Acordam no Tribunal Constitucional:
I - Enquadramento temático
1 - Um grupo de 28 deputados à Assembleia da República, integrantes do grupo parlamentar do Partido Comunista Português (PCP), veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas a seguir identificadas, com base nas razões que também se aduzem:A) Normas constantes do «Acordo, por troca de notas, entre os Governos de Portugal e dos Estados Unidos da América Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América ao Abrigo do Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951», assinado em Lisboa em 13 de Dezembro de 1983, para entrar em vigor em 4 de Fevereiro de 1984, e publicado por aviso no Diário da República, 1.ª série, n.º 103, de 4 de Maio de 1984.
«As matérias de fulcral relevância que são objecto do Acordo em causa não podem, face ao actual quadro constitucional português, ser reguladas por outro instrumento jurídico que não um verdadeiro e próprio tratado aprovado pela Assembleia da República e ratificado pelo Presidente da República», verificando-se assim violação do disposto no artigo 164.º, alínea i), da Constituição.
«Encontra-se constitucionalmente excluído o recurso, nesta situação, a acordos em forma simplificada, de aprovação governamental», que, de resto, a poderem ser celebrados pelo Governo - e não é esse o caso - sempre devem revestir a forma de decreto, em conformidade com o disposto no artigo 200.º, n.º 2, da Constituição.
B) Normas constantes do «Acordo, por troca de notas, entre o Governo Português e o Governo dos Estados Unidos da América, pelo qual se autoriza o Governo dos Estados Unidos da América a instalar em território nacional uma estação electro-óptica para vigilância do espaço exterior (GEODSS)», assinado em Lisboa em 27 de Março de 1984, e publicado por aviso no Diário da República, 1.ª série, n.º 103, de 4 de Maio de 1984.
«O Governo não dispõe de competência para autorizar a instalação e operação de uma estação GEODSS (ground based electrooptical deep space surveillance), que explicitamente se insere no quadro das relações entre Portugal e os Estados Unidos, nos planos militar e de defesa», verificando-se assim violação do disposto no artigo 164.º, alínea i), da Constituição.
C) As normas do «Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 6 de Setembro de 1951», feito em Lisboa em 18 de Maio de 1984 e aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 25/85, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 243, de 22 de Outubro de 1985, assim discriminadas:
a) Normas do artigo I («Direitos de utilização») e dos anexos A («Facilidades»), C («Operações de voo») e D («Serviços de tráfego aéreo e da Base Aérea»), que «concedem a uma potência estrangeira ampliadas facilidades para utilização imediata do território e do espaço aéreo e marítimo, lesam a independência nacional e constituem verdadeiras restrições da soberania do Estado Português, sob alegações de razões de defesa». Estas normas «conduzem a uma verdadeira transferência de poderes de soberania a favor do Estado estrangeiro, o que é incompatível com o disposto na Constituição, designadamente nos seus artigos 1.º, 5.º e 7.º», atribuindo, por acréscimo, a uma potência estrangeira «missões que cabem às Forças Armadas nos termos do artigo 275.º da Constituição (ou inviabilizam o seu exercício Forças Armadas Portuguesas)»;
b) Norma do artigo I, n.º 6, com fundamento em que, «ao autorizar, nos termos em que autoriza, na prática, o incontrolável armazenamento e manutenção de munições e explosivos e ao viabilizar o trânsito de equipamentos, armas e produtos de elevado risco e perigosidade (incluindo armas nucleares), põe em risco a segurança das populações, a independência do Estado e o próprio direito à vida, constitucionalmente assegurado a todos os cidadãos (artigo 24.º)»;
c) Normas do artigo IV («Patrulhas de Polícia Militar») do anexo E («Defesa, segurança e policiamento»), com fundamento em que «facultam às forças armadas de uma potência estrangeira o exercício, fora do território das facilidades, de missões de polícia que os artigos 272.º e 275.º da Constituição vedam às próprias Forças Armadas Portuguesas», reconhecendo mesmo, e também inconstitucionalmente, a essas forças estrangeiras «poderes para usar da força contra cidadãos nacionais»;
d) Normas do artigo VI n.º 4 («Controle de entradas, saídas e circulação») e do artigo IX, n.º 2 («Assistência na aplicação da lei») do mesmo anexo E («Defesa, segurança e policiamento»), com fundamento em que reconhecem às forças estrangeiras «poderes de polícia» para exercer em relação a cidadãos nacionais;
e) As normas do anexo H («Estatuto do pessoal»), porque «estabelecem inconstitucionalmente a favor dos membros das Forças Armadas dos Estados Unidos, dos membros do elemento civil e das próprias pessoas a cargo imunidades de dimensão e conteúdo tais que revestem a natureza de privilégios violadores dos artigos 13.º e 15.º da Constituição, impeditivos da realização da função judicial (artigos 205.º e 206.º), do cumprimento dos deveres do Ministério Público (artigo 224.º) e do dever estadual [artigo 9.º, alínea b)] de assegurar a efectivação pelos cidadãos do seu direito a ver apreciadas pelos tribunais as violações dos seus direitos e interesses legalmente protegidos». Assim e concretamente:
O artigo VIII («Jurisdição criminal») viabiliza (n.os 1, 2, 3 e 6) ou consagra mesmo (no n.º 7, quanto aos crimes militares) «a renúncia à jurisdição criminal portuguesa»;
O mesmo artigo, no seu n.º 4, «estabelece uma presunção inilidível tendente a impedir a qualificação como crimes de infracções 'ocorridas em serviço' e afastar assim, por outra via, a jurisdição portuguesa»;
Ainda o mesmo artigo VIII, nos seus n.os 8 e 9, inviabiliza «o real exercício da jurisdição criminal portuguesa nos casos em que não se encontra formalmente arredada, instituindo regimes excepcionais de manutenção e cessação de prisão preventiva (no último caso por iniciativa da potência estrangeira) que não respeita os contornos e fins constitucionais do instituto da prisão preventiva (artigo 28.º) e um regime de tramitação prioritária em processo penal que não se contém dentro dos limites decorrentes do artigo 13.º da Constituição»;
O artigo X («Procedimentos») suprime «os mecanismos que garantem a protecção dos cidadãos contra a violação dos seus direitos, reconhecendo a cidadãos estrangeiros que hajam praticado actos ou omissões ilegais imunidade efectiva à jurisdição civil portuguesa em condições tais que inviabilizam o exercício das funções cometidas aos tribunais portugueses» violando os artigos 13.º e 15.º da Constituição;
f) As normas citadas na sua articulação «com as que facultam a incontrolável movimentação de pessoal (anexo E, artigo VI), a concentração e alteração de efectivos em condições diferentes das acordadas (anexo B, artigo III) e a possibilidade (à míngua de mecanismos de fiscalização e controle) do trânsito indiscriminado de pessoal (viabilizando eventual utilização belicista), convertem uma parte do território nacional em zona avançada militar de uma potência estrangeira em condições que violam, qualificadamente, o disposto no artigo 7.º da Constituição da República».
D) As normas do «Acordo entre o Ministério da Defesa Nacional de Portugal e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, respeitante ao emprego de cidadãos portugueses pelas Forças dos Estados Unidos da América nos Açores», feito em Lisboa em 9 de Outubro de 1984 e em Washington, D. C., em 16 de Outubro de 1984, e aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 24/85, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 220, de 24 de Setembro de 1985, assim discriminadas:
a) Norma do artigo 2.º («Regimes e programas especiais»), «ao permitir que por 'ajustamento' sejam alteradas todas e cada uma das normas do Acordo sem a participação das organizações de trabalhadores e sem que tal alteração seja aprovada pela Assembleia da República«, com fundamento na violação dos artigos 55.º, alínea d), 57.º, n.º 2, alínea a), e 168.º, alínea b), da Constituição;
b) Norma do artigo 7.º («Sistema de classificação profissional»), «ao pôr em vigor na ordem jurídica portuguesa normas do ordenamento jurídico de outro Estado, sem que se encontrem preenchidas as condições do artigo 7.º da Constituição e quando coloca cidadãos em desigualdade no que respeita ao sistema nacional de classificação de profissões definido na lei portuguesa», com fundamento na violação dos artigos 3.º e 13.º da Constituição;
c) Normas dos artigos 8.º («Reclassificação profissional») e 10.º («Mudança de categoria»), «ao colocar cidadãos na desigualdade, no que respeita à garantia de não abaixamento de categoria consagrada na legislação portuguesa», com fundamento na violação do artigo 13.º da Constituição;
d) Norma do referido artigo 8.º, n.º 1, «quando defere a entidade administrativa estrangeira (as Forças dos Estados Unidos) a resolução de conflitos com os trabalhadores (com a agravante de essa entidade ser parte no conflito)», com fundamento na violação dos artigos 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 3, e 205.º e 210.º da Constituição;
e) Norma do artigo 13.º, n.º 3 («Inscrição do pessoal»), «ao permitir que administrativamente seja fixado impedimento para acesso ao emprego em igualdade de condições», com fundamento na violação do artigo 13.º da Constituição;
f) Norma do artigo 27.º, n.º 2, alínea j) («Direitos e deveres dos trabalhadores»), «quando permite que motivos ideológicos ou políticos venham a ser (por violação de dever) causa de despedimento», com fundamento na violação do artigo 53.º da Constituição;
g) Norma do artigo 28.º, n.º 3 («Direitos e deveres da entidade patronal»), «na medida em que permite a suspensão de direitos, liberdades e garantias em situação de emergência declarada unilateralmente por entidade estrangeira e portanto fora dos casos e formas previstos na Constituição», com fundamento na violação do artigo 19.º da Constituição;
h) Norma do artigo 30.º («Restrição de acesso à área da FAP») «ao introduzir a possibilidade de aplicação das penas de suspensão (sem retribuição) e de despedimento, por mera decisão administrativa, sem precedência de processo disciplinar e sem possibilidade de recurso», com fundamento na violação do artigo 53.º da Constituição;
i) Norma do artigo 33.º, n.º 4 («Eleições»), «quando sujeita o regulamento eleitoral da comissão representativa dos trabalhadores à aprovação da entidade patronal (estrangeira)», com fundamento na violação do artigo 54.º, n.º 2, da Constituição;
j) Norma do artigo 34.º, n.º 3 («Constituição da comissão representativa de trabalhadores»), «ao limitar a protecção dos membros da comissão às restantes disposições do regulamento (onde se incluem disposições incompatíveis com a protecção devida no direito português aos delegados sindicais)», com fundamento na violação do artigo 54.º, n.º 4, da Constituição;
k) Normas do conjunto do capítulo V («Comissão representativa de trabalhadores»), ao limitarem «os direitos da comissão de trabalhadores (cf., por exemplo, o disposto no n.º 2 do artigo 36.º, na parte em que obriga a indicar 'o local para onde irão' e 'a circunstância' justificativa da ausência para que os membros da comissão possam exercer o crédito de horas; cf. ainda o artigo 38.º quando comparado com o artigo 55.º, alínea a), da Constituição», com fundamento na violação dos artigos 54.º e 55.º da Constituição;
l) Norma do artigo 40.º («Admissões no trabalho», «ao permitir o contrato de trabalho 'intermitente' ou 'à medida que for preciso' (cf., n.os 3 e 5 do artigo 40.º)», com fundamento na violação do artigo 53.º da Constituição;
m) Norma do artigo 41.º, n.º 1, alínea b) («Períodos normais de trabalho»), «ao permitir a manipulação do horário de trabalho em termos de não ser garantida a retribuição do trabalho em condições objectivas (com pagamento adequado do trabalho extraordinário) e sem que seja garantida uma organização do trabalho em condições igualmente diginificantes», com fundamento na violação do artigo 60.º, n.º 1, alíneas a) e b), da Constituição;
n) Norma do artigo 53.º, n.º 4 («Remuneração dos feriados»), «quando permite que existam feriados com prestação de trabalho não especialmente remunerados (tal como se prevê no n.º 2 do mesmo artigo 53.º)», com fundamento na violação do artigo 13.º da Constituição;
o) Normas dos artigos 56.º («Duração das férias») e 60.º («Adiamento ou interrupção de férias marcadas»), «ao limitar o direito a férias de que gozam os cidadãos em geral e ao permitir a sua interrupção por decisão unilateral da entidade empregadora estrangeira», com fundamento na violação dos artigos 13.º e 60.º, n.º 1, alínea d), da Constituição;
p) Norma do artigo 72.º («Faltas justificadas»), «ao não prever o regime de protecção em matéria de faltas dos delegados sindicais (discriminando, assim, o exercício da liberdade sindical) e ao dificultar a participação na vida pública limitando os períodos de dispensa de funções previstos na lei geral para os candidatos à Assembleia da República e às assembleias regionais», com fundamento na violação dos artigos 13.º, 56.º, n.º 2, e 48.º, n.º 1, da Constituição;
q) Normas do capítulo X («Cessação do contrato de trabalho»), «ao permitirem o despedimento sem justa causa - artigos 87.º, n.º 2 (cessação com indemnização) e 88.º, n.º 1, alíneas c) e d) (cessação sem indemnização) do 'acordo' - ou sem precedência do processo disciplinar legalmente fixado - artigo 88.º, n.º 3, do 'acordo'», com fundamento na violação do artigo 53.º da Constituição;
r) Norma do artigo 95.º, n.os 1, primeira parte, e 2 («Tribunal competente»), com fundamento na violação dos artigos 3.º, 5.º, n.º 3, 13.º, 205.º e 210.º da Constituição.
2 - Em conformidade com o disposto no artigo 54.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, foi notificado o Governo, na pessoa do Primeiro-Ministro, havendo oferecido como resposta um parecer elaborado na Secretaria de Estado do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ao qual concedeu a sua concordância.
O essencial da sua argumentação pode sintetizar-se do modo que segue:
A) Acordo, por troca de notas, Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América.
O cerne deste Acordo encontra-se na seguinte transcrição da nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal:
Como resultado dessas discussões, tenho a honra de propor que a continuação da utilização de facilidades nos Açores pelas Forças dos Estados Unidos seja autorizada até 4 de Fevereiro de 1991.
Sustenta-se depois que tudo o mais «é a indicação de que deverão ser elaborados novos arranjos técnicos sobre a utilização das facilidades (os futuros Acordo Técnico e Acordo Laboral); de que a duração destes arranjos é limitada pela duração da autorização de utilização das facilidades; de que os arranjos poderão ser modificados por mútuo acordo; de que haverá consultas na eventualidade de surgir um desacordo quanto à interpretação, implementação ou cumprimento das suas disposições, podendo ocorrer a denúncia se o diferendo não for resolvido; e de que qualquer dos Governos poderá propor, seis meses antes de terminar o período da autorização, que se iniciem as conversações relativas à utilização das facilidades para lá deste período. Tudo isto consistindo em estipulações instrumentais e subordinadas ao disposto no parágrafo acima transcrito [...] Nenhuma regra geral e abstracta se formou com o Acordo por troca de notas de 13 de Dezembro de 1983.
Nasceu, sim, o compromisso por parte de Portugal de cumprir uma prestação concreta, embora duradoura: a autorização de utilização até 4 de Fevereiro de 1991. Estamos perante um tratado-contrato segundo a doutrina».
E sublinha-se depois que a diferença de natureza entre os tratados-leis e os tratados-contratos pode ser relevante e até decisiva para determinados efeitos de aplicação do direito interno, mais concretamente para efeitos de fiscalização da constitucionalidade segundo a Constituição vigente.
É que, conclui-se a seguir, porque o Acordo em causa não contém qualquer norma, «o pedido deverá ser rejeitado por falta de objecto».
Todavia, se assim não for entendido, e o pedido vier a ser objecto de conhecimento, haverá de se concluir no sentido da inteira conformidade constitucional do respectivo Acordo, que não é um tratado de defesa, nem sequer um acto de índole militar que traduza uma primeira volição política do Estado Português nesta matéria; antes pode ser apodado de acordo de terceira geração.
Com efeito, o Acordo por troca de notas de 13 de Dezembro de 1983 deriva do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos, de 6 de Setembro de 1951, que, por sua vez, se fundamenta no artigo 3.º do Tratado do Atlântico Norte.
De tudo decorre que as cláusulas contratuais contidas no Acordo «nem sequer se aparentam com as matérias referidas nas alíneas m) e n) do artigo 167.º da Constituição e, por outro lado, também não se enquadram em qualquer das restantes categorias de actos internacionais enumerados no artigo 164.º, alínea i), do mesmo texto constitucional».
Por isso, a sua celebração inscreve-se no âmbito da competência governamental em conformidade com o disposto no artigo 200.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
E não procede a alegação de que a aprovação do acordo estava sujeita à edição de um decreto, pois que «as normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português, assim declara o artigo 8.º, n.º 1, da Constituição, e a conclusão imediata de acordos por simples troca de notas é uma prática universalmente consagrada, de que dão testemunho os artigos 11.º e 13.º da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. Sendo os acordos por troca de notas meio idóneo de vinculação dos Estados, deve reconhecer-se prima facie a sua constitucionalidade ao abrigo do artigo 8.º, n.º 1».
E a concluir remata-se assim:
O Acordo por troca de notas de 13 de Dezembro de 1983 não tem conteúdo normativo e, por esta razão, é insusceptível de fiscalização preventiva ou sucessiva perante o Tribunal Constitucional. Nestas condições, não tinha de ser aprovado mediante deliberação formal do Conselho de Ministros, na modalidade de decreto.
B) Acordo por troca de notas, pelo qual se autoriza o Governo dos Estados Unidos da América a instalar em território nacional uma estação electro-óptica para vigilância do espaço exterior (GEODSS).
Relativamente a este acordo, a vinculação internacional concretiza-se na seguinte declaração do Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal:
Em consequência daquelas discussões, e tendo em consideração a recente convenção satisfatória de troca de notas acerca de assuntos de defesa e ajuda dos Estados Unidos, apraz-me comunicar que o meu Governo autoriza a instalação e operação de uma estação GEODSS em Portugal, localizada, em princípio, na vizinhança do marco geodésico MU.
E de novo aqui se sustenta traduzir esta formulação «uma cláusula contratual» valendo inteiramente tudo quanto se referiu a propósito do Acordo antecedente sobre a sua natureza de tratado-contrato, que também aqui se verifica.
Assim sendo, e na esteira do já atrás aduzido, por idênticas razões, igualmente «o pedido deverá ser rejeitado por falta de objecto».
Mas, se assim não for entendido, importa acentuar a inteira conformidade constitucional, do Acordo de 27 de Março de 1984, que não é «um tratado de defesa, nem sequer um acto de índole militar que traduza uma primeira volição política do Estado Português nesta matéria; antes pode ser apodado de acordo de terceira geração».
Na verdade, o Acordo por troca de notas de 27 de Março de 1984 deriva do Acordo de auxílio mútuo para a defesa entre Portugal e os Estados Unidos, de 5 de Janeiro de 1951, aprovado pelo Decreto-Lei 38530, de 24 de Novembro de 1951, que, por sua vez, se funda no artigo 3.º do Tratado do Atlântico Norte.
De todo o modo as cláusulas contratuais contidas no Acordo não se aparentam com as matérias contidas nas alíneas m) e n) do artigo 167.º da Constituição, nem se enquadram em qualquer das restantes categorias de actos internacionais enumeradas no artigo 164.º, alínea i), do texto constitucional. Assim sendo, a sua celebração cabia na competência do Governo, não existindo qualquer inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 200.º, n.º 2, por força das razões já expostas a propósito do Acordo antecedente que agora se dão por reproduzidas.
C) Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 6 de Setembro de 1951.
O corpo deste Acordo Técnico «é um acto de natureza puramente política e não normativa», e o seu conteúdo, deixando de parte os anexos, «é formado por cláusulas contratuais que especificam as condições da autorização de utilização das facilidades, sem que sejam formuladas regras de conduta gerais e abstractas», sendo assim insindicável pelo Tribunal Constitucional.
Por outro lado, o Acordo só entrou em vigor em 23 de Dezembro de 1985, sendo certo que o pedido deu entrada no Tribunal em 6 de Novembro antecedente, devendo assim, por esta razão, ser rejeitado por extemporaneidade.
A assim não ser entendido, não deve proceder qualquer das imputações de inconstitucionalidade feitas no petitório, como se sustenta nos n.os 25 a 40 da resposta do Governo.
D) Acordo respeitante ao emprego de cidadãos portugueses pelas Forças dos Estados Unidos da América nos Açores.
Porque só em 13 de Novembro de 1985 - data em que o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal comunicou à Embaixada dos Estados Unidos da América a ratificação por parte do Presidente da República Portuguesa - «se tornou perfeito o compromisso de Portugal», o pedido de fiscalização de constitucionalidade apresentado no Tribunal Constitucional em 6 desse mês «é processualmente imaturo e como tal deve ser rejeitado por extemporaneidade».
Todavia, importa acrescentar que na hipótese de o pedido vir a ser conhecido nenhuma das alegações produzidas contra as normas deste Acordo merece acolhimento, pois que se fundaram no pressuposto de estar «em causa um acordo colectivo de trabalho regulado pelo direito interno português» quando se trata de «um acordo celebrado entre Estados e regido pelo direito internacional» no qual «nenhuma das Partes pode impor à outra a aplicação da sua ordem jurídica».
3 - Entretanto, pelos seus Acórdãos n.os 52/88, de 8 de Março, e 106/88, de 3 de Maio, decidiu este Tribunal, como complemento instrutório, solicitar ao Governo diversos elementos documentais havidos como necessários a um integral conhecimento da materialidade objecto do pedido.
No decurso da discussão e julgamento verificou-se mudança de relator.
Cabe agora decidir.
4 - Considerando que as várias matérias inscritas no pedido dispõem entre si de uma certa conexão histórica e normativa, interpenetrando-se até em diversos pontos, vai, de seguida, em ordem a um mais fácil visionamento daquelas questões, traçar-se um quadro descritivo da sua globalidade para, depois, se dilucidarem os temas directamente postos na petição.
Vejamos então.
O Decreto-Lei 38530, de 24 de Novembro de 1951, aprovou no seu artigo único o Acordo de Auxílio Mútuo para a Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América, assinado em Lisboa em 5 de Janeiro de 1951.
Este Acordo é justificado no respectivo preâmbulo com a consideração de, sendo ambos os países partes do Tratado do Atlântico Norte, assinado em Washington em 4 de Abril de 1949, se sentirem obrigados, por meio de contínua e efectiva contribuição própria e auxílio mútuo, a «manter e aumentar a sua capacidade individual e colectiva para resistir a um ataque armado», desejarem «fomentar a paz e a segurança internacionais, dentro do âmbito da Carta das Nações Unidas, através de medidas que aumentem a possibilidade de as nações fiéis aos propósitos e princípios da Carta participarem efectivamente em arranjos de defesa própria individual e colectiva em apoio desses propósitos e princípios» e reconhecerem que «o aumento de confiança dos povos livres na sua própria capacidade para resistir à agressão apressará a recuperação económica».
Nos termos do seu artigo I, «cada Governo, de pleno acordo com o princípio de que a recuperação económica é essencial à paz e segurança internacionais e lhe deve ser dada nítida prioridade, porá ou continuará a pôr à disposição do outro, ou a favor de quaisquer outros Governos, conforme as Partes acordarem em cada caso, o equipamento, materiais, serviços ou outro auxílio militar que o Governo que forneça esta assistência possa autorizar e de harmonia com os termos e condições que sejam acordados» (n.º 1, primeiro período); e compromete-se a fazer uso efectivo da assistência recebida «com o fim de promover uma defesa integrada na área do Atlântico Norte e para facilitar o desenvolvimento dos planos de defesa previstos no artigo 9.º do Tratado do Atlântico Norte» e «de conformidade com os planos de defesa formulados pela Organização do Tratado do Atlântico Norte, recomendados pela Comissão de Defesa e pelo Conselho do Tratado do Atlântico Norte e aceites pelos dois Governos» [n.º 2, alíneas a) e b)].
Por força do artigo VII, o Acordo «entrará em vigor na data da assinatura, e continuará a vigorar até um ano após a recepção, por qualquer das Partes, de comunicação escrita em que a outra Parte exprima a intenção de lhe pôr termo» (n.º 1).
5 - Em 6 de Setembro de 1951, conforme aviso da Direcção-Geral dos Negócios Políticos e da Administração Interna do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 20 de Junho de 1952, publicado no Diário do Governo, 1.ª série, n.º 136, da mesma data, é assinado entre os mesmos países - Portugal e Estados Unidos da América - um Acordo de Defesa, pelo qual, e considerando a necessidade de regular em tempo de paz as providências de preparação militar necessárias à defesa comum, de conformidade com os planos aprovados pelos países signatários do Tratado do Atlântico Norte, «o Governo Português concede ao Governo dos Estados Unidos, em caso de guerra na qual estejam envolvidos durante a vigência do Tratado do Atlântico Norte e no quadro e em virtude das responsabilidades assumidas no mesmo, o uso de facilidades nos Açores, conforme forem descritas nos arranjos técnicos a concluir pelos Ministros da Defesa dos dois Governos» (artigo 1.º).
E nos termos do corpo do artigo 2.º dispunha-se assim:
Os Governos Português e dos Estados Unidos, em colaboração técnica e financeira, de harmonia com as disposições a concretizar nos arranjos técnicos, construirão novas instalações e ampliarão e melhorarão as existentes com o fim de preparar e aprontar as facilidades acordadas nos Açores com o necessário à execução das missões que nos planos de defesa lhes estejam atribuídas para o tempo de guerra.
Estabelecendo o seu § 2.º que «o prazo para execução do disposto no corpo do presente artigo e no § 1.º correrá desde a data da assinatura deste Acordo até 1 de Setembro de 1956, com a tolerância de quatro meses».
Nos termos do artigo 6.º dispunha-se que, «durante o prazo de preparação das bases, conformemente ao artigo 2.º, § 2.º, e ainda durante o prazo de evacuação concedido no artigo 7.º, continua a ser permitido o trânsito de aviões militares americanos pelo Aeródromo das Lajes, e será autorizado nessa base, durante os mesmos períodos, o treino de pessoal de aviação e naval dos Estados Unidos [...]».
Por fim, prescrevia-se no artigo 12.º que «este Acordo entra em vigor na data da sua assinatura, deixando na mesma data de vigorar o Acordo de 2 de Fevereiro de 1948».
Cumpre notar que o prazo para execução previsto no artigo 2.º, § 2.º, foi prorrogado até 31 de Dezembro de 1962 pelo Acordo Suplementar de Defesa de 15 de Novembro de 1957, traduzindo-se depois, como já se viu, o Acordo por troca de notas de 13 de Dezembro de 1983, em nova prorrogação deste prazo.
6 - No Diário da República, 1.ª série, de 4 de Maio de 1984, é publicado um aviso da Direcção-Geral dos Negócios Políticos, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, datado de 16 de Abril desse ano, pelo qual «se torna público que foi assinado em Lisboa, em 13 de Dezembro de 1983, o Acordo, por troca de notas, entre os Governos de Portugal e dos Estados Unidos da América Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América ao abrigo do Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951, cujos textos em português e inglês acompanham o presente aviso».
Nessas notas, datadas de 13 de Dezembro de 1983 - a primeira, dirigida ao Secretário de Estado dos Estados Unidos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e, a segunda, dirigida ao Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal pelo Secretário de Estado dos Estados Unidos -, propõe-se que, como resultado das discussões havidas entre os Governos dos dois países, «a continuação da utilização de facilidades nos Açores pelas Forças dos Estados Unidos seja autorizada até 4 de Fevereiro de 1991», acrescentando-se, nomeadamente, que «a utilização das mencionadas facilidades nos Açores será regulada por novos arranjos técnicos entre os nossos dois Governos», que «tais arranjos [...] vigorarão enquanto durar a autorização referida nesta nota», que «o Acordo Técnico de 15 de Novembro de 1957 e o Acordo Laboral de 20 de Maio de 1976 caducarão na data em que entrarem em vigor os novos arranjos técnicos sobre a utilização das facilidades nos Açores e sobre assuntos laborais» e finalmente, «caso o Governo de V. Ex.ª concorde, que esta nota, juntamente com a resposta confirmativa de V. Ex.ª, constitua um acordo entre os nossos dois Governos, que entrará em vigor no dia 4 de Fevereiro de 1984».
7 - O mesmo Diário da República, 1.ª série, de 4 de Maio de 1984, publica um outro aviso da Direcção-Geral dos Negócios Políticos, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, também de 16 de Abril desse ano, em que «se torna público que foi assinado em Lisboa, em 27 de Março de 1984, o Acordo, por troca de notas, entre o Governo Português e o Governo dos Estados Unidos da América, pelo qual se autoriza o Governo dos Estados Unidos da América a instalar em território nacional uma estação electro-óptica para vigilância do espaço exterior (GEODSS), cujos textos em português e inglês acompanham o presente aviso».
É o seguinte o texto, em português, da nota dirigida naquela data (27 de Março de 1984) pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal ao embaixador dos Estados Unidos da América:
Tenho a honra de me referir às conversações recentemente havidas entre altos funcionários dos nossos dois Governos, no contexto do artigo 1.º do Acordo de Auxílio Mútuo para a Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 1951, sobre a instalação em Portugal de uma estação electro-óptica em terra para vigilância do espaço exterior (GEODSS).
Em consequência daquelas discussões, e tendo em consideração a recente conclusão satisfatória de troca de notas acerca de assuntos de defesa e ajuda dos Estados Unidos, apraz-me comunicar que o meu Governo autoriza a instalação e operação de uma estação GEODSS em Portugal, localizada, em princípio, na vizinhança do marco geodésico MU.
Para a concretização deste projecto, tenho a honra de propor que sejam negociados entre o Ministério da Defesa de Portugal e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos os arranjos técnicos relativos a este assunto.
Tenho a honra de propor que, caso o Governo de V. Ex.ª concorde, esta nota, juntamente com a resposta confirmativa de V. Ex.ª constituam um acordo entre os nossos dois Governos.
8 - O Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 6 de Setembro de 1951, a que atrás se fez referência (cf. supra, 5, 6), foi feito em Lisboa em 18 de Maio de 1984 e aprovado em 5 de Julho de 1985, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 25/85 (no Diário da República, 1.ª série, n.º 243, de 22 de Outubro de 1985), sendo os respectivos textos em português e inglês publicados em anexo.
No preâmbulo do Acordo diz-se textualmente:
O Ministro da Defesa Nacional da República Portuguesa e o Secretário da Defesa dos Estados Unidos da América:
Reconhecendo que o Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951 entre Portugal e os Estados Unidos da América, e suas alterações, prevê a criação de instrumentos de execução;
Considerando a conveniência em estabelecer um novo Acordo Técnico para substituir o Acordo Técnico de 15 de Novembro de 1957;
Atendendo à troca de notas entre os dois Governos, datadas de 13 de Dezembro de 1983, em relação ao Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951 e suas alterações;
Tendo presente o espírito de amizade e cooperação que tem norteado as relações entre os dois países;
Salientando ser de interesse mútuo intensificar a cooperação e assistência militares no quadro do Tratado do Atlântico Norte.
Contém o Acordo onze artigos e dez anexos, subordinados às seguintes epígrafes: artigo I - «Direitos de utilização»; artigo II - «Soberania»; artigo III - «Assistência militar dos Estados Unidos»; artigo IV - «Comando e relações funcionais»; artigo V - «Estatuto das Forças»; artigo VI - «Responsabilidade pela construção, manutenção e respectivos custos»; artigo VII - «Direitos de propriedade»; artigo VIII - «Aquisições»; artigo IX - «Instrumentos de execução»; artigo X - «Textos autênticos e entrada em vigor»; artigo XI - «Alterações e duração»; anexo A - «Facilidades»; anexo B - «Pessoal dos Estados Unidos nos Açores»; anexo C - «Operações de voo»; anexo D - «Serviços de tráfego aéreo e da Base Aérea»; anexo E - «Defesa, segurança e policiamento»; anexo F - «Facilidade portuária na Praia da Vitória»; anexo G - «Comunicações de serviço móvel marítimo nos Açores»; anexo H - «Estatuto do pessoal»; anexo I - «Regime aduaneiro e fiscal»; anexo J - «Serviços de saúde».
No artigo I prescreve-se, nomeadamente:
1 - Portugal confirma que, em caso de se desencadearem hostilidades que dêem lugar à aplicação das disposições do Tratado do Atlântico Norte, as Forças Armadas dos Estados Unidos da América podem utilizar, na Região Autónoma dos Açores (daqui em diante designada por Açores), as facilidades necessárias para a condução das operações de harmonia com as recomendações dos organismos competentes da Organização do Tratado do Atlântico Norte e nos termos do presente Acordo.
2 - Portugal autoriza os Estados Unidos da América a preparar e manter em tempo de paz, em colaboração com as autoridades portuguesas, as facilidades descritas no anexo A, para que as mesmas possam estar prontas para utilização em tempo de hostilidades a que se refere o n.º 1.
3 - Portugal autoriza, de acordo com as disposições do anexo B, o estacionamento transitório, na Base Aérea das Lajes e nas suas facilidades de apoio, do pessoal militar e civil dos Estados Unidos da América necessário para a preparação, manutenção, utilização e apoio destas facilidades e para a execução e apoio das actividades referidas no n.º 4.
4 - Portugal autoriza, em tempo de paz, o treino, em regime de rotação, das forças aéreas e da aviação naval dos Estados Unidos da América destinadas a operar nos Açores, em tempo de hostilidades a que se refere o n.º 1, e a execução das seguintes missões como preparação para as citadas hostilidades: apoio em rota dos aviões e navios em trânsito; patrulhamento marítimo; defesa aérea a longa distância; comando, controle e comunicações;
busca e salvamento; meteorológicas.
Preceitua o artigo X que «o Acordo entrará em vigor depois das partes terem comunicado uma à outra, por escrito, que estão cumpridos os respectivos requisitos constitucionais. O Acordo Técnico de 15 de Novembro de 1957 cessará a sua vigência na data em que o presente Acordo entrar em vigor».
E, por seu turno, o artigo XI dispõe que «este Acordo pode ser alterado em qualquer altura por ulterior acordo entre o Governo de Portugal e o Governo dos Estados Unidos e permanecerá em vigor enquanto durar a autorização constante das trocas de notas de 13 de Dezembro de 1983 relativas ao Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951».
9 - O Acordo entre o Ministério da Defesa Nacional de Portugal e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, respeitante ao emprego de cidadãos portugueses pelas Forças dos Estados Unidos da América nos Açores, também já atrás referido (cf. supra, 5 e 6), foi feito em Lisboa em 9 de Outubro de 1984 e em Washington, D. C., em 16 de Outubro de 1984, e aprovado em 5 de Julho de 1985, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 24/85 (no Diário da República, 1.ª série, n.º 220, de 24 de Setembro de 1985), sendo os respectivos textos em português e inglês publicados em anexo.
Além do preâmbulo, é este Acordo constituído por 96 artigos e 3 anexos. Os artigos estão distribuídos por capítulos, subordinados às seguintes epígrafes:
capítulo I - «Âmbito e disposições aplicáveis»; capítulo II - «Classificação e categorias profissionais»; capítulo III - «Inscrição e recrutamento do pessoal»;
capítulo IV - «Direitos e deveres das partes»; capítulo V - «Comissão representativa de trabalhadores»; capítulo VI - «Prestação de trabalho»;
capítulo VII - «Suspensão da prestação de trabalho»; capítulo VIII - «Remuneração»; capítulo IX - «Sanções e regime disciplinar»; capítulo X - «Cessação do contrato de trabalho»; capítulo XI - «Higiene e segurança dos trabalhadores»; capítulo XII - «Queixas, reclamações e recursos»; capítulo XIII - «Disposições diversas». Os anexos regulam as seguintes matérias: anexo I - «Tabelas de salários»; anexo II - «Bónus de língua inglesa»; anexo III - «Transportes».
Nos termos do artigo 1.º, «o presente regulamento constitui um acordo entre o Ministério da Defesa Nacional de Portugal e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América», que revê as relações de trabalho entre as Forças dos Estados Unidos da América nos Açores (USFORAZ) e seus trabalhadores portugueses (n.º 1) e se aplica a «todos os trabalhadores portugueses directamente pagos pelas USFORAZ» (n.º 2). No n.º 3 do mesmo artigo acrescenta-se que «o presente Acordo está conforme com as disposições da lei interna portuguesa sobre trabalho, organização sindical e segurança social».
No que respeita à sua vigência, estabelece o primeiro período do n.º 1 do artigo 96.º que «o presente regulamento e os seus anexos entram em vigor no início do primeiro período de pagamento que se seguir à sua assinatura».
Encerrado o quadro descritivo global cujo desenho antecedentemente se anunciara, e à luz das aquisições entretanto através dele recebidas, importa agora passar à apreciação directa das diversas matérias postas no pedido.
Todavia, tendo em atenção que na resposta do Governo se começou por contestar a sindicabilidade pelo Tribunal Constitucional dos acordos, por troca de notas, entre os Governos de Portugal e dos Estados Unidos da América, de 13 de Dezembro de 1983 e de 27 de Março de 1984, por, em qualquer dos casos, estarmos em presença de um tratado-contrato e não de um tratado-lei, cabe, liminarmente, decidir esta matéria.
O que passa a fazer-se.
II - Uma questão prévia
1 - A classificação dos tratados em tratados-leis e tratados-contratos é das mais clássicas na doutrina. Dos autores portugueses, fazem-lhe referência, entre outros, André Gonçalves Pereira, Curso de Direito Internacional Público, capítulo II, secção III, n.º II, 2.ª edição, 1970; J. Silva Cunha, Direito Internacional Público, n.º 43, 1981; Adriano Moreira, Direito Internacional Público, capítulo II, § 5.º, n.º 2, 1983, e Albino de Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, capítulo II, II, n.º 3, 2.ª edição, 1985.Dos autores estrangeiros podem citar-se Charles Rousseau, Droit international public, tome I, n.º 45, Édition Sirey, Paris Ve, 1970; Antonio Truyol, Fundamentos de Derecho Internacional Publico, § 29, Editorial Tecnos, Madrid, 1977; Nguyen Quoc Dinh, Patrik Daillier e Alain Pellet, Droit international public, n.º 78, 2e édition, L. G. D. J., Paris, 1980; António Augusto Cançado Trindade, Princípios do Direito Internacional Contemporâneo, parte I, capítulo I, n.º III, Editora Universidade de Brasília, 1981, e Suzanne Bastid, Les traités dans la vie internationale - Conclusion et effets, Paris, 1985, p. 21.
Sobre a distinção existente entre aqueles dois tipos de tratados, escreve Gonçalves Pereira:
No tratado-lei dá-se a criação de uma regra de direito, pela vontade conforme das partes. No tratado-contrato, as vontades são divergentes, não surgindo assim a criação de uma regra geral de direito, mas a estipulação recíproca das respectivas prestações e contraprestações. Esta classificação tem uma certa analogia com os termos correspondentes do direito interno. [Cf. ob. cit., p.
139.] Por seu turno, Azevedo Soares, sobre o mesmo tema, pronuncia-se assim:
É habitual falar-se ainda da distinção entre tratados-leis e tratados-contratos.
Enquanto estes seriam semelhantes aos contratos de direito interno, criando situações opostas de carácter subjectivo (p. ex., os tratados de comércio), nos primeiros, as partes emitiram, não vontades convergentes e contrapropostas, mas antes um único feixe de vontades paralelas, no mesmo sentido, criando, assim, regras gerais e objectivas, tal como acontece com os actos normativos de direito interno. [Cf. ob. cit., p. 154.] E sobre aquela distinção Charles Rousseau faz os seguintes destaques:
Elle a été établie en partant des fonctions juridiques que poursuivent les traités:
réalisation d'une operation juridique (traités-contrats) ou établissement de règles de droit (traités-lois). Les traités-contrats (ex.: traités d'alliance, de commerce, de delimitation, de cession territoriale, etc.) sont des actes de caractère subjectif, engendrant des prestations réciproques à la charge des États contractants dont chacun désire respectivement des choses différents.
Quant aux traités-lois ou traités normatifs, leur objet est de poser une règle de droit objectivement valable. Ils se caractérisent par l'identité du contenu de la volonté des signataires (ex.: déclaration de Paris du 16 avril 1856, conventions de la Haye du 29 juillet 1899 et du 18 octobre 1907, Pacte de la Société des Nations du 28 juin 1919, Carte des Nations Unies du 26 juin 1945). [Cf. ob. cit.
p. 68.] A verdade, porém, é que a distinção entre tratados-leis e tratados-contratos tem sido doutrinalmente muito contestada. Assim, Gonçalves Pereira reconhece-lhe apenas um «valor tendencial», chamando a atenção para o facto de haver «tratados híbridos»; Silva Cunha atribui-lhe apenas «valor pedagógico ou didáctico»; Azevedo Soares salienta a sua «imprecisão», pois, «muitas vezes, as convenções apresentam um carácter híbrido»; Charles Rousseau afirma que ela não tem senão um «interesse descritivo e metodológico»; Nguyen Quoc Dinh, Patrik Daillier e Alain Pellet ensinam que ela apresenta «um certo interesse histórico e sociológico», mas não tem qualquer alcance jurídico; enfim, António Augusto Cançado Trindade observa que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) «rejeita as classificações abstractas de tratados, tão comuns no passado (como, v. g., a distinção entre traité-contrat e traité-loi)».
Como quer que seja, e no plano concreto da questão agora em análise, importa averiguar se os questionados Acordos por troca de notas contêm normas para o efeito de poderem ser sujeitas a juízo de constitucionalidade.
2 - A solução do problema assim colocado depende essencialmente do conceito constitucional de norma para efeitos de fiscalização de constitucionalidade. Importa, pois, apurar os precisos contornos desse conceito para, em seguida, verificar se os textos dos Acordos cuja constitucionalidade foi posta em crise são ou não subsumíveis ao juízo do Tribunal Constitucional.
A questão em apreço foi já objecto de ampla indagação da nossa jurisprudência constitucional.
Desde logo a Comissão Constitucional dela se ocupou explicitamente em diversas ocasiões, nomeadamente nos pareceres n.os 3/78, 6/78 e 13/82 (Pareceres, vol. 4.º, pp. 221 e 303 e segs., e vol. 19.º, pp. 149 e segs.).
E pode dizer-se que aquela Comissão firmou doutrina no sentido de que o conceito de norma, para o efeito de fiscalização da constitucionalidade, não abrange apenas os preceitos gerais e abstractos, mas também todo e qualquer preceito, ainda que de carácter individual e concreto, contido em diploma legislativo, mesmo quando constitua materialmente puro acto administrativo.
No parecer 3/78, depois de se afirmar que os preceitos das chamadas leis-medidas ou leis-providências também estão abrangidos na fiscalização de constitucionalidade por serem ainda «normas jurídicas», pondera-se:
Dúvida mais consistente reporta-se a uma espécie de normas contidas em diplomas do género mencionado (leis medida ou leis providência) constituída por aquelas normas que contenham actos administrativos [...] (leis pessoais em sentido estrito e rigoroso).
Tais normas limitar-se-iam a aplicar certa norma anterior, do mesmo ou de outro diploma, tal como faria a Administração ou a jurisdição por acto separado, só com a diferença de se conter dentro de um acto de força formalmente superior. Não seriam, portanto, normas jurídicas, mas actos administrativos ou jurisdicionais; não faria sentido declarar com força obrigatória geral um acto que, por si, não dispunha desta eficácia, mas de uma eficácia pessoal ou individual; e não se veria a utilidade que tal declaração pudesse vir a ter.
Esta argumentação não procede.
Já vimos que o facto de o acto administrativo (se é que assim pode qualificar-se) se conter em norma com força legal e, portanto, geral (com eficácia erga omnes e não apenas inter partes) é suficiente para lhe conferir o carácter de norma para o efeito do n.º 1 do artigo 281.º da Constituição.
[Pareceres, cit., p. 229, itálicos originários.] Esta doutrina, a doutrina, em suma, de que, para o efeito da fiscalização da constitucionalidade, havia de se fazer apelo a um conceitos formal, e não a um conceito material de norma, acha-se especialmente sancionada e desenvolvida no parecer 13/82. A esse respeito, aí se escreveu, com referência ao artigo 218.º, n.º 1, da versão originária da Constituição:
Antes de mais, é esse o significado mais corrente ou imediato da expressão - aquele que a associa (abstraindo agora das normas de direito não escrito) à representação de um «preceito» ou «disposição» estabelecido por acto do poder legislativo ou de um poder regulamentar, e constante do diploma que incorpora esse acto. E esta consideração terá maior valimento se puder dizer-se que a nossa Constituição não fornece «qualquer apoio para uma definição material de lei, como acto legislativo geral e abstracto», e quando a própria distinção entre os conceitos de lei em sentido material e de lei em sentido formal se revela em crise na doutrina.
E logo a seguir:
Seja como for, é decerto seguro e indiscutível que a Constituição, ao prever o controle da constitucionalidade das «normas» jurídicas e, ao fazê-lo, quer no artigo 281.º quer no seguinte, teve em vista, não toda a actividade dos poderes públicos, mas apenas um sector dela, a saber, o que se traduz na emissão de regras de conduta ou padrões de valoração de comportamento (i. e., de «normas»): deste modo, fora deste específico controle ficam os puros actos de aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos administrativos, stricto sensu.
Mas de imediato se contrapunha:
Simplesmente - e este outro argumento será, em nosso modo de ver, decisivo -, cumpre atentar em que um preceito legal que rege para um caso concreto, e que nessa medida se apresenta com uma eficácia equivalente à de um acto administrativo, nunca é um puro acto de «aplicação» do direito preexistente, pois que simultaneamente se traduz num acto de «criação» de direito novo: é que nele estabelece-se também a regra aplicável ao caso, regra que muitas vezes (se não normalmente) constitui um desvio ou uma excepção às que de outro modo seriam aplicadas, mas que justamente se torna necessária para conferir à providência administrativa adaptada o seu mesmo fundamento (de validade «legal» claro).
E em nota esclarecia-se e reforçava-se aquela asserção:
De todo o modo, ainda quando o preceito em causa não representa qualquer desvio ao direito anterior, e nada lhe acrescenta prima facie, não deixa ele de produzir também um efeito normativo: o de tornar de antemão certo e indiscutível esse direito, no caso concreto.
De tudo isto se concluía que mesmo um preceito ou disposição legal de conteúdo individual e concreto e com eficácia consumptiva contém implícita uma «norma» que não deve ser subtraída à possibilidade de controle previsto no artigo 218.º, n.º 1, da Constituição.
3 - Também o Tribunal Constitucional, depois de haver tratado incidentalmente a questão (cf. os Acórdãos n.os 11/84 e 38/84, Diário da República, 2.ª série, de 8 de Maio de 1984, e Diário da República, 1.ª série, de 7 de Maio de 1984), desenvolveu-a com especial incidência no Acórdão 26/85 (Diário da República, 2.ª série, de 16 de Abril de 1985.) Aqui se assinalou que a doutrina da Comissão Constitucional mantém hoje, revista a Constituição, uma fundamental validade.
E pelas razões seguintes:
a) Com efeito, se é inquestionável que todo o sistema de fiscalização da constitucionalidade só pode ter por objecto normas (cf. o teor dos artigos 277.º e seguintes da Constituição), não é menos verdade que na averiguação e determinação do que seja «norma», para esse efeito, não pode partir-se de uma noção material, doutrinária e aprioristicamente fixada, desse conceito. E, designadamente, não pode partir-se da ideia clássica que liga ao mesmo conceito as notas da «generalidade» e da «abstracção».
Na verdade, e desde logo, é hoje cada vez mais questionado, na própria doutrina, que tais notas constituem características infungíveis do conceito de «norma jurídica». Assim, Norberto Bobbio, por exemplo, sublinha o «significado generalíssimo» que o termo adquiriu na linguagem técnica dos juristas e salienta a sua utilização para designar também os imperativos «que se referem a sujeitos individuais (e não apenas a uma categoria de indivíduos) e a acções concretas (e não apenas a uma categoria de acções)» (artigo «Norma giuridica», in Novissimo Digesto Italiano, vol. XI, pp. 331 e 333; itálicos acrescentados). Por sua vez, Lívio Paladin afirma ser hoje havida como «enganadora e inconsistente» a definição de norma na base das referidas características, e - considerando que «na sistematização hoje dominante (quando mais não seja entre os filósofos), as normas gerais e as especiais, as excepcionais ou até as individuais, tornam-se espécies de um único género» - informa, a concluir: «Em linha de princípio, está a desenvolver-se, cada vez mais, entre os constitucionalistas, a tese de que a toda a disposição contida num acto-fonte, independentemente do seu grau de abstracção, corresponde por definição uma norma jurídica para todos os efeitos previstos no ordenamento vigente [...]» (v. «La Legge come norma e come provvedimento», Giurisprudenza Costituzionale, 1969, pp. 871, 873 e 882; itálicos acrescentados).
Por outro lado, se considerarmos a prática constitucional do nosso tempo, assiste-se por toda a parte - e o caso português não é excepção - à proliferação do fenómeno ou da figura das «leis-medidas» ou «leis-providências» (Massnahmegesetze, leggiprovvedimenti), as quais traduzem a necessidade, porventura insuprível, da intervenção directa do poder legislativo na complexa gestão político-administrativa (nas áreas económica, social, etc.) hoje exigida ao Estado, e as quais se caracterizam, pelo menos em larga parte do seu conteúdo, por uma índole concreta e individualizada. Ora, não faria sentido que tais leis - ou as «normas» que as integram - escapassem ao específico controle da constitucionalidade, sobretudo sendo certo que no seu âmbito é ainda maior o risco da desatenção e do desrespeito pelas exigências constitucionais.
b) Assim, o que há-de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos 277.º e seguintes da Constituição, é um conceito funcional de «norma», ou seja, um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido.
Pois bem: como a Comissão Constitucional já havia acentuado, o que se tem em vista com esse sistema é o controle dos actos do poder normativo do Estado (lato sensu) - e em especial do poder legislativo -, ou seja, daqueles actos que contêm uma «regra de conduta» ou um «critério de decisão» para os particulares, para a Administração e para os tribunais.
Não são, por conseguinte, todos os actos do poder público os abrangidos pelo sistema de fiscalização da constitucionalidade prevista na Constituição. A ele escapam, por um lado (e como já a Comissão Constitucional salientara), as decisões judiciais e os actos da Administração sem carácter normativo, ou actos administrativos propriamente ditos, e, por outro lado, os «actos políticos» ou «actos de governo», em sentido estrito (como, v. g., os actos do Presidente da República respeitantes à dissolução da Assembleia da República, à nomeação do Primeiro-Ministro, etc.). Uns e outros, na verdade, já não serão actos «normativos», mas actos de aplicação, execução ou simples utilização de «normas» - isto é, de regras de conduta ou critérios de decisão -, seja de normas infraconstitucionais (como normalmente acontecerá com os primeiros), seja de normas constitucionais (como é característico dos segundos).
Onde, porém, um acto do poder público for mais do que isso e contiver uma regra de conduta para os particulares ou para a Administração, ou um critério de decisão para esta última ou para o juiz, aí estaremos perante um acto «normativo», cujas injunções ficam sujeitas ao controle de constitucionalidade.
Ora isto é o que justamente acontece com os preceitos legais de conteúdo individual e concreto, ainda mesmo quando possuam eficácia consumptiva.
Podem eles, na verdade, conter ou esgotar a sua própria execução: nem por isso, no entanto, deixam de credenciá-la normativamente (legalmente) e de fornecer o critério para a sua apreciação sub specie juris. E isto ainda quando representem uma aparente desnecessidade normativa, atenta à existência de preceito geral anterior eventualmente aplicável: é que este outro preceito, em toda a medida em que por eles for «coberto» e «substituído», passa então a ser irrelevante para o caso.
Ao fim e ao cabo o que sucede é que também os preceitos com a natureza agora considerada têm como parâmetro de validade imediato não a lei («outra» lei), mas a Constituição. Nada justifica, por consequência, que o seu exame escape ao controle específico da constitucionalidade - é dizer, à jurisdição e à competência deste Tribunal.
4 - Esta orientação veio a ser ulteriormente assumida pelo Tribunal Constitucional em diversos acórdãos, podendo assim afirmar-se ser tradutora de um entendimento jurisprudencial pacífico e uniforme.
À luz deste entendimento das coisas não existe qualquer impedimento constitucional ou legal que retire os Acordos em causa, isto é, os Acordos por troca de notas a que na resposta do Governo se atribui a natureza doutrinal de tratados-contratos, no âmbito da sindicância deste Tribunal.
E, assim sendo, por se desatender a questão prévia antes suscitada, vai agora passar-se à apreciação das diferentes matérias postas no pedido, respeitando o critério de elencação que aí se seguiu.
III - Acordo, por troca de notas, Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro
de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados
Unidos da América.
1 - Sustenta-se no pedido que as normas deste Acordo, reportando-se a matérias relativas «a compromissos militares e de defesa», se inscrevem no âmbito da competência parlamentar, em obediência ao disposto no artigo 164.º, alínea i), da Constituição, na qual se estatui competir à Assembleia da República «aprovar os tratados que versem matéria da sua competência legislativa reservada, os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras, os respeitantes a assuntos militares, e ainda quaisquer outros que o Governo entenda submeter-lhe».Como é sabido, o artigo 8.º, n.º 2, da Constituição estabelece um regime de recepção automática, mas condicionada, das normas do direito internacional público convencional internacionalmente vinculativas do Estado Português, ou seja, dos tratados e acordos internacionais que abranjam Portugal, exigindo-se para tanto que as convenções internacionais tenham sido «regularmente ratificadas ou aprovadas», isto é, aprovadas ou ratificadas em conformidade com as regras constitucionais e publicadas no Diário da República.
A formulação constitucional utilizada neste preceito - convenções internacionais - traduz um sentido amplo do conceito, compreendendo tanto os tratados sujeitos a aprovação da Assembleia da República [nos casos contemplados no artigo 164.º, alínea i)] ou do Governo [nos restantes casos, ou seja, nos que se acham previstos no artigo 200.º, n.º 1, alínea c)] e a ratificação do Presidente da República [artigo 138.º, alínea b)], como os acordos sujeitos tão-somente à aprovação do Governo [artigo 200.º, n.º 1, alínea c)].
Na verdade, acompanhando Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., 2.ª edição, pp. 183 e 184), pode dizer-se que o texto constitucional, infringindo a tradição representativa, que exige a aprovação parlamentar dos tratados como condição da sua ratificação pelo Chefe do Estado, «não obriga à aprovação de todos os tratados pela AR, pois também o Governo tem competência para aprovar, não só as convenções internacionais em forma simplificada ('acordos internacionais', na terminologia constitucional), como é usual em direito comparado, mas também tratados internacionais propriamente ditos (artigo 200.º-C)».
Simplesmente, no âmbito da competência política do Governo respeitante à aprovação dos acordos e de tratados internacionais importa distinguir duas situações, consoante se trate de aprovação para ratificação dos tratados solenes ou da aprovação de acordos em forma simplificada, que não carecem de ratificação, sendo suficiente a sua aprovação. Enquanto a aprovação de tratados, que tradicionalmente pertencia à competência exclusiva do Parlamento, é compartilhada pela Assembleia da República e pelo Governo, a aprovação dos acordos, por força do disposto no artigo 200.º, n.º 1, alínea c), parece pertencer sempre à competência do Governo.
Esta disciplina constitucional pressupõe, porém, num plano de inteira harmonização dos respectivos princípios, a distinção material entre acordos e tratados, a qual, na ausência de uma definição vinculativa, deve recorrer à definição dos dois conceitos correntes no direito internacional, podendo dizer-se que, em geral, «se impõe a forma de tratado quando se pretende uma disciplina primária semelhante à das leis internas, e se estabelece a forma de simples acordo para os instrumentos diplomáticos executivos (executive agreements) de tratados já celebrados. De certo modo, esta distinção reconduz-se à ideia do valor legislativo dos tratados e do valor regulamentar dos acordos e tem de confrontar-se em cada caso concreto com o objectivo prosseguido pelas partes contratantes ao celebrarem uma convenção internacional» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 293; cf. também Jorge Miranda, «As actuais normas constitucionais e o direito internacional», in Nação e Defesa, ano X, n.º 36, pp. 36 e segs., e Azevedo Soares, ob. cit., pp.
123 e segs.).
Que ilações se podem extrair dos desenvolvimentos antecedentes relativamente aos vícios de legitimidade constitucional que no pedido se assacam ao Acordo agora em apreciação? Antes de tudo, porém, importa deixar rigorosamente assinalado o percurso seguido pelas normas em causa, a sua génese e vicissitudes formativas vistas à luz do seu enquadramento histórico e sistemático.
Só depois poderá ser concedida resposta à interrogativa que se deixou em suspenso.
Vejamos então.
2 - Como já houve ensejo de se assinalar (cf. supra, I, 6), o Acordo, por troca de notas, Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América, que deriva do Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951, e iniciou a sua vigência em 4 de Fevereiro de 1984, previa que a utilização dessas facilidades fosse regulada por novos arranjes técnicos, caducando o Acordo Técnico de 15 de Novembro de 1957 e o Acordo Laboral de 20 de Maio de 1976 na data em que entrassem em vigor os novos arranjos técnicos sobre a utilização das facilidades nos Açores e sobre assuntos laborais.
Como também já se observou, em 18 de Maio de 1984 foi assinado o Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa, além do mais por se reconhecer que o Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951 e suas alterações prevêem a criação de instrumentos de execução, por se considerar a conveniência de estabelecer um novo Acordo Técnico para substituir o anterior, datado de 15 de Novembro de 1957, e para atender ao que foi assumido na troca de notas de 13 de Dezembro de 1983.
Este Acordo Técnico, aprovado para ratificação pela Resolução 25/85, da Assembleia da República, veio a iniciar a sua vigência em Dezembro de 1985, bem podendo dizer-se, como decorre desde logo do seu artigo XI, haver recebido materialmente o Acordo, por troca de notas, de 13 de Dezembro de 1983 - o Acordo «permanecerá em vigor enquanto durar a autorização constante da troca de notas, de 13 de Dezembro de 1983 relativas ao Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951».
A aprovação parlamentar deste novo Acordo Técnico não pode deixar de envolver imediatas e fundas consequências no plano da questão agora em apreço. Com efeito, há-de dizer-se que no período ulterior a Dezembro de 1985, isto é, após a sua entrada em vigor, os vícios de inconstitucionalidade assacados no pedido ao Acordo, por troca de notas, de 13 de Dezembro de 1983 devem ter-se por irrelevantes.
E tocantemente ao período que medeia entre o início da vigência do Acordo por troca de notas (4 de Fevereiro de 1984) e Dezembro de 1985, qualquer hipotética declaração de inconstitucionalidade imporia, manifestamente, por força de razões de segurança jurídica e interesse público e em conformidade com o disposto no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, a imperiosa necessidade de limitar os respectivos efeitos.
À luz deste entendimento das coisas deve reconhecer-se que a aprovação pela Assembleia da República do Acordo Técnico retirou qualquer sentido e significado a eventuais vícios do Acordo por troca de notas, razão pela qual não existe interesse jurídico no conhecimento do pedido na parte que se vem considerando.
Assim sendo, e agora se retoma a interrogativa que atrás se deixou em suspenso, é de todo inútil responder às questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos requerentes a propósito desta matéria.
IV - Acordo, por troca de notas, entre o Governo Português e o Governo
dos Estados Unidos da América, pelo qual se autoriza o Governo dos
Estados Unidos da América a instalar em território nacional uma estação
electro-óptica para vigilância do espaço exterior (GEODSS).
1 - Sustenta-se no pedido que o Governo não dispõe de competência para autorizar a instalação e operação em território nacional de uma estação GEODSS, que explicitamente se insere, no quadro das relações entre Portugal e os Estados Unidos, nos planos militares e de defesa, verificando-se assim violação do disposto no já transcrito artigo 164.º, alínea i), da Constituição.
Em conformidade com o texto das respectivas notas, inscreve-se este Acordo «no contexto do artigo 1.º do Acordo de Auxílio Mútuo para a Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 1951», aprovado pelo Decreto-Lei 38530, de 24 de Novembro de 1951.
Neste preceito, como já se referiu e agora de novo se recorda, expressamente se dispõe que «cada governo, de pleno acordo com o princípio de que a recuperação económica é essencial à paz e segurança internacionais e lhe deve ser dada nítida prioridade, porá ou continuará a pôr à disposição do outro, ou a favor de quaisquer outros governos, conforme as Partes acordarem em cada caso, o equipamento, materiais, serviços ou outro auxílio militar que o Governo que forneça esta assistência possa autorizar e de harmonia com os termos e condições que sejam acordados».
Assumindo embora a natureza de um acto internacional de índole militar, não pode dizer-se de modo peremptório e definitivo, desde logo pelo teor do próprio conteúdo do seu texto, que o Acordo, por troca de notas, de 27 de Março de 1984 traduza uma primeira volição política do Estado Português na matéria a que se reporta.
Ao contrário, há-de aceitar-se que o alcance das normas aqui em causa possa integrar-se no âmbito do «auxílio mútuo para a defesa» a que se refere o artigo 1.º do Acordo de 5 de Janeiro de 1951, devendo assim a sua disciplina caracterizar-se como normação secundária, por estar associada ao cumprimento de um instrumento diplomático anterior.
E a ser exacto este posicionamento, aceitando-se que este Acordo assume a natureza de executive agreement de um tratado já celebrado, então nada obstacularia à sua aprovação governamental (cf., sobre esta matéria, Gomes Canotilho, Fidelidade à República ou Fidelidade à NATO? - O Problema das Credenciações e o Poder Discricionário da Administração Militar, Coimbra, 1987, p. 32), a entender-se que, pelo menos em tais casos, cabe na competência política do Governo aprovar acordos internacionais que versem sobre assuntos militares.
2 - Aceitando-se que o Acordo podia revestir forma simplificada, inscrevendo-se no âmbito da competência governamental, cabe agora indagar se a ausência de aprovação mediante decreto não implica violação do disposto no artigo 200.º, n.º 2, da Constituição.
Segundo o entendimento de Nuno Bessa Lopes (A Constituição e o Direito Internacional, 1979, p. 62), «há instrumentos bilaterais que são tradicionalmente concluídos e publicados sem dependência de aprovação por decreto. Tem então lugar a aprovação do Governo pelo sistema diplomático universal de troca de notas. As notas são trocadas entre o Ministro dos Negócios Estrangeiros e o chefe da missão diplomática acreditado no país daquele ministro. A aprovação do acordo, depois de devidamente negociado e concluído, realiza-se dentro das funções normais do Ministro dos Negócios Estrangeiros e do chefe da missão. As notas trocadas são formais e não verbais, isto é, os respectivos governos comprometem-se mediante as assinaturas (é precisamente a aposição das assinaturas que dá o carácter formal às notas) dos seus representantes, no exercício das suas funções normais e permanentes, sem necessidade de plenos poderes especiais para o efeito. Os acordos por troca de notas são publicados por aviso na 1.ª série do Diário da República [...]».
Esta visão das coisas, se pode ter-se por consentânea com uma perspectiva própria do direito internacional, não se julga harmonizável com as exigências do texto constitucional no domínio da aprovação pelo Governo de tratados e acordos internacionais.
Dando-se conta desta desconformidade de ordens ou planos de execução, Jorge Miranda, ob. cit., p. 38, teve ensejo de escrever:
No que se reporta ao processo governamental de aprovação de tratados e acordos, saliente-se a necessidade constitucional de aprovação em Conselho de Ministros [artigo 203.º, n.º 1, alínea d), segunda parte], a qual traduz uma ideia de corresponsabilização de todo o Governo e, de certo jeito, de fiscalização intra-orgânica, e não já interorgânica (como nos tratados levados ao Parlamento). A prática, porém, tem sido de, em variadas circunstâncias, haver acordos por troca de notas e outras convenções não submetidas a aprovação do Conselho de Ministros, com os problemas que isso suscita.
De resto, a exigência de aprovação de acordos em forma simplificada inculca que para Portugal eles apenas se tornam vinculativos com tal aprovação (que a assinatura é feita sob reserva de aprovação ou que os efeitos de aprovação retroagem ao momento da assinatura).
É ao Governo que cabe a negociação e o ajuste das convenções internacionais por força do disposto no artigo 200.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, o que aliás constitui um desvio significativo em relação às soluções tradicionais nesta matéria.
O treaty making power pertencia ao Chefe do Estado, que o exercia directamente ou através dos seus representantes.
Aliás, sustenta a este respeito alguma doutrina (cf. Jorge Miranda, ob. cit., p.
35) que, «na lógica do próprio sistema semipresidencial e porque o Presidente representa a República e é ainda chamado a intervir aquando da ratificação, o Governo deve mantê-lo informado sabre a negociação de tratados internacionais [no âmbito do artigo 204.º, n.º 1, alínea c), que é mera explicitação desse princípio]. E nada parece excluir que, perante a informação recebida, o Presidente aconselhe o Governo acerca de quaisquer negociações em concreto, à luz dos valores constitucionais da independência nacional, da unidade do Estado e do regular funcionamento das instituições democráticas, que lhe cumpre assegurar (artigo 123.º)».
Mas, se as coisas assim se passam ou podem passar no plano da negociação e assinatura das convenções internacionais, diverso é o impositivo quadro de prescrições existentes no texto constitucional a propósito da sua aprovação, nomeadamente daquelas que se inscrevem no âmbito da competência política do Governo.
Com efeito, dispõe-se no artigo 200.º, n.º 2, da Constituição que «a aprovação pelo Governo de tratados e de acordos internacionais reveste a forma de decreto», o que significa a obrigatoriedade da emissão de um decreto simples (e não de um decreto-lei, como parece ser defendido por Jorge Miranda - cf.
ob. cit.), o qual deverá ser depois remetido ao Presidente da República para assinatura, nos termos do artigo 137.º, alínea b), da Constituição.
A exigência constitucional para a aprovação das convenções internacionais por parte do Governo de um mero decreto e não de um acto legislativo com a forma de decreto-lei está de acordo com o facto de a aprovação, quando pertence à Assembleia da República, ser traduzida em resolução e não em lei (artigo 169.º, n.º 4).
Como quer que seja, ao Presidente da República há-de ser sempre concedida a possibilidade de, em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade, e em conformidade com o disposto no artigo 278.º, n.º 1, da Constituição, poder desencadear o respectivo processo fiscalizativo, relativamente aos «acordos internacionais cujo decreto de aprovação lhe tenha sido remetido para assinatura», facto que manifestamente só poderá ocorrer se a aprovação desses acordos houver de revestir a forma de decreto, depois obrigatoriamente sujeitos ao Presidente da República para assinatura, com o inerente juízo de avaliação sobre a conformidade constitucional do respectivo texto.
Não pode assim acompanhar-se Nuno Bessa Lopes (ob. cit., p. 63) quando escreve:
A aprovação dos acordos por troca de notas faz-se com a recepção da última das notas, que, nos termos protocolares, deve ser a do Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo local, como é sempre declarado numa das suas cláusulas. Assim ensina o livro do diplomata sueco Hans Blix, The Treaty Maker's [Handbook, a p. 320, ao dizer: «It is agreed that your Note together with this reply constitute an Agreement between our two Governments on this subject and that Agreement will enter into force on the date of this reply.» E assim tem sido a prática tradicional do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Porém, no Diário da República, de 24 de Maio de 1977, aparece, ao que parece pela primeira vez, um decreto (o Decreto 77/77) a aprovar um acordo por troca de notas. Julga-se que esta sobreposição de aprovação de um acordo por troca de notas resulta de, na sua última cláusula, se fazer referência à comunicação do cumprimento das formalidades constitucionais para a sua entrada em vigor definitiva, uma vez que o acordo entrava em vigor provisoriamente na data da nota da resposta. A técnica a seguir não devia ser essa. O acordo por troca de notas deveria ser publicado por aviso [...] e posteriormente publicar-se novo aviso, anunciando que ambas as partes tinham cumprido «as respectivas formalidades constitucionais» (melhor dizendo, neste caso, legais), as quais, da parte portuguesa, eram apenas o ter-se tornado público, por aviso, o texto das notas formais (assinadas), havendo, porém, necessidade de anunciar a atitude da outra parte.
Este entendimento das coisas, se bem que possa considerar-se como tradutor do «sistema diplomático universal de troca de notas», não pode deixar de se considerar incompatível com os princípios estruturantes do nosso ordenamento constitucional e daí que haja de ser recusado.
Na verdade, não pode afirmar-se, como se faz na resposta do Governo, que, por força do disposto no artigo 8.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual «as normas e os princípios do direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português», se deve reconhecer, prima facie, a constitucionalidade dos acordos por troca de notas que traduzem uma prática universalmente consagrada, da qual é dado testemunho pelos artigos 11.º e 13.º da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados.
É que o princípio de direito internacional expresso naquelas disposições da Convenção de Viena apenas rege para a fase externa da sua celebração e não já para o processo interno, onde hão-de respeitar-se as formas constitucionalmente exigidas, e isto, desde logo, por força de um outro princípio de direito internacional.
Aliás, na própria resposta do Primeiro-Ministro reconhece-se que «a aprovação dos actos internacionais pelo Governo deve revestir a forma de decreto para que se torne possível a fiscalização preventiva da constitucionalidade desses actos pelo Presidente da República, uma vez que os decretos lhe são remetidos para assinatura. Esta é a razão de ser da imposição da forma de decreto, conforme Gonçalves Pereira justificou perante a Constituição de 1976 («O direito internacional na Constituição de 1976, Estudos sobre a Constituição, I, 1977, p. 42, nota 1)». E, como naquela resposta depois se conclui, no caso concreto do Acordo agora em causa a sua aprovação por decreto só não era necessária face à ausência de qualquer conteúdo normativo, insusceptível de sujeição a juízo preventivo de constitucionalidade, pressuposto que, como se viu no julgamento da questão prévia, não se teve por verificado.
3 - O Acordo por troca de notas cuja legitimidade constitucional se vem apreciando foi assinado em Lisboa em 27 de Março de 1984 e publicado por aviso no Diário da República, 1.ª série, de 4 de Maio de 1984.
A publicação das notas respectivas no Diário da República afasta desde logo o entendimento, que aliás nunca ninguém suscitou, de traduzirem simples textos de ajuste integrados na fase preliminar da negociação internacional.
Devendo haver-se tais notas como tradutoras de um acordo cuja aprovação não revestiu a forma de decreto, não pode deixar de se reconhecer a sua ilegitimidade constitucional, por força da violação do disposto no artigo 200.º, n.º 2, da Constituição.
V - Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e
os Estados Unidos da América de 6 de Setembro de 1951.
1 - Sustentaram os requerentes que as diversas normas deste Acordo e dos seus anexos que mereceram destaque no pedido violam, por força da fundamentação ali expendida, o texto constitucional.
Por seu turno, na resposta do Governo conclui-se no sentido de a petição ser prematura, devendo, em consequência, ser rejeitada por extemporaneidade.
Cabe, de imediato, passar à apreciação desta questão preliminar, cujo eventual atendimento poderá conduzir ao não conhecimento do mérito.
Vejamos então.
2 - No quadro do artigo 281.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, o pedido de fiscalização abstracta e sucessiva de constitucionalidade tem por objecto normas jurídicas perfeitas, isto é, normas inseridas em diplomas em relação aos quais o processo legislativo se completou plenamente.
Ora, e na linha de oposição formulada na resposta do Primeiro-Ministro, cabe averiguar se o pedido, ao tempo em que foi apresentado neste Tribunal e na parte que agora se sindica (normas do Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951), se dirigia efectivamente a normas jurídicas perfeitas - perfeitas para o efeito de fiscalização abstracta e sucessiva de constitucionalidade.
É que, se a resposta houver de ser negativa, então forçoso será concluir que o pedido em causa carecerá de objecto constitucionalmente admissível, pois que, na economia da Constituição, e nos termos definidos no seu artigo 278.º, apenas ao Presidente da República e aos Ministros da República assiste legitimidade para accionar os mecanismos de fiscalização constitucional dirigidos à avaliação de normas imperfeitas ou inacabadas.
O Tribunal Constitucional teve já ensejo de tratar de matéria similar à que agora se focaliza (cf. Acórdão 32/88, Diário da República, 2.ª série, n.º 86, de 13 de Abril de 1988), havendo sobre ela escrito o seguinte:
Segundo o artigo 8.º, n.º 2, da CRP, «as normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português».
Este preceito constitucional determina, pois, a penetração automática das convenções internacionais, sejam elas tratados ou acordos sob forma simplificada, na ordem interna portuguesa logo que preenchido o seguinte corpus de trâmites:
a) Aprovação e ratificação (para os tratados) ou mera aprovação (para os acordos);
b) Publicação no Diário da República, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, alíneas b), e) e h) da CRP, do texto das convenções - o que ocorre juntamente com a dos respectivos diplomas de aprovação - e ainda, para os tratados, dos avisos de ratificação (note-se, porém, que, à luz da versão originária da CRP, não era necessariamente obrigatória a publicação no jornal oficial dos avisos de ratificação); e c) Cumprimento ulterior de certas formalidades de contendo variável, impostas pela própria convenção ou, no silêncio desta, por princípio de direito internacional geral ou comum, e essencialmente destinadas à manifestação na ordem externa do consentimento do Estado Português em ficar vinculado por convenções internacionais (v. g., a troca ou o depósito de instrumentos de ratificação).
E mais adiante:
Não interessa precisar se o momento em que as normas de uma convenção internacional se hão-de considerar perfeitas, para efeitos de sobre elas passar a ser lícita a incidência de um pedido de fiscalização abstracta e sucessiva de constitucionalidade, há-de coincidir com o momento da publicitação interna do acto pelo qual o Estado Português exprime em definitivo a sua anuência (ratificação para os tratados e aprovação para os acordos) ou antes com o momento da sua recepção na ordem jurídica portuguesa.
À luz deste entendimento, quando o grupo de deputados requerentes apresentou neste Tribunal o pedido agora em causa - no dia 6 de Novembro de 1985 -, já as normas ali questionadas podiam haver-se como normas jurídicas acabadas? Em conformidade com o disposto no artigo X do Acordo Técnico, «o Acordo entrará em vigor depois de as partes terem comunicado uma à outra, por escrito, que estão cumpridos os respectivos requisitos constitucionais».
Ora, como se verifica, nomeadamente através dos documentos juntos com a resposta do Governo, o processamento das formalidades de cumprimento ulterior à publicação da Resolução da Assembleia da República n.º 25/85 obedeceu ao seguinte quadro descritivo:
a) Por aviso publicado no Diário da República, 1.ª série, de 7 de Dezembro de 1985, fez-se saber que o Acordo Técnico fora ratificado, ainda que sem menção da data do acto do Presidente da República, o qual teve lugar em 28 de Outubro do mesmo ano;
b) Em nota de 11 de Dezembro de 1985, o Ministério dos Negócios Estrangeiros comunicou à Embaixada dos Estados Unidos que fora publicado no dia 7 antecedente o aviso relativo à ratificação do Acordo Técnico, encontrando-se assim cumpridos os requisitos constitucionais referidos no seu artigo X;
c) Por seu turno, em nota de 23 do mesmo mês de Dezembro, e em referência à nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 11 desse mês, a Embaixada Americana informou o Governo Português de que tinham sido satisfeitos os requisitos constitucionais dos Estados Unidos respeitantes à vigência do Acordo Técnico e de que, por conseguinte, este entrara a vigorar nos termos do seu artigo X.
Tendo em atenção o teor deste preceito, pode assim afirmar-se que o Acordo Técnico iniciou a sua vigência em Portugal e nos Estados Unidos em 23 de Dezembro de 1985.
Assim sendo, quer se considere relevante, para os efeitos de sobre as normas agora em causa passar a ser lícita a incidência de um pedido de fiscalização abstracta e sucessiva de constitucionalidade, aquela última data, que é a da recepção do Acordo na ordem jurídica interna, quer se entenda antes conceder relevância à data da publicação do aviso relativo à ratificação no Diário da República - 7 de Dezembro de 1985 -, sempre haverá de se concluir que, aquando da formulação do pedido em 6 de Novembro de 1985, ainda tais normas não dispunham da natureza de normas perfeitas, dado não se ter ainda ultimado o processo complementar de formalidades a praticar, das quais aquela estava dependente.
Deve assim concluir-se, pelas razões aduzidas, que o pedido respeitante ao Acordo Técnico não pode ser apreciado por carecer de objecto constitucionalmente admissível.
VI - Acordo entre o Ministério da Defesa Nacional de Portugal e o
Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América respeitante ao
emprego de cidadãos portugueses pela Forças dos Estados Unidos da
América nos Açores.
1 - Sustentaram os requerentes que diversas normas deste Acordo, pelas razões oportunamente aduzidas, entraram em linha de colisão com o texto constitucional.Tal-qualmente na questão do Acordo Técnico, também neste domínio se sustenta na resposta do Governo que o pedido foi prematuramente apresentado.
Tendo presentes as considerações que no capítulo antecedente se teceram a propósito da exigência constitucional relativa à natureza das normas jurídicas sujeitas a fiscalização abstracta e sucessiva (normas perfeitas e acabadas), importa começar por conhecer esta alegação, dadas as consequências advenientes de um seu eventual atendimento.
2 - De harmonia com o disposto no artigo 96.º, n.º 1, do Acordo Laboral, «o presente regulamento e os seus anexos entram em vigor no início do primeiro período de pagamento que se seguir à assinatura».
Simplesmente, por parte de Portugal, a data da assinatura não pode constituir o dies a quo para efeito de contagem do tempo de entrada em vigor do Acordo, pela razão de este haver sido submetido à Assembleia da República, para posterior ratificação pelo Presidente da República.
A Resolução da Assembleia da República n.º 24/85, que aprovou, para ratificação, o Acordo Laboral, foi publicada no Diário da República, 1.ª série, de 24 de Setembro de 1985, tornando-se completa a declaração portuguesa com a ratificação pelo Presidente da República em 10 de Outubro seguinte, consoante aviso publicado no Diário da República, 1.ª série, de 12 de Dezembro do mesmo ano.
Por outro lado, como se assinala na resposta do Governo, pode agora repetir-se que a declaração portuguesa, sob forma de ratificação, trata-se de um acto receptício, isto é, de um acto que só produz efeitos a partir do momento em que chega ao conhecimento do destinatário. É o que decorre da teoria geral dos actos jurídicos e vem confirmado em Oppenheim's International Law, I, 1961, p. 916:
The mere signing or sealing of an instrument of ratification by the parties to a treaty is not enough to make it binding upon them. It is necessary that the instrument of ratification should be exchanged between them or deposited in some agreed place, and they do not take effect until they have been exchanged or deposited, unless the treaty stipulates that it shall come into operation upon the notification by a party that it has ratified it.
Tendo em atenção que o normal instrumento de comunicação entre os Estados são as notas diplomáticas, e não os avisos publicados no jornal oficial, o momento em que se completou internacionalmente a vinculação do Estado Português vem a ser a data da nota pela qual o Ministério dos Negócios Estrangeiros informou a Embaixada dos Estados Unidos de que o Presidente da República confirmou e ratificou o Acordo Laboral, ou seja, a data de 13 de Novembro de 1985, como se extrai de documento junto ao processo.
À luz do que vem de se referir e tendo em conta que o pedido deu entrada neste Tribunal no dia 6 de Novembro de 1985, também relativamente às normas do Acordo agora em apreciação se há-de afirmar que, nessa data, não dispunham ainda de natureza final de normas perfeitas porque o processo complementar de formalidades finais que haveriam de decorrer e de que aquela estava dependente não se encontrava ainda encerrado, quer se considere relevante, para o efeito de sujeição à fiscalização abstracta e sucessiva de constitucionalidade, aquela data de 13 de Novembro de 1985, que é a da recepção no direito interno do Acordo, quer se atribua relevância à data de 12 de Dezembro de 1985, data em que ocorreu a publicação no Diário da República do aviso relativo à ratificação.
Por estas razões impõe-se concluir que o pedido respeitante ao Acordo Laboral não pode ser apreciado por carecer de objecto constitucionalmente admissível.
VII - Limitação dos efeitos da inconstitucionalidade
1 - Declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas do Acordo, por troca de notas, respeitante à autorização de instalação em território nacional de uma estação electro-óptica para vigilância do espaço exterior (GEODSS), ela operaria, em princípio, ex tunc, nos termos do disposto no artigo 282.º, n.º 1, da Constituição.
Todavia, pode o Tribunal Constitucional, por força do que se dispõe no n.º 4 do mesmo preceito, quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, fixar os efeitos da inconstitucionalidade com alcance mais restrito.
Na situação em presença, particulares e especiais razões de segurança jurídica e de interesse público que tem a ver, nomeadamente, com eventuais arranjos técnicos, previstos no Acordo, e que já hajam sido negociados ou estejam em curso de negociação, aconselham que o Tribunal faça uso daquela faculdade, em ordem a que os efeitos da inconstitucionalidade se produzam tão-somente a partir da data da publicação do presente acórdão no jornal oficial.
VIII - A decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decidiu:a) Não tomar conhecimento do pedido relativamente à questão de inconstitucionalidade do «Acordo, por troca de notas, entre os Governos de Portugal e dos Estados Unidos da América Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América, ao abrigo do Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951», publicado por aviso no Diário da República, 1.ª série, n.º 103, de 4 de Maio de 1984;
b) Não tomar conhecimento do pedido relativo à questão de inconstitucionalidade de normas do «Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 6 de Setembro de 1951», aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 25/85, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 22 de Outubro de 1985;
c) Não tomar conhecimento do pedido relativo à questão de inconstitucionalidade de normas do «Acordo entre o Ministério da Defesa Nacional de Portugal e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, respeitante ao emprego de cidadãos portugueses pelas Forças dos Estados Unidos da América nos Açores», aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 24/85, publicada no Diário da República, 1.ª série, de 24 de Setembro de 1985;
d) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do «Acordo, por troca de notas, entre o Governo Português e o Governo dos Estados Unidos da América pelo qual se autoriza o Governo dos Estados Unidos da América a instalar em território nacional uma estação electro-óptica para vigilância do espaço exterior (GEODSS)», publicado por aviso no Diário da República, 1.ª série, de 4 de Maio de 1984, por violação do disposto no artigo 200.º, n.º 2, da Constituição.
Nos termos do artigo 282.º, n.º 4, da Constituição são limitados os efeitos da inconstitucionalidade, de modo a apenas se produzirem a partir da data da publicação do presente acórdão no Diário da República.
Lisboa, 13 de Julho de 1988. - Antero Alves Monteiro Dinis - José Manuel Cardoso da Costa - Messias Bento - José Magalhães Godinho - Raul Mateus (com declaração de voto quanto à limitação dos efeitos da inconstitucionalidade) - Luís Nunes de Almeida [com a declaração de que entendo que a aprovação do Acordo por troca de notas a que se refere a conclusão d) é da exclusiva competência da Assembleia da República, nos termos do disposto na alínea i) do artigo 164.º da Constituição - questão que o Tribunal não tem agora de deixar por inteiramente resolvida] - José Martins da Fonseca (vencido apenas quanto à questão prévia, por entender que dos acordos constantes das trocas de notas trocadas entre o Governo Português e o dos Estados Unidos não constam normas jurídicas, pelas razões constantes de várias declarações de voto que produzi noutros processos) - Mário de Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Vital Moreira (vencido, conforme declaração de voto junta) - Armando Manuel Marques Guedes.
Declaração de voto
1 - Entendi, tal como no acórdão, que se justificava, na moldura do artigo 282.º, n.º 4, da CRP, a limitação dos efeitos da inconstitucionalidade das normas do Acordo, por troca de notas, entre o Governo Português e o Governo dos Estados Unidos da América, respeitante à autorização de instalação em território nacional de uma estação electro-óptica para vigilância do espaço exterior (GEODSS)».Simplesmente - e esse foi o ponto em que divergi do acórdão a que esta declaração de voto se acha apendiculada - entendi ainda que à limitação de efeitos se deveria ter dado diversa conformação.
Precisando melhor, votei, nesse ponto, que a inconstitucionalidade só produzisse efeitos transcorridos que fossem dois meses sobre a data da publicação do acórdão no Diário da República.
2 - Na minha perspectiva, duas ordens de motivos justificavam plenamente uma limitação de efeitos desse nível:
Por um lado, e para situações em que a segurança jurídica e razões de equidade do interesse público de excepcional relevo o exijam, o artigo 282.º, n.º 4, da CRP confere ao Tribunal Constitucional o poder de proceder com a maior latitude, na ordem temporal, à limitação dos efeitos da inconstitucionalidade, pelo que se configura como constitucionalmente legítimo o uso dessa faculdade, de modo que os efeitos da inconstitucionalidade só se verifiquem em momento futuro, mesmo em momento ulterior ao da publicação do aresto [note-se, aliás, que o Tribunal Constitucional, em qualquer dos Acórdãos n.os 92/84 e 77/88 (publicados, respectivamente, no Diário da República, 1.ª série, n.os 258, de 7 de Novembro de 1984, e 98, de 28 de Abril de 1988), já se decidiu por uma limitação de efeitos da inconstitucionalidade em termos tais que esses mesmos efeitos acabaram por só se vir a produzir em data posterior à da publicação dos respectivos acórdãos no jornal oficial];
E, por outro lado, interesse público de excepcional relevo (em jogo está a imagem externa do País) imporia, na hipótese sub judice, que se fosse para uma solução deste tipo: durante o apontado período de dois meses, o Governo poderia facilmente ultrapassar a situação de desprestígio para o País adveniente do «rompimento», por inconstitucionalidade formal, de uma convenção internacional, remediando tal vício com a aprovação por decreto, e nesse meio tempo, do acordo em causa [artigo 200.º, n.os 1, alínea c), e 2, da CRP].
Raul Mateus.
Declaração de voto
1 - No projecto de acórdão que, na qualidade de primitivo relator, apresentei neste processo, e depois de expor o pedido feito pelos requerentes e respectivos fundamentos, bem como a posição defendida pelo Governo, fazia uma resenha dos acordos celebrados entre Portugal e os Estados Unidos da América, a partir do Acordo de auxílio mútuo para a defesa entre os dois países, assinado em Lisboa em 5 de Janeiro de 1951 (aprovado pelo Decreto-Lei 38530, de 24 de Novembro de 1951), e do Acordo de Defesa assinado entre os mesmos países em 6 de Setembro de 1951, conforme aviso da Direcção-Geral dos Negócios Políticos e da Administração Interna do Ministério dos Negócios Estrangeiros de 20 de Junho de 1952 (Diário do Governo, 1.ª série, n.º 136, da mesma data).Em seguida, examinava a questão levantada no parecer oferecido pelo Primeiro-Ministro quanto à sindicabilidade por este Tribunal do Acordo, por troca de notas, entre os Governos de Portugal e dos Estados Unidos da América Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América, ao abrigo do Acordo de Defesa de 6 de Setembro de 1951, assinado em Lisboa em 13 de Dezembro de 1983, bem como do Acordo, por troca de notas, entre os mesmos Governos, pelo qual foi autorizado o Governo dos Estados Unidos da América a instalar em território nacional uma estação electro-óptica para vigilância do espaço exterior (GEODSS), assinado em 27 de Março de 1984.
Depois de fazer referência à classificação dos tratados em tratados-leis e tratados-contratos, classificação que estava na base da posição, defendida pelo Governo, de não poderem os referidos acordos ser objecto de fiscalização de constitucionalidade - citava a propósito, entre os autores nacionais, Prof. André Gonçalves Pereira, Curso de Direito Internacional Público, capítulo II, secção III, n.º II, 2.ª edição, 1970; Prof. J. Silva Cunha, Direito Internacional Público, n.º 43, 1981; Adriano Moreira, Direito Internacional Público, capítulo II, § 5.º, n.º 2, 1983; Albino de Azevedo Soares, Lições de Direito Internacional Público, capítulo II, II, n.º 3, 2.ª edição, 1985, e, entre os autores estrangeiros, Charles Rousseau, Droit international public, t. I, nº 45, Édition Sirey, Paris Ve, 1970; Antonio Truyol, Fundamentos de Derecho International Público, § 29, Editorial Tecnos, Madrid, 1977; Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier e Alain Pellet, Droit international public, nº 78, 2e édition, L. G. D.
J., Paris, 1980, e António Augusto Cançado Trindade, Princípios do Direito Internacional Contemporâneo, parte I, capítulo I, n.º III, Editora Universidade de Brasília, 1981 -, concluía que o que importava era determinar se os questionados acordos continham normas para o referido efeito, isto é, para o efeito de poderem ser sujeitos a juízo de constitucionalidade. Assumi então a orientação a esse respeito defendida em geral pelo Acórdão deste Tribunal n.º 26/85, de 15 de Fevereiro (Diário da República, 2.ª série, n.º 96, de 26 de Abril de 1985): a objecção que em casos concretos tenho oposto a essa orientação - configurarem certos diplomas verdadeiros actos administrativos, passíveis de controle diferente do controle de constitucionalidade - não podia colocar-se quanto aos mencionados acordos.
2 - Nenhuma dúvida se levantando, assim, à competência do Tribunal para apreciar a constitucionalidade dos referidos acordos por troca de notas, passava ao exame da respectiva inconstitucionalidade, por violação do artigo 164.º, alínea i), da Constituição (competência da Assembleia da República para a respectiva aprovação) ou, ao menos, por violação do n.º 2 do artigo 200.º (obrigatoriedade de aprovação pelo Governo por meio de decreto).
O artigo 164.º, alínea i), atribui competência à Assembleia da República para «aprovar os tratados que versem matéria da sua competência legislativa reservada, os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras, os respeitantes a assuntos militares, e ainda quaisquer outros que o Governo entenda submeter-lhe». Por sua vez, o artigo 200.º, no seu n.º 1, alínea c), dá competência ao Governo para aprovar os acordos internacionais, bem como os tratados cuja aprovação não seja da competência da Assembleia da República ou que a esta não tenham sido submetidos; e no n.º 2 impõe que a aprovação pelo Governo de tratados e acordos internacionais revista a forma de decreto.
Não me parecendo nítida a distinção entre tratados (solenes) e acordos (em forma simplificada), a minha primeira inclinação foi no sentido de poder o Governo aprovar os «acordos» em questão, ao abrigo da primeira parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 200.º, apesar de eles respeitarem a matérias de defesa. Essa aprovação não podia, porém, ser feita por troca de notas; tinha de revestir a forma de decreto, por imposição do n.º 2 do mesmo artigo 200.º Daí a inconstitucionalidade dos referidos acordos, por violação deste preceito.
Reflectindo melhor, cheguei à conclusão de que as matérias especificadas na terceira parte da alínea i) do artigo 164.º exigem a sua inclusão em tratados, a aprovar pela Assembleia da República.
Sobre a questão escreve José Joaquim Gomes Canotilho, Fidelidade à República ou Fidelidade à NATO? - O Problema das Credenciações e o Poder Discricionário da Administração Militar, Coimbra, 1987, separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, 1986, IV, 2.1:
Ensina a doutrina do direito internacional que os acordos internacionais são as convenções que se «consideram perfeitas após a simples negociação e consequente redacção e assinatura».
No plano político-constitucional, a desnecessidade de ratificação formal pelo Presidente da República e da aprovação pela Assembleia da República é a dimensão mais relevante da celebração de convenções internacionais sob a forma de acordo. Mas quando e em que matérias poderá o Governo recorrer à celebração de convenções internacionais sob a forma de acordo («acordos internacionais», na terminologia constitucional)? E mais adiante:
1 - Em primeiro lugar, existe um domínio reservado à forma de tratado, cuja aprovação pertence à Assembleia da República (reserva de tratado da Assembleia) e que inclui: (i) os tratados que versam sobre matérias da competência reservada da Assembleia da República [cf. CRP, artigos 164.º, alínea i), 167.º e 168.º]; (ii) os tratados de participação de Portugal nas organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos militares [CRP, artigo 164.º, alínea i)].
2 - Consequentemente, ao Governo está constitucionalmente vedado recorrer a acordos internacionais para disciplinar matéria da exclusiva reserva de tratado a aprovar pela Assembleia da República [cf. Lei 29/82, artigo 42.º, alíneas b) e c)].
Quanto aos «acordos de execução» do Tratado do Atlântico Norte, diz o mesmo autor, estudo citado, IV, n.º 2.2:
Os acordos de execução do Tratado do Atlântico Norte revestem características muito específicas. Além dos problemas que a este respeito se levantam quanto a «expropriação» de competência dos órgãos de soberania nacionais em matérias de defesa nacional e da forma procedimental adoptada para a celebração desses acordos, suscita-se a questão de saber se a «execução» do Tratado do Atlântico Norte pode ser sempre feita por acordos em forma simplificada. Recorde-se que esses acordos incidem sobre matérias de paz, assuntos militares e participação em organizações internacionais. Essas matérias, nos termos do artigo 164.º, alínea i), da CRP, devem ser objecto de tratado a aprovar pela Assembleia da República.
Devendo os «acordos» em causa revestir a forma de tratado, é patente a sua inconstitucionalidade, por violação do artigo 164.º, alínea i), da Constituição.
3 - Entende o acórdão que, prevendo o Acordo, por troca de notas, Relativo à Extensão, até 4 de Fevereiro de 1991, de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América, assinado em Lisboa em 13 de Dezembro de 1983, que a utilização dessas facilidades fosse regulada por novos arranjos técnicos, tendo sido assinado em 18 de Maio de 1984 um novo Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 6 de Setembro de 1951, e, tendo este Acordo Técnico sido aprovado, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 25/85 (Diário da República, 1.ª série, n.º 243, de 22 de Outubro de 1985), o Acordo por troca de notas de 13 de Dezembro de 1983 veio a ser recebido materialmente pelo novo Acordo Técnico. E assim: a) no período ulterior à entrada em vigor do Acordo Técnico (Dezembro de 1985), «os vícios de inconstitucionalidade assacados no pedido ao Acordo por troca de notas de 13 de Dezembro de 1983 devem ter-se por irrelevantes»; b) no período que medeia entre o início de vigência do Acordo por troca de notas (4 de Fevereiro de 1984) e Dezembro de 1985, «qualquer hipotética declaração de inconstitucionalidade imporia, manifestamente, por força de razões de segurança jurídica e interesse público e em conformidade com o disposto no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição, a imperiosa necessidade de limitar os respectivos efeitos». Assim sendo - conclui o mesmo acórdão -, «é de todo inútil responder às questões de inconstitucionalidade suscitadas pelos requerentes a propósito desta matéria».
Ora, em primeiro lugar, não penso que a aprovação pela Assembleia da República, para efeito de ratificação, do Acordo Técnico de 18 de Maio de 1984 tenha o efeito de apagar, para futuro, a inconstitucionalidade de que sofria o Acordo, por troca de notas, de 13 de Dezembro de 1983.
Por outro lado, é inadmissível, em meu entender, fugir ao conhecimento da inconstitucionalidade do Acordo, por troca de notas, de 13 de Dezembro de 1983 porque ... sempre teriam de limitar-se os respectivos efeitos. Como é evidente, a questão da restrição dos efeitos da inconstitucionalidade, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, só se põe depois de se ter resolvido, em sentido afirmativo, a questão da inconstitucionalidade, isto é, depois de se ter declarado essa mesma inconstitucionalidade.
4 - Quanto ao Acordo Técnico para Execução do Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América de 6 de Setembro de 1951, feito em Lisboa em 18 de Maio de 1984 e aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 25/85, e ao Acordo entre o Ministério da Defesa Nacional de Portugal e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América, respeitante ao emprego de cidadãos portugueses pelas Forças dos Estados Unidos da América nos Açores, feito em Lisboa em 9 de Outubo de 1984 e em Washington, D. C., em 16 de Outubro de 1984 e aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 24/85 (Diário da República, 1.ª série, n.º 220, de 24 de Setembro de 1985), também arguidos de inconstitucionalidade no presente pedido:
A tal respeito limito-me a reproduzir o que escrevi no meu projecto de acórdão, ou seja, que a vida deste dois Acordos está inteiramente dependente da validade do Acordo, por troca de notas, assinado em 13 de Dezembro de 1983 e que, concluindo-se, como se concluiu, pela inconstitucionalidade desse Acordo por troca de notas, ficam sem efeito aqueles dois outros Acordos, não havendo, por isso, que conhecer da constitucionalidade das suas normas.
Mário de Brito.
Declaração de voto
1 Introdução
Votei pela inconstitucionalidade do Acordo, por troca de notas, de 13 de Dezembro de 1983, Relativo à Extensão até 4 de Fevereiro de 1991 de Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América (doravante designado abreviadamente por «Acordo sobre Facilidades nos Açores»), bem como do Acordo, por troca de notas, de 27 de Março de 1984,«no qual se autoriza o Governo dos Estados Unidos da América a instalar no território nacional uma estação electro-óptica para vigilância do espaço exterior» (aqui abreviadamente referido como «Acordo GEODSS»). E votei pela inconstitucionalidade em ambos os casos pela razão de que, no meu modo de ver, se trata de convenções internacionais que, pela sua natureza e objecto, deveriam ser consideradas como tratados, devendo, por isso, ser aprovadas pela Assembleia da República e ratificadas pelo Presidente da República, nos termos da alínea i) do artigo 164.º e da alínea b) do artigo 138.º, ambos da Constituição (CRP). Ora, tendo tais Acordos sido aprovados apenas por um membro do Governo, sem qualquer intervenção da Assembleia da República e do Presidente da República, foram flagrantemente violados aqueles dois preceitos constitucionais.Deste modo, não pude acompanhar o acórdão, nem quando considerou «irrelevante» conhecer da inconstitucionalidade do Acordo sobre Facilidades nos Açores, nem quando declarou a inconstitucionalidade do Acordo GEODSS por violação do artigo 200.º, n.º 2, da CRP (pois isso pressupõe a competência do Governo para o aprovar).
2 - A inconstitucionalidade do Acordo sobre Facilidades nos Açores
2.1 - Alcance jurídico deste Acordo
O Acordo, por troca de notas, Relativo à Extensão até 4 de Fevereiro de 1991 das Facilidades Concedidas nos Açores a Forças dos Estados Unidos da América, de 13 de Dezembro de 1983, não é mais, mas também não é menos, do que uma renovação/prorrogação do «Acordo de Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América» de 6 de Setembro de 1951, vulgarmente conhecido por «Acordo das Lajes».Nos termos deste Acordo de 1951, Portugal concedeu aos Estados Unidos, «em caso de guerra na qual estejam envolvidos durante a vigência do Tratado do Atlântico Norte [...], o uso de facilidades nos Açores, conforme forem descritas nos arranjos técnicos a concluir pelos Ministros da Defesa dos dois Governos» (artigo 1.º).
Nesse quadro previa-se a construção de novas instalações e a ampliação e melhoramento das existentes «a fim de preparar e aprontar as facilidades acordadas nos Açores [...]» (artigo 2.º). Para este efeito fixava-se um «prazo de execução» que terminaria em 1 de Setembro de 1956, com a tolerância de quatro meses (§ 2.º do artigo 2.º).
Para esse efeito e durante esse prazo Portugal autorizou, mesmo em tempo de paz, a utilização das Lajes pela aviação militar americana, bem como o estacionamento de forças americanas (artigo 6.º), devendo dar-se a completa evacuação de tais forças findo aquele prazo (artigo 7.º).
A verdade é que, no fim daquele prazo (1 de Janeiro de 1957, contando já a «tolerância» de quatro meses prevista no Acordo de 1951), não se verificou a evacuação das forças americanas estacionadas nos Açores, e a 15 de Novembro desse ano celebrou-se um «Acordo Suplementar de Defesa» - que nunca foi oficialmente publicado e cujo teor só agora se conhece -, segundo o qual o prazo previsto no artigo 2.º, § 2.º, do Acordo de 1951 era prorrogado até 31 de Dezembro de 1962.
Na mesma data deste Acordo Suplementar era ajustado um «acordo técnico», acordo que vigoraria «durante a vigência do Acordo de Defesa [de 1951] modificado pelo Acordo Suplementar de Defesa [de 1957]». Tal acordo técnico tinha uma explícita nota de «secreto» e também só agora se conhece o seu conteúdo.
Todavia, mais uma vez, chegado o termo do novo prazo acordado (31 de Dezembro de 1962), não se operou o abandono das Forças americanas estacionadas nos Açores, nem cessou a utilização da Base das Lajes pela aviação americana. O uso das facilidades em tempo de paz continuou a partir daí sem qualquer base jurídica. Conhece-se, aliás, um «acordo laboral» celebrado em 1976 (que também nunca foi publicado), regulador das relações de trabalho dos portugueses ao serviço das Forças americanas nos Açores.
Essa situação de utilização sem título das facilidades nos Açores durou mais de vinte anos (!) até que, em 1983, o Acordo por troca de notas que aqui nos ocupa veio «regularizar» a situação. Por efeito dele, o prazo, que inicialmente terminava em 1 de Janeiro de 1957 e que posteriormente foi prorrogado até 1962, é prorrogado de novo, agora até 4 de Fevereiro de 1991. Desta vez o Acordo é público e, tendo em conta que o Acordo Suplementar de 1957 se mantivera secreto, ele vem «regularizar» uma situação que se encontrava sem suporte jurídico conhecido desde 1 de Janeiro de 1957.
É fácil ver o alcance jurídico e a natureza deste novo Acordo sobre a prorrogação das facilidades nos Açores. Ele veio renovar juridicamente o Acordo de Defesa de 1951, na parte em que este já caducara há mais de vinte anos, ou seja, quanto ao estacionamento de Forças americanas nos Açores e à utilização da Base das Lajes em tempo de paz - que no Acordo de 1951 fora prevista apenas a título transitório e para efeitos de preparação das bases a utilizar em caso de guerra -, prorrogando portanto a utilização dessas facilidades, que, de facto, nunca cessara. Além disso, o novo Acordo faz renovar também o Acordo Técnico de 1957 - que também já caducara em 1962, como se viu - e o Acordo Laboral de 1976 - que, como se mostrou, não tinha nenhuma base que o legitimasse -, prorrogando a sua vigência até à celebração de novos arranjos nessas áreas, o que só veio a verificar-se com o Acordo Técnico de 18 de Maio de 1984 (aprovado por resolução da Assembleia da República de 5 de Julho de 1985) e o Acordo Laboral de 9 de Outubro de 1984 (também aprovado pela Assembleia da República por resolução de 5 de Julho de 1985).
2.2 - Objecto e natureza do Acordo
Afigura-se-me ser indiscutível que se trata de uma convenção que, pelo seu objecto e alcance jurídico, tem de qualificar-se como Acordo de defesa e como Acordo militar. Primeiro, porque ele tem por objecto a renovação do «Acordo de Defesa» de 1951, e são as próprias Partes Contratantes que, contemporaneamente, no texto do Acordo GEODSS, se referem àquele como «troca de notas acerca de assuntos de defesa [...]». Depois, é evidente que o seu objecto é o de autorizar o uso de instalações militares e o estacionamento de forças militares estrangeiras em território nacional.Por outro lado, torna-se indiscutível que não se trata de um simples acordo de execução de uma convenção anterior, mas sim da renovação ou prorrogação do primitivo «Acordo das Lajes» de 1951, compartilhando portanto da natureza deste.
2.3 - Violação dos poderes da Assembleia da República e do Presidente
da República
Nos termos da alínea i) do artigo 164.º da CRP, carecem de aprovação pela Assembleia da República os tratados de defesa, bem como os que versem assuntos militares, e, de acordo com a alínea b) do artigo 138.º, os tratados têm de ser ratificados pelo Presidente da República.Ora, nada disso sucedeu com o referido «Acordo». Ele não foi sujeito à aprovação da Assembleia da República nem à ratificação do Presidente da República (nem sequer foi aprovado pelo Conselho de Ministros, nem ao menos tem a assinatura do Primeiro-Ministro). Uma convenção internacional desta natureza, cujo objecto é, nem mais nem menos, do que o de «legalizar» a posteriori o estacionamento de tropas estrangeiras em território nacional desde 1957 e de prorrogar tal autorização até 1991, vincula Portugal, à margem do Presidente da República, da Assembleia da República, do Primeiro-Ministro, do Conselho de Ministros, bastando-se com uma assinatura do Ministro dos Negócios Estrangeiros! Nem se diga que tal convenção não é um tratado e que só os tratados propriamente ditos é que têm de ser aprovados pela Assembleia da República e ratificados pelo Presidente da República.
É certo que tal convenção não se chama a si mesma de tratado. Mas o nome que as convenções se dão pouco interessa. O que importa é o que elas são.
O que vale é a razão de ser do artigo 164.º, alínea i), que perderia todo o sentido se o Governo pudesse livremente qualificar como simples acordos os tratados que celebrasse, para assim se furtar à reserva de aprovação de tratados da Assembleia da República.
O sentido mais consentâneo com a razão de ser da alínea i) do artigo 164.º da CRP é o de que todas as convenções internacionais nas matérias naquele preceito indicadas são constitucionalmente consideradas como tratados para efeitos de aprovação da Assembleia da República e de ratificação do Presidente da República. De outro modo, se o Governo pudesse livremente manipular a forma das convenções internacionais, então esvaziar-se-ia totalmente o preceito constitucional em causa, podendo o Governo vincular internacionalmente o País, à margem da Assembleia da República e do Presidente da República, isto é, sem qualquer controle de outro órgão de soberania e à margem do próprio conhecimento público prévio.
Aquele entendimento das normas constitucionais em causa é o que é sufragado pela doutrina mais representativa, sendo desconhecida qualquer opinião significativa em contrário. É assim que Jorge Miranda opina que, «no mínimo, as matérias abrangidas no artigo 164.º, alínea i) (reserva de tratados da Assembleia da República) não podem ser objecto de acordos em forma simplificada» («As actuais normas constitucionais e o DI», Nação e Defesa, n.º 36, p. 33). Outro autor, a propósito especificamente do Acordo das Lajes de 1951, já escrevera: «Ninguém porá em dúvida a competência da Assembleia da República relativamente a acordos como o das Lajes.» (A Constituição e o DI, p. 79.) Ora, se o Acordo das Lajes, hoje, exigiria a intervenção da Assembleia da República (e do Presidente da República), isso vale igualmente para os acordos de renovação ou prorrogação do Acordo das Lajes, como aquele de que aqui nos ocupamos.
Mas, mesmo que se entendesse que o artigo 164.º, alínea i), não proíbe, de todo em todo, acordos em forma simplificada sobre assuntos de defesa ou militares, a verdade é que isso nunca seria admissível senão tratando-se de acordos puramente executivos de tratados anteriores.
É essa, como se sabe, a doutrina pacífica quanto à distinção material entre tratados e acordos em forma simplificada, em geral. Já noutro lugar, em obra de que sou co-autor, deixei registada a minha opinião sobre o assunto:
Note-se, porém, que o Governo não pode manipular a forma de acordo para aprovar convenções internacionais que, se se revestissem de forma de tratado solene, seriam da competência exclusiva da Assembleia da República [artigo 164.º, alínea i)]. Isto pressupõe a distinção material entre acordos e tratados, que, na falta de definição constitucional, deve recorrer à definição dos dois conceitos correntes no direito internacional, podendo dizer-se que, em geral, se impõe a forma de tratado quando se pretende uma disciplina primária semelhante à das leis internas e se estabelece a forma de simples acordo para os instrumentos diplomáticos executivos («executive agreements») de tratados já celebrados. De certo modo, esta distinção reconduz-se à ideia do valor legislativo dos tratados e do valor regulamentar dos acordos e tem de confrontar-se em cada caso concreto com o objectivo prosseguido pelas partes contratantes ao celebrarem uma convenção internacional. [J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, p. 293.] Não é diferente a opinião expressa por Jorge Miranda:
A distinção principal a fazer nos tratados, em razão desse fenómeno, é a distinção entre tratados solenes e acordos em forma simplificada - aqueles sujeitos, e estes não, a ratificação; aqueles exigindo a colaboração, em regime de desconcentração de poderes ou de Estado de direito de tipo ocidental, dos órgãos do Poder Executivo, do Parlamento e do Chefe do Estado, e estes circunscrevendo-se à decisão do órgão do Poder Executivo.
A repartição das matérias objecto de uns e outros tratados faz-se:
a) À face da Convenção de Viena, tendo em conta a disposição que cada tratado em concreto estabeleça (artigo 14.º);
b) À face dos princípios do Estado de direito, tendo em conta a homologia com os actos de direito interno, e, assim, ficando para os tratados solenes matérias políticas e legislativas e para os acordos em forma simplificada matérias administrativas e técnicas. [Ob. cit., p. 32.] Finalmente, A. R. Queiró, depois de observar que não é fácil dizer qual é rigorosamente o âmbito de utilização dos acordos em forma simplificada, conclui que «convenções de ordem administrativa e técnica entram normalmente nesse âmbito» (Lições de Direito Administrativo, p. 333).
Em suma, o sentido da reserva parlamentar de aprovação de tratados não é diferente do sentido da reserva parlamentar de competência legislativa. Tal como nesta cabe à Assembleia da República aprovar todas as opções jurídico-normativas substantivas, só sendo de admitir regulamentos de carácter puramente executivo (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob.
cit., vol. II, nota XVII ao artigo 115.º e nota III ao artigo 167.º), também cabe em exclusivo à Assembleia da República aprovar as convenções que compreendam acordos de carácter substantivo, só podendo o Governo aprovar, por si, os acordos puramente executivos daqueles. É a conclusão que se impõe face à repartição de poderes entre o Governo e a Assembleia da República e face à competência política e legislativa desta, à luz dos princípios do Estado de direito constitucionalmente configurado.
Portanto, em qualquer caso, só seria de admitir acordos em forma simplificada em matérias de defesa ou militar, quando se tratar de acordos «derivados», de natureza executiva, de carácter técnico ou administrativo [v. ainda J. J. Gomes Canotilho, Fidelidade à República ou Fidelidade à NATO?, Coimbra, 1987; a divergente opinião expressa no parecer 8/83 da Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 30 de Março de 1985, assenta num evidente e inexplicável equívoco, pois que, reduzindo a reserva parlamentar de tratado, em assuntos militares, às convenções que versem matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da República, acaba por inutilizar a referência constitucional aos tratados sobre assuntos militares - sem distinção! -, visto que a mesma alínea i) do artigo 164.º da CRP já refere autonomamente os tratados sobre matérias da competência legislativa reservada da Assembleia da República].
Mas é evidente que o novo Acordo sobre prorrogação das faculdades nas Lajes não é um acordo executivo nem tem carácter administrativo ou técnico.
Ele é antes uma renovação do Tratado de Defesa de 1951 e consubstancia uma decisão política fundamental, que consistiu em legitimar a posteriori e prolongar o estacionamento das Forças americanas nos Açores, desde 1957 a 1991. Uma tal vinculação internacional não podia ter lugar à margem da Assembleia da República e do Presidente da República.
A prova de que não se trata de um acordo executivo está, aliás, reforçada no facto de ele mesmo ter consequenciado dois outros acordos, esses sim derivados (embora, também eles, não puramente executivos), a saber, o Acordo Técnico e o Acordo Laboral de 1984, que, de resto, foram submetidos à aprovação da Assembleia da República e à ratificação presidencial. Ora, se esses dois acordos derivados correram os trâmites constitucionais dos tratados, como é que pode entender-se que o tratado «primário» - justamente o tratado suplementar de renovação e prorrogação de 1983 - tenha sido considerado como acordo em forma simplificada, ainda por cima concluído como simples acordo por troca de notas? Resta, aliás, dizer que, ainda que, por absurdo, se houvesse de admitir poder tratar-se de um acordo em forma simplificada, sem necessidade de satisfazer os requisitos constitucionais dos tratados, há uma coisa que nunca poderia ser dispensada: a aprovação governamental por decreto (artigo 200.º, n.º 2), aprovado em Conselho de Ministros [artigo 203.º, n.º 1, alínea d)], subscrito pelo Primeiro-Ministro (artigo 204.º, n.º 3) e submetido à assinatura do Presidente da República [artigo 137.º, alínea b)], eventualmente com prévia submissão a controle preventivo da constitucionalidade (artigo 278.º). Como se viu, o Acordo foi firmado por troca de notas e exibe apenas a assinatura do Ministro dos Negócios Estrangeiros. Sempre valeria aqui, mutatis mutandis, a conclusão a que o acórdão chegou quanto ao Acordo GEODSS (v. infra, n.º 3).
Por tudo isto, a tese da não inconstitucionalidade do Acordo de Facilidades nos Açores, defendida pelo Governo, é de todo em todo inconsistente.
2.4 - A relevância da inconstitucionalidade
O acórdão absteve-se de conhecer da questão de inconstitucionalidade do Acordo em causa com o argumento de que tal inconstitucionalidade seria «irrelevante».
Se bem se alcança o raciocínio do acórdão, tal irrelevância decorreria, por um lado, do facto de, a partir da entrada em vigor do Acordo Técnico de 1984 - que, como se viu, foi aprovado pela Assembleia da República e ratificado pelo Presidente da República e entrou em vigor em 23 de Dezembro de 1985 -, ter passado a haver um título constitucionalmente indiscutível para as obrigações decorrentes do Acordo de 13 de Dezembro de 1983; e, por outro lado, quanto ao período entre o Acordo de 1983 e a entrada em vigor do Acordo Técnico de 1984, sempre seria de salvaguardar os efeitos da eventual inconstitucionalidade daquele, pelo que se tornaria inútil abordar a questão.
Não pude acompanhar este raciocínio. Por um lado, entendo que o Acordo Técnico de 1984 não podia sanar a inconstitucionalidade do Acordo de 1983, pela mesma razão que um regulamento não pode sanar a inconstitucionalidade orgânica da lei que visa regulamentar.
Em primeiro lugar, o Acordo Técnico não reproduz nem efectua a «recepção material» do Acordo de 1983. Pelo contrário, pressupõe este e remete para ele, desde logo quanto ao período de vigência (v. artigo 11.º do Acordo Técnico). Depois, é de sublinhar que o Acordo de 1983 tem três cláusulas, na sua parte dispositivo. Na 1.ª cláusula (segundo parágrafo do texto) autoriza-se a «continuação da utilização das facilidades nos Açores, até 4 de Fevereiro de 1991», devendo tais facilidades ser objecto de «novos arranjos técnicos»; na 2.ª cláusula (terceiro parágrafo) prevê-se o processo a adoptar em caso de divergências «quanto à interpretação, implementação ou cumprimento das disposições deste Acordo» [na versão portuguesa lê-se, por evidente lapso, «destes Acordos»], prevendo-se mesmo a possibilidade de «denúncia»;
finalmente, na 3.ª cláusula (quarto parágrafo) prevê-se o processo de renegociação do Acordo para efeitos de renovação do termo do período. Ora, é indiscutível que o Acordo Técnico de 18 de Maio de 1984 só veio a efectivar a 1.ª cláusula do Acordo de 1983, pelo que este manteve a sua autonomia e relevância quanto à 2.ª e 3.ª cláusulas, não tendo sido «materialmente recebido» pelo Acordo Técnico, ao contrário do que se afirma, sem demonstração no acórdão.
Em todo o caso, sempre o Acordo de 1983 permaneceria inconstitucional, mesmo que tivesse sido reproduzido integralmente pelo Acordo Técnico, o que não sucedeu, como se viu. A tese da «irrelevância» é, portanto, inconvincente.
Quanto ao período anterior ao Acordo Técnico de 1984, não vejo como é que é possível evitar o conhecimento da inconstitucionalidade do Acordo de 1983.
Diz-se no Acórdão que é «manifesto» que sempre se teriam de salvaguardar os efeitos produzidos pelo Acordo, mesmo que este fosse inconstitucional. É provável que, declarada a inconstitucionalidade, se tivessem de restringir os respectivos efeitos, salvaguardando as situações geradas. Mas a verdade é que só se podem restringir os efeitos de inconstitucionalidades verificadas. Só depois de se concluir pela existência de uma inconstitucionalidade é que se pode colocar a questão de saber se é ou não de restringir os efeitos, ao abrigo do artigo 282.º, n.º 4, da CRP. Deixar de conhecer da inconstitucionalidade com o argumento de que, afinal, se teriam de restringir os respectivos efeitos é inverter a questão, pôr a cabeça no lugar dos pés, em termos metodologicamente insustentáveis e teoricamente indefensáveis.
Uma coisa é certa. Mesmo que em termos práticos tudo acabasse na mesma, já assim não seria juridicamente. Ficaria a saber-se que o Acordo de 1983 é efectivamente inconstitucional; que até à entrada em vigor do Acordo Técnico de 1984 não houve qualquer suporte juridicamente válido para as «facilidades» das Forças Armadas americanas nos Açores; que, depois de 1985, tais facilidades só podem reclamar-se do Acordo Técnico de 1984 e não do Acordo inconstitucional de 1983, e, finalmente, que em 1991, quando caducar o novo período de prorrogação das facilidades, estas não podem ser prorrogadas mais uma vez senão por efeito de um verdadeiro e próprio tratado, aprovado pela Assembleia da República e ratificado pelo Presidente da República, e que, se se repetir a utilização de um simples acordo, este será necessariamente declarado inconstitucional, não havendo então nenhuma razão para restringir os efeitos, pois o Governo só por má fé poderia vir a reincidir numa consabida violação da CRP.
Por tudo isto, não posso deixar de lamentar que o Tribunal Constitucional tenha decidido, de forma tão expedita quanto infundada, abster-se de conhecer da inconstitucionalidade - a meu ver, flagrante - do Acordo de prorrogação das facilidades das Forças dos Estados Unidos nos Açores, de 1983.
3 - A inconstitucionalidade do Acordo GEODSS, de 27 de Março de 1984
3.1 - Violação da alínea i) do artigo 164.º e da alínea b) do artigo 168.º da
CRP
O acórdão declara a inconstitucionalidade deste Acordo por violação do artigo 200.º, n.º 2, da CRP (falta da aprovação por decreto). Todavia, a meu ver, tal Acordo é inconstitucional, antes de tudo, por não ter respeitado os requisitos da formação constitucional dos tratados, designadamente a aprovação pela Assembleia da República e a ratificação do Presidente da República.Para começar, é evidente que o Acordo versa sobre assuntos militares. Isso decorre directamente do seu objecto, inquestionavelmente ligado ao projecto conhecido como «Iniciativa de Defesa Estratégica» ou «Guerra das Estrelas».
A este respeito, aliás, o acórdão não deixa dúvidas e o próprio Governo, na sua resposta ao presente pedido de apreciação da constitucionalidade, não questiona a natureza militar desse Acordo.
Ora, isso bastaria para considerar que tal Acordo deveria ser constitucionalmente considerado como tratado, para quem entender que todas as convenções que versem os assuntos referidos no artigo 164.º, alínea i), da CRP são necessariamente tratados, para efeitos constitucionais. Mas, mesmo para quem entenda que não estão necessariamente excluídos, nessas áreas, acordos em forma simplificada, a verdade é que o máximo que se poderia conceder nesse sentido - como acima se viu (v. supra, n.º 2.3) - são os acordos executivos, de carácter técnico ou administrativo (executive agreements).
Não vejo, porém, como é que é possível sustentar que estamos perante um executive agreement. É certo que o Acordo se reclama do «Acordo de Auxílio Mútuo para a Defesa entre Portugal e os Estados Unidos da América», assinado em 5 de Janeiro de 1951 e aprovado pelo Decreto-Lei 39530, de 24 de Novembro de 1951.
Todavia, é desde logo de duvidar sobre se o Acordo GEODSS tem o que quer que seja a ver com aquele tratado de 1951. Na verdade, este tratado visava fundamentalmente, no seguimento do «Mutual Defense Assistance Act» de 1949, regularizar a ajuda, militar e outra, dos Estados Unidos aos seus aliados europeus, não se vendo bem de que modo é que a autorização de uma estação de rastreio do espaço exterior em Portugal pode enquadrar-se no âmbito daquele tratado, tanto mais que a única contrapartida que aí se previa por parte do nosso país consiste em «matérias-primas e produtos semimanufacturados de que os Estados Unidos precisem» (artigo II do Acordo de Auxílio Mútuo de 1951).
Independentemente disso, porém, nunca o Acordo GEODSS de 1984 poderá ser considerado como um verdadeiro «acordo executivo» do referido tratado de 1951. Mesmo que ainda se pudesse colocar sobre a sua égide, a verdade é que nada no tratado de 1951 prevê ou contempla sequer algo de parecido com a autorização de uma estação de rastreio do espaço exterior (desde logo, porque em 1951 tal era pura e simplesmente inconcebível!...). O máximo até onde se poderia ir era no sentido de conceber o Acordo GEODSS como um acordo complementar ou de desenvolvimento do tratado de auxílio mútuo de 1951. Não é por acaso que o referido Acordo não se reclama como sendo «execução» do tratado de 1951, limitando-se a invocar as conversações efectuadas «no contexto» deste.
Simplesmente isso não bastaria para autorizar um acordo em forma simplificada. É que continuaria a não se poder falar de um acordo executivo propriamente dito, mas, quando muito, de um acordo complementar, que, por isso mesmo, deveria revestir a forma de tratado. Aliás, seria sobremodo estranho que um assunto como este, ligado à «Guerra das Estrelas», que noutros países europeus suscitou apaixonadas discussões públicas e demorados e profundos debates parlamentares, pudesse, em Portugal, ser decidido à margem da Assembleia da República, do Presidente da República e da opinião pública e ser consumado de forma discreta e sumária pela assinatura de um único ministro!...
É de registar, ainda, que o próprio Acordo GEODSS prevê a sua «concretização» por meio de ulteriores «arranjos técnicos». Ora, mal se compreende a necessidade de «arranjos técnicos» se o Acordo já fosse ele mesmo um executive agreement...
Não posso deixar de registar a forma cauteloso e dubitativa como o acórdão aborda esta questão. Só que, em caso de dúvida, era de pender, decididamente, para a solução constitucionalmente mais exigente, ou seja, para aquela que favorece a intervenção da Assembleia da República e do Presidente da República. Tal como em matéria de reserva da competência legislativa se deve favorecer a competência da Assembleia da República (cf. J.
J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada, vol. II, p. 199, nota VI ao artigo 168.º), igual raciocínio vale no campo da reserva parlamentar de aprovação de convenções internacionais (reserva parlamentar de tratados).
Aliás, tal raciocínio vale aqui por maioria de razão. É que, no caso da reserva de competência legislativa, a própria Assembleia da República tem o poder de, através da não ratificação (CRP, artigo 172.º), inutilizar de forma expedita a legislação governamental que infrinja a reserva legislativa parlamentar; acresce que, em caso de decreto-lei que ofenda a reserva parlamentar, a respectiva declaração de inconstitucionalidade repõe a regularidade constitucional, sem danos de maior. Diferentemente se passam as coisas no caso da reserva parlamentar de tratado. Em primeiro lugar, a Assembleia da República não possui nenhum instrumento jurídico (semelhante à não ratificação) para, por si mesma, obstacular à violação das suas prerrogativas constitucionais, pois, se o Governo aprovar um acordo simples em matéria reservada à Assembleia da República, esta não pode avocar a aprovação dessa convenção internacional.
Em segundo lugar, está em causa também a competência internacional do Presidente da República, pois no caso de tratados é ao Presidente da República, através de um acto próprio (a ratificação), que cabe a última palavra na vinculação internacional do Estado, pelo que, se o Governo aprovar um acordo em vez de um tratado, degrada a intervenção do Presidente da República à simples assinatura do decreto governamental de aprovação. Por último, mas principalmente, a vinculação internacional do Estado, mesmo quando efectuada inconstitucionalmente através de acordo simples (em vez de um tratado), sempre cria factos consumados (a saber, obrigações internacionais do Estado) que nem uma posterior declaração de inconstitucionalidade pode apagar (é, aliás, por isso que em alguns sistemas constitucionais existe uma fiscalização preventiva genérica da constitucionalidade das convenções internacionais). Eis porque, mais do que no caso de reserva parlamentar legislativa, tudo aponta para uma particular exigência em matéria de reserva parlamentar do tratado, pelo que, em caso de dúvida sobre se certa convenção há-de ou não seguir os requisitos constitucionais dos tratados, deve optar-se decididamente pela resposta positiva.
Não foi este o caminho seguido pelo acórdão, aliás sem explicação convincente, pois, não podendo deixar de exprimir-se de forma dubitativa, tornava-se imperiosa a opção pela exigência de aprovação parlamentar e pela ratificação presidencial.
3.2 - A falta de aprovação por decreto
O acórdão conclui pela inconstitucionalidade do referido Acordo GEODSS, por violação do artigo 200.º, n.º 2, da CRP (falta de aprovação por decreto).
Naturalmente, se não fosse de opinião - como sou - de que tal Acordo deveria revestir antes a forma de tratado (com aprovação parlamentar e ratificação presidencial), teria acompanhado a conclusão a que chegou o acórdão. Na verdade, tenho por indiscutível que, à face da nossa Constituição, nenhuma convenção internacional propriamente dita - isto é, que envolva obrigações para o Estado -, quando não tenha de seguir o processo de aprovação dos tratados, da competência da Assembleia da República, não pode deixar de ser aprovada por decreto, qualquer que seja a forma que revista no plano do direito internacional.
A aprovação por decreto satisfaz as seguintes exigências:
a) Requer a aprovação em Conselho de Ministros [artigo 203.º, n.º 1, alínea d), da CRP], envolvendo, portanto, a responsabilidade colectiva do Governo;
b) Necessita da assinatura do Primeiro-Ministro, como chefe do Governo (artigo 204.º, n.º 3), não se bastando com a assinatura do Ministro dos Negócios Estrangeiros;
c) Exige a assinatura do Presidente da República [artigo 137.º, alínea b)], permitindo-lhe decidir em última instância sobre a vinculação internacional do País;
d) Finalmente, permite que o Presidente da República faça desencadear o processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade (artigo 278.º, n.º 1, in fine), fiscalização que, se em algum domínio se justifica, é precisamente no caso das convenções internacionais.
É fácil ver que tudo isso ficaria postergado se fossem admissíveis acordos internacionais sem aprovação por decreto, designadamente acordos por troca de notas, com a assinatura apenas do Ministro dos Negócios Estrangeiros. Em tal hipótese, estaria afastada, não apenas a possibilidade de intervenção preventiva do Tribunal Constitucional - como assinala o acórdão -, mas também a intervenção do Presidente da República e do próprio Primeiro-Ministro, como chefe do Governo. Nada disto pode ser compatível com os princípios constitucionais em matéria de vinculação internacional do Estado. A prática tradicional corrente dos acordos por trocas de notas sem aprovação governamental por via de decreto assinado pelo Presidente da República não pode ser coonestada, antes deve ser corrigida, para se harmonizar com a lei fundamental. É tempo de os serviços diplomáticos e a prática do Ministério dos Negócios Estrangeiros se ajustarem à Constituição da República...
Vital Moreira.