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Jurisprudência 6/2002, de 18 de Julho

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Sumário

A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do anexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente. (Processo 3470/2002 - 2ª Secção).

Texto do documento

Jurisprudência 6/2002

Processo 3470/2001 - 2.ª Secção

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça em plenário das secções cíveis:

A Companhia de Seguros Tranquilidade, S. A., com sede em Lisboa, veio propor a presente acção declarativa com processo ordinário contra António Manuel Castro Leite Rosa Pinheiro, residente em São Martinho do Bispo, Coimbra, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de 20339470$00, acrescida de juros que se vencerem desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Alega como fundamento da condenação que celebrou com o réu um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 582 430, até ao limite de 20000000$00, emergentes da circulação do veículo QO-80-79.

No dia 26 de Dezembro de 1988, pelas 0 horas e 30 minutos, na estrada nacional n.º 111-1, na Geria, Coimbra, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias QO-80-79, conduzido pelo réu e a ele pertencente, e o veículo ligeiro de passageiros EH-35-17, propriedade de Acácio Manuel Cruz Ferreira e conduzido por Pedro Miguel de Sousa Cruz, e o ligeiro de passageiros NL-79-66, pertencente a Carlos Bento Ferreira e tripulado por Mário Rui Dias Santos Bento Ferreira. Os veículos EH e NL seguiam no sentido Geria-Coimbra, a cerca de 30 m um do outro, pela metade direita da faixa de rodagem, e o veículo QO, tripulado pelo réu, seguia na mesma via, em sentido oposto.

A cerca de 40 m da casa da JAE, onde a estrada se desenvolve numa curva para a direita, pouco pronunciada, atento o sentido de marcha do réu, este deixou que a sua viatura saísse fora da sua hemifaixa de rodagem e, repentinamente, fosse invadir a faixa de rodagem contrária, não conseguindo, assim, dominar o veículo que conduzia, que foi embater com a frente esquerda na parte lateral esquerda do EH, que circulava em sentido contrário, e depois no NL.

Em consequência do acidente, resultaram ferimentos no condutor e passageiro do veículo EH e danos neste veículo bem como a morte do condutor do veículo NL, de uma passageira, ferimentos noutros passageiros e danos nesta viatura. Foi demandada a autora que pagou a quantia peticionada pelos prejuízos causados com o acidente, vindo nesta acção, com fundamento no direito de regresso, exigir do autor a quantia que teve de despender, dado que o réu conduzia sob o efeito do álcool.

Citado o réu veio contestar. Aceita a culpa na produção do acidente tal como foi definida no acórdão proferido no Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Janeiro de 1999 e cuja fotocópia consta a fls. 60 e seguintes. Todavia, o aparelho que foi usado na pesquisa de álcool não é fidedigno, não podendo ter-se como provado que conduzisse à taxa de alcoolemia que foi dada como provada. Por outro lado, não está demonstrado que, a conduzir o autor com a taxa de alcoolemia indicada, essa circunstância fosse a causa do acidente.

Replicou a autora pedindo a condenação do réu nos termos em que foi formulado o pedido.

Proferida sentença em primeira instância, foi julgada improcedente a acção por se entender que se não provou o nexo de causalidade entre a condução com grau de alcoolemia superior ao legal e o acidente.

Interposto recurso para a Relação, veio aí a ser proferido acórdão que julgou a acção procedente e condenou o réu no pedido, com fundamento em que, embora se não tenha provado o nexo de causalidade entre a condução com taxa de alcoolemia e o acidente, não é à seguradora que competia fazer a prova desse nexo, mas sim ao réu cabia provar que não teve culpa, pois a lei presume que quem conduz com taxa de álcool superior ao legal se presume que o faz sob a influência do álcool. A ser outra a causa do acidente isso constitui excepção à presunção legal, pelo que é ao condutor que cabe alegá-la e prová-la, a fim de impedir o direito de regresso da seguradora.

Inconformado recorreu o réu, concluindo, em resumo, nas suas alegações:

O estabelecimento da taxa de alcoolemia não se baseou em dados científicos que permitissem afirmar que a partir de 5 g/l o condutor já agia sob a influência do álcool; ou seja, que esta taxa entorpecia os sentidos e condicionava os reflexos.

Com o estabelecimento daquela taxa de álcool como limite legal apenas se estabeleceram novos limites para o estabelecimento de normas dissuasórias de condução sob influência de álcool, o que é comprovado com a tendência a nível europeu para limitar a zero a taxa de álcool na condução.

Os limites da TAS nada têm a ver com a incidência de álcool no comportamento do condutor, mas inserem-se, antes, numa política de segurança rodoviária a nível europeu com vista à uniformização da TAS, com níveis cada vez mais baixos, tendo como objectivo a eliminação completa da condução sob o efeito do álcool.

Ao contrário do decidido no acórdão recorrido não existe qualquer presunção com base na taxa de álcool no sangue.

Com o Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, que reduziu o limite da taxa de alcoolemia de 0,8 g/l para 0,5 g/l, não se baseou em dados científicos que permitissem afirmar que a partir de 0,5 g/l o condutor já agia sob influência de álcool, que este lhe entorpecia os sentidos e condicionava os reflexos.

De acordo com as regras do nosso direito, caberá àquele que invoca um direito fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, ou seja, cabia à seguradora a prova do nexo de causalidade por inexistência da presunção legal a seu favor.

Da matéria dada como provada resulta que a autora não logrou demonstrar as condições por si alegadas em que ocorreu o acidente e em que fundamentava o direito que pretendia exercer.

Nem a taxa de álcool leva em conta as condições morfológicas de cada condutor.

Contra-alegou a autora pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Perante as alegações do réu as questões postas são as seguintes:

Se a condução com taxa de álcool superior à legalmente permitida exige ainda nexo de causalidade entre essa taxa e a condução que foi causa do acidente;

Se a taxa de álcool superior à legal é presunção da condução ilícita.

Matéria de facto:

A A. no exercício da sua actividade seguradora celebrou com o réu um contrato de seguro do ramo automóvel titulado pela apólice n.º 582 430, através do qual assumiu a responsabilidade civil, até ao limite de 20000 contos, emergente da circulação do veículo de matrícula QO-80-79, junta, por cópia, a fls. 17 a 19, aqui dada por reproduzida.

No dia 26 de Dezembro de 1988, pelas 0 horas e 30 minutos, na EN 111-1, próximo da casa da JAE, na Geria, Coimbra, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo ligeiro de mercadorias QO-80-79, conduzido e pertença de Álvaro Manuel Castro Leite Rosa Pinheiro, ora réu, o ligeiro de passageiros EH-35-17, propriedade de Acácio Manuel Cruz Ferreira e conduzido por Pedro Miguel Sousa Cruz, e o ligeiro de passageiros NL-79-66, pertencente a Carlos Bento Ferreira e tripulado por Mário Rui Dias Santos Bento Ferreira.

Em acta de audiência de julgamento de 6 de Novembro de 1996, no âmbito da acção n.º 60/96, o 3.º Juízo do então Tribunal de Círculo de Coimbra, foi celebrada uma transacção, homologada por sentença, em que a aqui A. se obrigou a pagar as indemnizações de 87260$00 ao lesado Acácio Manuel, de 128892$00 ao lesado Pedro Miguel e de 64468$00 à lesada Isabel Cristina, pagamentos estes que a aqui A. efectuou em Janeiro de 1997, conforme documentos de fl. 117 a fl. 119, aqui dados por reproduzidos.

Nesse mesmo termo de transacção a aqui A. obrigou-se a pagar aos HUC os créditos por estes reclamados, que se apuraram ser de 645650$00 e que foram igualmente liquidados pela aqui A. em Fevereiro de 1997, conforme documentos de fl 30 a fl. 44, aqui dados por produzidos.

Por Acórdão de 20 de Dezembro de 1996, proferido no âmbito do supra-referido processo 60/96, de que se acha junta cópia de fl. 45 a fl. 58, aqui dado por reproduzido, em que a ora A. e o ora réu foram condenados, aquela até ao limite do seu capital disponível, a pagarem aos aí AA. Carlos Bento Ferreira e Maria Odete Dias Santos Ferreira a indemnização de 32000000$00 e a Célia Margarida Fernandes Oliveira a indemnização de 4140000$00, acrescidas de juros, desde esta decisão e até integral pagamento.

A aqui A. conformou-se com esta decisão colocando à disposição dos AA.

Carlos Bento, Maria Odete e Célia Margarida o valor do capital disponível de 18773730$00, que os mesmos aceitaram receber, tendo pago, em Março de 1997, esta quantia, acrescida de 339470$00, de juros, contados desde a decisão até ao pagamento, no total de 19113200$00 - cf. documento a fl. 59, aqui dado por reproduzido.

Da decisão referida acima foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, que correu seus termos sob o n.º 1232/97, no decurso do qual foi proferido o acórdão junto, por cópia, de fl. 60 a fl. 83, aqui dado por reproduzido.

Dele consta que o réu, ao iniciar uma curva para a direita, pouco pronunciada, sita a uns 40 m da casa da JAE, que ficava à sua direita, o réu Álvaro deixou que a sua viatura saísse da sua hemifaixa de rodagem e repentinamente fosse invadir a semifaixa oposta não a conseguindo assim controlar na sua faixa.

Na semifaixa oposta circulava o veículo EH-35-17 dentro da sua semifaixa de rodagem.

A estrada no local tinha 6 m de largura e apresentava piso seco.

Em consequência da súbita invasão da faixa de rodagem oposta, a parte da frente esquerda do veículo QO, conduzido pelo réu, foi embater contra a parte esquerda do veículo EH.

Prosseguindo a sua marcha descontrolada e desmandada foi embater frontalmente contra o ligeiro de passageiros tripulado por Mário Rui Bento Ferreira, de matrícula NL-79-66, sobre o qual galgou.

O NL vinha em sentido oposto ao do réu, distanciado do EH cerca de 30 m e dentro da sua mão de trânsito.

Após a colisão, o veículo NL ficou totalmente destruído, o QO ficou virado em sentido oposto ao que levava e tombado lateralmente sobre a sua parte direita.

O Mário Rui e a Marisa, que seguiam no veículo NL, faleceram.

Próximo da casa dos cantoneiros (JAE), o ligeiro de mercadorias circulava a menos de 90 km/h com as luzes acesas em posição de máximos.

O veículo EH circulava encostado o mais possível à berma da estrada, do lado direito, atenta a sua progressão.

O EH, com a força do embate, rodopiou, tendo ficado voltado no sentido Coimbra-Geria.

O Álvaro não travou aquando do acidente.

Cerca de três horas após o sinistro, o Álvaro era portador, ao ser sujeito ao respectivo exame, de uma TAS de 1,10 g/l de álcool no sangue.

Conforme certidão de fl. 84 a fl. 86, aqui dada por reproduzida, o ora réu foi julgado e condenado, no âmbito do processo sumaríssimo, que correu termos com o n.º 1311/89, do então 4.º Juízo, 1.ª Secção, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, por infracção ao disposto nos artigos 10.º, n.os 1 e 2, e 7.º, n.os 1, alínea b), e 4, da Lei 3/82, de 29 de Março.

Em consequência do acidente dos autos, a A. pagou a quantia de 20339470$00.

A ora A. interpelou o réu para que este lhe pagasse tal quantia, através das cartas, de que se juntam cópias a fls. 87 e 88, aqui dadas por reproduzidas.

O direito (condução com taxa de álcool superior à permitida e nexo causal do acidente):

Dispõe o artigo 19.º, alínea c), do Decreto-Lei 522/85:

«Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:

...

c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandono de sinistrado.

...» Face à matéria da alínea c), acima indicada, e até nas demais alíneas, muita jurisprudência se tem produzido, com variantes em certos aspectos, algumas muito específicas, tudo revelando a dificuldade de um consenso sobre a melhor interpretação a seguir nesta matéria.

Apesar das várias correntes jurisprudenciais vêm-se delineando três principais, que importa destacar como fundamentais:

a) O reembolso pela seguradora é sempre devido porque representa o desvalor da acção, uma vez que o risco contratualmente assumido não se compadece com condutores que agem sob o efeito do álcool e que preconiza o efeito automático da existência do direito de regresso [v. g. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Abril de 1995, in Colectânea de Jurisprudência, (S) vol. III-1, p. 151, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Abril de 1999, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 486, p. 307];

b) A seguradora só tem direito de regresso se provar que o sinistro foi causado pela taxa de alcoolemia de que o condutor era portador [v., v. g., Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Janeiro de 1993, in Colectânea de Jurisprudência, (S) vol. I-1, p. 104, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Dezembro de 1994, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 442, p. 155, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 1997, in Colectânea de Jurisprudência, vol. V-1, p. 39 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 1997.

c) O direito de regresso só existe se a situação de alcoolemia for causa do acidente, embora tal relação seja de presumir nos termos do n.º 2 do artigo 1.º da Lei 3/82, do artigo 350.º do Código Civil e do artigo 81.º do C. E.

(Acórdão da Relação de Lisboa de 13 de Julho de 1995, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 449, p. 429).

Estas, no essencial, as posições defendidas, em busca da melhor interpretação a dar ao preceito acima referido.

Vária tem sido a argumentação apresentada na defesa das várias posições expressa na jurisprudência e doutrina.

Por nossa parte entendemos ser de seguir a orientação apontada em segundo lugar com fundamento nas razões que se indicam a seguir e que nos levam a excluir as restantes com alguns dos argumentos que inserimos a propósito dos motivos que nos convencem a optar por tal orientação.

Falando a lei em direito de regresso, importa saber em que consiste esta figura jurídica.

Diz A. Varela (Obrigações em Geral, vol. II, p. 334) que «é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta». Vaz Serra na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 110.º, p.

339, diz que «o direito de regresso é um direito resultante de uma relação especial existente entre o seu titular e o devedor, não operando, portanto, ao contrário daquela (sub-rogação) uma transmissão do direito do credor para o autor da prestação». Aníbal de Castro (em A Caducidade, p. 93) formula uma outra definição ao dizer que «direito de regresso é aquele que tem uma pessoa, responsável por indemnização de perdas e danos, a reclamar de outrem a mesma indemnização, expressa na mesma quantia, devida pelo mesmo motivo, baseada no mesmo facto».

Constituindo o direito de regresso um direito ex novo surgido com a extinção da obrigação para com o lesado e ficando a seguradora na posição de credora em relação ao segurado pela mesma ou diversa quantia, pelo mesmo motivo e pelo mesmo facto, o segurado terá o dever de pagar à seguradora o que esta despendeu se se verificar o fundamento do regresso. E este tem a sua razão de ser no facto e na medida em que o condutor tiver causado o acidente por influência do álcool, tendo em conta o presente caso que cumpre decidir.

O direito de regresso no Decreto-Lei 522/85 é uma circunstância específica em relação à responsabilidade da seguradora nos acidentes de viação, em geral, por virtude de uma relação conexa com o contrato de seguro (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2000, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 325) para os casos aí enunciados e que contratualiza o dever de reembolso da seguradora. Não é qualquer fundamento de culpa do condutor que leva à existência do direito de regresso, mas só um dos incluídos no artigo 19.º do decreto-lei citado. O alcance social do seguro obrigatório, como regime indicado para a protecção dos lesados, estendendo a protecção de uma forma alargada em aproximação de seguro social e fazendo recair sobre as seguradoras boa parte do ónus desse benefício, tem aqui desvios quanto à assunção da responsabilidade com a criação do direito de regresso a favor das seguradoras.

E porque de um direito especial se trata, o direito de regresso tem de ser demonstrado nos termos gerais de direito, uma vez que nenhuma disposição do Decreto-Lei 522/85 veio afastar o regime geral da responsabilização, criando presunções, alterando o ónus da prova ou outro circunstancialismo que se desvie do regime geral.

Posições diferentes, como o efeito automático ou o funcionamento da presunção, podiam conduzir a que, satisfeita a indemnização, o segurado estivesse sujeito a uma sanção civil (pagamento da indemnização), independentemente do grau de culpa, da sua inexistência ou até do acidente ter ocorrido por mero risco. Este efeito automático, espécie de responsabilidade objectiva, não é aceitável e só existe quando a lei o preveja.

Temos ainda de ter em conta que pode até haver ausência de intervenção do segurado no processo que levou à atribuição da indemnização ao lesado com fundamento em condução sob a influência do álcool. Não resulta da lei nem é função do sistema reparador dos danos em direito civil uma solução cujo efeito derivaria de uma solução que representa uma sanção civil resultante do efeito da condução sob certo grau de alcoolemia sem a averiguação da culpa e do nexo entre o estado de alcoolemia e o acidente.

Assim, no Acórdão de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I, p. 57), deste Tribunal, diz-se:

«Se o direito de regresso da seguradora não existe em relação a todo e qualquer condutor que provoque por culpa sua o acidente, e porque o direito de regresso se situa dentro do campo das sanções civis reparadoras, a lógica jurídica e o equilíbrio do sistema jurídico importam a adopção da conclusão segundo a qual não pode aquele direito ser estendido a consequências que não têm a ver com as circunstâncias especiais que o motivam.

Isto quer dizer que o direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com aquelas circunstâncias; não basta que resultem da condução; impõe-se que sejam, por exemplo, consequência típica adequada de uma condução por condutor alcoolizado [...]» Sendo o fundamento do direito ao reembolso pela seguradora a condução sob o efeito do álcool, cabe a quem invoca o direito o dever de provar os pressupostos de que ele depende e no qual se inclui a existência de alcoolemia e do nexo causal dela com a produção do acidente (artigo 342.º do Código Civil), como se decidiu nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Junho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I, p. 39, e de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 494, p. 325.

Os elementos que constituem o fundamento do direito de regresso são factos constitutivos do direito que ao autor cabe demonstrar.

A inversão do ónus da prova, obrigando o segurado a provar que não teve culpa, apresenta-se como aquela que de jure constituendo se poderia, numa primeira aproximação, considerar mais justa na medida em que ficaria ao condutor que circula naquelas condições, ou seja, em situações de mais facilmente provocar acidentes, o ónus de provar que, apesar de circular em condições irregulares, não contribuiu para o acidente. E, sacrificada a seguradora à função social de reparar os danos, estaria em condições bem mais fáceis para responsabilizar o condutor, tanto mais que a condução naquelas circunstâncias corresponde a um agravamento do risco no contrato.

Uma seguradora não aceitaria, em geral, assumir o risco nas condições previstas na alínea c) do artigo 19.º Todavia, pressentimos a dificuldade do legislador em enveredar por tal caminho. Agir sob a influência do álcool é um facto relativizado, pois as circunstâncias em que a influência do álcool potencializa uma condução irregular varia de pessoa para pessoa; e nem o grau de alcoolemia podia ser fixado em termos de ser presunção segura de que fosse ele o causador da manobra que levou ao acidente. Em todo o caso seria sempre o legislador a tomar a opção que entendesse mais adequada.

Posto isto, há que concluir que o direito de regresso está limitado no artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85 a situações restritas e que vêm aí mencionadas, não funcionando como sanção civil reparadora contra todo e qualquer agente que provoque o dano. Daí que só possa existir quando se verificarem as circunstâncias aí especificadas. No caso em apreço exige-se que haja condução sob influência do álcool a ditar o comportamento do condutor. Não é suficiente que o condutor estivesse sob a influência do álcool, sendo necessário que esse facto seja a causa ou uma das causas do acidente (v.

Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S), vol. V-I, p. 39, e de 14 de Janeiro de 1997, Colectânea de Jurisprudência (S) vol. V-I, p. 59).

A justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade pelo autor entre a condução sob a influência do álcool e o acidente resulta dos próprios termos da alínea c) do artigo 19.º o Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro. É necessário que o demandado aja sob a influência do álcool e não apenas que ele conduzisse etilizado nos termos previstos nas normas penais ou contra-ordenacionais. O grau de alcoolemia podia estar acima dos limites legais, o que seria fundamento para a condenação em sede própria no regime penal como actividade perigosa. Mas uma tal condução pode não contribuir para o acidente. A expressão usada na lei, agido sob a influência do álcool, é uma exigência relativa à actuação do condutor que não tem de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Diz a lei agir sob a influência do álcool e não estar sob a influência do álcool (circunstância que vem ressaltada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 325).

Há que fazer a separação entre o condicionalismo do trânsito de veículos na via pública, considerados os interesses da circulação automóvel e que ao legislador cabe ponderar, e o caso específico do direito de regresso quando se aja sob a influência do álcool em termos de responsabilidade civil.

E tanto assim que o Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro [artigo 19.º, alínea c)], já previa o direito de regresso quando o condutor tivesse agido sob influência do álcool, e só em 1982, com a Lei 3/82, de 29 de Março, se veio a determinar a proibição da condução quando o condutor seguisse sob a influência do álcool com uma taxa superior a 0,8 g/l, taxa que passou pelo Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, para 0,5 g/l e que chegou a ser fixada em 0,2 g/l pelo Decreto-Lei 162/2001, de 22 de Maio, como impedimento para o início de condução, passando a qualificação criminal para o Código Penal (artigos 291.º e 292.º).

Todas estas modificações no regime contra-ordenacional e penal não tiveram qualquer eco no regime de seguro obrigatório. E seria, ao menos, arriscado cuidar em fazer a equivalência automática de que o direito de regresso existia sempre que o legislador, por razões ligadas à circulação rodoviária, viesse fazer qualquer alteração àquilo que considera influência de álcool susceptível de responsabilizar automaticamente o condutor segundo tais critérios.

Estamos assim com a corrente jurisprudência (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, p. 206, e de 19 de Julho de 1997, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 468, p. 376) que entende que o legislador se quisesse dispensar a prova do nexo de causalidade diria simplesmente que o direito de regresso existia se o condutor conduzisse com álcool.

Não nos impressiona o argumento extraído da alínea f) do Decreto-Lei 522/85, onde se estabelece presunção elidível no caso de o veículo não ser apresentado à inspecção periódica. Aqui estabelece a lei uma culpa presumida. Mas não se pode concluir a contrario o efeito automático das circunstâncias indicadas na alínea c) para a existência do direito de regresso só porque a lei não indica aí presunção idêntica, conforme posição seguida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Fevereiro de 2000, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 494, p. 325.

No caso dos autos não se provou, embora tivesse sido questionado na base instrutória, que o réu tenha atingido um estado de euforia decorrente da taxa de alcoolemia de que era portador que lhe perturbasse acentuadamente os reflexos, prolongasse o tempo de reacção, assim como se não provou que, se não se encontrasse sob a influência do álcool, não provocaria o acidente. E com fundamento em que a seguradora não provou o nexo de causalidade entre a condução sob influência do álcool e o acidente, julgou a primeira instância improcedente a acção.

Presunção derivada da influência do álcool:

A Relação entendeu que a condução com uma taxa de alcoolemia superior a 0,5 g/l é fundamento para se presumir que o acidente foi causado pelo álcool seguindo a terceira orientação acima apontada. Se não fosse essa a causa, tinha o condutor de invocar e provar os factos que mostrassem que a circulação pelo lado esquerdo da faixa de rodagem, no caso dos autos, foi devida a outra circunstância, que não à influência do álcool, para elidir a presunção. Como o choque se deu na faixa contrária àquela em que devia circular o veículo QO e o réu seguia com uma taxa de alcoolemia de 1,10 g/l, não justificando a razão por que circulava daquela forma contra-ordenacional, presume-se que o fez por seguir sob a influência de álcool. E essa presunção vai encontrá-la no Decreto-Lei 124/90 e na Lei 3/82, que penalizam a condução sob a influência de álcool.

Uma tal argumentação deixa de autonomizar o direito de regresso em que se fundamenta a acção e o direito da seguradora com base nele e faz derivar a presunção da culpa e nexo de causalidade de normas legais que, em nosso entendimento, têm função sancionatória da condução com certo grau de alcoolemia e que não podem fazer presumir que delas derivou o acidente (as normas penais ou contra-ordenacionais indicadas).

Como vê das decisões de primeira e segunda instância aceita-se que o direito de regresso só existe se o condutor seguir sob a influência do álcool e a seguradora vier a ser responsabilizada pelo acidente. Apenas divergem as instâncias no facto de a Relação considerar que a influência do álcool faz presumir que o acidente se deve a esse facto. Daí que a divergência das instâncias está na introdução pela Relação da presunção de que a contravenção que deu causa ao acidente foi provocada pela influência do álcool.

Não se vê que o Decreto-Lei 522/85, ao consagrar o direito de regresso, estabeleça a presunção que vem defendida no acórdão recorrido, como resulta do acima referido para a condução sob influência do álcool. A condução pelo lado esquerdo da faixa de rodagem é, em si mesma, uma contra-ordenação que não tem necessariamente de resultar desse facto. A condução nestas circunstâncias faz presumir a culpa do condutor, mas não pode fazer presumir o direito de regresso.

Trata-se de fundamentos jurídicos diversos. A responsabilidade da seguradora resulta da culpa ou do risco causado pelo veículo conduzido, nexo de causalidade e dano. O direito de regresso fundamenta-se na circunstância de o condutor seguir sob a influência do álcool, sendo este o facto constitutivo do direito da seguradora a ser reembolsada pelos prejuízos sofridos. Ora, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil cabe ao autor (seguradora, no caso) a prova de que o acidente se deu com o condutor sob a influência do álcool e que foi por isso que ele ocorreu.

Nos termos expostos, e tendo em atenção os artigos 678.º, n.º 4, 732.º-A e 732.º-B, todos do Código de Processo Civil, acorda-se em conceder revista, julgando procedente o recurso e absolvendo o réu do pedido.

Mais se acorda em uniformizar a jurisprudência nos seguintes termos:

«A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.» Custas pela autora.

Lisboa, 28 de Maio de 2002. - Abel Simões Freire (relator por vencimento) - Fernando de Azevedo Ramos - Manuel José da Silva Salazar - António Nunes Ferreira Girão - Eduardo Nunes da Silva Baptista - José Miranda Gusmão de Medeiros - Joaquim Fonseca Henriques de Matos - Agostinho Manuel Pontes Sousa Inês - Afonso de Melo - João Fernando Fernandes Magalhães - Ilídio Gaspar Nascimento Costa - Rui Manuel Brandão Lopes Pinto - João Augusto de Moura Ribeiro Coelho - José da Silva Paixão - Fernando João Ferreira Ramos - Fernando José Matos Pinto Monteiro - Armando Lopes de Lemos Triunfante - Abílio de Vasconcelos - Alípio Duarte Calheiros - Manuel José Boavida Oliveira Barros (com a declaração de voto junta) - José Augusto Sacadura Garcia Marques (com a declaração de voto junta) - Armando Mota dos Santos Lourenço (com a declaração do Exmo. Conselheiro Oliveira Barros) - António da Costa Neves Neves Ribeiro [com a seguinte declaração de voto: «Concordo com a doutrina do acórdão uniformizador. Porém, quanto à solução do caso concreto, considero que existe direito de regresso, pois, da prova referida no acórdão, resulta notório (e resulta da experiência comum) que o réu conduzia sob a influência do álcool, provocando por isso o acidente»] - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida (vencido nos termos da declaração de voto que junta) - António Pais de Sousa (vencido conforme declaração de voto do conselheiro Ferreira de Almeida) - José Carlos Carvalho Moitinho de Almeida (vencido pelas razões constantes da declaração de voto que antecede) - Manuel Maria Duarte Soares (vencido de acordo com a declaração de voto do conselheiro Ferreira de Almeida) - Fernando Jorge Ferreira de Araújo Barros (vencido nos termos da declaração que junta) - Faria Antunes (vencido de acordo com a declaração de voto do Exmo. Conselheiro Araújo de Barros) - Francisco Diogo Fernandes (vencido de acordo com a declaração de voto do Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Araújo de Barros) - António Quirino Duarte Soares (vencido nos termos da declaração de voto junta) - Dionísio Alves Correia (vencido nos termos da declaração de voto que antecede) - Álvaro de Sousa Reis Figueira (vencido conforme declaração de voto dos Exmo.s Conselheiros Araújo de Barros e Duarte Soares, que acompanho).

Declaração de voto

Acompanho, no plano do direito constituído, a orientação acolhida pelo acórdão uniformizador, que corresponde à corrente jurisprudencial largamente maioritária neste Supremo Tribunal.

Não se ignora, porém, que, em situações em que o acidente se ficou a dever à culpa exclusiva ou concorrencial do segurado, a exigência da prova de que a alcoolemia do condutor foi causal do acidente pode tornar muito difícil, quiçá, quase impossível, a concretização dos objectivos prosseguidos pelo exercício do direito de regresso por parte da seguradora. É que, excepção feita aos casos-limite, pode revelar-se, em julgamento, extremamente penoso apurar se o acidente ficou a dever-se à influência do álcool ingerido ou a desatenção, imprudência ou inconsideração por parte do condutor, sempre possíveis ainda que o condutor não tivesse ingerido álcool algum.

Em casos similares, a tese acolhida pode não conduzir à obtenção do resultado mais justo e socialmente mais útil, não constituindo incentivo para que os condutores segurados se abstenham de consumir álcool e impedindo, em muitos casos, mesmo quando o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor alcoolizado, o exercício do direito de regresso que a lei confere às seguradoras.

De um ponto de vista de de jure condendo, aceitaria como mais conforme ao sistema uma posição que, em certas situações, onerasse o condutor com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida (porque não a exigida para a prática do crime previsto pelo artigo 292.º do Código Penal?) e causador exclusivo ou principal de um acidente, com o ónus da prova da ausência de influência do álcool na sua condução, isto é, na produção do acidente.

No entanto, em face do direito constituído, e não cabendo ao intérprete substituir-se ao legislador, trata-se, pelas razões expostas no acórdão uniformizador, de solução impraticável.

Nem se confunda a situação prevista na alínea c) do artigo 19.º - ora chamada à colação - com a da alínea f) do mesmo artigo.

É que, neste último caso, há, como já se disse, em face da técnica utilizada, uma culpa presumida.

Por isso mesmo, e porque se trata de uma presunção, o condutor responsável pode, nesse caso, demonstrar que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo. O certo, porém, é que só na situação prevista na alínea f) - omissão de apresentação do veículo à inspecção periódica - se faculta ao segurado afastar o exercício do direito de regresso desde que faça a prova do referido circunstancialismo de facto.

Não foi, no entanto, essa a técnica utilizada pelo legislador na alínea c).

Revista alargada

[Acompanho o doutamente decidido, com a declaração de que a dificuldade da prova exigida pode eventualmente ser mitigada pelo uso criterioso de presunção simples, natural, judicial, ou de experiência, que os artigos 349.º e 351.º do Código Civil consentem, assente em que a condução com TAS (taxa de álcool no sangue) elevada importa normalmente diminuição da aptidão para bem conduzir e o consequente agravamento do risco de acidente.] - Oliveira Barros.

Declaração de voto

Entendemos ser de seguir a tese contrária à perfilhada no projecto, pois que o direito ao reembolso, pela seguradora, da indemnização paga ao lesado, exercitado ao abrigo da alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro - condução sob influência do álcool -, se basta com a alegação e a prova de uma condução com taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, bem como da culpa exclusiva ou concorrencial do condutor-lesante na produção do evento.

Não tem a seguradora o ónus de demonstrar um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob uma excessiva taxa de alcoolemia e a produção do evento danoso. Prova que seria, aliás, na prática, impossível de fazer, tornando letra-morta a disposição legal em causa.

Aquela tese contrariaria a teleologia da norma (artigo 9.º do Código Civil) e reduziria à quase total inocuidade o conteúdo do direito de regresso, para além de não assegurar uma adequada ponderação e protecção dos interesses em jogo: estabelecer uma disciplina moralizadora, simultaneamente dissuasora e repressiva, punindo civilmente os tomadores do seguro; proteger os interesses das seguradoras que, com a instituição do regime do seguro obrigatório, passaram a ter de suportar riscos alargados, cujas situações eram anteriormente salvaguardadas através da inclusão, nas condições gerais das apólices, de cláusulas de exclusão da garantia.

De resto, de todas as hipóteses contempladas no artigo 19.º desse decreto-lei só quanto a uma delas [alínea f)], precisamente aquela que em menor grau legitimaria uma intervenção normativa moralizadora, se prevê a possibilidade de o segurado ou responsável afastar o direito de regresso da seguradora desde que alegue e prove que o sinistro não foi provocado ou agravado pelo mau funcionamento do veículo, ou seja, que a mera omissão do dever de submeter o veículo à inspecção periódica em nada contribuiu para o acidente.

Como assim, quanto às restantes, mormente as que tenham por base um comprovado comportamento doloso ou gravemente negligente, e por isso com maior carga de reprovabilidade social por banda do segurado, e até de forte potencialidade letal - como é o caso da condução sob influência do álcool -, não faz sentido uma interpretação restritiva do direito de regresso e, inversamente, uma posição mais favorável aos causadores directos do sinistro.

Há que abertamente colocar o acento tónico na dupla função, reparadora e sancionatória (preventiva) da responsabilidade civil, atentando sobretudo na virtualidade danosa dos comportamentos considerados, cujo grau de frequência e devastadoras consequências mostram, aliás, tendência progressiva.

Paradigmática é a hipótese vertente em que o condutor circulava com uma taxa de alcoolemia de 1,10 g/l !..., a proporcionar, segundo certos estudos, «reflexos muito lentos», «muito deficiente coordenação psicomotora» e «visão dupla» !..., nas raias do ilícito criminal, não deixando aqueles efeitos de representar «facto notório» que a lei isenta de alegação e prova (cf. o artigo 514.º do Código Civil) !...

Como poderia, desse modo, vir a concluir-se que uma tal condução sob influência do álcool «segundo a sua natureza geral era de todo indiferente para a produção do dano», na formulação negativa da causalidade adequada que a nossa lei civil consagra no artigo 563.º do Código Civil? Coisa diferente seria, todavia, a apreciação do «critério» de razoabilidade do limite máximo de alcoolemia plasmado na lei, mas tal inserir-se-ia manifestamente no campo da política legislativa, estranho, por isso, à esfera do poder judicial; e as soluções casuísticas, com o seu carácter de aleatoriedade, serão, em princípio, de afastar, quando se trate de uniformizar jurisprudência.

Negaria, pois, a revista, assim confirmando o acórdão recorrido, sugerindo para o acórdão uniformizador a seguinte fórmula:

«A exercitação do direito de regresso com fundamento na alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, não pressupõe a demonstração, pela seguradora, do nexo de causalidade entre a condução sob influência de uma taxa ilegal de alcoolemia e o evento danoso.» - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida.

Voto de vencido

Sufragando a conclusão constante do parecer do Ministério Público, votei pela uniformização da jurisprudência no sentido de que «o reconhecimento do direito de regresso da seguradora, previsto na alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, na parte em que atribui esse direito contra quem tenha agido sob influência do álcool, pressupõe a simples alegação e prova de que o condutor conduzia influenciado pelo álcool e de que teve culpa na produção do acidente».

Muito sumariamente alinharei as razões que me levam a defender tal posição:

1 - A enumeração taxativa do artigo 19.º (na qual houve a intenção de restringir, relativamente ao que dispunha o Decreto-Lei 408/79, os casos em que existe direito de regresso) impõe que todos os casos constantes das respectivas alíneas tenham o mesmo tratamento jurídico: assim, se o direito de regresso surge automaticamente pela mera verificação das situações prevenidas, por exemplo, nas alíneas a), b) e primeira parte da alínea c), não se justifica que, no tocante à segunda parte da mesma alínea c), se exija a prova da existência de um nexo de causalidade entre o álcool e o acidente (ou entre a condução sob a influência do álcool e a contravenção que foi causa directa do acidente).

2 - O direito de regresso prevenido no artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85 constitui verdadeira sanção civil, visando, na intenção do legislador, censurar autonomamente os condutores de risco, por forma a diminuir o surto de alta sinistralidade existente no nosso país, sanção essa que actua independentemente da responsabilidade criminal.

3 - Forçando-se, em razão da natureza do seguro obrigatório, a seguradora a responder, por norma, perante o lesado, constituiria um verdadeiro rompimento do equilíbrio contratual, ou melhor, uma alteração inaceitável da alea do contrato - ao risco assumido corresponde um determinado prémio - que conduziria a que a seguradora respondesse por risco não assumido no contrato de seguro (não é em vão que em quase todos os contratos de seguro facultativo existe uma cláusula que exclui a responsabilidade da seguradora em caso de condução sob a influência do álcool, que tem vindo a ser considerada válida pela jurisprudência e doutrina).

4 - Se é hoje jurisprudência praticamente uniforme a de que, demonstrada a prática pelo condutor de uma infracção estradal, se presume a sua culpa na produção do acidente, não vemos razão para diverso entendimento no caso em que essa infracção (ou mesmo crime) é a de conduzir com elevado teor de alcoolemia.

5 - Por último, a prova de que entre a condução sob a influência do álcool e o acidente (talvez melhor entre a alcoolemia e a infracção causal do acidente) constitui verdadeira prova diabólica, na medida em que, na prática, é impossível. Como provar que a ultrapassagem numa curva resultou da ingestão de álcool? Como demonstrar que a invasão da faixa de rodagem contrária foi causada pelo facto de o condutor seguir alcoolizado? - Fernando Jorge Ferreira de Araújo Barros.

Declaração de voto

Revista alargada

O problema do presente recurso desdobra-se em três subproblemas.

Um é o de saber o que, na norma legal em questão [alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro] deve ser entendido como condução sob influência do álcool; outro é o de saber se um específico nexo de causalidade entre a condução sob influência do álcool e o acidente constitui facto constitutivo do direito de regresso da seguradora; outro (que só se coloca no caso de resposta afirmativa ao anterior) é o de saber a quem cabe o ónus da prova desse específico nexo causal.

Como relator do Acórdão de 23 de Novembro de 2001, no recurso n.º 3132-00, 7.ª Secção, deste Supremo Tribunal, citado no douto parecer do Ministério Público, sustentei que a expressão «sob influência do álcool» tem o significado que lhe é atribuído nos textos legislativos que versam, precisamente, sobre a condução sob a influência do álcool (hoje, Decreto-Lei 124/90, de 14 de Abril, e antes a Lei 3/82, de 29 de Março), e que não tem nenhum sentido, nem qualquer hipótese de realização prática, a ideia de que, naquela alínea c), se prevê uma específica relação circunstancial de causalidade entre a alcoolemia e o sinistro.

A conjugação com as regras da Lei 3/82 decorre de uma interpretação sistemática, instrumento de realização da unidade do sistema jurídico, que é um dos referenciais da interpretação da lei (artigo 11.º do Código Civil).

Sobre o específico nexo causal entre a condução sob influência do álcool e o acidente, para além de tudo o que já foi dito a favor e contra, valerá a pena ponderar, à luz do n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, sobre os limites da procura do pensamento legislativo, perante um texto que não contém a mínima referência àquele elemento. - Quirino Soares.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2002/07/18/plain-154322.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/154322.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1979-09-25 - Decreto-Lei 408/79 - Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Tesouro

    Institui o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

  • Tem documento Em vigor 1982-03-29 - Lei 3/82 - Assembleia da República

    Condução automóvel sob a influência do álcool.

  • Tem documento Em vigor 1985-12-31 - Decreto-Lei 522/85 - Ministério das Finanças

    Revê o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

  • Tem documento Em vigor 1990-04-14 - Decreto-Lei 124/90 - Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

    Establece o novo regime sancionatório da condução sob a influência do álcool.

  • Tem documento Em vigor 2001-05-22 - Decreto-Lei 162/2001 - Ministério da Administração Interna

    Altera o Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, que aprova o Código da Estrada.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2015-09-18 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 11/2015 - Supremo Tribunal de Justiça

    «O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do art. 19.º do DL 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.»

Aviso

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