Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório. - 1 - Nos autos de um processo de inquérito, pendentes no DIAP do Porto, em que se investigam factos que, em abstracto, são susceptíveis de integrar a prática de dois crimes de homicídio qualificado, terão sido colhidos no local do crime "vestígios biológicos, alguns deles referentes aos autores dos crimes". Só posteriormente tendo sido identificados suspeitos, entretanto ouvidos como arguidos, foram então estes "convidados a prestar consentimento para a recolha de zaragatoas bucais com vista à identificação do seu perfil genético [...] e comparação com o dos vestígios biológicos acima referidos", tendo, todavia, negado tal consentimento. Nestas circunstâncias, considerando essencial que se procedesse a "exame na pessoa dos arguidos tendo como finalidade a colheita de vestígios biológicos para determinação do seu perfil genético e subsequente comparação com o dos vestígios biológicos colhidos no local do crime" e que o arguido "pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente" à realização do mencionado exame, foi proferido pelo Ministério Público, em 12 de Maio de 2005, despacho determinando nomeadamente que o arguido e ora recorrente, Armando Luís Monteiro Rodrigues, comparecesse nas instalações do Instituto Nacional de Medicina Legal do Porto, para que aí fosse sujeito à realização de exame médico-legal com vista à obtenção de vestígios biológicos, "sempre na medida do estritamente necessário, adequado e indispensável à prossecução do fim a que se destinam".
2 - Em 20 de Setembro de 2005, naquele Instituto, procedeu-se à referida diligência. Do respectivo auto consta que "foi perguntado ao arguido se o faria voluntariamente ou se se oporia a tal diligência", tendo o mesmo feito saber que "havia sido dirigido aos autos [...] um requerimento para que fosse posto cobro imediato à pretendida recolha coactiva de vestígios biológicos, uma vez que a mesma careceria em absoluto de suporte legal [...] sendo por isso absolutamente intrusiva e ofensiva da integridade pessoal do arguido [...] qualquer colheita realizada contra a sua vontade e ou com uso da força [...]". Perante esta situação, o arguido assinou uma declaração de recusa do acto, tendo, então, sido advertido de "que a diligência iria ter lugar mesmo que para tal fosse necessário o recurso à força". Face a esta advertência, o arguido, "que continuou a demonstrar que era contrário à diligência", afirmou, contudo, que "não iria exercer qualquer acto de violência, para quem quer que seja", pelo que, "de maneira ordeira e abrindo a boca deixou efectivar a recolha de saliva, não sem antes reafirmar que o fazia contra a sua vontade. Desta forma, foi realizado o acto em questão."
3 - No dia seguinte, o arguido requereu ao juiz de instrução criminal que fosse declarada ilegal a prova obtida através da sua sujeição coactiva à colheita de saliva realizada no dia anterior. Por decisão daquele juiz, foi julgada "improcedente a invocada nulidade e consequente proibição de valoração como prova do resultado da análise da saliva colhida através de zaragatoa bucal efectuada ao arguido [...]".
4 - Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, tendo formulado as seguintes conclusões:
"I) No direito português vigente só o consentimento livre e esclarecido do arguido pode legitimar a sua submissão a uma colheita de vestígios biológicos para análise de ADN;
II) Uma vez que o arguido e ora recorrente manifestou a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita, foi manifestamente ilegal e até criminalmente ilícita a sua realização coactiva, por manifesta falta do indispensável suporte legal - lacuna essa que o intérprete e o aplicador da lei não estão, por si, legitimados a colmatar;
III) Mercê disso, dever-se-ia ter reconhecido e declarado a ilegalidade da sobredita colheita, nos termos em que a mesma teve lugar, com todas as legais consequências, a começar pela proibição absoluta de valoração da(s) prova(s) assim obtida(s) e sem esquecer a devida instauração do adequado procedimento criminal contra todos quantos determinaram, efectuaram, colaboraram ou por qualquer forma participaram na dita colheita ilegal, assim incorrendo na prática de um crime contra a integridade pessoal do ora recorrente, em manifesta violação do disposto, entre outros, no artigo 25.º, n.º 1, da CRP, e no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal;
IV) Decidindo de forma diversa, a M.mª Juíza a quo violou, entre outras, as normas contidas nos artigos 25.º, 26.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, todos da CRP, no artigo 8.º da CEDH, no artigo 12.º da DUDH, no artigo 17.º do PIDCP e no artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, bem como no artigo 172.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal;
V) De resto, sempre estaria ferida de inconstitucionalidade a norma do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de possibilitar ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;
VI) Da mesma forma que seria igualmente inconstitucional a norma do artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração, a prova obtida através da colheita efectuada nos moldes descritos na conclusão anterior."
5 - Em 17 de Janeiro de 2006, o recorrente juntou aos autos um parecer do Professor Manuel da Costa Andrade, em que, no essencial, se sustenta que "no direito positivo vigente em Portugal não é juridicamente admissível impor a recolha coactiva de substâncias biológicas nem a sua ulterior e não consentida análise genética com vista à determinação do perfil genético para fins de processo criminal", uma vez que não existe "uma lei específica que as autoriz[]e e prescrev[a] o respectivo regime", não oferecendo "as normas da lei processual-penal relativas a perícias [...] e exames [...], bem como [...] os dispositivos da lei que estabelece o regime das perícias médico-legais [...], como ainda os preceitos pertinentes (sobretudo o artigo 152.º) do Código da Estrada", "a indispensável legitimação penal". E, assim sendo, "no plano processual-penal, o direito vigente em Portugal prescreve uma intransponível proibição de produção de prova contra a recolha coerciva das substâncias biológicas e contra a sua análise genética não consentida. Uma proibição cuja violação só pode ter como consequência a correspondente proibição de valoração das provas obtidas".
6 - O Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 3 de Maio de 2006, decidiu julgar o recurso improcedente. Para tanto, fundamentou, assim, a decisão:
"[...] O que aqui está em causa apreciar não é só a legalidade da decisão impugnada enquanto acto ou meio ordenativo de produção de um meio de prova mas sim a legalidade da decisão ao determinar a eventual execução forçada do exame, isto é, ao impor coactivamente ao recorrente a sua submissão ao exame. Tal como vem referido no recurso n.º 3261/01 do Tribunal da Relação de Coimbra, relatado pelo Sr. Conselheiro Dr. Oliveira Mendes e que vamos seguir de perto "certo é que o direito que vimos de analisar - à integridade corporal e à autodeterminação corporal - conquanto a Constituição da República o declare inviolável (artigo 25.º, n.º 1) não é absoluto, posto que o artigo 18.º daquele diploma legal ao estatuir que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, deve ser interpretado no sentido de que apenas é ilegítima toda a restrição que atinja o conteúdo essencial de cada um dos direitos subjectivos individuais, isto é, que atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria..."
"Daí que o nosso ordenamento jurídico preveja várias situações em que o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal cedem face a interesses comunitários e sociais preponderantes, quer na área da saúde pública, quer na área da defesa nacional, quer na área da justiça, quer noutras áreas.
Assim sucede quando se impõem certas condutas corporais como a vacinação obrigatória, os radiorrastreios, o tratamento obrigatório de certas doenças contagiosas, a proibição de dopagem dos praticantes desportivos, o serviço militar obrigatório ou a prestação de serviço cívico e a realização de perícia psiquiátrica e de perícia sobre a personalidade."
Ora, embora entendamos que o exame ordenado nos autos, constitua "meio de prova susceptível de ofender o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal do recorrente, designadamente no caso de este não aderir ao exame, isto é, no caso de recusa, posto que o mesmo se traduz numa intervenção não autorizada no seu corpo, isto é, lesiva da sua integridade corporal e da integridade do seu sistema volitivo, quer por afectar o seu corpo físico quer por afectar a sua capacidade de decidir e de agir, cremos que podem e devem ser concretizados, mesmo que compulsivamente (exame e perícia), muito embora limitados à colheita de cabelos, saliva, urina ou sangue, já que justificados pela necessidade da descoberta da verdade material e não violadores do conteúdo essencial daqueles direitos fundamentais do recorrente". Vejamos.
"Como já atrás ficou consignado, apenas é ilegítima a restrição dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados em caso de conflito com direitos ou valores da mesma matriz, quando a restrição atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento (a essência) de cada preceito constitucional nesta matéria, sendo certo que mesmo no caso de falta de preceito constitucional que autorize a restrição pela lei pode tal falta ser colmatada pelo recurso à Declaração Universal dos Direitos do Homem, nos termos do n.º 2 do artigo 16.º da Constituição da República [].
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu artigo 29.º, permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito dos valores enunciados: "direitos e liberdades de outrem", "justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral numa sociedade democrática".
No caso vertente, o que está em conflito é o direito à integridade corporal e o direito à autodeterminação corporal do recorrente, por um lado, e o interesse comunitário e o do Estado na administração da justiça penal, por outro, pelo que nada obsta a que o legislador estabeleça limites àqueles direitos fundamentais do recorrente para assegurar a execução e cumprimento da justiça penal, isto é, para assegurar uma justa exigência da ordem pública e do bem-estar geral, desde que, obviamente, os limites ou restrições não destruam ou afectem o conteúdo essencial daqueles direitos".
"É certo que Vieira de Andrade [] expressa entendimento segundo o qual há direitos, como o direito à vida, o direito à integridade física ou o direito a não ser condenado senão em virtude de lei anterior, cuja violação, por menor que seja, não é admissível, pois sempre será atingido o conteúdo essencial do preceito constitucional que os consagra []. No entanto, estamos em crer que relativamente ao direito à integridade pessoal (física e moral) assim não será no caso de lesões insignificantes e reversíveis, designadamente quando em confronto com direitos ou valores preponderantes, como o direito à vida, segurança das pessoas ou a administração da justiça penal.
Assim o entendeu, aliás, o Tribunal Constitucional no Acórdão 156/88 (Diário da República, 2.ª série, de 17 de Setembro de 1988), em que apesar de se não ter tomado conhecimento do recurso, num caso de recusa de efectuação de um teste de alcoolemia previsto em regulamento dos Caminhos de Ferro Portugueses, em que se pretendia a declaração de inconstitucionalidade das respectivas normas, argumentando tratar-se de normas provenientes da autonomia privada, na respectiva fundamentação consignou-se que o direito à integridade pessoal deveria ceder, no caso, perante o direito à vida e à segurança das pessoas transportadas (ver nota 4).
Tal como assim o entendeu o legislador ordinário ao estabelecer, como já consignado ficou, restrições ao direito à integridade corporal e à integridade de autodeterminação corporal, mediante a imposição de certas condutas e comportamentos, tendo em vista a salvaguarda de direitos, valores e interesses preponderantes, designadamente nas áreas da saúde pública, da defesa nacional e da justiça."
"E do mesmo modo o entende Figueiredo Dias [], o qual refere que o arguido pode constituir meio de prova, em sentido material, através das declarações prestadas sobre os factos, e em sentido formal, na medida em que o seu corpo e o seu estado corporal podem ser objecto de exames (artigos 175.º e 178.º do Código de Processo Penal), afirmando de seguida:
[...] Na medida, porém, em que o objecto do exame seja uma pessoa, que assim se vê constrangida a sofrer ou suportar uma actividade de investigação sobre si mesma, o exame constitui um verdadeiro meio de coacção processual - como claramente o inculca, de resto, a 2.ª parte do corpo do artigo 178.º do CPP, ao estatuir que, para realização de um exame, pode "o juiz (hoje o MP) tomar efectivas as suas ordens, até com o auxílio da força" - , tendo por isso de submeter-se aos princípios (já acima referidos) que estritamente demarcam a admissibilidade de tais meios de coacção.
Sendo os exames, na parte referida, um meio de coacção processual, as normas que os permitem não poderão deixar de ser entendidas e aplicadas nos termos mais estritos, tal como sucede com os restantes meios de coacção, máxime com a prisão preventiva; em um como em outro caso a liberdade é a regra e a restrição daquela a excepção. Excepção que, aliás, não deixa de ser constitucionalmente imposta: assegurando o artigo 8.º, n.º 1, da Constituição Política a todos os cidadãos o direito à integridade pessoal, quaisquer limitações que a tal direito sejam feitas pela lei ordinária relativa a exames em processo penal terão de obedecer à máxima strictissime sunt interpretanda (ver nota 6)."
Ora, as colheitas de cabelos ou sangue, caso não consentidas, consubstanciam intervenções no corpo que, realizadas por perito médico "com rigorosa observância das regras das leges artis, se podem e devem graduar como ofensas insignificantes (mínimas) do direito à integridade corporal e do direito à autodeterminação corporal, posto que afectam, transitória e momentaneamente, de forma muito reduzida, o corpo físico e o sistema volitivo" do interveniente.
"Quanto à recolha de saliva ou de urina, afigura-se-nos que nem sequer se pode considerar susceptível de ofensa o direito à integridade corporal do recorrente, mas tão-só o direito à autodeterminação corporal, e em grau ou medida desprezível, isto é, irrelevante."
Deste modo e tendo presente que o exame ordenado tem em vista a procura da verdade material para administração da justiça penal, o que constitui uma exigência da ordem pública e do bem-estar geral, bem como um dos pilares do Estado de direito, há que concluir que a realização compulsiva daqueles se mostra justificada e legitimada a significar que a decisão impugnada, proferida ao abrigo da norma do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que atribui à autoridade judiciária o poder de compelir as pessoas à submissão de exame devido ou a facultar coisa que deva ser examinada, não viola os artigos 25.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, da Constituição da República, na parte em que ordena o exame e perícia mediante extracção de saliva por via de zaragatoa bucal, dado que a mesma apenas é susceptível de ofender o direito à autodeterminação corporal do recorrente em medida irrelevante.
Assim não nos merece, pois, qualquer censura o despacho recorrido."
7 - Desta decisão foi interposto o presente recurso, pelo seguinte requerimento:
"[...] não se conformando com o, aliás, douto Acórdão proferido em 3 de Maio de 2006, dele v[e]m interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 280.º, n.os 1, alínea b), e 4, da CRP e no artigo 70.º, n.os 1, alínea b), e 2, da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
Esclarece que o presente recurso é limitado à parte do dito acórdão, que, mantendo o decidido pelo tribunal de 1.ª instância, desatendeu a suscitada questão da inconstitucionalidade:
a) Da norma do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de possibilitar ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita; e b) Da norma resultante do artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior.
Dando cumprimento ao disposto no artigo 75.º-A da citada Lei 28/82, de 15 de Novembro, diz o aqui recorrente:
São as normas atrás aludidas, na interpretação que delas fez o Tribunal da Relação do Porto, que o ora recorrente pretende sejam declaradas inconstitucionais, pois as mesmas violam frontalmente os seguintes preceitos e princípios da nossa lei fundamental:
a) O artigo 2.º da CRP, que consagra o princípio fundamental do Estado de direito a que estão inerentes as ideias de jurisdicidade, constitucionalidade e direitos fundamentais, concretizado nos seguintes subprincípios:
No subprincípio do Estado constitucional ou da constitucionalidade, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, da CRP, segundo o qual, e para além do mais, a validade das leis e demais actos do Estado depende da sua conformidade com a Constituição;
No subprincípio da protecção dos direitos, liberdades e garantias, resultante dos artigos 24.º e seguintes da CRP, onde avultam, para o que aqui interessa, a inviolabilidade do direito à integridade pessoal, à identidade pessoal (v. g., genética), à autodeterminação pessoal e à reserva da intimidade;
No subprincípio da reserva de lei em matéria de restrição de direitos, liberdades e garantias, resultante do artigo 18.º da CRP;
No subprincípio da independência dos tribunais e do acesso à justiça, consagrado nos artigos 20.º e 205.º e seguintes da CRP, segundo o qual, e para além do mais, a todos é garantido o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, incumbindo aos tribunais, na administração da justiça, a defesa desses mesmos direitos e interesses legalmente protegidos;
No subprincípio da protecção da confiança, que se encontra desde logo manifestado no artigo 18.º, n.º 3, da CRP, segundo o qual as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, para além de deverem revestir carácter geral e abstracto, não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais;
No subprincípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, aflorado em diversas normas da CRP e que assume particular relevância na limitação das restrições de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (cf., por exemplo, artigo 18.º, n.º 2, da CRP); e
No subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo procedimento, aflorado em diversos preceitos da CRP e segundo o qual a todos é garantido um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito (são manifestações deste subprincípio, entre outras, as várias garantias do processo judicial, válidas sobretudo para o processo penal, como por exemplo, o princípio da igualdade processual - artigo 13.º da CRP -, o princípio da conformação do processo segundo os direitos fundamentais - artigo 32.º da CRP - e o princípio do contraditório - artigo 32.º, n.º 3, da CRP);
b) O artigo 32.º da CRP, que consagra o princípio fundamental da plenitude das garantias de defesa, que tem como corolários lógicos o princípio da presunção de inocência (onde se integra a "proibição da inversão do ónus da prova em detrimento do arguido" e a "proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares"), o princípio da estrutura acusatória do processo penal (donde decorre a ideia de "igualdade de armas" entre a acusação e a defesa, devendo os actos instrutórios subordinar-se ao exercício do contraditório) e o princípio da nulidade das provas obtidas com ofensa da integridade pessoal, da reserva da intimidade da vida privada e da inviolabilidade do domicílio e da correspondência.
A inconstitucionalidade das referidas normas, na interpretação que delas fez o Tribunal da Relação do Porto, foi suscitada pelo ora recorrente na motivação do recurso dirigido a esse tribunal de 2.ª instância."
8 - Revistos os autos neste Tribunal em 19 de Setembro de 2006, foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo afirmado, nomeadamente, o seguinte:
"[...] 27 - Donde resulta à evidência estarem manifestamente feridas de inconstitucionalidade:
a) A norma do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de possibilitar ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita; e
b) A norma resultante do artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior [...]"
9 - Notificado para responder, querendo, à alegação do recorrente disse o Ministério Público, recorrido, a concluir:
"1 - Não são inconstitucionais as normas dos artigos 172.º, n.º 1, e 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de poder valer como prova a obtida através de exame a vestígios biológicos, ordenada pela autoridade judiciária competente e conseguidos através de colheita coactiva (consistente em zaragatoa bucal para extracção de saliva) para determinação de perfil genético a arguido, contra a sua vontade e recusa expressa em colaborar ou permitir tal colheita.
2 - Termos em que não deverá proceder o presente recurso."
10 - Já após a contra-alegação do Ministério Público recorrido, o recorrente juntou aos autos um parecer do Professor Gomes Canotilho, que, no essencial, considerando que, "o recurso ao ácido desoxirribonucleico (DNA) na investigação criminal é, pelo seu elevado grau de fiabilidade, certamente o caminho do futuro, discutindo-se, quando muito, os limites que devem rodear a utilização da informação assim obtida", e que "o respeito pela dignidade da pessoa humana obriga o legislador a disciplinar as análises genéticas com um nível de rigor e precisão constitucionalmente adequado ao relevo dos bens susceptíveis de lesão", conclui que "o quadro normativo existente não é suficiente, por si só, para legitimar a recolha compulsiva de material biológico para efeito de recolha de DNA, sem prejuízo de a CRP não suscitar objecções de fundo à utilização deste método de investigação, desde que disciplinado em termos constitucionalmente adequados, salvaguardando sempre as dimensões essenciais dos direitos fundamentais constitucionalmente tutelados". E, sendo assim, "o recurso à extracção de material biológico sem fundamento legal específico configura uma intervenção restritiva dos direitos, liberdades e garantias destituída de qualquer arrimo constitucional e legal, devendo ser julgada inconstitucional qualquer norma legal existente - em matéria de provas, perícias e exames, identificação civil ou verificação do estado físico e psicológico de condutores e peões - na interpretação que eventualmente se lhe queira vir a dar no sentido de, a partir dela, se pretender legitimar esta prática".
Notificado o recorrido, nada disse.
Corridos os vistos, cumpre, então, decidir.
II - Fundamentação. - 11 - Delimitação do objecto do recurso. É o seguinte, na parte ora relevante, o teor dos preceitos questionados:
"Artigo 172.º
Sujeição a exame
1 - Se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido [...] pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente.
Artigo 126.º
Métodos proibidos de prova
1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 - São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus-tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
...
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
...
3 - Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
..."
Considera o recorrente, nos termos do seu requerimento de interposição do recurso, delimitador do respectivo objecto, que o artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal é inconstitucional quando interpretado "no sentido de possibilitar ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético, quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita"; e que o artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, é inconstitucional quando interpretado "no sentido de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior". A exacta delimitação do objecto do recurso exige, contudo, alguma concretização adicional. É que, como já se referiu, por um lado, está aqui em causa a recolha de saliva através de zaragatoa bucal contra a vontade expressa do arguido, mas sem que tivesse existido utilização de força física - embora tenha havido ameaça de recurso à mesma, na medida do necessário para salvaguardar a integridade de quem iria realizar a recolha; por outro, a colheita coactiva de vestígios biológicos foi determinada para subsequente comparação com os vestígios biológicos colhidos no local do crime e sempre na medida do estritamente necessário, adequado e indispensável à prossecução do fim a que se destina. Foi esta a concreta dimensão normativa dos artigos indicados pelo recorrente que foi aplicada pela decisão recorrida, pelo que só ela constitui objecto idóneo deste recurso de constitucionalidade.
Assim, o que está em causa nos presentes autos é a questão da compatibilidade com a Constituição, designadamente com os princípios e preceitos indicados pelo recorrente, dos preceitos supracitados quando interpretados, o artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em termos de possibilitar ao Ministério Público ordenar a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético na medida estritamente indispensável para posterior comparação com vestígios colhidos no local do crime, se necessário através da ameaça da utilização do recurso à força física para salvaguarda da integridade de quem realizar a recolha, quando aquele tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita e, o artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do mesmo diploma, em termos de considerar válida e, consequentemente, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos termos antes descritos.
12 - Julgamento do objecto do recurso. - A resposta a dar às questões de constitucionalidade colocadas pelo recorrente pressupõe que, num primeiro momento, se determine se (e, em caso afirmativo, quais) os direitos, liberdades e garantias fundamentais que, porventura, são restringidos pelas normas cuja constitucionalidade vem questionada pelo recorrente. Subsequentemente, e em caso de resposta afirmativa àquela questão, haverá então que decidir se uma tal restrição respeita o regime constitucional específico das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
12.1 - A primeira questão respeita à concretização dos direitos, liberdades e garantias eventualmente afectados pelas normas cuja constitucionalidade vem questionada.
12.1.1 - No entendimento do recorrente, as normas questionadas contendem, desde logo, com o seu direito, protegido pelo artigo 25.º da Constituição, à integridade pessoal, quer física quer moral. Vejamos se assim é.
A jurisprudência deste Tribunal sobre o âmbito da integridade pessoal (física ou moral) protegida pelo artigo 25.º da Constituição abre algumas pistas importantes para a questão que agora nos ocupa. Assim, no Acórdão 128/92 (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 21, 1992, pp. 481 e seguintes), após se explicitar que o direito à integridade pessoal constitucionalmente protegido se materializa no "direito da pessoa a não ser agredida ou ofendida no seu corpo ou no seu espírito, seja por meios físicos seja por meios morais", o Tribunal acrescentou:
"[...] o mesmo preceito constitucional - dito artigo 25.º proíbe também, como já se disse, que, na actividade indagatória do Estado, se lance mão de métodos ou técnicas que atentem contra a integridade moral do homem, pois isso seria desrespeitar a pessoa na sua dignidade ontológica - no que ela é, por conseguinte.
O preceito em causa não proíbe, porém, a actividade indagatória (judicial ou policial), em si mesma, quer o seu objectivo seja a averiguação de crimes e dos seus autores quer seja o apuramento de condutas que [...] violam deveres contratuais e, assim, lesam direitos alheios. E não a proíbe porque, sendo o Estado de direito um Estado de justiça, o processo, tanto o criminal como o civil, há-de reger-se por regras que, respeitando a pessoa em si mesma (na sua dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento da verdade, pois só desse modo se podem fazer triunfar os direitos e os interesses para cuja garantia o processo é necessário."
Por sua vez, no Acórdão 616/98 (que se pronunciou sobre a compatibilidade com a Constituição da exigência de realização de exames de sangue para efeitos de investigação da paternidade e está disponível, como os adiante citados que não tenham outra indicação, na página da Internet do Tribunal Constitucional no endereço http://www.tribunalconstitucional.pt), disse este Tribunal:
"[...] Na vertente da integridade física - a que agora está em causa - o direito à integridade pessoal traduz-se no direito de não sofrer ofensas corporais. Sabido que as ofensas corporais se podem revestir de gravidade muito diversa, admite-se que se questione, desde logo, se o direito consagrado na CRP abriga o seu titular de todas as ofensas, qualquer que seja a sua gravidade, tendo em conta a natureza, particularmente gravosa, das que o n.º 2 do mesmo artigo 25.º enuncia.
Parece, no entanto, inequívoco que este n.º 2 apenas se limita a concretizar alguns casos especialmente reprováveis de ofensa à integridade física e moral, não esgotando, nem de longe nem de perto, as situações que, por força do n.º 1, se devem julgar constitucionalmente censuradas.
Vem isto ao caso pela circunstância de a situação em causa se traduzir num mero exame de sangue (análise), ou seja, aquilo que, nos dias de hoje, se pode considerar, na linguagem da Decisão de 4 de Dezembro de 1978 da Comissão Europeia dos Direitos do Homem (in Decisions et Rapports, n.º 16, p. 185), uma "intervenção banal".
Aceita-se, contudo, na linha daquela "Decisão", que o "exame de sangue", contra a vontade do examinado, possa constituir, nos limites da protecção constitucional, uma ofensa à integridade física da pessoa."
Por último, no Acórdão 226/2000 [que se pronunciou sobre a constitucionalidade da norma constante do artigo 9.º, n.º 2, alínea b), da Lei 15/94, de 11 de Maio, quando interpretada em termos de considerar que uma agressão voluntária e consciente, consubstanciada em actos de violência física, não traduz uma violação de direitos, liberdades ou garantias pessoais dos cidadãos quando daí não resulte qualquer lesão], o Tribunal enfrentou de novo a questão do limiar inferior da integridade física protegida constitucionalmente, tendo, para o que ora releva, concluído que:
"[...] nada legitima uma interpretação do conteúdo constitucional do direito à integridade pessoal, concretamente na sua componente de direito à integridade física, em termos de apenas abranger a protecção contra um determinado grau de ofensas corporais, designadamente as que tenham por efeito a provocação de uma lesão ou de incapacidade para o trabalho [...]"
Por sua vez, Gomes Canotilho, na conclusão 13 do parecer junto aos autos, afirma:
"A recolha de material biológico para análise do DNA, embora possa ser entendida como uma restrição do direito à integridade pessoal, não colide com nenhuma das suas dimensões essenciais, podendo justificar-se de acordo com critérios de proporcionalidade, desde em ordem à prossecução de uma finalidade constitucionalmente legítima."
Também Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, t. I, 2005, pp. 267-279), em comentário ao artigo 25.º da Constituição, se pronunciam sobre o alcance constitucional do direito à integridade pessoal. Depois de acentuarem que "a importância constitucional da tutela da integridade pessoal está bem evidenciada na referência à sua inviolabilidade, na inexistência de autorização expressa de leis restritivas, e na proibição de afectação do direito à integridade pessoal nas situações de suspensão de direitos fundamentais em estado de sítio ou de emergência (artigo 19.º, n.º 6, da Constituição)" [...], bem como na "imposição da nulidade de provas obtidas mediante violação da integridade física e moral da pessoa", acrescentam, sintetizando o essencial da jurisprudência constitucional sobre a matéria, que:
"[...] Na sua expressão mais simples, a protecção da integridade física e moral consiste no direito à não agressão ou ofensa ao corpo ou espírito, por quaisquer meios (físicos ou não). Consagra-se assim uma tutela constitucional firme, quer contra quaisquer ofensas à integridade física - independentemente da sua gravidade (Acórdão 616/98) - quer contra violações do direito à integridade moral [...].
A intensidade da tutela jusfundamental da integridade pessoal - e, em particular, da integridade física - impõe limites estritos a quaisquer intervenções não consentidas das autoridades públicas [...]
O Tribunal Constitucional, no Acórdão 319/95, concluiu, no entanto, que a normação que admite a imposição do chamado teste do álcool [...] não ofende materialmente a Constituição [...]
Todavia, se a obrigatoriedade de tais testes resiste, em si mesma, ao crivo do juízo de inconstitucionalidade, o mesmo não se pode dizer em relação à realização forçada dos mesmos sobre o corpo do condutor contra a vontade deste. A questão não pode deixar de ser equacionada à luz do princípio da proporcionalidade [...]"
Especificamente sobre a relação entre a colheita coerciva de material genético para efeitos de realização de testes de ADN no âmbito do processo penal e a inviolabilidade da integridade física pronunciaram-se Helena Moniz, já em 2002, e, mais recentemente, Sónia Fidalgo.
Helena Moniz ("Os problemas jurídico-penais da criação de uma base de dados genéticos para fins criminais", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Abril-Junho de 2002, p. 250) conclui, no essencial, que "a recolha de amostras do corpo do delinquente constitui um comportamento que integra o tipo legal de crime de violação da integridade física, a não ser que ocorra uma causa de exclusão da ilicitude como o consentimento [...]"
Sónia Fidalgo ("Determinação do perfil genético como meio de prova em processo penal", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 2006, pp. 122-123), por seu turno, concordando com Helena Moniz, acrescenta:
"[...] há que referir que os avanços tecnológicos verificados na área da engenharia genética permitem a análise de ADN a partir de outras amostras biológicas para além do sangue (esperma, saliva, urina, pêlos). Por este motivo, há quem considere que a colheita de material biológico, em si mesma considerada, não chega a constituir, verdadeiramente, um atentado à integridade física - tratar-se-á de agressão insignificante. Haverá ofensa à integridade física apenas no caso de o arguido recusar a colaboração e a colheita ser feita com recurso à força sobre o corpo do arguido. Deste modo, o que poderá constituir um atentado à integridade física não será propriamente a colheita do material mas o modo como a colheita é realizada.
No entanto, temos dúvidas quanto a esta posição. Entendemos, com Paula Ribeiro de Faria, que o princípio bagatelar, enquanto critério de valoração da acção, se transforma numa subespécie ou categoria da adequação social [...]
Poderemos falar, nestes casos, de uma insignificância de lesão a que esteja conaturalmente ligada uma ausência de negação do sentido social contido no tipo de ilícito? Parece-nos que não.
Deste modo, não concordamos com a ideia de que só haverá ofensa à integridade física se houver recurso à força no momento da colheita.
[...]
Quanto à protecção da integridade moral, dada a natureza imaterial do bem jurídico em causa, o problema torna-se ainda mais complexo [...]
No concreto âmbito da prova em processo penal, a violação da integridade moral traduzir-se-á na perturbação da liberdade de vontade ou de decisão e da capacidade de memória ou de avaliação."
Sobre questão paralela à que agora nos ocupa pronunciou-se também o Tribunal Constitucional espanhol, em sentença proferida em 16 de Dezembro de 1996 (STC 207/1996), numa situação em que estava em causa uma determinação, contrária à vontade do arguido, para a extracção de cabelos para posterior análise genética e utilização como prova em processo penal. Depois de recordar a sua jurisprudência anterior, segundo a qual através do reconhecimento do direito fundamental à integridade física e moral se protege a inviolabilidade da pessoa contra qualquer tipo de intervenção nesses bens que careça do consentimento, acrescentou que, embora aquele direito se encontre relacionado com o direito à saúde, o seu âmbito constitucionalmente protegido não se reduz exclusivamente aos casos em que exista um risco ou dano para esta, pois tal direito é afectado por qualquer intervenção (no corpo) que careça do consentimento do seu titular. Protegendo o direito à integridade física o direito de uma pessoa não sofrer lesão do seu corpo ou da sua aparência externa sem consentimento, o facto de a intervenção coactiva no corpo poder produzir dor ou sofrimento ou um risco ou dano para a saúde constitui um plus de afectação, mas não é condição sine qua non para entender que existe uma intromissão no direito fundamental à integridade física.
Esta decisão vai, porém, ainda um pouco mais longe, distinguindo, no contexto do processo penal, dois tipos de diligências sobre o corpo do arguido, em função da afectação, pela sua realização, de um direito. De um lado, as chamadas inspecções e registos corporais, que consistem em qualquer género de reconhecimento do corpo humano, quer seja para a identificação do arguido (exames dactiloscópicos ou antropomórficos, etc.) ou de circunstâncias relativas à comissão do facto punível (electrocardiogramas, exames ginecológicos, etc.) ou para a descoberta do objecto do crime, nas quais, em princípio, não resulta afectado o direito à integridade física, ao não se produzir, em geral, lesão ou diminuição do corpo, e, por outro lado, as qualificadas pela doutrina como intervenções corporais, isto é, as consistentes na extracção do corpo de determinados elementos externos ou internos para serem submetidos a exame pericial (análises de sangue, urina, pêlos, unhas, biópsias, etc.), em que, regra geral, é afectado o direito à integridade física.
Feito este excurso, cabe voltar a perguntar: a recolha de saliva através da utilização da técnica da zaragatoa bucal, sem efectivo recurso à força física mas realizada contra a vontade expressa do arguido e sob a ameaça de recurso à mesma, conflitua com o âmbito constitucionalmente protegido do seu direito à integridade pessoal?
Considera o Tribunal que há que responder afirmativamente a esta questão.
Na verdade, a introdução no interior da boca do arguido, contra a sua vontade expressa, de um instrumento (zaragatoa bucal) destinado a recolher uma substância corporal (no caso, saliva), ainda que não lesiva ou atentatória da sua saúde, não deixa de constituir uma "intromissão para além das fronteiras delimitadas pela pele ou pelos músculos" (a expressão é de Costa Andrade, Direito Penal Médico, 2004, p. 70), uma entrada no interior do corpo do arguido e, portanto, não pode deixar de ser compreendida como uma invasão da sua integridade física, abrangida pelo âmbito constitucionalmente protegido do artigo 25.º da Constituição.
Questão diversa, que oportunamente trataremos, é a de saber se, considerando, designadamente, a sua intensidade e a finalidade a que se destina, ela não estará constitucionalmente legitimada.
12.1.2 - As normas que prevêem a possibilidade de determinação da realização coactiva de um exame, contra a vontade do arguido e sob ameaça do recurso à força física, contendem ainda com a própria liberdade geral de actuação.
Como se afirmou no Acórdão 368/2002, "há que ter presente que, após a revisão constitucional de 1997, o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição passou a consagrar expressamente o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, "englobando a autonomia individual e a autodeterminação e assegurando a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida" (Acórdão 288/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40.º vol., p. 61), o que implica o reconhecimento da liberdade geral de acção, sendo certo que, nesta sua dimensão, o "direito ao desenvolvimento da personalidade não protege, nomeadamente, apenas a liberdade de actuação, mas igualmente a liberdade de não actuar (não tutela, neste sentido, apenas a actividade, mas igualmente a passividade, com uma garantia não unidimensional de actuação, mas pluridimensional, de liberdade de comportamento, enquanto decorrente da ideia de desenvolvimento da personalidade" (Paulo Mota Pinto, "O direito ao livre desenvolvimento da personalidade", Portugal-Brasil, ano 2000, Studia Juridica - Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 1999, pp. 149 e segs.)".
Fica, porém, para já, mais uma vez em aberto a questão de saber se, atento, por um lado, o grau de intrusividade - que é "mínimo", nas palavras de Gomes Canotilho (cf. p. 14 do parecer junto aos autos) - e, por outro, a finalidade da restrição, não estará a mesma constitucionalmente justificada.
12.1.3 - Alega ainda o recorrente que as normas que vêm questionadas conflituam igualmente com o seu direito à reserva da vida privada, constitucionalmente tutelado pelo artigo 26.º da Constituição. Também aqui, com razão, como veremos já de seguida.
A jurisprudência deste Tribunal sobre o conteúdo constitucional do direito à reserva da intimidade da vida privada é relativamente vasta. No já citado Acórdão 368/2002 escreveu-se, nomeadamente:
"[...] O direito à reserva da intimidade da vida privada, entre outros direitos pessoais, está previsto no artigo 26.º da Constituição.
A caracterização deste direito, à falta de uma definição legal do conceito de "vida privada", foi feita no Acórdão 355/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37.º vol., pp. 7 e segs.), seguindo o que este Tribunal afirmara já nos Acórdãos n.os 128/92 e 319/95, in Diário da República, 2.ª série, de 24 de Julho de 1992 e de 2 de Novembro de 1995, respectivamente, nos seguintes termos: "o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular".
O direito à intimidade tem sido igualmente entendido, na doutrina, como "o direito que toda a pessoa tem a que permaneçam desconhecidos determinados aspectos da sua vida, assim com a controlar o conhecimento que terceiros tenham dela" (Lucrecio Rebollo Delgado, El derecho fundamental a la intimidad, Dykinson, 2000, p. 94).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, Coimbra, 1993, n. VIII ao artigo 26.º), este direito "analisa-se principalmente em dois direitos menores: a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar, e b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem [...]""
Na situação agora em análise, estaria, então, em causa a primeira dimensão desse direito. A já referida realização coactiva de um exame destinado à recolha de saliva para posterior análise genética, contra a vontade do arguido e sob ameaça do recurso à força física, consubstanciaria uma intromissão não autorizada na esfera privada do arguido.
12.1.4 - Intimamente ligado ao direito à reserva da intimidade da vida privada, embora frequentemente objecto de um tratamento autónomo, surge ainda o direito à autodeterminação informacional, que uma parte da doutrina faz decorrer dos artigos 26.º e 35.º da Constituição (cf., nesse sentido, Gössel, "As proibições de prova no direito processual penal", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Julho-Setembro de 1992, pp. 431-433, Helena Moniz, "Notas sobre a protecção de dados pessoais perante a informática", Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Abril-Junho de 1997, pp. 245-261, e "Os problemas...", cit., pp. 246-247, Sónia Fidalgo, ob. cit., p. 127) e que, em síntese, tem sido definido como o direito de cada cidadão a "ser ele próprio a decidir quando e dentro de que limites os seus dados pessoais podem ser revelados" (Gössel, ob. cit., p. 432). Ora, quer se entenda que daqueles preceitos constitucionais decorre, com autonomia, um direito, liberdade e garantia à autodeterminação informacional, quer se veja nele apenas a configuração de um habeas data, quer se acentue a tónica da confidencialidade, em conexão com o direito à reserva da intimidade da vida privada, o certo é que o comportamento em causa contende, também nesta vertente, com direitos, liberdades e garantias.
12.1.5 - Alega ainda o recorrente que as normas questionadas contendem com o privilégio contra a auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), cuja consagração constitucional decorre, no seu entendimento, dos artigos 2.º, 26.º e 32.º, n.os 2 e 4, da Constituição da República Portuguesa. Vejamos, se terá aqui razão.
Em primeiro lugar, é inquestionável que o citado princípio tem consagração constitucional, conforme resulta da jurisprudência deste Tribunal (cf., por exemplo, os Acórdãos n.os 695/95, 542/97, 304/2004 e 181/2005). Não é, portanto, o reconhecimento da consagração constitucional do princípio que suscita dificuldades mas sim, como reconhece Costa Andrade (cf. Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra Editora, 1992, p. 127), "a definição da sua compreensão e alcance". E, aqui, como reconhece este autor, as dificuldades aumentam à medida que nos aproximamos da "zona de fronteira e concorrência entre o estatuto do arguido como sujeito processual e o seu estatuto como objecto de medidas de coacção ou de meios de prova. Nesta zona cinzenta deparam-se, não raramente, situações em que não é fácil decidir: quando se está ainda no âmbito de um exame, revista, acareação ou reconhecimento, admissíveis mesmo se coactivamente impostos; ou quando, inversamente, se invade já o campo da inadmissível auto-incriminação coerciva".
Este Tribunal já teve, como vimos, ocasião de se pronunciar sobre o princípio da não auto-incriminação, embora em associação com o direito a não prestar declarações. Assim, no Acórdão 695/95, o Tribunal pronunciou-se pela inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 342.º do Código de Processo Penal, "enquanto impõe ao arguido o dever de responder às perguntas do presidente do Tribunal no início da audiência de julgamento sobre os seus antecedentes criminais e sobre outro processo penal que contra ele corra nesse momento". Ponderou, então, o Tribunal:
"O princípio constitucional de que o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa tem como conteúdo essencial a exigência de que o arguido seja tratado como sujeito e não como objecto do procedimento penal, garantindo-lhe a Constituição, com essa finalidade, não só um direito de defesa (artigo 32.º, n.º 1), a que a lei confere efectividade através de direitos processuais autónomos a exercer durante o processo e que lhe permitem conformar a decisão final do processo, mas também a presunção de inocência até ao trânsito em julgado da condenação, elemento fundamental naquela perspectiva.
[...]
Este direito ao silêncio está directamente relacionado com o princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição). Com efeito, o interrogatório do arguido - exceptuadas as declarações finais antes do encerramento da audiência de julgamento, em que é perguntado se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa (artigo 361.º do CPP) - pode vir a ser utilizado como um meio de prova: as declarações do arguido podem constituir um importante meio de obter a verdade material dos factos, ponto é que se respeite a livre determinação da sua vontade.
Assim, o arguido deve ser informado, antes de qualquer interrogatório, de que goza do direito ao silêncio (artigos 141.º, n.º 4, 143.º, n.º 2, 144.º, n.º 1, e 343.º, n.º 1, do CPP), devendo também ser esclarecido de que o seu silêncio não pode ser interpretado desfavoravelmente aos seus interesses, não podendo, por isso, o arguido ser prejudicado por ter exercitado o seu direito a não prestar quaisquer declarações (o silêncio não pode ser interpretado como presunção de culpa).
De facto, o princípio da presunção de inocência ínsito no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição não só obsta a tal tipo de interpretação como também, se conexionado com o princípio da preservação da dignidade pessoal do arguido, leva a que a utilização do arguido (v. g., das suas declarações) como meio de prova seja sempre limitada pelo integral respeito da sua decisão de vontade [...]
O Tribunal entende que a imposição ao arguido do dever de responder a perguntas sobre os seus antecedentes criminais formulada no início da audiência de julgamento viola o direito ao silêncio, enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido.
Como se referiu, o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido assenta em que este deve ser considerado como "sujeito" do processo e não como objecto; ora, a obrigatoriedade de declarar, no início da audiência de julgamento, os antecedentes criminais do arguido e, bem assim, informar sobre processos pendentes implica a transformação do arguido de sujeito em objecto do processo [...]"
No Acórdão 181/2005, o Tribunal decidiu "não julgar inconstitucional o artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não exigir consentimento para o depoimento, como testemunha, de anterior co-arguido cujo processo, tendo sido separado, foi já objecto de decisão transitada em julgado". Afirmou-se então:
"4 - A importância de que se reveste a produção de prova em processo penal, enquanto superação de um modelo inquisitorial do processo e conquista basilar do processo de estrutura acusatória, tem subjacente a ideia da existência de limites intransponíveis à prossecução da verdade em processo penal, limites que se traduzem nos conceito e regime das proibições de prova [...]
Em particular, quanto à liberdade de declaração do arguido, ela é analisada pela doutrina numa dupla dimensão, positiva e negativa. Pela positiva, abre ao arguido o "mais irrestrito direito de intervenção e declaração em abono da sua defesa", e, pela negativa, a liberdade de declaração do arguido veda todas as tentativas de obtenção, por meios enganosos ou por coacção, de declarações auto-incriminatórias.
A vertente negativa (nemo tenetur se ipsum accusare) assume particular relevância em matéria de proibições de prova, não podendo o arguido ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua incriminação.
De novo com Costa Andrade, o que está em jogo "é garantir que qualquer contributo do arguido, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de auto-responsabilidade" (cf. ob. cit., p. 121).
E isto porque na liberdade de declaração espelha-se o estatuto do arguido como autêntico sujeito processual, decidindo, por força da sua liberdade e responsabilidade, sobre se e como quer pronunciar-se.
[...]
O conteúdo material do referido princípio (nemo tenetur...) é assegurado através da imposição dos deveres de esclarecimento ou de advertência às autoridades judiciárias e aos órgãos de polícia criminal [cf. artigos 58.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, alínea g), 141.º, n.º 4, e 343.º, n.º 1], estabelecendo-se a sanção de proibição de valoração, nos termos do artigo 58.º, n.º 4, e da nulidade das provas obtidas mediante tortura, coacção ou ofensa da integridade, física ou moral (cf. artigo 126.º, n.º 1, do CPP).
[...]
A justificação do impedimento de o co-arguido depor como testemunha tem como fundamento essencial uma ideia de protecção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, a que acima se fez referência e que se traduz no brocado latino nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a auto-incriminação (cf. neste sentido, Costa Andrade, ob. cit., p. 121).
A proibição de o arguido ser ouvido como testemunha, enquanto limitação dos mecanismos de constrangimento inerentes à prova testemunhal, constitui expressão do privilégio contra a auto-incriminação [...]
A consagração do impedimento representa uma renúncia do Estado à "colaboração forçada" na investigação de factos criminosos de quem é alvo dessa mesma investigação [...]"
Por seu turno, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), em sentença proferida em 17 de Dezembro de 1996 (caso Sauders versus Reino Unido), concluiu que o citado direito à não auto-incriminação se refere, em primeira linha, ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, ao direito ao silêncio, acrescentando que esse direito se não estende ao uso, em processo penal, de elementos obtidos do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, por exemplo as colheitas, por expiração, de sangue, de urina, assim como de tecidos corporais com finalidade de análises de ADN.
E o Tribunal Constitucional espanhol, nomeadamente a propósito da obrigatoriedade de submissão a testes de alcoolemia, afirmou que a realização dos mesmos não constitui, em si mesmo, uma declaração ou incriminação, para efeitos deste privilégio, uma vez que não se obriga o detectado a emitir uma declaração que exteriorize um conteúdo, admitindo a sua culpa, mas apenas a tolerar que sobre ele recaia uma especial modalidade de perícia (STC 103/1985). E, reiterando tal doutrina, analisou em 1997 (STC 191/1997) depois de citar jurisprudência do TEDH onde se reconhece que o direito ao silêncio e o direito à não auto-incriminação, embora não expressamente mencionados pelo artigo 6.º da CEDH, se situam no coração do direito a um processo equitativo e se relacionam estreitamente com o direito à defesa e à presunção da inocência - a questão na perspectiva, que é também a do agora recorrente, da violação do princípio da presunção de inocência. Neste contexto, considerou, então, que as garantias face à auto-incriminação só se referem às contribuições do arguido de conteúdo directamente incriminatório, não tendo o alcance de integrar no direito à presunção da inocência a faculdade de se poder subtrair a diligências de prevenção, indagação ou de prova. A configuração genérica de um tal direito a não suportar nenhuma diligência deste tipo deixaria desarmados os poderes públicos no desempenho das suas legítimas funções de protecção da liberdade e convivência, lesaria o valor da justiça e as garantias de uma tutela judicial efectiva [...]
No mesmo sentido se pronunciou Gomes Canotilho no parecer que o ora recorrente juntou aos autos, onde, depois de dar conta que "a doutrina dominante e uma boa parte da jurisprudência nacional e internacional de direitos humanos têm entendido que a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de análise de DNA" (p. 8), conclui precisamente que "a presunção de inocência do arguido abrange apenas o direito a permanecer calado e a beneficiar da existência de uma dúvida razoável, não impedindo a recolha de material biológico para efeitos de recolha de DNA" (cf. conclusão 10).
Ora, entende o Tribunal, no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de citar, que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se concluiu na sentença do TEDH supracitada, o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de ADN. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação.
12.2 - Constatado, porém, que determinados direitos, liberdades e garantias fundamentais são restringidos pelas normas cuja constitucionalidade vem questionada, há que decidir sobre a compatibilidade dessa restrição com a Constituição. Ora, não proibindo a Constituição, em absoluto, a possibilidade de restrição legal aos direitos, liberdades e garantias, submete-a, contudo, a múltiplos e apertados pressupostos (formais e materiais) de validade. Da vasta jurisprudência constitucional sobre a matéria decorre, em síntese, que qualquer restrição de direitos, liberdades e garantias só é constitucionalmente legítima se: i) for autorizada pela Constituição (artigo 18.º, n.º 2, primeira parte); ii) estiver suficientemente sustentada em lei da Assembleia da República ou em decreto-lei autorizado [artigo 18.º, n.º 2, primeira parte, e 165.º, n.º 1, alínea b]; iii) visar a salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (artigo 18.º, n.º 2, in fine); iv) for necessária a essa salvaguarda, adequada para o efeito e proporcional a esse objectivo (artigo 18.º, n.º 2, segunda parte), e v) tiver carácter geral e abstracto, não tiver efeito retroactivo e não diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais (artigo 18.º, n.º 3, da Constituição).
Vejamos, pois, se, no caso, estes pressupostos da validade constitucional da restrição legal de direitos fundamentais estão preenchidos.
12.2.1 - É desde logo evidente, não carecendo aqui, por isso, de qualquer demonstração adicional, que as normas que vêm questionadas pelo recorrente visam a salvaguarda de interesses constitucionalmente protegidos (designadamente os que são próprios do processo penal, como a realização da justiça e a prossecução da verdade material), têm carácter geral e abstracto, não têm carácter retroactivo nem aniquilam os direitos, liberdades e garantias em causa, não atingindo o respectivo conteúdo essencial.
12.2.2 - Por seguro temos, igualmente, que a Constituição não proíbe, em absoluto, a recolha coactiva de material biológico de um arguido (designadamente de saliva, através da utilização da técnica da zaragatoa bucal) e a sua posterior análise genética não consentida para fins de investigação criminal, no caso concreto para subsequente comparação com vestígios biológicos colhidos no local do crime. Decisivo é, no entanto, verificar se os normativos que concretizam os termos dessa possibilidade respeitam as exigências constitucionais de adequação, de exigibilidade e de proporcionalidade em sentido estrito que, como vimos, decorrem, designadamente, da segunda parte do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa. Ora, no caso em análise, não se pode afirmar que isso não aconteça com as normas que aqui vêem questionadas pelo recorrente, em termos de estas merecerem, deste ponto de vista, uma censura constitucional.
Na verdade, da jurisprudência do Tribunal Constitucional nesta matéria, cujo sentido foi sintetizado no Acórdão 187/2001, decorre, nomeadamente, que o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, se desdobra, como se afirmara já no Acórdão 634/93, "em três subprincípios: da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)". Há, assim, três exigências na relação entre as medidas e os fins prosseguidos. Como se afirmou no Acórdão 1182/96, "num primeiro momento perguntar-se-á se a medida legislativa em causa [...] é apropriada à prossecução do fim a ela subjacente", de seguida, "haverá que perguntar se essa opção, nos seus exactos termos, significou a "menor desvantagem possível" para a posição jusfundamental decorrente do direito [...]", finalmente, há que "pensar em termos de "proporcionalidade em sentido restrito", questionando-se "se o resultado obtido [...] é proporcional à carga coactiva" que comporta".
Da mesma jurisprudência decorre, igualmente, que, estando em causa actividade legislativa, é reconhecido ao legislador um considerável espaço de conformação, pelo que a avaliação pelos tribunais da inconstitucionalidade de uma norma, por violação do princípio da proporcionalidade, depende de se poder apontar uma manifesta inadequação da medida, uma opção manifestamente errada do legislador, o seu carácter manifestamente excessivo ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.
Ora, o Tribunal não considera que as restrições aos direitos fundamentais necessariamente implicadas pelas normas que agora estão em causa violem qualquer dos subprincípios enunciados uma vez que não se vislumbra que não constituam um meio adequado para a prossecução dos fins visados, que não sejam necessárias para alcançar esses fins, que se traduzam numa opção manifestamente errada do legislador ou que sejam manifestamente excessivas ou desproporcionadas.
Com efeito, é hoje comummente reconhecido, entre nós, praticamente de forma unânime, que a chamada "impressão digital genética" constitui um auxiliar cada vez mais imprescindível da investigação criminal. Nesse sentido se pronunciou a comissão encarregada de elaborar uma proposta de regime jurídico de constituição de uma base de dados de perfis de ADN para efeitos de identificação civil e criminal. No preâmbulo da proposta que apresentou ao Governo em 18 de Dezembro de 2006 e após afirmar que "cada vez mais as "impressões digitais genéticas" constituem o método de investigação criminal por excelência e cuja importância tem crescido ao longo do século XX, devendo ser o meio mais adequado de identificação para os próximos tempos", a comissão dá conta do facto de, desde o início dos anos 90, diversas instituições internacionais terem vindo a aconselhar a utilização das análises de ADN no sistema de justiça criminal e mesmo - o que agora não está em causa - a criação de bases de dados internacionalmente acessíveis que incluíssem os resultados daquelas análises (citando, v. g., a Recomendação R (92) 1 do Comité de Ministros do Conselho da Europa, de 10 de Fevereiro de 1992). Refere, ainda, que "em todo o mundo foram já construídas bases de dados de perfis de ADN em várias dezenas de países; na Europa, a maioria dos países produziu legislação relativa a bases de dados de perfis de ADN com finalidades de investigação criminal e ou de identificação civil, designadamente em Inglaterra (desde 1995), na Irlanda do Norte e Escócia (desde 1996), nos Países Baixos e na Áustria (desde 1997), na Alemanha e Eslovénia (desde 1998), na Finlândia e Noruega (desde 1999), na Dinamarca, Suíça, Suécia, Croácia e Bulgária (desde 2000), em França e na República Checa (desde 2001), na Bélgica, Estónia, Lituânia e Eslováquia (desde 2002) e na Hungria e Letónia (desde 2003)", bases que "têm amplamente evidenciado resultados positivos no que se refere à identificação de desaparecidos, identificação de delinquentes, exclusão de inocentes, interligação entre diferentes condutas criminosas, colaboração internacional em processos de identificação, contribuindo para dissuasão de novas infracções". E, assim sendo, seguindo a já citada Recomendação do Conselho da Europa, a "Resolução 97/C 193/02, do Conselho, de 9 de Junho de 1997 [e a] Resolução 2001/C 187/01, do Conselho, de 25 de Junho de 2001", propõe a criação das "normas básicas necessárias à criação e utilização de uma base de dados de perfis de ADN"
Aliás, nem outro é, neste ponto, o entendimento dos pareceres que o recorrente juntou e que, no essencial, suportam a sua alegação. De facto, Costa Andrade afirma ser sua "convicção segura que a Constituição não se opõe, em definitivo, à recolha coactiva de substâncias biológicas e à sua análise genética não consentida", dependendo apenas da existência - o que, na sua opinião não acontece no caso - de "uma lei específica que as autoriz[e] e prescrev[a] o respectivo regime (pressupostos materiais, formais, orgânicos e procedimentais)". E Gomes Canotilho, que começa por afirmar que "o recurso ao ácido desoxirribonucleico (DNA) é, pelo seu elevado grau de fiabilidade, certamente o caminho do futuro, discutindo-se, quando muito, os limites que devem rodear a informação assim obtida", acrescenta que "as virtualidades das análises de DNA como meio de investigação criminal são incontornáveis, não podendo ser escamoteada a [sua] importância [...] para a prossecução da verdade material em processo penal" e sublinhando mesmo que "desse objectivo [prossecução da verdade material]depende em larga medida a legitimação do Estado de direito material e das respectivas instituições junto da opinião pública, condição de viabilidade a prazo de uma ordem constitucional livre e democrática". A questão é, para estes autores, não a da desnecessidade ou desproporcionalidade das restrições em causa, mas a da insuficiência da habilitação legal [designadamente do recurso aos artigos 61.º, n.º 3, alínea d), e 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 6.º, n.º 1, da Lei 45/2004, de 19 de Agosto (que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses)], em que as mesmas surgem formalmente suportadas, questão que adiante abordaremos.
12.2.3 - Aqui chegados, é possível reconduzir a três as questões de que depende a resposta final às questões de constitucionalidade que vêm colocadas:
i) A primeira será a de saber se a Constituição autoriza a restrição dos direitos fundamentais que estão em causa - à integridade física, à liberdade geral de actuação, à reserva da vida privada e à autodeterminação informacional -, designadamente para a prossecução das finalidades específicas do processo penal;
ii) A segunda impõe que se averigúe se as normas contidas nos artigos 61.º, n.º 3, alínea d), e 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e na Lei 45/2004, de 19 de Agosto (que estabelece o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses), constituem habilitação legal suficiente para as restrições que aqui estão em causa ou se, pelo contrário, seria necessária uma outra lei específica que explicitamente autorizasse a recolha coactiva de substâncias biológicas e a sua análise genética não consentida, ao mesmo tempo prescrevendo o respectivo regime (i. e., estabelecendo os seus pressupostos materiais, formais, orgânicos e procedimentais);
iii) A estas acresce, por fim, uma terceira, decorrente do facto de a concreta restrição agora está em causa ser realizada no contexto do processo penal e para a prossecução das finalidades específicas deste, o que implica que se indague se a conformidade constitucional da norma que autoriza tal restrição depende de haver prévia autorização judicial ou se pode, como foi o caso, ser determinada apenas pelo Ministério Público.
12.2.3.1 - A primeira questão agora a resolver diz respeito à necessidade de autorização constitucional para a restrição de direitos fundamentais.
Com efeito, o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição refere, na parte que ora importa considerar, que "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição". E uma primeira leitura deste preceito poderia sugerir que aqueles direitos fundamentais, como é o caso de alguns dos que agora estão em causa (por exemplo, o direito à integridade física), para os quais a própria Constituição não prevê expressamente a possibilidade de restrições legais, seriam, pura e simplesmente, insusceptíveis de ser restringidos.
O reconhecimento do carácter incomportável de uma tal leitura, designadamente do ponto de vista das suas consequências práticas, levou, contudo, ao desenvolvimento jurisprudencial e doutrinário de uma multiplicidade de soluções - como o recurso, entre outros, ao artigo 29.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, às autorizações "indirectas ou tácitas" de restrições, às ideias de "limites imanentes", de "limites constitucionais não escritos", de "limites intrínsecos", de "restrições implícitas", de "limites instrumentais" - que, de uma ou outra forma, têm afastado aquela conclusão. O Tribunal Constitucional utilizou já diversas daquelas vias na sua jurisprudência sobre o tema, nomeadamente nos Acórdãos n.os 6/84, 81/84, 198/85, 225/85, 244/85, 7/87 (todos publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, respectivamente nos vols. 2.º, p. 257, 4.º, p. 225, 6.º, pp. 473, 793 e 211, e 9.º, p. 7) e 254/99. Na doutrina, pronunciaram-se, por exemplo, Casalta Nabais, "Os direitos fundamentais na jurisprudência do Tribunal Constitucional", Separata do Volume LXV (1989) do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pp. 20-28; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3.ª ed., Coimbra, 2000, t. IV, pp. 296-308; Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª ed., Coimbra, 2001, pp. 288-292; Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra, 2003, pp. 1276-1283; Jorge Reis Novais, As Restrições de Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra, 2003, José de Melo Alexandrino, Estruturação do Sistema de Direitos, Liberdades e Garantias na Constituição Portuguesa, vol. II, pp. 443-482, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, pp. 389-391.
Ora, independentemente da questão de saber qual é, do ponto de vista dogmático, a solução preferível, a verdade é que não pode seriamente duvidar-se - e, nessa conclusão, não existe discordância - que a Constituição autoriza, tendo em vista a prossecução das finalidades próprias do processo penal e respeitadas as demais e já referidas exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à liberdade geral de actuação, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informacional. Isso mesmo já disse o Tribunal, por exemplo, no Acórdão 254/99:
"Também o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar é consagrado à partida no n.º 1 do artigo 25.º da Constituição sem qualquer limite e, no entanto, o Tribunal Constitucional admitiu que em hipóteses de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova (e, portanto, de conflito com o interesse na prossecução penal e com o princípio da verdade material) pode haver intercepção e gravação de comunicações telefónicas (Acórdão 7/87, Acórdãos, cit., 9, pp. 7 e segs., 35; cf., de modo semelhante, quanto ao uso, não consentido pelo visado, de fotografia como prova em processo de divórcio, o Acórdão 263/97, Diário da República, 2.ª série, de 1 de Julho de 1997, pp. 7567 e 7569). [...] Também o direito de acesso a cargos públicos electivos (artigo 50.º, n.º 1, da Constituição) era, antes da revisão de 1989, consagrado sem limites à partida além dos que resultavam de outros preceitos constitucionais directamente para os magistrados judiciais (artigo 221.º, n.º 3, hoje 216.º, n.º 3) ou através de reservas de lei para os militares e agentes militarizados (artigo 270.º) e para as eleições para a Assembleia da República (artigo 153.º, hoje 150.º). Mas nos Acórdãos n.os 225/85 e 244/85 (Acórdãos, cit., 6, pp. 793 e segs., 798-801 e 211 e segs. e 217-228), o Tribunal admitiu restrições legais para os funcionários judiciais (em vista do interesse na separação e independência das funções autárquica e judicial) e para os funcionários e agentes da administração autárquica directa da mesma autarquia (em vista do interesse na independência e imparcialidade do poder local). Em ambos os casos as restrições expressas na Constituição ou resultantes das reservas de lei em certas matérias fundaram argumentos no sentido da admissibilidade de outras restrições, em hipóteses de conflito de direitos ou interesses constitucionalmente reconhecidos."
12.2.3.2 - Constatada assim a admissibilidade constitucional da restrição, haverá, face aos artigos 18.º, n.º 2, e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, que estatuem que só a lei pode autorizar a restrição de direitos, liberdade e garantias, habilitação legal suficiente?
Ora, é principalmente neste ponto que o recorrente - apoiado nos pareceres citados - sustenta a inconstitucionalidade das normas questionadas, resultante da inexistência no quadro normativo português, designadamente no invocado pela decisão recorrida, da "indispensável legitimação legal" para a restrição dos direitos, liberdades e garantias implicada na recolha coerciva de material biológico para posterior análise genética não consentida e valoração como prova no processo penal. Recordemos, então, a argumentação em que, no essencial, assentam aqueles pareceres.
Costa Andrade, admitindo "que a Constituição não se opõe, em definitivo, à recolha coactiva de substâncias biológicas e à sua análise genética não consentida", considera, contudo, que "estas medidas são portadoras de um potencial de danosidade e de devassa que está muito para além da que foi pressuposta pelo legislador ao regular os "normais" exames e perícias ou, mesmo, ao prescrever a recolha de sangue para determinar se um condutor está influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas", pelo que a sua legitimação não pode "pura e simplesmente pedir-se às normas que prevêem a submissão a exames da pessoa" (artigo 6.º da Lei 45/2002, de 19 de Agosto, ou artigo 152.º do Código da Estrada), sendo "indispensável", para que aquelas medidas fossem juridicamente admissíveis, "uma lei específica que as autorizasse e prescrevesse o respectivo regime (pressupostos materiais, formais, orgânicos e procedimentais)". Gomes Canotilho, após afirmar que "o recurso ao ácido desoxirribonucleico (DNA) é, pelo seu elevado grau de fiabilidade, certamente o caminho do futuro, discutindo-se, quando muito, os limites que devem rodear a informação assim obtida", conclui partindo do pressuposto de que as restrições aos direitos liberdades e garantias estão subordinadas a "uma reserva de lei qualificada [...] devendo ser expressamente previstas, claramente determinadas, devidamente fundamentadas e objecto de interpretação restritiva", igualmente no sentido de que "o quadro normativo existente não é suficiente, por si só, para legitimar a recolha compulsiva de material biológico para efeito de recolha de DNA [...] já que "as diferenças que existem entre a análise de DNA e os demais meios de prova, métodos de identificação civil de uma pessoa ou testes de avaliação da sua condição física e psicológica são mais do que suficientes para justificar a exigência de uma lei especial. Com efeito, a necessidade de uma lei específica sobre a recolha de DNA assume o maior relevo, tendo em conta o facto de que, embora se possa considerar que a extracção de material biológico não é, em si mesma, uma actividade excessivamente intrusiva ou lesiva da privacidade ou integridade física dos indivíduos, as utilizações potenciais que podem ser dadas ao DNA são muitas e necessitam de ser devidamente reguladas".
Vejamos se assim é, analisando, sucessivamente, se a) existe no quadro normativo português algum preceito legal a autorizar a determinação da realização coactiva dos exames que agora estão em causa e, em caso afirmativo, se b) esse quadro legal existente tem suficiente densidade normativa.
a) Para responder à primeira das questões acabadas de colocar, convém recordar o quadro normativo existente. Assim, o artigo 172.º do Código de Processo Penal estatui que "se alguém pretender eximir-se ou obstar a qualquer exame devido [...] pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente"; por sua vez, o artigo 61.º, n.º 3, alínea d), do mesmo Código prescreve que "recaem especialmente sobre o arguido os deveres de [...] sujeitar-se a diligências de prova [...] especificadas na lei e ordenada e efectuadas por entidade competente", e, finalmente, o artigo 6.º, n.º 1, da Lei 45/2004, de 19 de Agosto (que define o regime das perícias médico-legais e forenses), preceitua que "ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei".
Cremos, em primeiro lugar, que a tentativa de extrair daqueles preceitos do Código de Processo Penal a norma de habilitação para a realização dos exames que agora estão em causa assenta no vício lógico de dar por demonstrado o que se pretende demonstrar. Com efeito, o artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, apenas estatui que "se alguém pretender eximir-se [...] a qualquer exame devido [...] pode ser compelido por decisão da autoridade judiciária competente", mas não esclarece, só por si, e é isso que está agora em causa, quais exames são devidos, isto é, a que tipo de exames é que o arguido tem o dever de se sujeitar. Dito de outra forma: o artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que prescreve a possibilidade de realização coactiva dos exames que sejam devidos (i. e., que a autoridade judiciária competente possa determinar e, consequentemente, que o arguido tenha o dever de suportar), pressupõe - mas não permite fundamentar - o dever de o arguido se sujeitar a um concreto tipo de exame. E o mesmo acontece com o artigo 61.º, n.º 3, alínea d), quando estatui que recai especialmente sobre o arguido o dever de se sujeitar a diligências de prova especificadas na lei. Ora, também aqui a questão é, justamente, a de saber se a diligência de prova agora em causa está ou não suficientemente especificada na lei (que tem de ser, obviamente, outra lei, que não o próprio artigo 61.º).
Em suma: aqueles preceitos do Código de Processo Penal pressupõem que o exame seja devido ou que a diligência de prova esteja especificada na lei, pelo que deles não pode, logicamente, retirar-se o dever ou a especificação que os mesmos pressupõem.
E poderá retirar-se essa norma de habilitação do n.º 1 do artigo 6.º da Lei 45/2004, que estatui que "ninguém pode eximir-se a ser submetido a qualquer exame médico-legal quando este se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo e desde que ordenado pela autoridade judiciária competente, nos termos da lei"?
Do ponto de vista que agora importa considerar, este preceito vai mais longe do que os anteriores, podendo funcionar como norma de autorização para a determinação de um exame "necessário ao inquérito ou à instrução de qualquer processo" que aqueles preceitos do Código de Processo Penal pressupõem. Se o exame médico-legal for necessário ao inquérito ou instrução do processo, ninguém pode eximir-se à sua realização, prescreve o artigo 6.º, n.º 1, da Lei 45/2004, que o mesmo é dizer que o exame é, então, devido. E, sendo-o, poderá o arguido ser compelido à sua realização.
Este raciocínio contém, porém, um elemento ainda não demonstrado e que é posto em causa no parecer de Gomes Canotilho: o de que os exames genéticos estão incluídos na referência a "qualquer exame médico-legal" feita no citado artigo 6.º Ora, no parecer, o artigo 30.º da Lei 45/2004, que dispõe que "o acesso à informação genética ou biológica bem como o tratamento dos respectivos dados são regulados em legislação específica que salvaguarde os direitos fundamentais das pessoas, nos termos da Constituição e do direito internacional aplicável", é entendido como demonstrando que o legislador, consciente da especificidade das questões relativas à análise de ADN e considerando que a regulamentação contida na Lei 45/2004 para a realização de exames médico-legais em geral não é ainda suficiente para salvaguardar os direitos fundamentais das pessoas no caso de se tratar de exames genéticos, remeteu a sua regulamentação para legislação específica.
Cremos, porém, que este argumento prova demais, uma vez que o citado artigo 30.º, inserido nas disposições finais e transitórias do diploma, apenas se refere a dois dos aspectos que se relacionam com os exames médico-legais e perícias no âmbito da genética, para os remeter para legislação específica: o do "acesso à informação genética" e o do "tratamento de dados". Quer dizer: o que o legislador entendeu foi que, determinada a realização do exame que se mostrar necessário ao inquérito ou à instrução do concreto processo em causa e efectuado o mesmo - trata-se de disposição final e transitória -, há tão-somente dois aspectos do regime desse exame que ficam sujeitos a legislação específica: o acesso à informação recolhida no exame, nomeadamente por terceiros e já necessariamente fora do contexto da sua realização e do inquérito ou processo em causa, e o tratamento dos dados obtidos, nomeadamente no quadro de criação de uma eventual base dos mesmos. E, para estes efeitos, a regulamentação prevista na Lei 45/2004 não será ainda suficiente, necessitando de ser desenvolvida através de uma legislação específica que salvaguarde os direitos fundamentais das pessoas, nos termos da Constituição e do direito internacional aplicável. Que o legislador não pretendeu excluir, de todo, ao contrário do que é sustentado pelo recorrente, os exames genéticos do âmbito de aplicação daquele diploma, e, consequentemente, do âmbito de aplicação do seu artigo 6.º, n.º 1, mostra-o, aliás, a existência no diploma de uma secção - a IV - precisamente dedicada aos "exames e perícias no âmbito da genética, biologia e toxicologia forense".
Do que acabamos de dizer decorre, então, que o problema não estará tanto na falta de habilitação legal (i. e., na falta de norma que autorize a realização coactiva do exame - essa existe e decorre da conjugação dos preceitos constantes dos artigos 6.º da Lei 45/2004, de 19 de Agosto, e 172.º do Código de Processo Penal), mas, eventualmente, na falta de densidade normativa suficiente desse quadro legal habilitante.
Vejamos se assim é.
b) A questão a que, por fim e nesta parte, tudo se reconduz é, então, a do grau de densidade normativa que tem de ter a lei habilitante da restrição de direitos, liberdades e garantias. Como refere, por exemplo, Vieira de Andrade (ob. cit., p. 302), "apesar de não estar expressamente referida, deve ainda considerar-se que a lei restritiva, em função da reserva de lei formal, tem de apresentar uma densidade suficiente, isto é, um certo grau de determinação do seu conteúdo, pelo menos no essencial, não sendo legítimo que deixe à Administração espaços significativos de regulação ou de decisão". Ou, nas palavras de Jorge Reis Novais (ob. cit., pp. 842-843), que, entre nós, mais recentemente se pronunciou desenvolvidamente sobre o problema, trata-se, no fundo, de saber "a partir de que patamares é que o legislador, com uma lei habilitante insuficientemente densa, subverte os ditames da separação e interdependência de poderes - já que só com leis suficientemente claras e determinadas se garante que é o próprio legislador que toma as decisões essenciais -, as exigências de segurança próprias de um Estado de direito, bem como o direito à tutela judicial efectiva do direito fundamental afectado, uma vez que da densidade normativa da regulamentação legal depende também, em alguma medida, a adequação funcional da intensidade variável do controlo judicial da actividade administrativa".
Na resposta a esta questão importa que se comece por sublinhar que a Constituição não dispõe, ela própria, de preceitos conclusivos (de "determinações acabadas", na terminologia de Reis Novais, ob. cit., p. 827), que concretizem exactamente o grau de densidade normativa exigível à lei habilitante da restrição de direitos fundamentais, pelo que, como afirma o mesmo autor (ob. cit., p. 851), em vão "se procurariam [na Constituição] critérios que permitissem [...] soluções extraídas de definições talhantes e através de raciocínios lógico-dedutivos em ordem a habilitar uma conclusão inequívoca sobre quando se extravasam, neste plano, os limites admissíveis em Estado de direito". Neste pressuposto, cabe à jurisprudência constitucional - em última instância - a tarefa de concretização dos critérios de decisão de cada caso concreto.
A este propósito, especificamente sobre o problema do grau de densidade normativa exigível à lei habilitante da restrição de direitos fundamentais que ocorra no âmbito do processo penal, pronunciou-se o citado Acórdão 7/87, para, fazendo suas as palavras de Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1.º vol., reimpressão, 1984, § 2.º, II, 1), afirmar a exigência de "uma estrita e minuciosa regulamentação legal de qualquer indispensável intromissão, no decurso do processo, na esfera dos direitos do cidadão constitucionalmente garantidos". Fora do âmbito do processo penal, a questão da restrição de direitos fundamentais foi abordada, com mais algum desenvolvimento, no Acórdão 285/92, em processo de fiscalização preventiva em que foram apreciadas normas de um decreto aprovado em Conselho de Ministros relativo à "racionalização do emprego dos recursos humanos na Administração Pública". Aí, ponderou o Tribunal:
"[...] a questão da relevância do princípio da precisão ou da determinabilidade das leis anda associada de perto à do princípio da reserva de lei e reconduz-se a saber se, num dado caso, o âmbito de previsão normativa da lei preenche ou não requisitos tidos por indispensáveis para se poder afirmar que o seu conteúdo não consente a atribuição à Administração, enquanto executora da lei, de uma esfera de decisão onde se compreendem elementos essenciais da própria previsão legal, o que, a verificar-se, subverteria a ordem de repartição de competências entre o legislador e o aplicador da lei [...] Ora, atento o especial regime a que se encontram sujeitas as restrições aos direitos, liberdades e garantias, constante do artigo 18.º da Constituição [...] forçoso se torna reconhecer que [...] o grau de exigência de determinabilidade e precisão da lei há-de ser tal que garanta aos destinatários da normação um conhecimento preciso, exacto e atempado dos critérios legais que a Administração há-de usar, diminuindo desta forma os riscos excessivos que, para esses destinatários, resultariam de uma normação indeterminada quanto aos pressupostos de actuação da Administração; e que forneça à Administração regras de conduta dotadas de critérios que, sem jugularem a sua liberdade de escolha, salvaguardem o "núcleo essencial" da garantia dos direitos e interesses dos particulares constitucionalmente protegidos em sede de definição do âmbito de previsão normativa do preceito [...]"
Na doutrina nacional, o tema foi, como dissemos, tratado de forma desenvolvida por Jorge Reis Novais. Este autor, após analisar as razões justificativas do instituto da reserva de lei e não obstante assinalar que faz todo o sentido que "a hetero e predeterminação da actividade administrativa no que respeita aos domínios mais sensíveis ou relevantes para a comunidade, máxime os direitos fundamentais, se faça privilegiadamente através de decisões oriundas dos representantes directamente escolhidos para o efeito" (ob. cit., p. 834), reconhece a inevitabilidade de, em certos casos, a norma habilitante ter de recorrer "a conceitos indeterminados com remissão, expressa ou implícita, para juízos de prognose, prerrogativas de avaliação e ponderação de caso concreto, bem como [à] outorga de significativas margens de decisão administrativa num domínio que, à partida e segundo os ditames clássicos da reserva de lei, lhes seria tendencialmente avesso" (ob. cit., p. 845). E, assim sendo (ob. cit., p. 851), "a densidade normativa exigível varia em função de diferentes parâmetros só definitivamente valoráveis nas circunstâncias do caso concreto", pelo que o que sempre importa apreciar é se, nas circunstâncias do caso concreto, "é exigível, no sentido não apenas de ser objectiva e tecnicamente possível, mas, também, constitucionalmente adequado, que o legislador dote a lei restritiva de uma maior densificação ou determinação normativa". Concretizando esta ideia, Reis Novais acrescenta ainda (ob. cit., p. 852) que, nesta tarefa, a chamada teoria da essencialidade - as decisões essenciais nos âmbitos normativos mais relevantes, máxime nos referentes ao exercício dos direitos fundamentais, devem ser tomadas pelo legislador democraticamente legitimado - se tem revelado "capaz de orientar o controlo constitucional de densidade normativa", e conclui que (ob. cit., pp. 854-855) "serão diferentes os patamares exigidos de densidade consoante lidamos com restrições de direitos fundamentais que conferem uma protecção específica a bens de liberdade precisamente delimitados ou direitos fundamentais potencialmente receptivos aos múltiplos condicionamentos e limitações derivados da sua necessária integração e compatibilização social com outros bens, como sejam a liberdade geral de acção ou ao livre desenvolvimento da personalidade; consoante se trata da afectação de aspectos essenciais da dignidade da pessoa humana ou da restrição de faculdades marginais todavia cobertas por protecção jusfundamental; consoante está em causa uma lei conformadora que, incidentalmente, contém elementos restritivos ou uma lei que se dirige, a título principal, a restringir um direito fundamental; conforme uma restrição é controversa, grave e duradoura ou constitui uma bagatela pacificamente tolerada. Por sua vez, na valoração do grau de densidade escolhido pelo legislador deverão ser ponderadas não apenas a forma como a indeterminação normativa em apreciação afecta o direito à tutela judicial efectiva [...] como também a forma como se reflecte num exercício repartido e funcionalmente adequado do poder público, na eficiência da Administração ou na optimização das condições orgânicas da composição dos bens em conflito".
À luz dos critérios anteriormente mencionados, que se afiguram, no essencial, correctos, considera o Tribunal que não se verifica, no caso dos autos, uma ausência de prefixação normativa de critérios de actuação restritiva de direitos fundamentais constitucionalmente censurável.
Na verdade, no âmbito da fiscalização concreta de constitucionalidade, como é a que agora está em causa, há que considerar, decisivamente, a concreta dimensão normativa aplicada. E, neste contexto, importa salientar, desde logo, que estamos face a uma norma que permite a colheita coactiva de material biológico - mais concretamente de saliva, através da utilização da técnica da zaragatoa bucal - realizada apenas para efeitos de determinação do perfil genético do arguido em termos de possibilitar a comparação com outros vestígios biológicos encontrados no local do crime. Ora, tratando-se da mera fixação de um perfil genético na medida do estritamente necessário, adequado e indispensável para comparação com vestígios colhidos no local do crime, como se refere explicitamente na decisão que determina a dita recolha coactiva, fica à partida delimitado o âmbito do exame e excluída qualquer possibilidade legítima de tratamento do material recolhido em termos que permita aceder a informação sensível que exceda a absolutamente indispensável ao fim visado, ou seja, à comparabilidade referida. É que, sendo este, e apenas este, o objectivo da recolha, o âmbito da análise está necessariamente restringido à utilização daqueles marcadores de ADN que sejam absolutamente necessários à identificação do seu titular, isto é, aos que, segundo os conhecimentos científicos existentes, permitem a identificação mas não permitem a obtenção de informação de saúde ou de características hereditárias específicas do indivíduo, ou seja, a análise tem de se restringir ao chamado ADN não codificante.
Delimitado assim, como não pode deixar de o ser, no caso concreto, o âmbito do exame normativamente autorizado, verifica-se, então, que a potencialidade lesiva dos comportamentos em causa, por todos em geral reconhecida e que se verifica não tanto no momento da recolha do material biológico com base no qual será feito o exame mas, fundamentalmente, na quantidade e qualidade de informação a que a análise poderia permitir aceder, fica significativamente reduzida. E reduzida a potencialidade lesiva do comportamento, diferente será também o patamar de densidade normativa que é constitucionalmente exigível à regulamentação que o autorize. Ora, neste contexto, verifica-se que a Lei 44/2005, de 19 de Agosto, nos quadros da qual são realizados os exames e perícias médico-legais, nomeadamente no âmbito da genética (cf. artigo 23.º), já contém aquele grau mínimo de concretização normativa dos termos da possibilidade da sua realização que permite afastar, também sob este ponto de vista, um juízo de censura constitucional. Destaca-se, a este propósito, além do facto de os exames se realizarem no Instituto de Medicina Legal, por técnicos devidamente credenciados para tal, o já referido artigo 6.º - que condiciona o dever de submissão ao exame à demonstração da sua necessidade para o inquérito ou instrução e de que decorre, no caso concreto, que o mesmo se tem de cingir ao ADN não codificante -, o artigo 25.º - que, sobre o destino dos objectos e produtos examinados estatui, no seu n.º 1, que "após a realização do exame [...] o perito procede à recolha, acondicionamento e selagem de uma amostra susceptível de possibilitar a realização de nova perícia no caso de os objectos e produtos examinados o permitirem e à destruição do remanescente" - e o próprio artigo 30.º - que expressamente salvaguarda que o acesso à informação, designadamente por terceiros e fora do contexto do processo em que é autorizado, ou a constituição de uma base de dados estão ainda dependentes da legislação específica que salvaguarde os direitos fundamentais das pessoas.
Não é esta situação, aliás, substancialmente diversa da que foi desenvolvida em Espanha ou na Alemanha, modelos citados pelo recorrente.
Na verdade, em Espanha, depois de o Tribunal Constitucional (STC 207/1996, de 16 de Dezembro) ter explicitamente afirmado que os preceitos do processo penal espanhol (concretamente os artigos 311.º e 339.º da Ley de Enjuiciamento Criminal, então invocados), não conferiam a esta concreta medida restritiva dos direitos à intimidade e à integridade física a cobertura legal requerida pela doutrina daquele Tribunal para qualquer acto limitativo de direitos fundamentais, o Governo, através da Ley Orgânica n.º 15/2003, de 25 de Novembro, limitou-se, para o que agora importa, a acrescentar um parágrafo 3.º ao artigo 326.º e um parágrafo 2.º ao artigo 363.º, ambos da referida Ley de Enjuiciamento Criminal, onde se dispõe, no primeiro, que quando seja evidente que a análise biológica de vestígios pode contribuir para o esclarecimento do facto investigado, o juiz de instrução adoptará ou ordenará à polícia judicial ou ao médico forense que adopte as medidas necessárias para que a sua recolha, custódia e exame se verifique em condições que garantam a sua autenticidade e, no segundo, que, sempre que ocorram fundadas razões que o justifiquem, o juiz de instrução poderá determinar, em decisão fundamentada, a obtenção de amostras biológicas do arguido que sejam indispensáveis à determinação do seu perfil de ADN, podendo, para esse efeito, determinar a prática daqueles actos de inspecção, reconhecimento ou intervenção corporal que resultem adequados aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Também na Alemanha, face à controvérsia doutrinária sobre a questão de saber se o § 81, alínea a), do Código de Processo Penal (StPO), que expressamente autorizava a recolha coactiva de sangue para fins de processo penal, podia ser interpretado em termos de permitir igualmente essa colheita para efeitos de determinação do perfil genético do arguido, o legislador, em 1997, limitou-se o legislador a acrescentar um novo parágrafo ao StPO - o § 81, alínea e) - , onde passou a autorizar expressamente que o sangue assim recolhido pudesse ser geneticamente analisado para fins de investigação criminal.
A concluir, sempre se dirá, no entanto, que uma maior densidade ou concretização normativa nesta matéria é, seguramente, não somente possível - como o demonstra a proposta de regime jurídico de constituição de uma base de dados de perfis de ADN, já referida - mas, porventura, desejável. Com efeito, nesta proposta, na sequência dos instrumentos internacionais já citados, diversos aspectos (não apenas relativos à constituição da base de dados mas também relativos à recolha coerciva de material biológico no âmbito da investigação criminal para posterior análise genética não consentida) aparecem desenvolvidamente regulamentados. É assim que, por exemplo, no artigo 8.º daquela proposta, que dispõe sobre a "recolha de amostras com finalidades de investigação criminal", se estatui, no n.º 1, que "a recolha de amostras em processo crime é realizada a pedido do arguido ou ordenada, oficiosamente ou a requerimento, por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido, ao abrigo do disposto no artigo 172.º do Código de Processo Penal"; que, no artigo 10.º, que dispõe sobre o modo de recolha da amostra, se salvaguarda que "a mesma é realizada através de método não invasivo, que respeite a dignidade humana e a integridade física e moral individual, designadamente pela colheita de células da mucosa bucal ou outro equivalente"; que, no artigo 11.º, se garante a possibilidade de contraditório, estatuindo-se, no n.º 1, que, "salvo casos de manifesta impossibilidade, é preservada uma parte bastante e suficiente da amostra para a realização de contra-análise", e, no n.º 2, se explicita ainda que, "quando a quantidade da amostra for diminuta, deve ser manuseada de tal modo que não impossibilite a contra-análise"; e que, no artigo 12.º, se estatui que o âmbito da análise se restringe "àqueles marcadores de ADN que sejam absolutamente necessários à identificação do seu titular para os fins da presente lei", isto é, como se define no n.º 5 do artigo 2.º, os que "segundo os conhecimentos científicos existentes não permite[m] a obtenção de informação de saúde ou de características hereditárias específicas" do indivíduo, ou seja, preceitua-se que a análise efectuada para efeitos de investigação criminal se tem de restringir ao chamado ADN não codificante. E que, finalmente, há preceitos relativos ao acesso de terceiros à informação (artigos 24.º e seguintes), à conservação dos perfis de ADN (artigo 28.º), ao dever de segredo (artigo 30.º) ou à protecção (artigo 33.º) e destruição (artigo 34.º) das amostras.
Mas, se uma regulamentação genérica mais desenvolvida é possível e, porventura, desejável, o que não pode é, no caso concreto e perante a dimensão normativa verdadeiramente em causa, pelas razões que acima já foram enunciadas, censurar-se tal dimensão do ponto de vista jurídico-constitucional, por insuficiente densificação.
12.2.3.3 - Vejamos, por último, a questão da necessidade de prévia autorização judicial. Na verdade, na concreta dimensão normativa que agora está em causa não seria necessária a prévia autorização do juiz de instrução para a realização dos exames, sendo suficiente, na fase de inquérito, a sua determinação pelo Ministério Público. Importa, porém, averiguar se esta solução é compatível com o disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, que dispõe que "toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que não se prendam directamente com direitos fundamentais" (itálico aditado).
O Tribunal Constitucional já teve ocasião, na vigência do Código de Processo Penal de 1987, de amplamente se pronunciar sobre o Estatuto do Ministério Público na fase de inquérito e sobre a articulação desses poderes com a exigência constitucional, constante do n.º 4 do artigo 32.º da Constituição, de que a instrução é da competência do juiz. Fê-lo, mais desenvolvidamente, no Acórdão 7/87, publicado no suplemento ao Diário da República, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987, no Acórdão 23/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Julho de 1990, nos Acórdãos n.os 581/2000 e 395/2004. E muitos outros se podem citar, como, por exemplo, os Acórdãos n.os 517/96, 610/96, 694/96 e 691/98. Sobre a autonomia do Ministério Público, a sua competência para a direcção do inquérito e para determinar a prática dos actos necessários à recolha de prova nessa fase afirmou-se, designadamente, naquele Acórdão 7/87, a propósito da conformidade constitucional do artigo 263.º do CPP:
"Que dizer agora do "inquérito" do novo CPP ou, mais precisamente, da norma que atribui a sua direcção ao MP (n.º 1 do artigo 263.º) e da que dá carácter facultativo à instrução (primeira parte do n.º 2 do artigo 286.º)?
[...]
Diga-se desde já que, na sua actual redacção, esse n.º 4 é menos exigente que na anterior: permite-se agora expressamente que o juiz delegue noutras entidades - em termos a fixar por lei - a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
Mas fica sempre o princípio: a competência para a instrução pertence a um juiz. E que a finalidade do "inquérito" é a mesma que as leis anteriores atribuíam ao "corpo de delito" e à "instrução preparatória" parece fora de dúvida: o inquérito compreende, nos precisos termos da nova lei, o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação. Simplesmente, a instrução de que se fala no citado n.º 4 pode ser entendida - era nesse sentido a jurisprudência da comissão constitucional - como não abrangendo "todas as formas de averiguação, investigação ou corpo de delito suficientes para apresentação do feito em juízo". A intervenção do juiz - lê-se no Acórdão 6 - justifica-se "para salvaguardar a liberdade e a segurança dos cidadãos no decurso do processo crime e para garantir que a prova canalizada para o processo foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais". Se esses valores forem respeitados, não há obstáculo à admissibilidade de uma "fase pré-processual" ou "extraprocessual".
[...]
Tornando-se necessária, nesta fase, a prática de actos que directamente se prendam com a esfera dos direitos fundamentais das pessoas, tais actos deverão ser autorizados - e alguns deles (os que deverem constituir "actos judiciais" para efeitos dos artigos 205.º e 206.º da Constituição) mesmo praticados - pelo juiz de instrução. Ora, apesar de, pelo novo Código, a direcção do inquérito caber ao MP, há actos que competem exclusivamente ao juiz de instrução nos termos dos artigos 268.º e 269.º"
No mesmo sentido e a propósito do mesmo preceito, o artigo 263.º do Código de Processo Penal, escreveu-se no já referido Acórdão 23/90:
"2.2 - No fundo, a dicotomia investigação criminal-instrução do processo criminal (neutramente nos exprimindo sem compromisso terminológico, por desnecessário) - funde-se em interdependência e complementaridade: a fase prévia serve para criar a convicção da entidade titular da acção penal, a subsequente destina-se a moldar a convicção do julgador. A garantia da natureza judicial desta última expande-se aos actos praticados na primeira sempre que equacionados os direitos fundamentais do arguido, implicando a intervenção do juiz-garante.
[...]
Por outras palavras e no concreto caso, o n.º 4 do artigo 32.º da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos ("reserva do juiz").
Intervenção do juiz que vale - e só vale no âmbito do núcleo da garantia constitucional.
Assim ocorre em toda a fase de inquérito ao Ministério Público confiada pelo CPP actual, compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262.º, n.º 1), justificando-se a intervenção do juiz-garante sempre que afectado aquele núcleo - consoante o elenco de situações descritas nos artigos 268.º e 269.º"
Finalmente, o Acórdão 395/2004, após citar os acórdãos referidos, acrescentou:
"[...] o reconhecimento da competência do Ministério Público para dirigir o inquérito não poderá ser visto desligadamente da autonomia que a lei fundamental lhe reconhece. Deste modo, caber-lhe-á a competência para decidir e proceder à prática dos actos de investigação ou de recolha das provas, com a única ressalva dos que importem ofensa ou restrição de direitos fundamentais que carecem, segundo os casos, de ser ordenados ou autorizados ou até realizados exclusivamente pelo juiz (cf. artigos 268.º e 269.º do CPP).
Mesmo no caso destes últimos actos, não deixa de ser reconhecido ao Ministério Público um poder de impulso processual ad actum, reconhecendo-se-lhe a faculdade de requerer a sua autorização e ou a sua prática ao juiz competente.
A atribuição de competência para decidir e proceder à prática dos actos de investigação e de recolha de provas durante o inquérito, com a ressalva resultante das limitações apontadas relacionadas com a salvaguarda de direitos fundamentais, não pode deixar de ser acompanhada do reconhecimento ao Ministério Público do poder de decidir com autonomia sobre a necessidade da prática dos actos de investigação ou de recolha das provas [...]"
Face ao exposto, só pode concluir-se que, contendendo o acto em causa, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias fundamentais, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende, pelas mesmas razões que justificam essa dependência no caso dos actos que constam da lista constante do artigo 269.º do Código de Processo Penal, isto é, por consubstanciar intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, da prévia autorização do juiz de instrução. E nem se diga que será suficiente, como aconteceu nos presentes autos, uma intervenção a posteriori daquele juiz, tomada na sequência de requerimento apresentado após a decisão do Ministério Público que determinou a realização dos exames que agora estão em causa, uma vez que a mesma não poderia desfazer a restrição de alguns dos direitos (v. g., o direito à integridade física ou o direito à reserva da vida privada), entretanto irremediavelmente afectados com a medida.
Isso mesmo foi, entretanto, expressamente reconhecido na proposta de lei de revisão do Código de Processo Penal (proposta de lei 109/X), actualmente em discussão na Assembleia da República, onde, logo na exposição de motivos, se refere que, "nas perícias sobre características físicas ou psíquicas das pessoas que não consintam na sua realização [se exige] despacho do juiz, uma vez que estão em causa actos relativos a direitos fundamentais que só ele pode praticar, por força do n.º 4 do artigo 32.º da Constituição". E, assim sendo, é proposto que os artigos 154.º ("Perícias") e 172.º ("Exames") do Código de Processo Penal, passem a exigir a autorização do juiz, "que pondera a necessidade da sua realização, tendo em conta o direito à integridade pessoal e à reserva da intimidade do visado", sempre que se trate de exame ou perícia a "características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado o consentimento", acrescentando, logo a seguir, nos n.os 3 e 4 do artigo 154.º, aplicáveis aos exames por força do n.º 2 do artigo 172.º, que as perícias e exames em causa "são realizadas por médico ou por outra pessoa legalmente autorizada e não podem criar perigo para a saúde do visado". E, consequentemente, é proposta também a alteração ao disposto no artigo 269.º do Código de Processo Penal, que se refere aos actos a ordenar ou autorizar pelo juiz durante a fase de inquérito, preceito a que se acrescenta, nas alíneas a) e b) do n.º 1, a necessidade de ordem ou autorização do juiz para a realização de perícias e exames sobre características físicas ou psíquicas das pessoas que não consintam na sua realização".
12.3 - Em face do que se deixa exposto, nada mais resta do que, na ausência de autorização do juiz, concluir pela inconstitucionalidade das normas questionadas, ainda que na dimensão normativa que se deixou identificada.
III - Decisão. - Nestes termos, o Tribunal decide:
i) Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 25.º, 26.º e 32.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 172.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de possibilitar, sem autorização do juiz, a colheita coactiva de vestígios biológicos de um arguido para determinação do seu perfil genético quando este último tenha manifestado a sua expressa recusa em colaborar ou permitir tal colheita;
ii) Consequencialmente, julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, a norma constante do artigo 126.º, n.os 1, 2, alíneas a) e c), e 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada em termos de considerar válida e, por conseguinte, susceptível de ulterior utilização e valoração a prova obtida através da colheita realizada nos moldes descritos na alínea anterior;
iii) Consequentemente, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade que agora se formula.
Sem custas.
(nota 4) Em sentido coincidente pronunciou-se a Comissão Europeia dos Direitos do Homem - Decisão de 4 de Dezembro de 1978, em Décision e Rapports, 16, decembre 1979, pp. 184 e segs. - ao considerar legal e justificada a sujeição a "exame de sangue", por parte de condutor suspeito de conduzir embriagado, como medida necessária à protecção dos direitos e liberdades de terceiros, não havendo, nessa medida, ofensa da norma do artigo 8.º, da Convenção Universal dos Direitos do Homem.
(nota 6) Os preceitos legais mencionados no texto transcrito referem-se, obviamente, ao Código de Processo Penal de 1929 e à Constituição de 1933.
2 de Março de 2007. - Gil Galvão - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Vítor Gomes - Bravo Serra - Artur Maurício.