível) leva consigo uma intenção de generalidade, se corresponde a um sentido objectivo, a um princípio geral, por virtude do qual se alarga o âmbito da lei de maneira a abranger aquela medida ou se, pelo contrário, se esgota na aplicação ou execução do que outra lei formal e material dispõe (ou disporia), sem exprimir um novo juízo de valor legal".

Uma coisa é então a lei individual ainda reconduzível ao cerne da generalidade, implícita ou indirectamente; outra coisa o acto administrativo sob a forma de lei, simples decisão de um caso concreto e individual, simples aplicação de regra pré-existente e só válida se com ela se conforma."

Ora, no que tange à norma em apreço, não pode deixar de considerar-se ser-lhe totalmente estranha qualquer "vontade legislativa" (cf. Acórdão 214/94, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Julho de 1994) de constituição de efeitos jurídicos definidores da situação individual e concreta, relativa a cada estudante que realizou exames nacionais do ensino secundário no ano lectivo de 2005-2006, tendo em vista a 1.ª fase do concurso do acesso ao ensino superior a que se refere o capítulo V do Decreto-Lei 298-A/98.

Com efeito, se, não obstante, com base numa exaustiva indagação junto de todos os estabelecimentos de ensino onde tinham lugar as provas nacionais do ensino secundário, se pudessem determinar os destinatários de tal norma (os estudantes beneficiários, no ano lectivo de 2005-2006), só formalmente se poderia admitir uma pré-determinação dos respectivos beneficiários. As tarefas de pré-identificação de cada um dos estudantes que poderiam eleger a melhor nota para o acesso ao ensino superior, de entre duas classificações, eram tão complexas e a efectuar em curto espaço de tempo que, jamais, seria razoável admitir que o legislador poderia ter agido com o sentido de definir cada uma das suas situações.

Acresce, ainda, que esse número de beneficiários nem sequer se poderia ter, à data da publicação do despacho, como completa e invariavelmente determinado, por o preenchimento dos requisitos constituídos pelo Despacho como condicionantes do gozo do benefício instituído estar dependente, antes de mais, da prática do acto voluntário de apresentação à 2.ª fase do exame nacional do ensino secundário, para não falar de outras razões como a não obtenção de classificação potenciadora de concorrência com a obtida pelos estudantes que tinham ido à 1.ª fase desses exames e da não apresentação a exame da 2.ª fase, por motivos estranhos à sua vontade.

Não pode, deste modo, afirmar-se que o despacho em causa corresponda a um acto no qual, sob a forma de lei, o legislador tenha procedido à "decisão de um caso concreto e individual, simples aplicação de regra pré-existente e só válida se com ela se conforma".

Ao contrário, pode concluir-se sair salvaguardado o cerne da generalidade própria dos actos normativos.

E, assim sendo, não se verifica o obstáculo, cuja existência se prefigurou, que impeça o conhecimento da questão de constitucionalidade tal qual acima ficou definida.

7 - Do mérito do recurso.

Dispõe o artigo 76.º, n.º 1, da Constituição que "o regime de acesso à Universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do País".

Não resulta, directamente, deste preceito constitucional o reconhecimento da existência de um direito fundamental ou de natureza análoga de acesso ao ensino superior. Ele limita-se a estabelecer as regras, directivas e objectivos a que deve subordinar-se o regime de acesso ao ensino superior, na definição que dele venha a fazer o legislador infraconstitucional: o respeito pela igualdade de oportunidades, a democratização do sistema de ensino, que de acordo com o n.º 3 do artigo 74.º da Lei Fundamental abrange o ensino pré-escolar, o ensino básico e outros graus mais elevados de ensino, as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural e científico do País.

Nesta perspectiva, poderá afirmar-se que o artigo 76.º, n.º 1, da Constituição se limita a reconhecer a existência de um direito institucional de ensino superior e os princípios a que o regime da sua prestação, a efectuar pelo legislador infraconstitucional, deve obedecer.

O reconhecimento de um direito ou garantia constitucional de acesso ao ensino superior, relativamente àqueles que possuam e revelem capacidade, poderá, todavia, ser inferido do disposto nos n.os 1 e 3, alínea d), do artigo 74.º da Constituição, ao disporem, respectivamente, que "todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e de êxito escolar" e que, "na realização da política de ensino incumbe ao Estado", "garantir a todos os cidadãos, segundo as suas capacidades, o acesso aos graus mais elevados de ensino, da investigação científica e da criação artística" (cf., Jorge Miranda-Rui de Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, t. I, 2005, p. 739; J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição revista, 2007, p. 911).

Mas a sua previsão constitucional surge essencialmente como tarefa constitucional de que o Estado deve desonerar-se e como enunciação dos princípios a que o mesmo deve obedecer na acção política da sua respectiva realização ou prestação, como os princípios da igualdade de oportunidades e da democratização do ensino e de "garantir a todos, segundo a sua capacidade, o acesso aos graus mais elevados de ensino".

É, apenas, dentro deste recorte constitucional que é feito de tal direito que deverá operar a força jurídica conferida pelos artigos 17.º e 18.º da Constituição aos direitos, liberdades e garantias constitucionais e direitos fundamentais de natureza análoga.

Ora, tendo em conta a configuração do direito de acesso ao ensino superior, tal qual se mostra efectuada nos referidos preceitos constitucionais, não pode haver-se como correspondendo a uma restrição retroactiva, proibida pelo n.º 3 do artigo 18.º, o regime legal que vem sindicado constitucionalmente.

Na verdade, o sentido dos preceitos impugnados não é o de restringir, comprimir ou diminuir o conteúdo essencial de tal direito, "mas antes de o regulamentar procedimentalmente, condicionando-o, através da estatuição de um regime para o procedimento concursal" de avaliação das capacidades dos concorrentes, consubstanciado na realização dos exames de acesso ao ensino superior.

Poderemos dizer que a intenção do regime em causa "não é restringir, mas, pelo contrário, assegurar praticamente o direito fundamental constitucionalmente consagrado" (cf. José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª ed., p. 216) sendo que esta tarefa, precisamente, por este seu escopo, não afecta o conteúdo do direito fundamental e não é, constitucionalmente, vedada.

Ponto é que não saiam violados os princípios constitucionais a que a previsão desse direito ou garantia constitucional se encontram expressamente submetidas, como o princípio da igualdade, ou outros princípios constitucionais, como o da tutela da confiança e da segurança jurídica.

O Tribunal Constitucional já teve ocasião de se pronunciar sobre uma questão de constitucionalidade com manifesta analogia, na perspectiva da aplicação destes princípios constitucionais, com o caso sub judicio.

Fê-lo no Acórdão 1/97, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 5 de Março de 1997, em que se pronunciou, em sede de fiscalização preventiva, pela inconstitucionalidade de preceito legal que, com efeitos "retrospectivos", visava alterar a regulamentação do concurso nacional de acesso ao ensino superior no ano lectivo de 1996-1997, determinando que os exames da 2.ª fase dariam acesso a qualquer curso e estabelecimento de ensino, desde que os candidatos obtivessem notas superiores à do último candidato neles colocado na 1.ª fase, e promovendo, do mesmo passo, uma alteração do número de vagas originariamente fixado por portaria. Considerou, então, o Tribunal que um tal regime violava, "conjugadamente, o princípio da segurança jurídica derivado do artigo 2.º da Constituição e o princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, consagrado nos artigos 13.º e 76.º, n.º 1, da Constituição".

Discreteando, sobre a matéria, diz este Acórdão:

"13 - As alterações introduzidas pelo artigo 1.º do decreto da Assembleia da República nos critérios de acesso ao ensino superior (definidos anteriormente pelo Decreto-Lei 28-B/96) para os candidatos que realizaram os exames de Setembro poderão produzir discriminações - positivas e negativas - inaceitáveis em face do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição?

A objecção à constitucionalidade salienta, em primeiro lugar, a falta de fundamentação razoável para que os candidatos que fizeram os exames da época de Setembro sejam beneficiários de um critério de acesso não condicionado pelo número de vagas, mas só pela classificação, diferentemente dos que apenas realizaram as suas provas em Julho. Em segundo lugar, invoca uma discriminação negativa dos candidatos que somente foram opositores à 1.ª fase e não vieram a ser colocados no curso e estabelecimento de ensino da sua primeira opção.

É verdade, porém, que a classificação que assegura, nos termos do artigo 1.º do Decreto 58/VII, o direito de ingresso no ensino superior aos candidatos à 2.ª fase relativamente a cada par curso/estabelecimento de ensino é necessariamente superior à do último candidato colocado no mesmo par curso/estabelecimento de ensino na 1.ª fase. Não se registaria, por isso, um manifesto privilégio dos candidatos à 2.ª fase, ponderando apenas o factor classificação.

E, aliás, o problema nem sequer se colocaria se não estivesse em causa uma situação de retroactividade inautêntica ou retrospectividade. Com efeito, uma vez que todos os candidatos puderam ser opositores à 2.ª fase, eles estariam numa óbvia posição de paridade desde que as regras de colocação houvessem sido previamente definidas. A circunstância de as regras de colocação na 2.ª fase terem sido determinadas já depois de os candidatos terem realizado as respectivas provas e, sobretudo, terem manifestado as suas preferências por cursos e estabelecimentos de ensino é que gera, potencialmente, um tratamento discriminatório dos candidatos que não concorreram à 2.ª fase e até mesmo daqueles que, tendo-o feito, não escolheram os cursos e estabelecimentos de ensino que, em absoluto, preferiam, por saberem que não tinham sobrado vagas da 1.ª fase.

Estes candidatos foram, na realidade, surpreendidos por uma mudança de regras superveniente. O tratamento discriminatório não resulta apenas de um favorecimento dos opositores à 2.ª fase (ou, de entre eles, dos que se candidataram a cursos e estabelecimentos sobrelotados, por ter sido essa a sua primeira candidatura ou por terem investido na possibilidade remota de surgimento de novas vagas por desistência de candidatos colocados na 1.ª fase). Esse tratamento discriminatório resulta, outrossim, de um prejuízo dos outros candidatos (não opositores à 2.ª fase ou opositores à 2.ª fase que não escolheram os cursos e estabelecimentos de ensino da sua absoluta preferência).

Assim configurado, este é um problema constitucional de violação da segurança jurídica e da igualdade, conjugadamente, abrangendo uma dimensão de discriminação negativa de uns e o reflexo favorecimento de outros. Na realidade, não é possível deixar de considerar que, para os candidatos não colocados na 1.ª fase no curso e estabelecimento de ensino da sua primeira opção, o leque de perspectivas de colocação no curso e estabelecimento de ensino da sua preferência seria diferente se o concurso da 2.ª fase não fosse restrito às vagas sobrantes.

Com efeito, perante cursos e estabelecimentos de ensino em que as vagas sobrantes são inexistentes ou exíguas, a realização do exame da 2.ª fase para melhoria de nota e a candidatura a tais cursos e estabelecimentos de ensino (jogando fora uma das seis opções) não é uma aposta natural e exigível aos candidatos. E, por outro lado, os candidatos à 2.ª fase acabam por beneficiar de possibilidades de acesso acrescidas em função do aumento das vagas, desaparecendo a lógica instituída e com que os candidatos podiam contar - a do carácter mais vantajoso de uma candidatura à 1.ª fase em conexão com os riscos de uma candidatura circunscrita à 2.ª fase.

14 - Mas não será justificável a discriminação positiva dos candidatos à 2.ª fase, anteriormente sublinhada?

A resposta tem de ser negativa, porquanto a razão invocada - compensar as deficiências dos exames da 1.ª fase - não se verifica adequadamente. Na realidade, uma compensação efectiva exigiria uma regulamentação prévia à realização dos exames da 2.ª fase. Só assim os candidatos atingidos pelos problemas da 1.ª fase poderiam equacionar devidamente o seu interesse em concorrer à 2.ª fase e obter, por essa via, a reparação de prejuízos sofridos anteriormente. Além disso, não se compreende como poderá funcionar como compensação de anteriores prejuízos um sistema que também abrange os candidatos que apenas foram opositores à 2.ª fase e ainda aqueles que, tendo concorrido à 1.ª fase, não foram vítimas das deficiências das provas ou beneficiaram da 2.ª chamada.

O sistema delineado pelo Decreto 58/VII da Assembleia da República institui, deste modo, um favorecimento dos candidatos à 2.ª fase carecido de razoabilidade e adequação ao fim de compensação de prejuízos, ao abranger candidatos que não sofreram qualquer prejuízo anterior e, sobretudo, ao ser editado num momento em que os efectivamente prejudicados - ou, pelo menos, parte deles - não puderam já aproveitar as novas possibilidades oferecidas.

15 - A discriminação negativa dos candidatos à 1.ª fase que não foram opositores da 2.ª fase do concurso nacional será uma discriminação lesiva da igualdade?

Poder-se-á pensar que neste caso, como em outros que foram anteriormente objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, o princípio da igualdade não será violado quando apenas um grupo de sujeitos é abrangido por um benefício enquanto outra categoria não o é. O benefício de uns (se não justificado) não seria verdadeiramente o prejuízo de outros, mas corresponderia somente a um não benefício (cf., nesse sentido, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 609/94, Diário da República, 2.ª série, de 4 de Janeiro de 1995, 563/96, Diário da República, 1.ª série-A, de 16 de Maio de 1996, e 713/96, Diário da República, 2.ª série, de 9 de Julho de 1996).

Todavia, as normas em apreço não geram exclusivamente um não benefício de um grupo de indivíduos, mas redundam numa efectiva diminuição das possibilidades de acesso ao ensino superior daqueles que, segundo as suas expectativas razoáveis, não teriam nada a ganhar com a candidatura à 2.ª fase.

O facto de os estudantes que se candidataram à 1.ª fase (e não foram colocados no curso e estabelecimento da sua primeira opção) não poderem prever as possibilidades de colocação em cursos e estabelecimentos de ensino sem vagas ou com um número exíguo de vagas sobrantes, qualquer que fosse a classificação obtida na 2.ª fase - possibilidades que, todavia, passaram a existir retroactivamente, no sistema do Decreto 58/VII -, corresponde a uma comparativa subtracção de possibilidades de acesso a um grupo de candidatos, precisamente aqueles que se justificaria beneficiar. E isto acontece numa matéria em que a Constituição exige do Estado uma promoção da igualdade (condições de acesso ao ensino superior - artigo 76.º, n.º 1) e não lhe atribui apenas um papel de guardião da igualdade formal, numa matéria, em suma, em que estão em causa projectos de vida dos jovens portugueses.

16 - Em face do anteriormente exposto, conclui-se que as normas em apreço contradizem o princípio da igualdade, consagrado, genericamente, no artigo 13.º e, no que se refere à igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, no artigo 76.º, n.º 1, da Constituição.

Esta conclusão radica no pressuposto de que aquelas normas criaram retroactivamente um quadro legal que, se fosse conhecido anteriormente, teria modificado a representação das possibilidades de acesso ao ensino superior pelos candidatos à 1.ª fase. Deste modo, a violação da igualdade é determinada por uma violação da segurança jurídica, que a modificação retroactiva das regras de avaliação dos resultados de um concurso público implica.

[...]

17 - Poder-se-á ainda considerar que as normas agora fiscalizadas também atingem, em si mesmo, o princípio da confiança emanado do artigo 2.º da Constituição?

A uma resposta afirmativa opor-se-á o entendimento de que não merecem protecção expectativas meramente negativas, isto é, no caso concreto, as expectativas dos candidatos à 1.ª fase (que não realizaram os exames da 2.ª fase) de que não teriam acesso ao ensino superior os candidatos à 2.ª fase que, pelo sistema retroactivo das vagas adicionais, o viriam a ter.

Porém, se é verdade que uma tal protecção de expectativas não decorre do princípio do Estado de direito democrático, não será de modo algum correcto afirmar-se que não há nenhumas outras expectativas afectadas pelas alterações das condições de acesso instituídas pelas normas do Decreto 58/VII. São ainda postas em causa as expectativas que se referem ao conhecimento prévio das regras de um concurso público e à manutenção de tais regras até à produção de todos os efeitos legais desse concurso. Não são as expectativas negativas, relativamente a benefícios alheios, ou positivas, relativamente a benefícios próprios com que não se poderia contar, mas as expectativas associadas à manutenção do quadro legal em que se opera um concurso público até ao seu termo, que decorrem da própria segurança jurídica característica do Estado de direito democrático.

18 - Deslocada a questão da violação da confiança para a referida dimensão da segurança jurídica, não tem qualquer cabimento a objecção de que não terá de se verificar qualquer tutela da confiança, porque já se prefigurava a alteração legislativa antes da realização dos exames da 2.ª época, em virtude das recomendações feitas ao Governo pela Assembleia da República.

A confiança em que um concurso realizado segundo um determinado quadro legal obedecerá, até ao apuramento dos candidatos, a esse quadro não é uma mera expectativa, abalável por factos sociológicos ou políticos, mas corresponde a uma dimensão concreta do direito à segurança jurídica. Não seria, assim, exigível a ninguém que não confiasse na manutenção do quadro legal e que esperasse uma alteração retroactiva das regras, critérios e finalidades do concurso nacional de acesso ao ensino superior.

19 - A questão da violação do princípio da confiança é, deste modo, transposta para a dimensão da segurança jurídica derivada do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), devendo entender-se, nesses termos, que as normas questionadas do Decreto 58/VII violam o artigo 2.º da Constituição.

Assim, há-de concluir-se que os princípios da igualdade e da segurança jurídica, em conjugação, são abalados imediatamente pelo artigo 1.º do Decreto 58/VII da Assembleia da República, decorrendo da inconstitucionalidade desta norma a inconstitucionalidade consequencial de todas as restantes normas do mesmo decreto, que têm uma função concretizadora e instrumental relativamente à primeira."

Ora, estas considerações são inteiramente transponíveis para o caso sub judicio. Na verdade, também as normas, aqui, sindicadas constitucionalmente, procedem a uma alteração substancial das regras atinentes ao procedimento concursal de acesso ao ensino superior, na medida em que possibilitam, com base numa ponderação efectuada pela administração sobre os respectivos resultados, nos termos da qual a notação atribuída aos candidatos, foi tida como muito inferior à média dos últimos concursos nas disciplinas de Física (código 615) e Química (código 642), a repetição, na 2.ª fase, de provas validamente efectuadas na 1.ª fase, ou "não inquinadas por erro técnico ou irregularidade", mas com eficácia jurídica limitada, retrospectivamente, a quem se apresentara a fazer exame, nessa 1.ª fase, por virtude de, à altura da sua edição, já haverem decorrido esses exames da 1.ª fase, e porquanto facultam, no concurso de acesso ao ensino superior, ao leque da candidatos ao ensino superior que se haviam apresentado a exame nacional final do ensino secundário, na 1.ª fase, a opção pela melhor classificação obtida em uma ou outra dessas fases, sendo que uma tal opção não é aberta em relação aos demais candidatos.

C - Decisão. - 8 - Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide:

a) Julgar inconstitucionais, por contrariarem, conjugadamente, o princípio da segurança jurídica derivado do artigo 2.º e o princípio da igualdade, em particular da igualdade de oportunidades no acesso ao ensino superior, consagrado nos artigos 13.º e 76.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, as normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do Decreto-Lei 147-A/2006, de 31 de Julho, integradas pelo despacho do Secretário de Estado da Educação n.º 16 078-A/2006, de 2 de Agosto, na medida em que permitem, no concurso de acesso ao ensino superior no ano de 2005-2006, a melhoria de classificação que decorra da repetição, na 2.ª fase, de exames nacionais finais do ensino secundário aos candidatos que já haviam realizado exame, na 1.ª fase, nas disciplinas de Física (código 615) e Química (código 642), sem que tais provas se mostrem como inquinadas por erro técnico ou irregularidade;

b) E, consequentemente, confirmar o juízo de inconstitucionalidade feito pela decisão recorrida.

Lisboa, 12 de Junho de 2007. - Benjamim Rodrigues - João Cura Mariano - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1590425.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1988-10-11 - Acórdão 168/88 - Tribunal Constitucional

    DECIDE NAO TOMAR CONHECIMENTO DO PEDIDO RELATIVAMENTE A QUESTÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE: DO 'ACORDO, POR TROCA DE NOTAS, ENTRE OS GOVERNOS DE PORTUGAL E DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA RELATIVO A EXTENSÃO ATE 4 DE FEVEREIRO DE 1991, DE FACILIDADES CONCEDIDAS NOS AÇORES A FORÇAS DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA AO ABRIGO DO ACORDO DE DEFESA DE 6 DE SETEMBRO DE 1951', DE NORMAS DO 'ACORDO TÉCNICO PARA A EXECUÇÃO DO ACORDO DE DEFESA ENTRE PORTUGAL E OS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, DE 6 DE SETEMBRO DE 1951', DE NORMA (...)

  • Tem documento Em vigor 1993-10-07 - Acórdão 429/93 - Tribunal Constitucional

    DECLARA, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, A INCONSTITUCIONALIDADE CONSEQUENCIAL DAS NORMAS DA ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DAS COMISSOES DE TRABALHADORES DOS ESTABELECIMENTOS FABRIS DAS FORÇAS ARMADAS, APROVADAS PELO DESPACHO CONJUNTO DOS CHEFES DO ESTADO-MAIOR-GENERAL DAS FORÇAS ARMADAS E DOS CHEFES DOS ESTADOS MAIORES DA ARMADA, DO EXÉRCITO E DA FORÇA AEREA, DE 3 DE FEVEREIRO DE 1982, PUBLICADO NO DIÁRIO DA REPÚBLICA, II SÉRIE, NUMERO 45, DE 24 DE FEVEREIRO DE 1982 E DAS NORMAS PROVISÓRIAS DA ORGANIZAÇÃO E FUN (...)

  • Tem documento Em vigor 1996-04-04 - Decreto-Lei 28-B/96 - Ministério da Educação

    ESTABELECE O REGIME DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR, APLICANDO-SE AO INGRESSO NOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO SUPERIOR PÚBLICO, PARTICULAR E COOPERATIVO PARA A FREQUÊNCIA DE CURSOS DE BACHARELATO E DE LICENCIATURA. CRIA A COMISSAO NACIONAL DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR, O CONSELHO NACIONAL DOS EXAMES DO ENSINO SECUNDÁRIO, COMO ÓRGÃO CONSULTIVO DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, E A COMISSAO DE AVALIAÇÃO E CONSULTA DO REGIME DE ACESSO AO ENSINO SUPERIOR. ESTABELECE A COMPOSICAO, MODO DE FUNCIONAMENTO E COMPETENCIAS DESTE (...)

  • Tem documento Em vigor 1998-09-25 - Decreto-Lei 296-A/98 - Ministério da Educação

    Fixa o regime de Acesso e Ingresso no Ensino Superior.

  • Tem documento Em vigor 1999-03-30 - Decreto-Lei 99/99 - Ministério da Educação

    Altera o Decreto-Lei nº 296-A/98, de 25 de Setembro, que fixa o regime de acesso e ingresso no ensino superior.

  • Tem documento Em vigor 2003-02-07 - Decreto-Lei 26/2003 - Ministério da Ciência e do Ensino Superior

    Altera o regime de acesso e ingresso no ensino superior, regulado pelo Decreto-Lei nº 296-A/98, de 25 de Setembro. Republicado em anexo o referido diploma com as alterações ora introduzidas.

  • Tem documento Em vigor 2004-03-27 - Decreto-Lei 76/2004 - Ministério da Ciência e do Ensino Superior

    Altera o regime jurídico do acesso e ingresso no ensino superior, regulado pelo Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de Setembro.

  • Tem documento Em vigor 2004-06-30 - Decreto-Lei 158/2004 - Ministério da Ciência e do Ensino Superior

    Altera o regime jurídico do acesso e ingresso no ensino superior regulado pelo Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de Setembro.

  • Tem documento Em vigor 2006-07-31 - Decreto-Lei 147-A/2006 - Ministério da Educação

    Procede à 5.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 296-A/98, de 25 de Setembro, que regula o regime de acesso e ingresso no ensino superior.

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