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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 11/2015, de 18 de Setembro

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Sumário

«O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do art. 19.º do DL 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.»

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2015

P.620/12.0T2AND.C1.S1

Acordam em pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Generali - Companhia de Seguros SPA, instaurou acção declarativa, sob a forma ordinária, contra Marco Paulo Neves Machado pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de (euro)98.276,72, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo pagamento.

Como fundamento, alegou que, tendo celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel com o Réu, este deu causa a um acidente de viação do qual resultou uma vítima mortal. A Autora, como seguradora do responsável pelos danos, em cumprimento de decisão judicial, pagou um total de (euro)98.276,72 em indemnizações ao herdeiro da vítima e ao Centro Nacional de Pensões. Além de culpado no acidente, o Réu abandonou a vítima no local, sem providenciar por socorro, vindo a morte daquela a ocorrer em consequência directa e necessária do abandono e omissão de auxílio, o que confere à Autora o direito de exigir do Réu o que despendeu, nos termos do art. 19º, alínea c) do DL 522/85.

Citado, o Réu excepcionou a prescrição do direito da Autora e, por impugnação, recusou qualquer culpa no acidente, não aceitando também que o facto de ter abandonado o local do acidente tenha contribuído para o decesso da vítima, que foi imediato e em consequência directa do embate. Conclui pela improcedência da acção.

Na réplica, a Autora rebateu a matéria das excepções, concluindo como na petição.

Realizado a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o Réu do pedido, tendo, consequentemente, por prejudicada a apreciação da excepção peremptória de prescrição do invocado direito de regresso (fls. 276).

2. Inconformada, apelou a Autora, tendo a Relação começado por fixar a matéria de facto relevante, nos seguintes termos:

1. No exercício da sua actividade de seguradora, a A. celebrou com o Réu um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, titulado pela Apólice nº 0084 10:

152486 000, tendo como objecto seguro o veículo Seat Ibiza, de matrícula 70-76-NJ (alínea A dos factos assentes).

2. No dia 6 de Abril de 2007, pelas 20,30 h, o Réu conduzia o veículo referido em 1, na Rua Adriano Henriques, Arcos Anadia, (alínea B).

3. Por conduzir desatento à condução, não se apercebeu da presença de duas pessoas - Maria Filomena Almeida Cancela de Amorim e Carminda Neves Póvoa, que se encontravam junto à casa nº 19 (alínea D).

4. Utilizando a berma da estrada, veio a embater com a parte frontal lateral direita do veículo, mais precisamente com a óptica direita e seu redor, na Maria Filomena Amorim, projectando-a a uma distância de 19 metros (alíneas E e F).

5. Como consequência do embate descrito, resultaram para a Maria Filomena lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, toraco-abdominais-pélvicas e do membro superior direito, que foram causa directa da sua morte (alíneas Q e R).

6. O Réu ficou ciente de que tinha embatido num peão e com perfeito conhecimento de que o embate poderia ter provocado lesões susceptíveis de colocar em perigo a vida ou a integridade física da vítima e que esta poderia necessitar de ajuda imediata, abandonou o local de imediato, sem cuidar de saber do seu estado, nem providenciou por socorro (alíneas S e T).

7. Uns minutos após o acidente, os Bombeiros e o IEM prestaram assistência médica à vítima, que no entanto veio a falecer às 21,00h desse dia (alíneas bb) e cc)

8. Em consequência do embate, a vítima caiu dentro de um estaleiro, rodeado de muros e cujo acesso se fazia por um portão que se encontrava fechado à chave, só tendo sido possível chegar à vítima após a chegada dos meios de socorro (pontos 8 e 9 da base instrutória).

9. A vítima Maria Filomena faleceu no espaço temporal decorrido entre o embate e ser observada pelos bombeiros, cerca de 10 minutos depois (ponto 7 da b.i.).

10. O acidente em causa deu origem ao Processo Comum singular nº 157/07 do 2º Juízo do Tribunal de Anadia, no qual foi proferida sentença com data de 15-07-2008, transitada em julgado, que condenou o Réu pela prática de um crime de homicídio por negligência p.p. pelo art. 137º/1 do CPenal, na pena de 9 meses de prisão e num crime de omissão de auxílio p.p. pelo art. 200º, do mesmo diploma, na pena de 10 meses de prisão, tendo sido condenado na pena única de 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

11. No âmbito do processo cível instaurado pelo herdeiro da vítima contra a aqui Autora, foi proferida decisão, já transitada em julgado, em cumprimento da qual a Autora pagou a título de indemnização ao demandante cível, João Augusto Cancela de Amorim Figueiredo: (euro)82,016,44 em 03-03-2009; (euro)9.575,27 em 25-07-2011 e (euro)2.289,20 em 31-10-2011.

12. ...e pagou ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social a quantia de (euro)4.395,81 em 03-03-2009.

3. Passando a dirimir a questão de direito suscitada no recurso da apelação, a Relação - após notar que o acidente a que os autos respeitam ocorreu no dia 06-04-2007, data em que estava em vigor o DL nº 522/85 de 22.12, que regulava o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - julgou improcedente o recurso com base na seguinte linha argumentativa:

A disposição do art. 19º, alínea c), do DL 522/85 inscreve-se no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação.

O seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tem uma função social: proteger de modo sério e efectivo e, portanto o mais possível, as vítimas da circulação rodoviária, proporcionando-lhes um pronto e seguro ressarcimento.

Ao celebrar um contrato de seguro automóvel, a seguradora, contra o pagamento de uma contrapartida pelo segurado, "o prémio", assume a obrigação de suportar os danos decorrentes da verificação do sinistro, se este se verificar. O que significa que, quando a seguradora satisfaz a indemnização devida por acidente causado pelo proprietário ou pelo condutor legítimo, está simplesmente a cumprir o contrato.

É certo que a cobertura do seguro apenas pondera o risco resultante da condução "normal" do veículo.

Se intervierem factores que alteram essa previsão - condutor não habilitado, condutor etilizado, etc. - o que acontece é que o risco inerente a tal condução excede o risco contratado, o que vale por dizer que já não estaria coberto pelo contrato de seguro.

Mas porque estamos perante um seguro obrigatório, compreende-se que, mesmo então, seja sempre a Seguradora a responder, em primeira linha, perante as vítimas respectivas.

É em tais situações que a lógica do sistema faz intervir o mecanismo do "direito de regresso", por forma a que o risco venha, então, a ser a final, suportado pelo condutor "infractor", e já não pela Seguradora (cf. Ac. do STJ de 23.11.99, supra citado).

No caso da alínea c), aqui em questão, surgem como devedores do direito de regresso, o condutor sem habilitação legal, o condutor sob influência do álcool, estupefacientes, outras drogas ou produtos tóxicos e o condutor que haja abandonado o sinistrado.

A condução efectuada em qualquer daquelas circunstâncias e o abandono do sinistrado não são, só por si, causadores de prejuízos.

Como se escreveu no Acórdão do STJ de 14-01-1997, BMJ 463º, pag. 562:

"Se o direito de regresso da seguradora não existe em relação a todo e qualquer condutor que provoque por culpa sua o acidente, e porque o direito de regresso se situa dentro do campo das sanções civis reparadoras, a lógica jurídica e o equilíbrio do sistema jurídico importam a adopção da conclusão segundo a qual não deve aquele direito ser estendido a consequências que não têm que ver com as circunstâncias especiais que o motivam."

Isto quer dizer que o direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com aquelas circunstâncias.

É que nada justifica que esse direito abranja, também, a parte da indemnização respeitante a danos que sempre se produziriam com ou sem abandono, sendo este de todo irrelevante quanto ao risco assumido.

O acto de abandono da vítima de acidente de viação, embora seja reprovável no plano da ética e do direito criminal (como sucedeu no caso dos autos em que o Réu foi condenado por um crime de omissão de auxílio), não justifica um benefício para a seguradora, isentando-a da responsabilidade assumida pelo contrato de seguro, quanto aos danos que nada têm a ver com esse abandono.

Quando o abandono não foi causa determinante de outros danos para além dos causados pelo acidente em si ou do agravamento destes danos, não pode falar-se em agravamento do risco coberto pela apólice.

Aliás, há casos em que as circunstâncias em que ocorreu o abandono bem podem torná-lo irrelevante, como sucede quando outras pessoas, presentes no local, prestaram imediatos socorros à vitima, ou nos casos de morte imediata, como se observa no Ac. do STJ de 11.02.2003, CJ AcSTJ, I, pag. 87.

Em suma, o direito de regresso previsto no art. 19º, alínea c) do DL 522/85, apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou e que têm nexo causal com as circunstâncias ali previstas; ou seja, no caso de abandono do sinistrado, o direito de regresso apenas abrange os acrescidos e resultantes do abandono.

Este o entendimento que temos como mais adequado, foi seguido na sentença e corresponde ao entendimento maioritário da jurisprudência ( para além dos citados, ainda os Acórdãos do STJ de 05-03-1996, BMJ 455º/513, de 28-02-2002, P.02A192 (Afonso de Melo) e de 31-01-2007, P.06A4637 (Urbano Dias), disponíveis em www.dgsi.pt).

Resta dizer que à luz dos princípios que regem o ónus da prova (art. 342º do C.Civil), sempre caberia à Autora alegar e provar os pressupostos do direito de regresso previsto no art. 19º, al. c), isto é, seguintes conclusões: conclusão 6ª.

Dito isto, revertamos ao caso ajuizado.

Que o Recorrido foi culpado do acidente que vitimou a infeliz Maria Filomena e que abandonou de imediato o local do acidente, é ponto que não oferece dúvidas.

Simplesmente, o abandono do local pelo Réu - eticamente reprovável e por que foi condenado penalmente - mostra-se absolutamente indiferente para o decesso da vítima, que sempre ocorreria atento a gravidade das lesões que sofreu.

O abandono do local pelo Réu em nada contribuiu para o risco contratado, uma vez que a morte da vítima foi praticamente imediata.

3. Novamente inconformada, a A. interpôs revista excepcional - indicando como acórdão fundamento o proferido pelo STJ em 3/7/03, no p. 03B1272 - que encerrou com as seguintes conclusões:

I) Atendendo, em primeiro lugar, à identidade dos aspectos abordados quer no acórdão ora objecto de recurso quer no citado acórdão de 03.07.2003 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça e, em segundo lugar, à manifesta contradição no sentido defendido em um e outro acórdão sobre a mesma questão jurídica central da exigência ou não de nexo causal entre os prejuízos que a seguradora suportou e o abandono do sinistrado, ou seja, se o direito de regresso em causa apenas abrange os danos acrescidos e resultantes do abandono, deverá o presente recurso de revista excepcional ser admitido porquanto se vêm preenchidos os requisitos previstos nos nº 1 e 2 do artigo 672º do CPC, designadamente, o previsto na alínea c) do nº 1 do artº 672º do CPC.

II) A questão acima aludida, pela sua relevância jurídica e prática, justifica e impõe também a apreciação da mesma por este tribunal para uma melhor aplicação do Direito, assim se verificando também o fundamento para este recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artº 672º do CPC.

III) O direito de regresso da seguradora encontra-se contemplado no art.º 19º do DL. 522/85, de 31 de Dezembro, em hipóteses determinadas, nuns casos, por elementares princípios de justiça, em outros por agravamento injustificado ou indesculpável dos riscos próprios da condução e, finalmente, ainda em outros por motivos de ordem moral, de tal modo que o legislador não teve como razoável que, nessas situações, os seus autores beneficiassem da existência do seguro.

IV) No caso da hipótese prevista na alínea c), in fine, do citado artº 19º, a do abandono do sinistrado, a verificação da mesma basta-se com a mera prova da conduta típica nela prevista, o dito abandono, sem que se exija ainda, para o efeito, a verificação de mais requisitos, como o da existência de danos resultantes do mesmo abandono ou o nexo causal entre os danos reclamados e este abandono.

V) O sistema legal pretendeu, em caso de acidente de viação em que o condutor-culpado abandone o sinistrado, censurar esta conduta com uma sanção penal, prevista no artº 200º do CP, e com uma sanção civil, prevista no artº 19º, al. c) do DL. 522/85

VI) Na verdade, o preceito legal previsto na alínea c), in fine, daquele art.º 19º estabelece uma ratio preventiva do direito de regresso da seguradora, decorrente do abandono de sinistrado pelo condutor do veículo seguro, sendo, esta norma, de cariz preventivo, pedagógico e sancionador, visando, como tal, evitar o comportamento de abandono de sinistrado nela previsto.

VII) O legislador pretendeu com tal norma a aplicação de uma sanção civil àqueles que, pela sua actuação imprudente, perigosa, ético-juridicamente censurável, deixaram assim de merecer a protecção concedida pelo seguro, sem que daí possam ser afectados os terceiros lesados.

VIII) Prevendo o contrato de seguro obrigatório a responsabilização da seguradora perante as vítimas sem possibilidade de depois se reembolsar junto do condutor-culpado, o legislador criou aquela sanção, excepcionando os casos em que, pelo evidente agravamento do risco que resulta da natureza de certas actividades ou comportamentos altamente censuráveis, como o do abandono de um sinistrado, não se justifica que a seguradora assuma aquela obrigação de pagamento de indemnizações sem que lhe seja concedida a possibilidade de se ressarcir junto do dito condutor-culpado.

IX) Ao aceitar-se que o direito de regresso só poderia ser exercido nos casos de agravamento dos danos, como pretende o acórdão recorrido, esta norma tornar-se-ia inútil e a sanção nela prevista inexistente, o que, num esforço hermenêutico, não se poderá aceitar, tendo evidentemente o legislador ponderado a impossibilidade prática de, na maioria dos casos, a seguradora provar a existência do nexo de causalidade entre o abandono do sinistrado e o agravamento dos danos que esse comportamento haja determinado, bem como determinar a percentagem dos danos resultantes do acidente e do abandono.

Acresce, no caso,

X) Que o crime pela prática do qual foi o recorrido condenado, o de omissão de auxílio qualificado, p. e p. no artº 200º/1 e 2 do CP, é, como sabido, um crime de meios ou auxílio necessário e adequado (neste caso, omissão dos mesmos) contra um perigo concreto e já não de resultado, não se exigindo, em face da conduta do arguido nesses casos, para preenchimento do tipo de crime, a prova de um determinado resultado da sua conduta, mas antes a mera prova que o mesmo não tenha adoptado certos meios ou condutas que lhe eram, naquela situação, exigíveis.

XI) Em face das exigências de preenchimento do tipo de crime e da prova necessária para o efeito, se fosse o presente direito de regresso exercido no processo criminal em que aquele crime foi reconhecido sob a forma de pedido de indemnização cível pela vítima do abandono (o terceiro lesado ressarcido pela recorrente), o nexo causal agora exigido para o seu sucesso se veria ali estabelecido por via da prova penal e consequente preenchimento do tipo de crime em causa, previsto, no artº 200º/1 do CP, como "Quem, em caso de grave necessidade, nomeadamente provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo, seja por acção pessoal, seja promovendo o socorro, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias." e no seu nº 2 como "Se a situação referida no número anterior tiver sido criada por aquele que omite o auxílio devido, o omitente é punido com pena de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias".

XII) Pelo que, por tudo, também nesta sede não deverá o mesmo ser exigido, porquanto limita o exercício do direito de regresso em causa de forma que não encontra suporte na lei, nem noutros meios processuais.

XIII) E que se para uma mesma conduta típica - a de abandono de um sinistrado - se não exige para aplicação de uma sanção penal ao agente, a mais grave, prevista no artº 200º do Código Penal, que a mesma tenha tido um qualquer resultado negativo para a vítima, mal se compreende que, para aplicação da sanção civil ao mesmo agente pela mesma conduta, a menos grave, prevista na alínea c) do artº 19º do DL. 522/85 e aqui em apreço, já se exija aquele resultado, impondo-se depois ainda, para a sua demonstração, um ónus de cumprimento impossível na generalidade dos casos, assim se esvaziando, na prática, uma sanção legal.

De qualquer modo,

XIV) No caso dos autos, o recorrido foi, de facto, condenado, por decisão transitada em julgado, pelo sobredito crime de omissão de auxílio qualificado, pelo que, quanto a ele, se deverá entender que, ao abandonar a sinistrada num acidente por ele próprio provocado, aquele omitiu um auxílio necessário ao afastamento do perigo a que esta ficou sujeita, devendo, como tal, considerar-se que, se aquele auxílio era necessário, como reconhecido, é porque com ele se teria evitado o referido perigo e danos, devendo, como tal, considerar-se que ficou sempre provado nos autos o nexo causal entre aquele abandono e os danos invocados e sofridos por aquela sinistrada, até, ao menos, por não ilisão, pelo recorrido, da presunção legal prevista no artº 623º do CPC.

XV) Ou seja, em caso de condutor de viatura automóvel condenado, por decisão transitada em julgado, pelo crime de omissão de auxílio agravado, p. e p. no artº 200º/l e 2 do CP, deverá entender-se que, para efeitos da verificação do direito de regresso previsto na alínea c) do artº 19º do DL. 522/85, de 31 de Dezembro, o nexo causal entre o abandono do sinistrado e os danos por este sofridos se mostra provado, a menos que aquele sobredito condutor demonstre o contrário. O que, no caso, o recorrido não fez!

Se, porém, assim se não entender,

XVI) Ao configurar-se a hipótese de a lei vir a limitar o direito de regresso aos danos resultantes do agravamento, o que aqui apenas se admite como mera hipótese, que se não concede, tal ónus deveria recair sobre o infractor e nunca sobre um terceiro alheio a tal conduta, a seguradora.

XVII) (i) Quer porque, como já vimos, na alínea c) do artº 19º do DL. 522/85, não se faz tal limitação, nem sequer se exige um nexo causal entre o abandono e os ditos danos, (ii) Quer, porque, por assim ser, aquela limitação e este nexo se mostrarem como factos extintivos do direito de regresso da seguradora (cujos factos integradores, tal como previsto na lei, se bastarão com a mera conduta de abandono), incumbindo, pois, nessa medida, por força do artº 342º/2 do CC, o ónus da sua prova ao agente/infractor, (iii) Quer por só este, e já não a seguradora, por ter estado no acidente, poder estar em condições práticas de cumprir com aquele ónus, demonstrando ou a inexistência de danos, ou a inexistência de nexo de causalidade entre os danos verificados e o abandono em causa. (iv) Quer, finalmente, porque, por força do artº 623º do CPC, no caso de prévia condenação penal pelo crime de auxílio agravado, se dever considerar tal nexo causal como provado, salvo prova do condutor em contrário.

XVIII) A norma da al. c) do artº 19º do DL. 522/85, não faz, pois, qualquer distinção, pelo que a seguradora tem direito de regresso sobre o condutor que haja abandonado o sinistrado independentemente das condições em que teve lugar e das repercussões que tenha tido sobre os prejuízos causados à vítima do acidente.

XIX) Neste sentido veja-se ainda que nos casos previstos na alínea f) do mesmo art.º 19º o legislador já quis deixar claro que seria necessária a demonstração do nexo de causalidade, concluindo-se, desta forma, que o legislador propositadamente, não estipulou a necessidade do nexo causal entre abandono e danos, sendo, como já se referiu, a "mera" conduta de abandono praticada pelo condutor suficientes para que a seguradora possa vir exercer direito de regresso contra aquele.

XX) Em contrapartida, o acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência 6/2002 aborda apenas os casos de condução sob o efeito do álcool e respectivo nexo de causalidade com o acidente, não sendo admissível a sua aplicação ao caso vertente - abandono do sinistrado - através de uma interpretação extensiva, uma vez não existe qualquer razão de ordem lógica ou imperativo constitucional que a justifique.

XXI) Face ao exposto, fez o tribunal a quo uma errada aplicação do disposto na alínea c) do art.º 19º, na parte que contempla o direito de regresso quando haja abandono do sinistrado, devendo, pelos motivos expostos, ser a sua decisão revogada e substituída por outra que condene o recorrido ao pagamento da quantia peticionada pela recorrente.

TERMOS EM QUE deverá o presente recurso ser admitido e julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido conforme atrás concluído e condenando-se, em consequência, o recorrido no pedido, com o que se fará

JUSTIÇA!

O recorrido contra alegou, concluindo nos seguintes termos:

I. O cumprimento das exigências formais atinentes à justificação da revista excepcional exige a demonstração do acórdão fundamento e do respectivo trânsito em julgado, em moldes que os artigos 637.º, n.º 2, 2ª parte e o artigo 672.º, n.º 1, al. c) não permitem duvidar: certidão ou cópia integral do acórdão com demonstração do trânsito em julgado, não se compadecendo com a mera reprodução mecânica de um texto extraído de uma base de dados na Internet, como sucede in casu.

II. Para além do requisito formal supra aludido, o acesso à revista excepcional, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do CPC, depende da verificação cumulativa de vários requisitos, exigindo-se, desde logo, que ambos os acórdãos incidam sobre a mesma questão fundamental de direito, não bastando que estas questões sejam análogas do ponto de vista de vista jurídico.

III. As questões jurídicas reportadas aos Acórdãos em causa, salvo o respeito por opinião diversa, são meramente análogas, pelo que não se verifica um dos pressupostos materiais de admissibilidade do presente recurso de revista com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

IV. A questão jurídica reportada ao processo em análise relaciona-se com a exigência, ou não, de nexo causal entre os prejuízos que a seguradora suportou e as circunstâncias enunciadas no artigo 19º, alínea c), do Decreto-Lei 522/85, de 31.12.

V. Sobre esta questão já se pronunciou este Supremo Tribunal de Justiça, através do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 6/2002.

VI. A não satisfação dos ónus previstos Na alínea c) do nº 1 do artigo 672.º do CPC, implicam, sem mais, a rejeição da revista excepcional, não havendo lugar a um convite para aperfeiçoamento das alegações ou do requerimento de interposição do recurso.

VII. Sustenta também a Recorrente que o presente recurso de revista excepcional encontra fundamento na alínea a), do n.º 1, do artigo 672.º do CPC, limitando-se, no entanto, a referir, em sede de alegações de recurso, que a questão relacionada com a exigência ou não de nexo causal entre os prejuízos que a seguradora suportou e o abandono do sinistrado se trata de "questão suscitada com grande frequência nos tribunais, impondo-se, na medida do possível, uma uniformização da jurisprudência sobre o âmbito e exigência de prova no que se refere ao direito de regresso aqui em causa".

VIII. A cláusula geral contida na alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC impõe que a questão jurídica tenha carácter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação às partes envolvidas.

IX. Não indicando o recorrente, como a lei exige, as razões pelas quais a apreciação das questões, face à sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, a revista excepcional não pode ser admitida com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC.

X. Sem conceder, sempre se dirá que o acórdão recorrido é justo e legal, não merecendo qualquer reparo.

XI. O direito de regresso da seguradora, fundado no abandono da vítima depende da existência de nexo causal entre o abandono e o dano.

XII. O ónus da prova incumbia à recorrente, nos termos do artigo 342.º do CC.

XIII. O nexo causal não se verifica na hipótese dos autos já que vítima acabou por falecer na sequência imediata do acidente, não obstante a circunstância de seguir acompanhada e de ter sido prontamente assistida.

XIV. O direito de regresso integra o instituto da responsabilidade civil extracontratual, dependendo por isso da verificação dos requisitos típicos de constituição da obrigação de indemnizar, nomeadamente o nexo causal.

XV. A penalização de natureza ética ou moral foi infligida ao recorrido no âmbito do processo-crime em que foi condenado, sendo certo que o abandono integra, de per si, um tipo legal de crime autónomo.

XVI. Sustentam o entendimento propugnado na douta sentença do Tribunal a quo as decisões proferidas pelo STJ em 30.5.2006, 11.2.2003, 9.12.2004, 29.11.2005 e 1.2.2011, bem como o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 6/2002, de 28.5.2002.

XVII. Nos termos do exposto o Tribunal a quo deu a correcta interpretação à norma do art. 19.º, al. c), in fine do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro.

Nos termos do exposto, deverão V. Exa.s, Venerandos Juízes Conselheiros, rejeitar o presente recurso de revista excepcional, pelos fundamentos aduzidos ou, sem conceder, negar provimento ao recurso da R., mantendo na íntegra o douto Acórdão recorrido, com o que farão JUSTIÇA.

A revista excepcional foi admitida por acórdão da competente formação, ao ter por cumulativamente verificados os respectivos pressupostos (contradição jurisprudencial, ao nível do STJ, acerca da interpretação da norma em causa e relevância jurídica da questão).

4. Por despacho do Exmo Conselheiro Presidente, foi determinado o julgamento ampliado da revista, peticionado pela recorrente na sua alegação:

6. Nas circunstâncias do caso, e aplicando os critérios da lei, pode haver conveniência em determinar que o julgamento se faça com intervenção do Pleno das Secções Cíveis.

O Supremo Tribunal de Justiça de há muito que se defronta com a controvérsia que constitui o assunto decidendo no objecto da presente revista, existindo decisões divergentes que não permitem considerar consolidado e estável o sentido da jurisprudência sobre a questão a decidir.

Pronunciaram-se no sentido de o direito de regresso da seguradora em caso de abandono do sinistrado abranger todos os danos emergentes do acidente, nomeadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal proferidos em 29.4.99 (revista 283/99), 24.5.2001 (revista 825/01), 27.9.2001 (revista 2198/01), 3.7.03 (revista 1272/03) e 13.10.2011 (revista 526/06). Mas pronunciaram-se no sentido de o mesmo direito de regresso, abranger apenas os danos acrescidos causalmente resultantes do facto do abandono, nomeadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal proferidos em 16.4.98 (revista 54/98), 16.12.99 (revista 787/99), 28.2.2002 (revista 192/02), 11.2.2003 (revista 74/03), 9.12.2004 (revista 2876/04), 29.11.2005 (revista 3380/05), 17.1.2006 (revista 2705/05), 30.5.2006 (revista 1219/06), 31.1.2007 (revista 4637/06), 15.3.2007 (revista 407/07), 1.7.2010 (revista 4006/04) e 3.4.2014 (revista 4525/11).

Considerando que não existe jurisprudência estável, torna-se provável a persistência de condições que não permitem fazer prevalecer uma das soluções em conflito.

A segurança e a coerência aconselham, por isso, o julgamento ampliado da revista, estabelecendo precedente orientador susceptível de garantir a estabilidade da jurisprudência sobre a matéria em causa.

7. Deste modo, nos termos do artigo 686º, nº 1, do CPC, determino o julgamento ampliado da revista.

5. A Exma. representante do MºPº pronunciou-se sobre a questão de direito controvertida, nos termos previstos no nº 1 do art. 687º do CPC, propondo que o conflito jurisprudencial fosse resolvido através da emissão de acórdão uniformizador com a seguinte formulação:

"O direito de regresso conferido à seguradora, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 19º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, relativo ao Regime do Jurídico do Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, apenas abrange os danos derivados do abandono da vítima ou o agravamento dos danos causados pelo acidente decorrente desse abandono, e não a totalidade dos danos originados pelo acidente e que a seguradora indemnizou".

6. Não sendo objecto de controvérsia a aplicabilidade ao caso dos autos, perante a data do acidente, do quadro legal definido pelo DL 522/85, a resolução do conflito jurisprudencial subjacente à presente revista ampliada implica determinar qual a interpretação funcionalmente adequada da norma constante da parte final da alínea c) do art. 19º desse diploma legal, no segmento em que estabelece que a seguradora tem direito de regresso contra o condutor que haja abandonado o sinistrado: deverá tal norma ser interpretada em consonância com o sentido literal, em termos de a ocorrência do facto abandono de sinistrado despoletar, sem mais, o surgimento do direito de regresso da seguradora que adiantou o pagamento da indemnização ao lesado, abrangendo a acção de regresso todos os montantes por ela suportados com o ressarcimento dos danos provenientes do acidente? Ou, bem pelo contrário, impõe-se, face à prevalência a conceder ao elemento teleológico e racional, uma interpretação claramente restritiva ou correctiva daquele sentido literal aparente do preceito legal - determinante de uma substancial redução do respectivo âmbito de aplicação, que conduza a apenas admitir o direito de regresso da seguradora relativamente à indemnização paga pelos danos especificamente causados ou agravados pelo facto do abandono da vítima pelo condutor do veículo?

Como é sabido, no âmbito institucional do Direito das Obrigações a figura do direito de regresso, prevista no art. 524º do CC, situa-se no campo das obrigações solidárias, visando - no plano das relações internas entre os vários obrigados - reequilibrar as relações patrimoniais entre eles, afectadas pelo facto de o condevedor a quem foi exigida a prestação ter pago montante superior à sua quota na relação obrigacional comum; e tal direito de regresso traduz-se, como é sabido (ao contrário do que ocorre na mera novação subjectiva que é típica da figura da sub-rogação), na atribuição de um direito novo ao condevedor que, não podendo opor ao credor o benefício da divisão, teve de realizar a prestação por inteiro - direito esse constituído sequencialmente à extinção da primitiva relação obrigacional solidária, como decorrência da integral satisfação do interesse do credor.

Por outro lado - a admitir-se que é possível construir juridicamente uma vinculação solidária entre o segurado/lesante e a seguradora que assume prioritariamente o ressarcimento dos lesados - é manifesto que nos situamos no plano da solidariedade imprópria ou imperfeita, caracterizada pela existência de um escalonamento de responsabilidades, sendo - nos casos que ora nos ocupam, decorrentes do disposto no art. 19º - um dos vinculados (o autor do facto que fundamenta o direito de regresso da seguradora) o responsável principal e definitivo pelo ressarcimento dos danos causados; na verdade, o exercício da acção de regresso possibilita ao responsável provisório (a seguradora que, assumindo a função social do seguro, adiantou a satisfação das indemnizações devidas aos lesados) o reembolso das quantias que pagou, fazendo-as repercutir definitivamente no património do causador do acidente e autor dos comportamentos que, pela sua especial gravidade e censurabilidade, - implicando clara ultrapassagem do perímetro de riscos protegidos pelo seguro - ditam, na óptica do legislador, a preclusão da garantia de cobertura resultante da existência do seguro.

De realçar, porém, que na situação dos autos - situada na confluência da responsabilidade extracontratual do lesante em acidente de viação e da cobertura pela seguradora do risco de constituição no património do segurado da obrigação de indemnizar terceiros (cfr. art. 145º da LCS), implicando a consequente assunção contratual pela seguradora de responsabilidade civil da obrigação de suportar prioritariamente as indemnizações devidas pelo beneficiário do seguro aos terceiros lesados - o regime de solidariedade passiva que, pelos princípios gerais, se poderia supor existente entre o lesante a respectiva seguradora (sujeita, como é típico dos seguros obrigatórios, à acção directa do lesado) está obnubilada pelas regras especiais que há muito regulam a legitimidade passiva no campo das acções emergentes de acidentes sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel.

Na verdade, tais regras especiais impõem que - existindo seguro válido e eficaz e estando em causa valores compreendidos no capital do seguro obrigatório - a acção seja proposta apenas contra a seguradora: ora, com este regime adjectivo quebra-se uma nota fundamental do conceito de solidariedade, qual seja a possibilidade de o credor exigir a totalidade da prestação a qualquer dos condevedores (tendo, porém, neste caso e por força do disposto no art. 29º, nº 1, do DL 522/85, o lesado de deduzir a pretensão indemnizatória só contra a seguradora).

No entanto, a latente responsabilização do lesante pelas consequências do acto ilícito por ele pessoalmente praticado ressurge claramente em duas situações, ambas previstas na lei:

- quando a seguradora demandada opta por fazer intervir na lide o seu segurado, trazendo-o, ela própria, por sua iniciativa e no seu interesse, para a demanda (nº 2 do art. 29º) - não cabendo definir no presente processo quais as consequências, no caso de procedência da acção, de tal intervenção provocada do segurado, já que tal matéria extravasa manifestamente o âmbito do conflito jurisprudencial a dirimir;

- e - precisamente no caso que nos ocupa - quando a seguradora que, em primeira linha, teve de satisfazer a indemnização devida ao lesado, exerce, nos termos da lei, contra o sujeito que beneficiou, perante o lesado, da cobertura do seguro, o direito de regresso que lhe é conferido, repercutindo definitivamente no responsável pelo acidente o sacrifício patrimonial decorrente do (prioritário) ressarcimento da vítima; ou seja, o responsável directo pelo acidente - que não podia, face às regras processuais especiais do seguro obrigatório, ser demandado pelo lesado - acaba (precisamente como sujeito passivo do referido direito de regresso da seguradora ) por ter de assumir pessoalmente, por esta via e agora no plano das relações internas com a seguradora, o sacrifício patrimonial definitivo, decorrente do justo ressarcimento do lesado.

Note-se que esta fundamental arquitectura das acções de responsabilidade civil fundadas no seguro obrigatório tem levado alguma doutrina a pôr em causa a própria existência de uma vinculação solidária entre lesante/segurado e a respectiva seguradora, acentuando a assunção garantística pela seguradora da obrigação de indemnizar resultante do seguro obrigatório - e procurando alcançar outra fundamentação substancial para o direito de regresso que nos ocupa, situada já fora do regime das obrigações solidárias: tal via jurídica alternativa implica a construção dogmática de uma inovatória figura de direito ao reembolso, diferenciada do típico direito de regresso entre condevedores solidários, (e que integraria, quer o direito de regresso da seguradora, quer a sub-rogação outorgada ao FGA), atribuído por causa e em função da verificação das circunstâncias, tipicamente previstas, que tornam, na óptica do legislador, absolutamente inaceitável a assunção definitiva do risco pelas entidades que , cumprindo a função social do seguro obrigatório, ressarciram os lesados (cfr. José Carlos Brandão Proença, Natureza e prazo da prescrição do "direito de regresso" no diploma do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, Comentário ao Ac. do STJ de 18/10/2012, in Cadernos de Direito Privado, 41, pag. 36 e segs.)

Trata-se, porém, de questão -de contornos essencialmente dogmático-jurídicos - a que não é necessário dar resposta cabal no presente recurso, já que o objecto deste se prende, não propriamente com o regime e conteúdo do referido direito de regresso ou reembolso, mas com a definição dos respectivos pressupostos legais, decorrentes precisamente da fattispecie contida no citado art. 19º: na verdade, qualquer que seja a configuração dogmático-normativa que se atribua ao direito de regresso ou de reembolso da seguradora, coloca-se exactamente nos mesmos termos o problema da interpretação das normas que condicionam a possibilidade de exercício da acção de regresso, definindo os respectivos pressupostos factuais.

Saliente-se ainda que esta figura do direito de regresso da seguradora - exercitável eventualmente contra o próprio segurado/condutor do veículo - é típica das situações de seguro obrigatório, resultando precisamente da circunstância de as finalidades de socialização do risco e de protecção dos lesados terem levado o legislador a prever um apertado regime de tipicidade das excepções oponíveis aos lesados ( art. 14º do DL 522/85) - delas excluindo, nomeadamente, factores ou circunstâncias de agravamento do risco que, no âmbito do seguro facultativo, funcionariam de pleno como causas de exclusão da responsabilidade da seguradora, desvinculando-a em absoluto do pagamento de quaisquer indemnizações decorrentes do sinistro.

A atribuição à seguradora do direito de regresso sobre quem, em primeira linha, beneficiou da cobertura do seguro obrigatório surge, pois, no plano funcional e teleológico, como forma de compensação da seguradora pela impossibilidade de - no campo do seguro obrigatório - invocar e fazer valer, de modo amplo, cláusulas de exclusão livremente convencionadas - repercutindo os valores pecuniários que teve de satisfazer para protecção primacial dos lesados no património dos causadores do acidente a quem seja também imputável algum dos factos tipificados no art. 19º (e que, deste modo, se não forem insolventes, acabarão por ter de suportar definitivamente o sacrifício patrimonial decorrente do pagamento das indemnizações às vítimas).

Importa, pois, começar por proceder a uma análise global das várias situações que, na tipologia taxativa do referido art. 19º, justificam a atribuição à seguradora do direito de repercutir no património dos vinculados ao direito de regresso o montante das indemnizações que, em primeira linha, teve de satisfazer aos lesados.

Trata-se, em todos os casos, de condutas graves e particularmente censuráveis que ultrapassam manifestamente o perímetro dos riscos que devem razoavelmente ter-se por protegidos com a vigência de um contrato de seguro de responsabilidade civil - levando o papel ou função social do seguro obrigatório a que a garantia do pagamento das indemnizações deva ainda funcionar perante os terceiros lesados, mas podendo ulteriormente a seguradora, por via da acção de regresso, repercutir tais indemnizações pagas às vítimas no património dos responsáveis por tais comportamentos (que vêm, assim, numa óptica de responsabilização pessoal, apagada ou precludida , no plano das relações internas com a seguradora, a garantia de cobertura da sua responsabilidade civil).

Ora, analisada a tipologia taxativa que consta do citado art. 19º, é possível distinguir claramente três tipos de situações geradoras do direito de regresso, que iremos de seguida analisar.

6.1. A primeira delas é constituída pelas situações tipificadas nas alíneas a) e b) do preceito, que constituem desvio absoluto - imposto em homenagem à fundamental teleologia de protecção dos lesados que caracteriza o instituto do seguro obrigatório - a regras basilares, estruturantes do normal funcionamento do contrato de seguro - facultativo -, ao impor à seguradora:

- o pagamento de indemnizações decorrentes de facto doloso do segurado (derrogando o princípio fundamental segundo o qual a cobertura de sinistros intencionalmente provocados afectaria a própria ideia fundamental de aleatoriedade subjacente ao contrato de seguro);

- o pagamento de indemnizações resultantes de facto praticado por um condutor abusivo do veículo, que - por acto eventualmente criminoso - dele se apropriou ilegitimamente, afectando a própria direcção efectiva que radicava originariamente no proprietário /tomador do seguro - e que, deste modo, por aplicação das regras gerais da responsabilidade civil, não responderia sequer, nem objectiva, nem subjectivamente, pelos riscos próprios da circulação abusiva e contra a sua vontade: ou seja, a finalidade de protecção ampla dos lesados por sinistros rodoviários levou o legislador a impor à seguradora o pagamento de indemnizações que não seriam sequer devidas pelo seu segurado, por a utilização abusiva e ilegítima do veículo não constituir fonte de um dever de indemnizar a cargo do proprietário, desapossado por facto ilícito do terceiro do poder de efectiva direcção e utilização interessada da viatura.

Note-se que, nestes casos, o direito de regresso da seguradora sobre o autor do sinistro dolosamente provocado ou sobre o condutor abusivo e ilegítimo do veículo ( por cujos actos nem sequer respondia, objectiva ou subjectivamente, o tomador de seguro) flui da própria natureza das coisas, constituindo natural factor de justo reequilíbrio das prestações contratuais: não podia, na verdade, caber à seguradora de responsabilidade civil assumir definitivamente o sacrifício patrimonial decorrente da prática de actos dolosos do segurado ou de comportamentos ilícitos e criminosos de terceiros - pelos quais nem sequer responde o tomador de seguro: a sua intervenção esgota-se na finalidade social de protecção das vítimas (permitindo-lhes obter mais fácil e rapidamente a indemnização a que têm direito, suportando ainda a seguradora o risco da possível insolvabilidade dos autores de tais factos ilícitos, geradores do direito de regresso); nada justificaria, porém, que cumprisse à seguradora assumir, nestes casos, a título definitivo o sacrifício patrimonial decorrente do justo ressarcimento do lesado - podendo naturalmente fazer repercutir ulteriormente, por via do exercício da acção de regresso, as indemnizações pagas na esfera patrimonial do autor ou responsável directo por tais comportamentos ilícitos, situados manifestamente para além do âmbito dos riscos tipicamente cobertos por um seguro de responsabilidade civil.

6.2. Um segundo grupo de casos fundamentadores da acção de regresso da seguradora surge reportado à verificação ou ocorrência de determinadas situações ou circunstâncias específicas do condutor (falta de título de habilitação legal para conduzir, condução sob influência do álcool ou de estupefacientes) ou do próprio veículo que interveio no acidente ( não apresentação do veículo à inspecção periódica obrigatória , deficiente acondicionamento da carga transportada) que - sendo ainda, porventura, da responsabilidade do tomador de seguro - se considera implicarem um sensível agravamento dos normais riscos de circulação - e cuja cobertura, por isso, se não deveria considerar compreendida no normal e comutativo equilíbrio do contrato: também aqui a típica funcionalidade social de protecção da vítima que caracteriza o seguro obrigatório leva a que se imponha à seguradora, num primeiro momento, o ressarcimento dos lesados - mas outorgando-se-lhe, num segundo momento, a faculdade de repercutir o pagamento da indemnização na esfera patrimonial do responsável pelo facto determinante do referido agravamento do risco, por essa via se obtendo no final (naturalmente se a acção de regresso for, no plano prático, viável) algum reequilíbrio das prestações contratuais.

A grande questão que se tem colocado a propósito deste tipo de situações pode traduzir-se na seguinte interrogação: deverá funcionar como facto constitutivo do direito de regresso da seguradora o mero perigo presumido ou abstracto, resultante de uma verificação objectiva das referidas circunstâncias potenciadoras do agravamento dos riscos de circulação? ou, bem pelo contrário, a titularidade do referido direito de regresso comportará antes a demonstração de uma causalidade concreta entre a circunstância (potenciadora, em abstracto, de agravamento do risco) e o efectivo despoletar do acidente - cabendo o ónus da prova de tal nexo causal ou à própria seguradora que invoca o direito de regresso ou, pelo menos, assistindo ao demandado a possibilidade de provar que, no caso, tal nexo causal se não verificou?

Saliente-se que a resposta a esta questão não pode ser dada, perante o conteúdo das disposições legais em vigor, de modo absolutamente genérico e inequívoco; assim:

A) - nalguns casos, é a própria letra da lei que aponta claramente para a necessidade de demonstração (pela seguradora) ou para a possibilidade de ilisão (pelo segurado) da existência do referido nexo de causalidade concreta: é o que acontece (no diploma legal ora em análise) com as circunstâncias (presumivelmente agravantes, no plano abstracto, dos riscos de circulação) referentes ao próprio veículo, estatuindo-se que o direito de regresso só abrange os danos de terceiros que decorram, precisa e efectivamente, da queda da carga deficientemente acondicionada (al. d); ou que (al. f) sejam imputáveis a deficiências provenientes do mau funcionamento do veículo não apresentado a inspecção (e que teriam plausivelmente sido verificadas e obrigatoriamente corrigidas se o proprietário o tivesse submetido tempestivamente a inspecção obrigatória), - facultando-se-lhe, neste caso, a prova da irrelevância da omissão da inspecção periódica na concreta dinâmica do acidente;

B) - noutras situações, a letra da lei parece apontar ou indiciar que possa bastar, como facto constitutivo do direito de regresso da seguradora, a verificação objectiva de certa circunstância potenciadora de um agravamento abstracto e presumido do risco de circulação, nomeadamente atinente às condições do condutor, como sucede com a falta de título habilitante para conduzir (não se referindo aqui, ao menos de forma expressa, a necessidade de demonstração que o acidente se deveu concretamente a imperícia do condutor motivada pela falta de carta habilitante, nem se prevendo explicitamente a possibilidade de o condutor/demandado ilidir a presunção de que quem está desprovido de título legítimo para conduzir não tem as indispensáveis habilitações técnicas, provando que o acidente nada teve a ver com a falta de título habilitante para o exercício da condução);

C) - finalmente, há casos em que a lei se serve de expressão ambígua ou equívoca, ao definir os pressupostos do direito de regresso da seguradora através de conceitos a que podem perfeitamente, mesmo numa interpretação enunciativa, atribuir-se sentidos diferentes: é o que sucede tipicamente com a previsão do efeito que, no art. 19º, se atribuía à condução sob influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos (al. c), segunda parte), consentindo perfeitamente a expressão utilizada (condução sob influência do álcool ou de estupefacientes) dúvidas fundadas sobre o sentido literal da norma: agir sob influência do álcool é apresentar, no momento do acidente, taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida? Ou, pelo contrário, deverá antes interpretar-se tal expressão como significando que só age sob influência do álcool quem praticou o erro de condução que despoletou o acidente em consequência da quebra ou diminuição das faculdades e capacidades pessoais normalmente inerentes à taxa de alcoolemia verificada?

Como é sabido, tais dúvidas, inteiramente consentidas pelo próprio elemento literal da norma, foram solucionadas pelo STJ através do acórdão uniformizador nº 6/2002, em que se consagrou o entendimento que tal expressão ambígua devia ser interpretada como exigindo a prova de um concreto nexo causal entre o estado subjectivo do agente influenciado pelo álcool e a dinâmica do acidente e o resultado danoso por ele provocado, estando tal ónus a cargo da seguradora que exerce o direito de regresso: a alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.;

D) - resta, por último, notar que a evolução legislativa - na passagem do DL 522/85 para a actual lei do seguro obrigatório automóvel - parece fazer-se no sentido de (ao menos na literalidade dos preceitos) acentuar a vertente de objectividade no funcionamento dos pressupostos do direito de regresso atribuído à seguradora: assim, desde logo, no que respeita à condução sob influência do álcool e estupefacientes, o art. 27º al. c) do DL 291/07 prescreve agora que a seguradora tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.

Daqui resultou o recente aparecimento de jurisprudência que - relativamente a acidentes a que seja aplicável este novo diploma legal - passou a entender que os pressupostos do direito de regresso não implicam já a demonstração de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia do condutor e a dinâmica do acidente; veja-se, por exemplo, o recente Ac. de 09-10-2014, proferido pelo STJ no P. 582/11.1TBSTB.E1.S1, em que se decidiu que:

Não é exigível o nexo de causalidade entre a alcoolemia e os danos: à seguradora basta alegar e demonstrar a taxa de alcoolemia do condutor na altura do acidente, sendo irrelevante a relação de causa e efeito entre essa alcoolemia e o acidente, ou seja, os factos em que se materializa a influência do álcool na condução e que eram relevantes na vigência do DL nº 522/85, de 31-12, na interpretação do AUJ nº 6/2002.

6.3. Finalmente, a terceira situação de facto constitutiva do direito de regresso da seguradora é a que presentemente nos ocupa e decorre da previsão normativa contida na parte final da al. c) do art. 19º do DL 522/85, ao estatuir que a seguradora goza de direito de regresso contra o condutor quando este haja abandonado o sinistrado.

Importa começar por definir, em termos factuais precisos, este conceito legal de abandono de sinistrado, perspectivado como facto constitutivo do direito de regresso da seguradora - que as leis que sucessivamente têm regido o seguro obrigatório automóvel importaram da norma penal que constava do velho art. 60º do C. Estrada de 1954 - eliminada de todo no C. Estrada de 1994 e substituída entretanto pela ampla e genérica tipificação (actualmente no art. 200º do C. Penal) do crime de omissão de auxílio.

Aderindo inteiramente ao decidido pelo STJ, por exemplo, nos acs. de 4/4/95 (in BMJ446, 239) e de 13/2/96 (BMJ454, 726), considera-se que este conceito pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência.

Não está, assim, preenchido o facto (constitutivo do direito de regresso) abandono de sinistrado quando o condutor não se apercebe efectivamente do acidente em que interveio, podendo e devendo, todavia, ter-se apercebido, por exemplo, do atropelamento da vítima se agisse com a diligência devida - actuando, deste modo, com culpa, mas não dolosamente, na omissão de prestação do auxílio devido ao sinistrado.

Por outro lado, não pode confundir-se a figura do abandono de sinistrado com a contra ordenação, prevista no art. 89º, nº 2, do C. Estrada - que sanciona o condutor que não aguarde no local do acidente a chegada de agente de autoridade: podendo a assistência devida aos lesados ser prestada pelo próprio ou por terceiros, não comete o facto doloso de abandono de sinistrado o condutor que, apesar de infringir aquela obrigação de estrita permanência no local, não chegou a formar e consumar a vontade de omitir a prestação da assistência devida aos lesados - afastando-se do local do acidente, nomeadamente por fundadas razões de receio, segurança ou perturbação, mas identificando-se e comunicando imediatamente, acto contínuo ao acidente, a ocorrência à competente autoridade policial ou rodoviária - e assim providenciando pela pronta assistência às vítimas por parte das entidades capacitadas para tal efeito.

Note-se que, ao contrário das situações atrás analisadas, o abandono do sinistrado é um facto posterior à consumação do acidente - e que, portanto, nem sequer no plano abstracto e presumido poderia ter tido alguma relevância causal no despoletar - e na dinâmica - daquele.

Por outro lado, a problemática do abandono de sinistrado e seus efeitos assume plena autonomia relativamente ao plano das causas e culpas na produção do acidente, na medida em que o dever de auxílio ao sinistrado não depende da existência de culpa do condutor do veículo na eclosão do acidente, ou seja, de o acidente e as lesões dele resultantes lhe deverem ser imputadas em sede de responsabilidade civil: ainda que o acidente se tenha devido, por exemplo, a culpa exclusiva da vítima, nem por isso deixa o condutor do veículo que nele interveio de estar vinculado a um dever de prestação de auxílio - abandonando o sinistrado se (apesar de não ser responsável civil pelo acidente em si mesmo) deixou de prestar a devida assistência à vítima.

Deste modo, sendo o abandono de sinistrado um facto posterior à consumação do acidente - e funcionando autonomamente relativamente ao plano do apuramento das causas e culpas na eclosão dele - não pode perspectivar-se nunca como causa, ainda que meramente abstracta ou presumida, do acidente: o nexo de causalidade só poderia, deste modo, estabelecer-se relativamente aos danos ou ao agravamento dos danos que tenham sido determinados pela indevida e dolosa omissão de auxílio - nunca relativamente às lesões da vítima que resultaram imediatamente do acidente e que se consumaram integralmente antes de o condutor ter decidido intencionalmente não prestar a assistência devida à vítima.

Saliente-se que nenhuma dúvida pode existir sobre o dever da seguradora indemnizar, em primeira linha, os danos especificamente causados ou agravados pelo abandono de sinistrado, gozando inquestionavelmente, neste caso, de direito de regresso sobre o condutor pelas quantias que adiantou à vítima (como se viu, o abandono de sinistrado pressupõe o dolo do condutor, sendo por isso esta situação logo enquadrável no princípio geral segundo o qual o seguro não cobre definitivamente os riscos decorrentes de factos dolosamente provocados pelo beneficiário ou pelo tomador do seguro).

A questão que se suscita - e que, como se viu, vem merecendo respostas jurisprudenciais divergentes - tem que ver com o âmbito deste direito de regresso da seguradora: abarcará tal direito as próprias indemnizações pagas por danos que se consumaram irremediavelmente no momento do acidente, em relação aos quais não podia o facto posterior do abandono da vítima ter tido a menor influência causal na respectiva verificação e extensão?

Trata-se, em suma, de saber se um facto ilícito do condutor (fortemente censurável, por revelador de uma indiferença ou hostilidade relativamente ao cumprimento de regras estradais básicas e à solidariedade e aos direitos fundamentais dos outros utentes da via pública), posterior à consumação do acidente, apesar de, pela natureza das coisas, não poder ter tido qualquer concreta relevância causal nos danos da vítima que se verificaram plenamente no momento do acidente e foram ressarcidos em primeira linha pela seguradora, deverá apagar ou precludir a garantia de cobertura que - se não fora o facto posterior do abandono - normalmente decorreria do contrato de seguro em vigor.

7. Como é manifesto, o elemento literal em nada favorece a interpretação restritiva ou correctiva do âmbito da norma, propugnada pela corrente jurisprudencial em que se insere o acórdão recorrido: na realidade, representam conteúdos normativos perfeitamente diferenciados e teleologicamente distintos a previsão do direito de regresso da seguradora relativamente aos danos especificamente causados ou agravados pelo facto doloso do abandono e a genérica e a irrestrita previsão, ocorrendo tal abandono, de um direito de regresso, sem qualquer distinção, abarcando (todos) os valores indemnizatórios pagos adiantadamente à vítima, a título de ressarcimento pelo sinistro, mesmo que os danos ressarcidos se tenham inteiramente consumado e estabilizado antes de tal comportamento ilícito e doloso se ter verificado.

Saliente-se que esta previsão normativa, constando do texto do citado art. 19º, foi integralmente mantida no art. 27º do DL 291/07 (apesar de o legislador, ao editar este diploma, não desconhecer seguramente as dúvidas e controvérsias que a interpretação da referida norma já então suscitava na jurisprudência)...

Na verdade, dificilmente haveria forma mais inadequada de o legislador se exprimir, se pretendesse restringir o direito de regresso aos danos causados ou agravados especificamente em consequência do abandono doloso do sinistrado: efectivamente, o preceito, no seu sentido literal e imediato, parece pretender ligar o surgimento do direito de regresso ao simples facto do abandono da vítima, sem aludir minimamente à exigência de um qualquer nexo causal entre tal facto do abandono e os danos cujo ressarcimento fundaria a acção de regresso da seguradora.

Aliás, essa interpretação - restritiva e correctiva - da fattispecie normativa em análise acaba por tornar a aplicação da norma puramente residual - ficando fora do seu âmbito, não só os acidentes, como o dos autos, que implicaram o imediato decesso da vítima, bem como todos aqueles em que a assistência às vítimas, abandonadas deliberadamente pelo condutor, acabou por ser prestada por terceiros, presentes no local do acidente, à inteira revelia do causador do sinistro.

Acresce que - sendo o abandono do sinistrado, como se viu, um facto necessariamente doloso do condutor - a interpretação restritiva propugnada no acórdão recorrido (que limita o âmbito do direito de regresso aos danos especificamente causados ou agravados pela omissão de auxílio) acabaria, em bom rigor, por inutilizar ou esvaziar a previsão normativa ora em análise, já decorrendo, como se viu, da al. a) do art. 19º que o direito de regresso abrange necessariamente as consequências de factos dolosamente praticados pelo condutor...

Com isto não se pretende obviamente desvalorizar o peso decisivo que o elemento racional e teleológico deve necessariamente assumir na tarefa de interpretação da lei: simplesmente, o intérprete apenas deve avançar para uma interpretação drasticamente redutora do âmbito da norma, implicando a reconstrução do pensamento legislativo através da atribuição de um sentido normativo que se afasta profundamente da literalidade e do sentido normal que as expressões e conceitos utilizados comportam, se o elemento racional da interpretação impuser cabal e inequivocamente essa verdadeira redução teleológica da norma.

Não parece ser esse o caso que presentemente nos ocupa.

Na verdade, pode considerar-se que, de um ponto de vista funcional, à acção de regresso - enquanto reportada a indemnizações pagas a título de ressarcimento de danos relativamente aos quais não ocorreu qualquer nexo causal com o facto constitutivo do direito de regresso (o abandono doloso da vítima) - deva atribuir-se a natureza de sanção civil - levando as finalidades de prevenção geral e de reforçada censura ético-jurídica de determinadas condutas estradais à personalização da responsabilidade do seu autor, apagando ou precludindo, no plano das relações internas entre seguradora e tomador/beneficiário do seguro, a garantia de cobertura dos riscos de circulação que normalmente decorreria da vigência do contrato.

Tal perspectiva tem, aliás, encontrado acolhimento nalguma jurisprudência do Supremo, ao acentuar-se que o regime normativo em causa se pode justificar através da instituição legislativa de disciplina moralizadora, simultaneamente dissuasora e repressiva, punindo civilmente os tomadores de seguro e causadores do acidente que deixaram de merecer a protecção do seguro - visando a instituição desta sanção civil alcançar algum equilíbrio na posição das seguradoras no seguro obrigatório, que as compense do facto de passarem a ter de suportar riscos alargados, sem possibilidade de inclusão contratual de cláusulas de exclusão de garantia: vejam-se, por exemplo, os acs. de 24/5/01, na rev. 825/01 (in CJ, Ano IX. II, pag. 102) e de 4/4/95, proferido no P. 086804).

Trata-se, em última análise, independentemente do sancionamento do arguido, nos planos penal e contra-ordenacional, de prever e fazer funcionar uma sanção patrimonial civil - envolvendo o apagamento da normal garantia do seguro e a personalização da responsabilidade do segurado e determinante de que o sacrifício patrimonial resultante do pagamento da indemnização à vítima do acidente deva recair definitivamente sobre o autor do abandono doloso do sinistrado (tornando, deste modo, extremamente onerosas para o condutor as consequências da omissão dolosa de auxílio às vítimas, por essa via procurando censurar e desincentivar fortemente esse reprovável comportamento estradal).

Aliás, em bom rigor, pode considerar-se que a previsão do direito de regresso da seguradora, em todos os casos em que se prescinde da prova de um efectivo e concreto nexo causal entre o facto gerador da acção de regresso e os danos indemnizados pela seguradora, assume sempre uma natureza sancionatória, prosseguindo finalidades de prevenção geral, ao tornar especialmente onerosas para o causador do acidente as consequências do facto, pela significativa ablação patrimonial que pode envolver - e nessa medida podendo contribuir, de forma relevante, para erradicar comportamentos rodoviários tidos por inadmissíveis, face à censurabilidade e aos riscos agravados que envolvem para toda a comunidade.

Embora se admita que a função primacial da responsabilidade civil extracontratual - e do possível direito de regresso, no plano das relações internas, entre seguradoras e responsáveis directos pelo facto ilícito - não seja de natureza punitiva nem contemple essencialmente fins de prevenção geral, não pode olvidar-se que estamos aqui confrontados com situações de responsabilidade civil conexionada com o concomitante cometimento infracções penais ou contra-ordenacionais - podendo essa proximidade com o campo do direito sancionatório público justificar um acrescido apelo a particulares exigências éticas ou ao prosseguimento pela lei de fins de prevenção geral.

Ora, não se vê razão bastante para - limitando significativamente a liberdade de regulação do legislador - concluir à partida pela absoluta impossibilidade de, nomeadamente em áreas da responsabilidade civil conexas ou interligadas com áreas do direito sancionatório público, serem legalmente instituídas sanções patrimoniais civis, ditadas essencialmente por razões de prevenção geral e de acrescida censura ético jurídica a determinados comportamentos ilícitos.

Como é evidente, a previsão legislativa de sanções patrimoniais civis - totalmente autónomas do sancionamento penal e contra-ordenacional - envolvendo a preclusão da garantia de cobertura que normalmente emergiria do seguro vigente, com base no cometimento pelo beneficiário do seguro de um facto ilícito e fortemente censurável - em nada colide com o princípio non bis in idem: na verdade, a sanção civil aqui instituída liga-se exclusivamente à definição do âmbito da cobertura do risco pela seguradora, no plano das relações internas entre esta e o seu segurado, nada tendo a ver com um duplo julgamento do arguido/responsável civil no âmbito institucional do direito sancionatório público.

8. A questão fundamental que tem aqui de ser colocada situa-se, em bom rigor, num outro plano, tendo a ver, não com a legitimidade da previsão legislativa de sanções patrimoniais civis ou com o princípio non bis in idem, mas antes com a indispensável convocação, nesta sede, dos princípios fundamentais da culpa, da proporcionalidade e da adequação: é que, não devendo inviabilizar-se, à partida, a opção legislativa consistente em prever e instituir verdadeiras sanções civis, prosseguindo legitimamente (nomeadamente em áreas da responsabilidade civil conexa com a responsabilidade penal e contra-ordenacional) finalidades de prevenção geral, é naturalmente indispensável que as mesmas suportem o confronto com os referidos princípios, não podendo a sua cominação conduzir a resultados manifestamente iníquos, por claramente desproporcionados á gravidade e censurabilidade dos comportamentos que estão na base da respectiva aplicabilidade.

Ou seja: a aplicação de determinada sanção de natureza patrimonial ao agente, mesmo situada no estrito domínio das relações civis, nunca poderá funcionar em termos puramente objectivos e automáticos, desencadeando-se imediatamente perante a verificação de determinada factualidade objectiva, contemplada, no caso, no art. 19º: é indispensável que se deva poder formular, quanto à própria factualidade constitutiva do direito de regresso, um juízo de censura, incidente sobre a conduta do agente e contemplando, por exemplo, a possível ocorrência de causas de exclusão da culpa.

É, assim, indispensável que o vinculado à obrigação de regresso tenha, não apenas dado culposamente causa ao acidente - ou, no caso de abandono de sinistrado, que ora nos ocupa, responda ao menos objectivamente pelos danos causados pelo acidente, por se verificarem, os respectivos pressupostos, determinando o pagamento de uma indemnização ao lesado pela seguradora - mas também que haja actuado censuravelmente na prática do acto em que se alicerça directamente o direito de regresso da seguradora.

Por outro lado, o princípio estruturante da adequação e da proporcionalidade impõe que se deva necessariamente confrontar e comparar a gravidade da infracção cometida e da culpa do agente na prática do acto que vai despoletar o direito de regresso da seguradora e as consequências, nomeadamente em sede de ablação patrimonial, que podem emergir desse exercício: não pode admitir-se, em homenagem a tal princípio fundamental, que infracções muito pouco relevantes no plano ético jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um reduzido ou francamente atenuado juízo de censura, possam conduzir a drásticas perdas patrimoniais, que ponham em causa a sobrevivência económica do obrigado em via de regresso.

Como é evidente, este indispensável balanceamento ou ponderação entre a gravidade e a censurabilidade da infracção e as respectivas consequências no plano patrimonial pode pertinentemente suscitar-se a propósito dos vários fundamentos do direito de regresso tipificados na alínea c) do art. 19º: veja-se, por exemplo, a sua aplicação a uma situação de falta de habilitação legal para conduzir no recente Ac. de 30/10/14, proferido pelo STJ no P. 498/06.3TBGDM.P1.S1, em que se decidiu (perante a total desproporcionalidade entre a gravidade e censurabilidade da falta cometida e as consequências patrimoniais que poderiam resultar do direito de regresso):

Face à letra da primeira parte da al. c) do art. 19.º, do DL n.º 522/85, de 31 de Dezembro, a seguradora que pretenda exercer o direito de regresso com base em condução sem habilitação legal não tem, em princípio, que demonstrar o nexo causal entre esse facto e o acidente.

Importa, contudo, distinguir, em consonância com o disposto no art. 130.º, n.º 5, do CEst, entre os casos de ausência originária de habilitação para conduzir - em que se presume ad unum a inexperiência e a falta de destreza do condutor - e os casos de caducidade do título habilitador por decurso do prazo de validade - em que se presume ad acutelam que o decorrer da idade pode produzir uma menor capacidade para o exercício da condução.

Nos casos de caducidade do título habilitador da condução por decurso do respectivo prazo, impende sobre a seguradora o ónus de alegar e demonstrar o nexo de causalidade adequada entre esse facto e o acidente, sob pena de se alcançarem resultados intoleráveis.

Dado que, no caso, o condutor detinha carta de condução há mais de 50 anos e que 5 dias após o acidente veio a ser medicamente atestada, pela Direcção Geral de Saúde, a sua aptidão mental e física para conduzir (o que levou à revalidação do seu título de habilitação), não é presumível que, na data daquele, o mesmo não estivesse capaz para desempenhar tal actividade.

Porém, esta necessidade de concreta ponderação entre a gravidade e censurabilidade do facto constitutivo do direito de regresso da seguradora e a intensidade e onerosidade que a perda da garantia do seguro envolve, a realizar na óptica do princípio fundamental da proporcionalidade e da adequação e numa perspectiva de concordância prática, não se coloca seguramente na situação que nos ocupa, face à delimitação do conceito de abandono de sinistrado a que se procedeu - concluindo que só cabem no seu âmbito factos dolosos do condutor, envolvendo a formação e consumação de uma vontade deliberada de omitir a prestação da assistência devida à vítima.

Não pode seguramente, perante esta delimitação factual do conceito de abandono de sinistrado, - e face às inequívocas gravidade e censurabilidade ético-jurídica deste comportamento - considerar-se inadequada ou desproporcionada a preclusão da cobertura que, em condições normais, decorreria do contrato de seguro em vigor.

Não parece, por outro lado, que a perda da cobertura do seguro, ínsita na concessão à seguradora de direito de regresso pelos danos inteiramente consumados antes do facto do abandono de sinistrado, possa afectar, em termos intoleráveis - e em prejuízo do segurado - o equilíbrio contratual subjacente ao seguro; para além de se tratar de situação excepcional e perfeitamente delimitada, envolvendo um gravíssimo comportamento do segurado, a previsão legal (com as finalidades de prossecução do interesse geral atrás escalpelizadas) constitui título bastante para o exercício da acção de regresso, sem que se possa invocar o enriquecimento sem causa da seguradora à custa do segurado: na verdade, a causa da vantagem que a seguradora reflexamente aufere com o exercício da acção de regresso neste tipo delimitado de situações decorre da própria lei e das finalidades por ela prosseguidas, nela encontrando fundamento bastante.

9. Impõe-se, pois, concluir, pelas razões apontadas, como no acórdão fundamento, que o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.

E, assim sendo, não pode subsistir o decidido no acórdão recorrido, impondo-se a respectiva revogação, concedendo-se provimento à revista.

Verifica-se, porém, que - no caso dos autos - as instâncias não chegaram a apreciar a excepção peremptória de prescrição do direito de regresso, invocada oportunamente pelo demandado na contestação, em consequência da solução dada ao litígio, que tornava efectivamente inútil a dirimição dessa questão.

Porém, face à interpretação normativa ora fixada quanto aos pressupostos do direito de regresso, ressurge obviamente o interesse na apreciação e decisão da dita excepção peremptória, que deixa, assim, de estar prejudicada pela solução do litígio, no que respeita à existência do direito de regresso invocado pela seguradora.

Face ao estatuído na parte final do art. 679º do CPC, não é aplicável no recurso de revista a regra da substituição ao tribunal recorrido prevista, para o recurso de apelação, no art. 665º, não podendo, deste modo, o STJ - não apenas, como sempre sucedeu (cfr. art. 684º), suprir a nulidade de omissão de pronúncia cometida pela Relação - mas também apreciar, pela primeira vez, questões que as instâncias deixaram de apreciar, por as terem por prejudicadas pela solução dada ao litígio.

Saliente-se que, no velho CPC, ao prever o regime do julgamento da revista, o nº 1 do art. 726º apenas excepcionava da genérica remissão para as disposições relativas ao julgamento da apelação a norma constante do nº 1 do art. 715º, em que se mandava aplicar a regra da substituição ao tribunal recorrido ao caso em que a Relação, ao julgar a apelação, declarasse nula a decisão recorrida.

Daqui resultava inequivocamente que - como, aliás, decorria da expressa previsão legal há muito contida no nº 2 do art. 731º - a procedência da nulidade de omissão de pronúncia implicava que o STJ devesse mandar baixar o processo, para se fazer a reforma da decisão anulada, em princípio pelos mesmos juízes que a haviam proferido.

Não era, porém, perante a norma constante do citado art. 726º - que não ressalvava, ao menos explicitamente, a situação prevista no nº 2 do art. 715º do CPC - inteiramente líquido se este regime limitativo da regra da substituição - determinado pela consideração que o STJ não deveria conhecer, simultaneamente em primeira e última instância, de questões de direito ainda nunca apreciadas no processo, eliminando irremediavelmente a possibilidade de funcionamento do duplo grau de jurisdição - se deveria transpor para os casos em que - inexistindo o vício de omissão de pronúncia - as instâncias deixaram (legitimamente) de conhecer e apreciar determinada questão, por a considerarem prejudicada pela solução dada ao litígio (veja-se a abordagem desta questão, por exemplo, no Ac. de 21/10/10, proferido pelo STJ no P. 12280/07.6TBVNG.P1.S1).

Sucede que o novo CPC, no art. 679º, tomou expressa posição sobre esta problemática, passando a prever e regular, para este efeito, em termos idênticos e indistintos, as situações em que existe efectiva nulidade por omissão de pronúncia (decorrente de o tribunal a quo ter indevidamente omitido a apreciação de certa questão relevante) - nº 1 do art. 665º - e de mera (e legítima) não pronúncia sobre questões, anteriormente suscitadas no processo, que ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio - nº 2 do art. 665º do CPC em vigor.

Daqui decorre que - como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo CPC; 2013, pags. 341/342) - uma vez que o actual art. 679º exclui a aplicação remissiva de todo o preceituado no art. 665º, incluindo o nº 2 que trata das aludidas situações que no CPC anterior constavam do nº 2 do art. 715º, tal significa que foi retirada a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça se substituir de imediato à Relação. Daí que quando o acórdão da Relação não estiver afectado por uma nulidade, mas dele emergir apenas que não apreciou determinada questão, por considerá-la prejudicada pela solução então encontrada, uma vez revogado o acórdão, em lugar da imediata substituição que anteriormente era viável, impõe-se agora a remessa dos autos à Relação para que nesta sejam apreciadas as questões omitidas.

Deste modo, cabe determinar a remessa dos autos à Relação para, nos termos do citado nº 2 do art. 665º do CPC e após eventual cumprimento do preceituado no nº 3, decidir da procedência ou improcedência da excepção peremptória de prescrição do direito de regresso.

10. Nestes termos e pelos fundamentos invocados:

a) concede-se provimento à revista, revogando o acórdão recorrido e determinando a remessa dos autos à Relação para apreciação, nos termos do nº 2 do art. 665º do CPC, da excepção peremptória de prescrição do direito de regresso, ficando as custas da revista a cargo do recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido;

b) uniformiza-se a jurisprudência nos seguintes termos:

O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do art. 19º do DL 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de julho de 2015. - Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego (Relator) - Orlando Viegas Martins Afonso - Paulo Távora Victor - Gregório Eduardo Simões da Silva Jesus - Manuel Fernando Granja Rodrigues da Fonseca - Gabriel Martim dos Anjos Catarino - António da Silva Gonçalves - António dos Santos Abrantes Geraldes - Fernanda Isabel de Sousa Pereira - Manuel Tomé Soares Gomes - Nuno Pedro de Melo e Vasconcelos Cameira - João Mendonça Pires da Rosa - Carlos Alberto de Andrade Bettencourt de Faria - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza - Fernando Manuel de Oliveira Vasconcelos - António José Pinto da Fonseca Ramos - Helder João Martins Nogueira Roque - José Fernando de Salazar Casanova Abrantes - José Augusto Fernandes do Vale (Vencido, conforme declarações de voto dos Cons. Moreira Alves, João Bernardo e Paulo Sá) - João José Martins de Sousa (Voto vencido, sufragando, nesse sentido, os fundamentos do voto de vencido do Exmo. Conselheiro Moreira Alves) - João Carlos Pires Trindade (Vencido nos termos da declaração do Dr. João Bernardo) - José Tavares de Paiva (Vencido nos termos da declaração do Dr. João Bernardo) - Ana Paula Lopes Martins Boularot (Vencida nos termos da declaração que junto) - Maria Clara Pereira de Sousa de Santiago Sottomayor (Voto vencida de acordo com a declaração de voto do Conselheiro Moreira Alves e de acordo com a declaração do Conselheiro João Bernardo) - Fernando Manuel Pinto de Almeida (Vencido nos termos da declaração de voto dos Exmos. Conselheiros João Bernardo e Ana Paula Boularot) - Júlio Manuel Vieira Gomes (Vencido nos termos das declarações de voto juntas pelos Senhores Conselheiros João Bernardo, Paulo Sá e Moreira Alves) - Sebastião José Coutinho Póvoas (Vencido nos termos da declaração de voto dos Mºs. Cons.os João Bernardo, Paulo Sá e Moreira Alves) - António Manuel Machado Moreira Alves (Vencido nos termos da declaração de voto, que anexo) - António Alberto Moreira Alves Velho (Vencido, com adesão à declaração de voto do Exmo. Cons. Moreira Alves) - José Amílcar Salreta Pereira (Vencido nos termos do voto do Exmo. Conselheiro Moreira Alves) - João Luís Marques Bernardo (Vencido nos termos do voto que junto) - João Moreira Camilo (Vencido de acordo com o voto de vencido do Conselheiro Moreira Alves) - Paulo Armínio de Oliveira e Sá (Vencido conforme declaração que junto) - Ernesto António Garcia Calejo (Vencido conforme voto de vencido do Exmo. Conselheiro Paulo Sá) - António Silva Henriques Gaspar (Presidente).

Declaração de voto

Não acompanho a tese que faz vencimento.

Sempre s.d.r.o.c, negaria a Revista, com a confirmação da decisão plasmada no Acórdão impugnado e pelas razões apontadas na declaração de voto do Conselheiro João Bernardo, que subscrevo (com ressalva para o último parágrafo quando se refere à nova Lei, porquanto a questão em tela se situa ao abrigo da Lei pregressa), uniformizaria a jurisprudência do seguinte modo:

«O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, prevenido na parte final da alínea c) do artigo 19º do DL 522/85, de 31 de Dezembro, abrange apenas e tão só os danos que tal abandono tenha especificamente causado ou agravado.»

Ana Paula Boularot

Voto de Vencido

A solução adoptada pelo douto acórdão quanto à interpretação da parte final do Artº 19 do D.L. 522/85 de 31/12, não tem a ver com "um sensível agravamento dos normais riscos de circulação", não considerados quando da celebração do contrato de seguro, e portanto, com o restabelecimento do reequilíbrio das prestações contratuais.

Tal reequilíbrio só se coloca quando se perfilhe a interpretação restritiva do preceito, de modo que o direito de regresso, inclua, apenas, os danos concretos emergentes directamente do abandono do sinistrado, ou do agravamento dos danos decorrentes do acidente, em consequência do abandono.

De facto, como se reconhece no acórdão, o facto ilícito do abandono do sinistrado é um facto posterior à consumação do acidente e, portanto, sem nenhuma influência causal nos danos sofridos pela vítima em consequência directa do acidente.

Então, eliminar a garantia normal do seguro contratualmente convencionado, estendendo a direito de regresso da seguradora, aos danos decorrentes directamente do acidente, pelos quais, em condições de normalidade, só esta responderia, traduzir-se-á na constituição do condutor em responsabilidade civil, sem que exista qualquer nexo causal entre o facto ilícito do abandono e os danos que tem de suportar em via de regresso, o que contrariaria os requisitos gerais da responsabilidade civil.

Consequentemente, ao que nos parece, salvo melhor opinião, só restringindo o direito de regresso consignado na parte final da alínea c) do Artº 19 do D.L. 522/85 (como, aliás, na alínea d) do novo D.L. 291/2007) aos danos ou ao agravamento dos danos determinados, concreta e directamente, pelo abandono do sinistrado (ou dolosa omissão de auxílio), se respeitarão os requisitos ou pressupostos da responsabilidade civil há muito sedimentados na ordem jurídica.

É certo que o elemento literal não favorece esta interpretação restritiva, mas não é menos certo que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas antes reconstituir o pensamento legislativo, tendo em conta, essencialmente, a unidade do sistema jurídico.

Ora, ao que nos parece, a razão de ser do direito de regresso consagrado nas diversas alíneas do Artº 19 do D.L. 522/85, encontra-se na especial índole do seguro obrigatório, vocacionado para a protecção efectiva da vítima, impondo-se, por isso, às seguradoras, o pagamento de indemnizações que podem exceder os riscos que elas, em condições normais, estariam dispostas a aceitar.

Quer dizer, a função social do seguro automóvel obrigatório, justifica que o legislador imponha às seguradoras a assunção de riscos que elas, não assumiriam normalmente, no âmbito da sua liberdade contratual.

E, sendo assim, é claro que a lei tinha de prever esquemas jurídicos que permitam às seguradoras o reembolso desses riscos acrescidos.

Ora, no caso de abandono do sinistrado, certo é que tal condita ilícita, porque posterior ao acidente e dele completamente autónoma, em nada concorrem para os danos dele directamente decorrentes, daí que, quanto a esses danos, ao suportar o seu ressarcimento ao lesado, a seguradora limita-se a pagar o que sempre teria de pagar no âmbito das suas normais obrigações decorrentes do contrato.

Nestes casos, como o aqui em lide, a função social do seguro obrigatório não lhe impôs qualquer agravamento em relação aos riscos contratualmente assumidos.

Porém, se a indemnização liquidada pela seguradora abranger danos directamente causados pelo abandono do sinistrado, então a seguradora estará a indemnizar para além da cobertura contratual e justifica-se, então, o direito de regresso.

Portanto, salvo o devido respeito por opinião diversa (como é a assumida pelo acórdão), o direito de regresso não deve estender-se a consequências ou resultados que não tenham a ver com as circunstâncias especiais que o motivaram, antes deve cobrir, apenas, os danos que a seguradora suportou e que tenham nexo causal com o abandono do sinistrado.

De resto, o direito de regresso previsto no citado Artº 19 tem a sua razão de ser no enriquecimento injustificado do interveniente no acidente à custa da seguradora, situação que não ocorre quando, não se demonstrem danos directamente resultantes do facto ilícito "abandono do sinistrado".

Nesse caso, os danos apenas decorrentes do acidente, são da responsabilidade da seguradora por força do contracto de seguro, não ocorrendo qualquer situação de enriquecimento injustificado.

Por outro lado, não nos parece que possa qualificar-se o aludido direito do regresso como uma sanção patrimonial civil, para assim justificar à interpretação lata perfilhada pelo acórdão.

Salvo melhor opinião, uma tal qualificação afigura-se-nos desajustada, quanto é certo que a omissão de auxílio é já tipificada como crime, punido, em situações como a dos autos, com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias (Artº 200 nº 2 do C. Penal).

Aliás, o abandono do local do acidente, quando dele resultarem mortes ou ferimentos é, também, qualificada como contra-ordenação muito grave, punida com multa e inibição de conduzir - v. Artºs 89 nºs 2 e 4, 146º q) e 147º do C. Est.

De resto, seria, pelo menos estranho que a beneficiária da dita sanção civil, fosse, afinal, a seguradora, que assim se veria reembolsada de quantia que sempre estaria obrigada a pagar por força do contrato de seguro.

No final de contas, em vez de se promover o equilíbrio das prestações contratuais, estar-se-ia a fomentar o enriquecimento injustificado da seguradora, através de uma dupla valoração da mesma conduta ilícita, que assim seria sancionada no plano criminal e no pano cível.

Não se põe em causa a gravidade e censurabilidade da conduta omissiva, mas essa gravidade fica suficientemente acautelada, designadamente sob o ponto de vista da prevenção geral, com a sanção penal, e, ainda, com a indemnização civil dos danos eventual e directamente causados com o abandono (se existirem), caso em que, satisfeita essa específica indemnização pela seguradora, lhe assiste, sem qualquer dúvida, o direito de regresso.

O que não se justifica é a preclusão pura e simples e automática da cobertura que, em condições de normalidade decorre do contrato de seguro.

Tal preclusão automática, independentemente do nexo de casualidade entre a conduta ilícita e o dano, afigura-se-nos francamente desproporcionada e inadequada, gerando situações de grande injustiça, em proveito exclusivo da seguradora que fica dispensada das suas normais e típicas obrigações contratuais.

Por tudo isto, apesar da dificuldade que o elemento literal acarreta, pensamos ser legítima a interpretação restritiva do Artº 19 do D.L. 522/85, aliás francamente maioritária na jurisprudência deste Supremo Tribunal, uma vez que será esse sentido imposto pela lógica jurídica que presidiu à consagração do direito de regresso ali previsto, assente em considerações de ordem racional ou teleológicas, tudo em conformidade com a unidade do sistema jurídico na sua globalidade.

Consequentemente, confirmaria o acórdão recorrido, uniformizando jurisprudência no sentido de que,

"o direito de regresso conferido à seguradora pelo Artº 19 alínea c) do D.L. 522/85, de 31/12, apenas abrange os danos derivados, concreta e directamente do abandono da vítima ou agravamento dos danos causados pelo acidente decorrentes desse abandono, e não a totalidade dos danos originados pelo acidente e que a seguradora indemnizou".

Lisboa, 2/7/2015. - Moreira Alves.

1. Votei vencido. Entendo que o conteúdo do direito de regresso da seguradora deve ser considerado circunscrito ao que eventualmente tenha pago relativamente aos danos derivados especificamente do abandono da vítima.

2. A omissão de auxílio, em caso de grave necessidade, está prevista no artigo 200.º do Código Penal. Com uma pena agravada, nos termos do n.º 2 se a situação tiver sido criada por aquele que omite o auxílio.

Perante uma conduta censurável, o legislador veio, na sede própria que é o direito penal, tomar posição.

3. Em sede de responsabilidade civil, tem comummente sido aceite a ideia da inclusão duma vertente sancionatória. Como refere Almeida Costa (Direito das Obrigações, 6.ª edição, 436,nota 4.ª de pé de página):

"O Código Civil consagra basicamente a conceção clássica de que a responsabilidade civil por actos ilícitos tem a função de reparar os danos causados e não fins sancionatórios (cfr. os artigos 483.º, n.º 1 e 562.º e, de um modo geral, a disciplina da obrigação de indemnização...). Todavia, num ou noutro aspecto do regime da obrigação de indemnizar, pode ver-se aflorada a ideia de que a referida responsabilidade civil visa também, embora apenas acessoriamente, um escopo de repressão e prevenção destes actos ilícitos..."

Mas esta vertente sancionatória encerra em si os limites próprios do instituto em que se insere. Ainda na apontada página escreve este Ilustre Autor:

"A responsabilidade civil autonomiza-se da responsabilidade penal ou criminal, embora não possam ignorar-se os aspectos problemáticos dos vectores que as separam. Desde logo a primeira pertence à esfera do direito civil, que é direito privado, ao passo que a segunda se reconduz ao direito penal, ramo do direito público...

Está subjacente à responsabilidade civil a ideia de reparação patrimonial de um dano privado, pois o dever jurídico infringido foi estabelecido directamente no interesse da pessoa lesada. O que verdadeiramente importa nas sanções civis é a restituição dos interesses lesados. Daí que sejam privadas e disponíveis.

Diversos são os caracteres da responsabilidade penal. Esta aparece como uma defesa contra os autores dos factos que atingem a ordem social. No ilícito penal, portanto, ofende-se um dever jurídico estabelecido imediatamente no interesse da colectividade. As sanções criminais visam defender a sociedade; propõem-se fins de prevenção geral e especial, através da intimidação e da reeducação do delinquente (penas e medidas de segurança) e fins ético-retributivos, através da expiação pelo delinquente da sua culpa (penas)."

4. Na verdade:

O fulcro da prevenção geral está no direito penal e sua aplicação;

Não se pode conferir à função sancionatória da responsabilidade civil um relevo que não tem.

Os juízos sobre o grau de abrangência da lei penal e sobre a sua eficácia no domínio da prevenção geral só a este ramo do direito dizem respeito, em caso algum podendo servir de elemento de aferição relativamente dimensão da função sancionatória da responsabilidade civil.

Por isso, mal se compreende que a sanção civil tenha um grau de abrangência que, em muitos casos, se não mesmo por regra, ultrapasse, em termos práticos, a sanção penal.

O mencionado artigo comina a omissão de auxílio, quando a situação tiver sido criada pelo agente, com pena com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. Sabido que a lei penal, nestes casos de alternativa, determina que se dê, por regra, preferência à pena não privativa de liberdade, temos, vulgarmente, uma multa de algumas centenas de euros. Mesmo no caso de haver razão para afastamento e aplicação da pena privativa de liberdade, o recurso - como no presente caso - à suspensão também constitui regra.

Não obstante dever sempre ter-se em conta a natureza das sanções criminais, quaisquer que elas sejam, sempre fica a ponderação sobre a comparação com a indemnização relativa à totalidade dos danos causados com o acidente, que pode ascender a muitos milhares de euros, se não a milhões (no caso (euro) 98.276,72, acrescidos de juros de mora), levantando-se, então, pertinentemente, a questão da violação do princípio constitucional da proporcionalidade.

Acresce que a sanção penal visa a reintegração do delinquente na sociedade, enquanto a dívida pesa sobre ele friamente até ao pagamento ou prescrição de vinte anos.

5. Noutro prisma, a função sancionatória da responsabilidade civil pressupõe, como resulta da sua própria conceptualização, a verificação dos pressupostos desta. A este propósito e depois de admitir uma certa elasticidade no que respeita aos danos morais, Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo III, 421) escreve:

"Quando, porém, se joguem situações meramente económicas, a responsabilidade aquiliana deve ser contida nos - de resto, muito latos - limites do artigo 483.º/1, do Código Civil. O "momento da culpa" é decisivo. Os danos não são imputados por serem prejudiciais, mas antes por serem ilícitos e culposos."

6. Um dos pressupostos é o do nexo de causalidade. O agente só pode ser responsabilizado pelos danos que estiverem numa relação de causalidade adequada com a sua atuação ou omissão.

Em caso algum pode ser responsabilizado por danos já produzidos antes desta. "Aquele que ... violar ... fica obrigado a indemnizar os danos resultantes da violação" refere logo o n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil.

Ora, quando tem lugar o abandono de sinistrado, os danos a este alheios já se tinham produzido. As suas consequências podiam prolongar-se no tempo, mas estava preenchido o comportamento do agente que a eles dera lugar.

Falece, necessariamente, a relação de causalidade.

7. Por outro lado, e conforme flui do texto, supra transcrito, de Almeida Costa, a função sancionatória integra-se na ideia de ressarcimento do lesado. É precisamente no ressarcimento deste que o julgador deve, eventualmente, ponderar as necessidades de prevenção geral.

Fica, então, sem se compreender esta ponderação quando não está em causa qualquer direito do abandonado, incluindo a indemnização a este devida pelos danos derivados do acidente. A única beneficiária é a seguradora que, não tendo sido abandonada, vê o seu direito de regresso assumir dimensões inusitadas.

8. O abandono de sinistrado tem mesmo particularidade relativamente aos casos de condução sob o efeito do álcool ou sem documento habilitante para conduzir.

Enquanto nestes o condutor colocou em perigo acrescentado a circulação, aumentando a probabilidade da eclosão de acidentes, no abandono de sinistrado tudo nasce com o evento já consumado. Não teve lugar o mencionado aumento do risco.

Não colhem, pois, por aqui os argumentos - que, aliás, não subscrevo - já com base na lei vigente, de que, quanto àqueles ilícitos, o legislador terá optado por uma responsabilização total, independente da relação causal entre eles e os danos.

Lisboa, 2 de julho de 2015. - João L. M. Bernardo.

Votei vencido, por continuar convencido da justeza da fundamentação aduzida no acórdão de 01.02.2011, proferido no processo 1587/08.5TBOVR.P1.S1, de que fomos Relator.

Explicitarei alguns pontos, em que a divergência com a fundamentação do presente acórdão é mais acentuada e que se reconduzem, no fundo, à divergência sobre a interpretação da lei (artigo 9.º do C. Civil).

Afigura-se-nos que a interpretação subscrita no acórdão, parte de uma catalogação diferenciada das situações em que se consagrou o direito de regresso que se nos afigura desnecessária, artificiosa no que concerne ao abandono do sinistrado e implicando medidas correctivas, o que, em termos interpretativos, remete para algo que se procurou afastar: "... o elemento literal em nada favorece a interpretação restritiva ou correctiva do âmbito da norma...".

A tese defendida no acórdão justifica o direito de regresso, por o respectivo sujeito passivo "ter de assumir pessoalmente, por esta via e agora no plano das relações internas com a seguradora, o sacrifício patrimonial definitivo, decorrente do justo ressarcimento do lesado".

Ora, este argumento da decorrência das "relações internas" só vale relativamente ao segurado mas não em relação aos demais sujeitos passivos do direito de regresso.

É nosso entendimento que a interpretação que subscrevemos não se cinge à letra da lei nem a sobrevaloriza, mas reconstitui o pensamento legislativo.

Desde logo não se perdeu de vista que o seguro de responsabilidade por danos de circulação automóvel sempre visou primeiramente a tutela dos interesses dos segurados e das vítimas, sem deixar de garantir uma adequada protecção das seguradoras, contra uma excessiva e desequilibrada assunção dos riscos rodoviários.

Igualmente se ponderou que o seguro obrigatório, apesar de ter mudado a fisionomia da responsabilidade civil, se manteve com características de seguro pessoal e não real.

A interpretação da lei não prescinde, também, do recurso ao conceito do direito de regresso e à regra do n.º 2 do artigo 497. º do C. Civil: o direito de regresso existe na medida da culpa dos responsáveis e das consequências que delas advieram.

O próprio conceito de abandono do sinistrado carece de interpretação, uma vez que o crime de abandono de sinistrado não existe hoje na nossa ordem penal, não podendo afirmar-se que o crime do artigo 60.º do C. da Estrada de 1954 e o do actual artigo 200.º do Código Penal são normas de configuração muito semelhantes: o primeiro era punido, quer no caso do abandono doloso, quer negligente e apesar de tratado como um crime de perigo, o resultado e o grau de culpa determinava a moldura da pena.

Finalmente, temos por adquirido que o fundamento do direito de regresso não pode deixar de se encontrar numa interpretação que acate os pressupostos da responsabilidade civil.

É, pois, por o segurado (enquanto tal) não ser responsável de todo ou não ser totalmente responsável pelos danos causados, que a seguradora, garante das respectivas indemnizações, tem direito de regresso contra os responsáveis pelos danos causados a terceiros.

A medida do direito de regresso da seguradora será aferida pela não responsabilidade do segurado (nessa qualidade) pelos danos causados a terceiros.

Esta é, a nosso ver, a perspectiva segundo a qual se tem de encarar o direito de regresso do segurador que satisfaz a indemnização, contra o condutor que haja abandonado o sinistrado (artigo 19.º, alínea c), do DL n.º 522/85).

O que está em causa no equilíbrio contratual não é o montante das indemnizações devidas por um qualquer acidente, mas tão-só as relativas ao quid resultante do abandono do sinistrado: com aquelas primeiras contava a seguradora, mas já não com estas.

Caso o abandonante fosse obrigado a suportar todo o montante indemnizatório previamente pago pela seguradora, sem qualquer discriminação entre os danos produzidos normalmente em consequência do acidente e dos acrescidos, em virtude do abandono, ocorreria, sem dúvida alguma, um desequilíbrio contratual resultante do facto de aquele estar a reembolsar importâncias que só a seguradora devia pagar, pela singela razão de que foi isso mesmo o que foi contratualizado, assim se configurando uma situação de enriquecimento sem causa por parte da seguradora.

Outrossim, o desequilíbrio contratual também se daria, caso a seguradora fosse "obrigada" a suportar as despesas resultantes pura e simplesmente do abandono: se isso acontecesse, bem poderíamos dizer que o legislador a tinha colocado numa situação não previsível, na justa medida em que não faz parte do comportamento do homem médio (pelo qual o Direito se rege e para o qual se dirige) abandonar um sinistrado, independentemente da determinação de culpa no acidente.

Depois, a natureza preventiva ou punitiva da previsão do direito de regresso, no caso do abandono do sinistrado, não se nos afigura convincente.

Não é verdade que a interpretação que defendemos torne inútil a previsão autónoma do direito de regresso fundado no abandono, porquanto ela já caberia na alínea a) do artigo 19.º, pois esta alínea refere-se ao "acidente" causado dolosamente.

Também não parece aceitável que, estando tipificado penalmente o dito "abandono de sinistrado", haja necessidade de outra sanção de natureza económica.

A ideia da sanção moral é alheia ao direito de regresso da seguradora, com fundamento no abandono do sinistrado, pois não é essa a função do reembolso.

Tampouco se pode justificar o reembolso da seguradora, para além dos danos causados pelo abandono, com a função sancionatória da responsabilidade civil.

Tal sanção que visaria reparar os prejuízos, em função da intensidade da culpa do agente, não vai ao ponto de admitir uma indemnização superior aos danos sofridos pelo lesado (art.os 483.º, n.º 1, 494.º e 562.º do C. Civil).

E sempre seria estranho que se previsse essa sanção no contexto do seguro obrigatório, quando a omissão de auxílio não é específica dos acidentes rodoviários, não se vendo justificação para que essa "sanção" reverta em proveito da seguradora.

O argumento de que o abandono do sinistrado, tal como constava do texto do citado art. 19.º, foi integralmente mantido no art. 27.º do DL n.º 291/07 denota uma intenção de não introduzir uma intenção restritiva é reversível, pois da mesma forma em que se clarificou a lei no que toca à condução sob o efeito do álcool, seria de esperar que, havendo controvérsia em relação ao abandono de sinistrado e até uma corrente maioritária relativamente à tese ora sufragada, se procedesse de forma semelhante. - Paulo Armínio de Oliveira e Sá.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1556139.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1985-12-31 - Decreto-Lei 522/85 - Ministério das Finanças

    Revê o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.

  • Tem documento Em vigor 2002-07-18 - Jurisprudência 6/2002 - Supremo Tribunal de Justiça

    A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do anexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente. (Processo 3470/2002 - 2ª Secção).

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