Acordam no Tribunal Constitucional:
1 - Hermínio da Piedade Antunes foi julgado na Relação de Lisboa, mediante acusação deduzida pelo Ministério Público, e condenado, em acórdão proferido em 12 de Dezembro de 2003, pela prática em autoria material de um crime de desobediência previsto e punível pelas disposições conjugadas do artigo 158.º, n.os 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada, com referência ao artigo 348.º, n.º 1, alínea a), e ao artigo 69.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de Euro 25, no total de Euro 1500, e na pena acessória de 5 meses de proibição de conduzir veículos automóveis.
Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Por acórdão de 3 de Junho de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu rejeitar o recurso "na vertente em que o mesmo visava a reapreciação da matéria de facto, para além dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal", e em negar-lhe provimento, no restante, assim mantendo a condenação aplicada da Relação de Lisboa.
Deste acórdão recorre o arguido para o Tribunal Constitucional em requerimento do seguinte teor:
"Hermínio da Piedade Antunes, advogado, arguido no processo supra-referido, notificado do acórdão final de 3 de Junho de 2004, vem do mesmo interpor recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, limitado às questões de constitucionalidade levantadas no decurso do processo, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1.º Nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nas alegações escritas apresentadas já neste e em requerimento avulso sobre a competência hierárquica dos venerandos tribunais, o ora recorrente suscitou questões de constitucionalidade de algumas normas, como adiante se exporá, que não obtiveram provimento, mas que abrem a via do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, que estabelece que 'cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo';
2.º No requerimento sobre a questão da competência do Tribunal da Relação de Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente escreveu que 'uma interpretação normativa da regra consignada no citado n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, de modo a abranger situações como a do recorrente, que se encontra desligado efectivamente do serviço, cria uma excepção ao princípio do juiz natural de tal modo gritante que viola o princípio da igualdade perante a lei inscrito no também referido n.º 2 do artigo 13.º da Constituição';
3.º Com a interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais feito no douto acórdão, o recorrente considera que foi violado o princípio da igualdade do cidadão perante a lei, consignado no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição, visto que se não justifica a existência de foro especial para magistrados fora do serviço efectivo, sendo até que no momento da prolação do acórdão final já se encontrava apenas aposentado, por deliberação de 25 de Maio de 2004 do Conselho Superior da Magistratura, que só lhe foi comunicado depois da data do acórdão;
4.º O recorrente pretende ainda ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada na redacção do artigo 4.º do Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, emitido ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, sem indicação de autorização legislativa, em violação do princípio de reserva de lei penal da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, que o douto acórdão considerou existir, mas o decreto-lei omite;
5.º Igualmente deve ser apreciada a inconstitucionalidade da norma da alínea c) do artigo 69.º do Código Penal Português, na medida em que considera que foi aplicada em violação do regime do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, que proíbe a atribuição de efeitos automáticos a condenações penais, sem ponderação autónoma dos factos, questões igualmente suscitadas nas alegações de recurso e escritas;
6.º Como se sublinhou nas alegações finais escritas, da conjugação das normas decorrentes dos artigos 394.º, 398.º, 283.º, n.º 5, e 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, tal como foram aplicadas na fase da acusação e do seu recebimento judicial, resultam violados os princípios da lealdade processual, igualdade de armas e direito e garantias de defesa na modalidade do acesso à justiça, tendo sido denegada a faculdade de abertura de instrução em devido tempo, para cujo efeito o arguido nunca foi notificado, pelo que também se pretende ver apreciada a constitucionalidade daquelas normas, como aplicadas no processo, com aceitação do STJ;
7.º Finalmente uma questão nova se apresenta agora com a prolação do douto acórdão. Diz respeito à interpretação do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal feita pelo acórdão. No mínimo, era de contar com um convite do Supremo para efeitos da supressão do vício relacionado com os pontos de facto incorrectamente julgados, como se entendeu que deve ser feito no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 529/2003, processo 667/2003, de 31 de Outubro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 290, de 17 de Dezembro de 2003. Uma interpretação tão radical no sentido negativo, em oposição à própria tese do Ministério Público, permite agora suscitar a questão da inconstitucionalidade daquela norma, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a qual agora se levanta e pretende ver apreciada igualmente no presente recurso.
Termos em que se requer a admissão do presente recurso, com oportuna remessa dos autos ao Tribunal Constitucional, para aí seguirem os ulteriores termos."
O recurso foi admitido. Neste Tribunal, o relator convidou o recorrente a esclarecer o seguinte:
"Nos recursos previstos na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, o Tribunal Constitucional tem uniformemente entendido que, atento o princípio do pedido, é ao recorrente que cabe o ónus de enunciar a norma acusada de inconstitucional, por forma que o Tribunal dela possa conhecer nos precisos limites com que foi aplicada. Nesta fase, interessará, assim, conhecer com rigor não tanto as razões nas quais o douto recorrente alicerça o fundamento do seu recurso mas exactamente a formulação normativa aplicada no acórdão recorrido e aqui questionada.
Convido, portanto, o recorrente, nos termos do artigo 75.º-A da LTC, a indicar com precisão qual foi a interpretação normativa dos artigos 15.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 69.º, alínea c), do Código Penal e 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que o acórdão recorrido aplicou; e convido, ainda, o mesmo recorrente a esclarecer - no mesmo prazo de 10 dias - se suscitou ou não, perante o tribunal recorrido, a questão de inconstitucionalidade relativa ao aludido artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal."
O recorrente veio então dizer o seguinte:
"Hermínio da Piedade Antunes, advogado, recorrente no processo supra-referido, notificado do douto despacho de aperfeiçoamento, de 30 de Setembro de 2004, vem responder ao convite efectuado com base no regime do artigo 75.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional nos termos que seguem:
Enquadramento da questão:
a) O recorrente é convidado a indicar com precisão qual foi a interpretação normativa dos artigos 15.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, 69.º, alínea c), do Código Penal Português e 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que o douto acórdão recorrido aplicou; e b) Se suscitou perante o Tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade relativa ao aludido artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
O recorrente interpreta o douto despacho nos seguintes termos:
É seu ónus indicar a formulação normativa aplicada no douto acórdão recorrido, que questiona no recurso perante o Tribunal Constitucional, aceitando este Alto Tribunal que relativamente aos artigos 15.º, n.º 2, do Estatuto dos Magistrados Judiciais e 69.º, alínea c), do Código Penal a questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos termos legais, havendo dúvidas se o foi também quanto ao artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Sobre a formulação normativa:
1.º No douto acórdão recorrido, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça interpretou e aplicou a norma resultante do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais no sentido de que a mesma se aplica aos magistrados jubilados, gozando estes de foro especial, desde que a jubilação não resulte de afastamento em procedimento disciplinar, foro que visa ainda a defesa dos interesses da função;
2.º Pelo contrário, o recorrente entendeu e entende que ao magistrado jubilado não se aplica o regime jurídico daquele n.º 2 do artigo 15.º, independentemente de a jubilação resultar de procedimento disciplinar ou de normal afastamento por idade ou tempo de serviço, sob pena de violação do princípio da igualdade perante a lei;
3.º No que concerne à alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal Português, o Supremo Tribunal de Justiça interpretou e aplicou esta norma como um efeito automático da punição principal por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito do álcool;
4.º Quando, no modesto entender do recorrente, a mesma prevê uma segunda punição autónoma - condenação na proibição de conduzir -, que não pode constituir mero efeito automático da punição pela conduta principal, efeito proibido constitucionalmente;
5.º No que concerne à formulação normativa do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 16 a 19 do douto acórdão) aplicou este dispositivo legal no sentido de que a falta de indicação nas conclusões da motivação de recurso das menções contidas nas alíneas daquele n.º 3 tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao arguido seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência.
Suscitação da inconstitucionalidade - artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
6.º Na parte final do douto despacho do M.mº Juiz Conselheiro Relator do Tribunal Constitucional é também o recorrente convidado a esclarecer se suscitou ou não, perante o tribunal recorrido, a questão da inconstitucionalidade relativa ao artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal;
7.º Nos artigos 62.º a 68.º das alegações de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, o recorrente impugnou a matéria de facto, pontos de facto que considerava incorrectamente julgados em 1.ª instância, e pugnou pela transcrição das gravações pelo tribunal. Não colocou directamente 'a questão da inconstitucionalidade relativa ao artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal' porque o teria de fazer em antecipação a uma eventual interpretação daquele douto Tribunal, que o recorrente não poderia prever de boa fé;
8.º Só depois de conhecer a formulação normativa indicada no artigo 5.º supra é que pôde reagir em termos de recurso constitucional. Levantou a questão no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional apresentado no Supremo Tribunal de Justiça, logicamente já depois de proferido o douto acórdão deste;
9.º Numa primeira análise, poderia parecer que a jurisprudência do Tribunal Constitucional é avessa a aceitar este caso como verdadeiro recurso de queixa constitucional (cf. Acórdão de 28 de Junho de 1983, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 329, p. 355), pelo facto de, em rigor, não haver uma invocação da inconstitucionalidade 'durante o processo'. Mas a verdade é que, para fazê-lo, o recorrente teria de 'adivinhar' que o tribunal interpretaria e aplicaria a norma em causa em violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, pelo menos como parece que o entende o douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 405/2004, in Diário da República, 2.ª série, n.º 172, de 23 de Julho de 2004, que segue jurisprudência anterior;
10.º Se é certo que a inconstitucionalidade foi invocada depois de conhecido o douto acórdão, ainda o foi antes do trânsito em julgado, e não é menos certo que é para casos como este que vale a doutrina do douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/94, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 437, a p. 86, em cujo sumário se escreve: 'Não sendo, em princípio, possível, após a prolação da decisão final, arguir a questão da constitucionalidade, admite-se, porém, a existência de casos em que tal possa ocorrer por se ter verificado uma situação excepcional ou anómala capaz de justificar a dispensa da invocação do vício antes de proferida a decisão, o que acontecerá quando o interessado haja de ser confrontado com uma aplicação da norma tão insólita e inesperada que se torne desrazoável e inadequado exigir-lhe um prévio juízo de prognose sobre essa aplicação.';
11.º Esclarecido o ordenado na parte final do douto despacho de aperfeiçoamento, pensa-se, com o devido respeito, que estamos em condições de admissão do recurso também nesta parte;
12.º Quanto ao mais invocado no recurso de constitucionalidade não referido no douto despacho-convite, julga-se que está em conformidade com as regras do recurso constitucional e mantém-se na íntegra."
Em momento oportuno, o recorrente apresentou a sua alegação, que concluiu da seguinte forma:
"1.ª Nos feitos submetidos a julgamento, não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 204.º da Constituição).
2.ª Uma interpretação normativa como fizeram o Tribunal da Relação de Lisboa e o Supremo Tribunal de Justiça da regra consignada no citado n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, de modo a abranger situações como a do recorrente, que se encontra desligado efectivamente do serviço, cria uma excepção ao princípio do juiz natural de tal modo gritante que viola o princípio da igualdade perante a lei inscrito no n.º 2 do artigo 13.º da Constituição.
3.ª Com efeito, não justifica a existência de foro especial para magistrados fora do serviço efectivo, muito menos para quem já se encontrava apenas aposentado, por deliberação de 25 de Maio de 2004 do Conselho Superior da Magistratura, de cuja pendência o Supremo Tribunal de Justiça fora atempadamente informado.
4.ª No douto acórdão recorrido, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça interpretou e aplicou a norma resultante do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais no sentido de que a mesma se aplica aos magistrados jubilados, gozando estes de foro especial, desde que a jubilação não resulte de afastamento em procedimento disciplinar, foro privilegiado em face do cidadão comum, que visa ainda a defesa dos interesses da função, fazendo errada aplicação daquele regime especial, cuja normatividade, no caso concreto, briga com o princípio da igualdade perante a lei.
5.ª Aos magistrados jubilados ou simplesmente aposentados, como era o caso do recorrente, não deve aplicar-se qualquer foro especial por actos ou factos da sua vida privada, que nada contendem com o exercício de qualquer função pública, sendo inconstitucionais as normas da lei ordinária que afastem o princípio da igualdade perante a lei sem justificação material, por violação deste princípio, assim sucedendo com o artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, tal como interpretado e aplicado pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
6.ª O foro especial não se destina a dar mais garantias, mas também não pode retirar garantias ao arguido, remetendo o julgamento em 1.ª instância para o Tribunal da Relação, com recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que se abstém de conhecer de matéria de facto, situação que não ocorreria se o julgamento fosse efectuado em tribunal de 1.ª instância, com recurso para a Relação, uma vez que esta conheceria de facto e de direito.
7.ª A punição por crime de desobediência, prevista no artigo 158.º do Código da Estrada, na redacção do artigo 4.º do Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, foi editada sem a autorização legislativa exigida nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, pelo que se trata de norma organicamente inconstitucional, por violação deste normativo legal e do princípio da reserva de lei penal, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da lei fundamental, devendo ser recusada a sua aplicação pelos tribunais, ao contrário do que fez o douto acórdão recorrido.
8.ª A republicação do Código da Estrada, em anexo ao Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, não se limitou a republicar propriamente o Código da Estrada. Alterou os pressupostos do normativo legal que pune como desobediência a conduta de recusa prevista no seu artigo 158.º, sem credencial parlamentar.
9.ª De acordo com o disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal Português, na redacção da Lei 77/2001, de 13 de Julho, 'É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime de desobediência mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção da condução de veículo sob efeito do álcool', sendo que este normativo legal prevê uma condenação em sentido técnico, não podendo a proibição consistir em mero acessório do crime de desobediência ou simples consequência da condenação por prática deste crime.
10.ª O recorrente alegou perante o Supremo Tribunal de Justiça que a proibição que lhe foi imposta não foi objecto de ponderação autónoma, em termos de permitir uma defesa digna desse nome por parte do arguido, relativamente ao crime de desobediência, apresentando-se como mero efeito automático da condenação principal pela desobediência, com violação da garantia estatuída n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa.
11.ª Ao decidir que o recorrente 'terá pois de ser condenado numa pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor', por tê-lo sido por desobediência, o Supremo Tribunal de Justiça fez uma aplicação normativa da alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal Português que briga com a proibição prevista no n.º 2 do artigo 30.º e igualmente com o n.º 1 do artigo 32.º, ambos da Constituição, liquidando quaisquer garantias de defesa dignas desse nome, aceitando a deslealdade processual derivada da falta de acusação pública formal do Ministério Público e do cumprimento pelo tribunal de 2.ª instância das regras cautelares da audiência o arguido sobre essa intenção condenatória.
12.ª Normalmente no final do inquérito, se houver elementos para o efeito, é deduzida acusação formal, que é notificada ao acusado, informando expressamente que pode ser requerida instrução, mas, ao invés, o Ministério Público requereu o julgamento em processo sumaríssimo, em requerimento aligeirado, propondo uma sanção que na sua visão era a adequada ao caso.
13.ª Daí derivou que, tal como foram aplicadas na fase da acusação e do seu recebimento judicial as normas resultantes dos artigos 394.º, 398.º, 283.º e 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, foram violados os princípios da lealdade processual, igualdade de armas e direito e garantias de defesa, com denegação da faculdade de abertura de instrução, pelo que mal andou o Supremo ao confirmar aquela aplicação.
14.ª O recorrente indicou os suportes técnicos em que se encontra gravada a matéria de facto e indicou expressamente nos artigos 62.º a 69.º das alegações de recurso quais os concretos pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, requerendo expressamente no final do requerimento a transcrição da matéria de facto supra-indicada, naqueles artigos.
15.ª Poderá haver alguma falta por parte do recorrente, mas nunca o incumprimento total das exigências dos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, como conclui o Supremo Tribunal de Justiça.
16.ª Daí que tenha decidido erradamente ao interpretar as normas dos n.os 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas na alínea a) e, pela forma prevista no n.º 4, nas alíneas b) e c) daquele n.º 3, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência, violando desse modo o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que, apreciadas as questões de inconstitucionalidade indicadas, devem as mesmas ser reconhecidas e declaradas pelo Venerando Tribunal Constitucional, com as legal consequências."
O representante do Ministério Público neste Tribunal alegou da seguinte forma:
"1 - Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso vem interposto pelo arguido Hermínio da Piedade Antunes do acórdão proferido nos autos pelo Supremo Tribunal de Justiça. Aderindo inteiramente ao douto despacho constante a fls. 352 e seguintes, afigura-se que efectivamente se não verificam os pressupostos de recurso quanto às 'normas' ali identificadas.
O objecto deste restringe-se, assim, à norma constante do artigo 158.º, n.º 3, do Código da Estrada, na redacção emergente do Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, sendo, nesta parte, a questão de inconstitucionalidade orgânica suscitada manifestamente improcedente.
Na verdade, esquece o recorrente que a reforma de 2001 do Código da Estrada deixou perfeitamente intocada a norma questionada pelo recorrente, no que respeita à tipificação e sancionamento do ilícito penal aí previsto - e que encontra a sua fonte na revisão, operada em 1998, no referido Código, através do Decreto-Lei 2/98, de 31 de Janeiro, com base na autorização outorgada pela Lei 97/97, de 23 de Agosto.
Carecendo, pois, a referida disposição penal, na versão de 2001 do Código da Estrada, manifestamente de carácter inovatório, em nada alterando o precedente regime legal em vigor, é manifesto que não pode a mesma estar afectada da ficcionada 'inconstitucionalidade orgânica', sendo obviamente irrelevante a inclusão de tal regime - sem alterações - em versão republicada do Código da Estrada.
2 - Conclusão.
Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1) Carecendo manifestamente de carácter inovatório, no que concerne ao tipo penal constante do n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada, a versão de 2001 de tal Código, é evidente que tal norma - incluída naquele Código na revisão de 1998, na sequência de precedente e válida autorização legislativa - não padece de inconstitucionalidade orgânica;
2) Termos em que deverá manifestamente improceder o recurso interposto, no que respeita a tal questão."
2 - A primeira questão a abordar prende-se com a determinação do objecto do recurso.
Sobre o assunto, o recorrente foi notificado do seguinte despacho do relator:
"É possível que o Tribunal decida não conhecer de parte do objecto do recurso por entender:
a) Que a questão relacionada com a alegada inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal nunca foi suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça, podendo e devendo tê-lo sido;
b) Que a parte do recurso em que se questiona 'que, tal como foram aplicadas na fase da acusação e do seu recebimento judicial as normas resultantes dos artigos 394.º, 398.º, 283.º e 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, foram violados os princípios da lealdade processual, igualdade de armas e direito e garantias de defesa, com denegação da faculdade de abertura de instrução, pelo que mal andou o Supremo ao confirmar aquela aplicação' não traduz uma questão normativa, pois se dirige, essencialmente, à análise crítica de decisões tomadas no processo;
c) Que a norma retirada do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, segundo a qual 'a mesma se aplica aos magistrados jubilados, gozando estes de foro especial, desde que a jubilação não resulte de afastamento em procedimento disciplinar, foro que visa ainda a defesa dos interesses da função' não foi a verdadeira causa de decidir da decisão recorrida, na parte correspondente;
d) Que, no que concerne à alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, o Supremo Tribunal de Justiça não tenha interpretado e aplicado esta norma 'como um efeito automático da punição principal por crime de desobediência'.
Notifique o recorrente para em 10 dias poder dizer o que se lhe oferecer sobre o assunto."
Respondeu, dizendo:
"Hermínio da Piedade Antunes, advogado, recorrente no processo supra-referido, notificado do douto despacho de 17 de Março de 2006, que se pronuncia sobre o eventual não conhecimento de parte do objecto do recurso, vem expor e requerer o seguinte:
1.º Em resposta ao douto despacho de aperfeiçoamento de 30 de Setembro de 2004, o recorrente procurou esclarecer os termos em que entendeu ter o Venerando Supremo Tribunal de Justiça tomado conhecimento, por acção ou omissão, das questões agora colocadas no recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, embora eventualmente o não tenha conseguido totalmente, admitindo também que não lhe assista razão no que concerne ao levantamento das questões enumeradas no douto despacho de 17 de Março de 2006;
2.º Sobre a alínea a) do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, parece ao recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 16 a 19 do douto acórdão) aplicou este dispositivo legal no sentido de que a falta de indicação nas conclusões da motivação de recurso das menções contidas nas alíneas daquele n.º 3 tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao arguido tenha sido dada a oportunidade de suprir tal deficiência, pelo que, com o devido respeito, parece que o Tribunal deveria dela conhecer;
3.º Quanto à alínea c), o recorrente sempre levantou a questão, logo no recurso do Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça, pelo que se tratou, no modesto entender do recorrente, do levantamento de questão de constitucionalidade concreta, decidida, senão explícita, pelo menos implicitamente no douto acórdão;
4.º Finalmente sobre a alínea d), parece ao recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça aplicou a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal Português como efeito automático punição por desobediência, o que vem no seguimento da 1.ª instância, embora se admita que a questão possa ser duvidosa.
Termos em que se requer a admissão a discussão dos pontos referidos nesta resposta ou, se assim se não entender, das restantes questões de constitucionalidade suscitadas.
3.1 - O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), cabe das decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer - artigo 72.º, n.º 2, da mesma lei. Acontece que a questão relacionada com a inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal nunca foi suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça. E, contrariamente ao que afirma o recorrente, deveria tê-lo sido, desde logo face ao despacho do relator, que foi proferido nos termos do artigo 417.º, n.º 6, do Código de Processo Penal e que elegeu a questão da admissibilidade do recurso sobre a matéria de facto como uma matéria sobre a qual o recorrente deveria pronunciar-se.
Para além disto, cumprirá ainda salientar o seguinte: o recorrente pretende, conforme esclareceu a convite do Tribunal, sindicar a norma, retirada do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça, "no sentido de que a falta de indicação nas conclusões da motivação de recurso das menções contidas nas alíneas daquele n.º 3 tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao arguido seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência".
Sobre esta matéria, lê-se na decisão recorrida:
"[...] Ainda que assim não fosse, porém, sempre seria de ter na devida consideração o que vem posto em relevo pelo Ministério Público junto do tribunal ora recorrido, que, com razão, dá conta de que o recorrente não satisfaz as condições impostas pelo artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal para impugnar a matéria de facto, nomeadamente, 'em parte alguma da motivação, das conclusões ou, ainda, do resumo das conclusões, faz referência aos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e, menos ainda, às provas que imporiam decisão diversa, para além de referências genéricas, tais como constam da conclusão IX - Os agentes da polícia nunca deram uma ordem sob pena de desobediência. Apenas tentaram influenciar e persuadir o recorrente a fazer o teste [...]'.
'Em parte alguma da sua motivação destaca o recorrente os segmentos dos depoimento prestados que se pudessem considerar em dissonância com a matéria de facto dada como provada, não fazendo, também, qualquer referência, como lhe é exigido, aos suportes magnéticos onde tais supostas contradições haveriam de fundamentar-se'.
Poderia equacionar-se a hipótese de um 'convite' à superação daqueles vícios, tendo em conta a protecção ao direito de defesa, e que se trata de recurso do arguido. [...]"
E, depois de recordar a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o assunto, concluiu:
"[...] Ora se, no caso, não são apenas as conclusões que são deficientes no que toca às exigência legais para impugnação da matéria de facto, mas a própria motivação não passa de um ataque genérico sem as menções legais adequadas, o 'convite' não se destinaria a suprir uma mera deficiência formal das conclusões, antes, destinar-se-ia à reformulação dos próprios termos da motivação do recurso, o que, como se evidencia, para além de não exigido por qualquer princípio de proporcionalidade, vai para além do exigível pelo respeito do direito de defesa, uma vez que o arguido, assistido por defensor, não pode ser dispensado da observância das exigências processuais mínimas se quer exercer devidamente o seu direito ao recurso.
Por ambos os caminhos a solução é a mesma: é de rejeitar o recurso na vertente em que versa sobre a impugnação da matéria de facto em tudo o que vai para além do conhecimento dos vícios a que alude o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. [...]"
Deste trecho se retira que o Supremo Tribunal de Justiça decidiu rejeitar o recurso quanto à matéria de facto, por um duplo fundamento. Todavia, o recorrente não impugna o último dos motivos que conduziram o Tribunal recorrido a tal decisão. Por essa razão se há-de entender que, mesmo que o seu recurso quanto a esta norma pudesse vir a ser apreciado e lhe fosse dada procedência, ainda assim se manteria esta parte da decisão recorrida por força do fundamento autónomo de decisão que, não tendo sido questionado, permaneceria plenamente operante.
Não pode, por isso, o Tribunal Constitucional conhecer dessa matéria.
3.2 - Outra característica do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC consiste na natureza normativa do seu âmbito e na sua instrumentalidade: o objecto do recurso deve consistir em normas aplicadas na decisão recorrida como razão de decidir (ratio decidendi). Não podem, em suma, incluir-se no âmbito deste recurso, de forma directa, as decisões jurisdicionais.
Acontece que, ao pretender sindicar decisões tomadas no processo em aplicação pretensamente inconstitucional "da conjugação das normas decorrentes dos artigos 394.º, 398.º, 283.º, n.º 5, e 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal", tal como diz na conclusão 13.ª - [Daí derivou que, tal como foram aplicadas na fase da acusação e do seu recebimento judicial as normas resultantes dos artigos 394.º, 398.º, 283.º e 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, foram violados os princípios da lealdade processual, igualdade de armas, direito e garantias de defesa, com denegação da faculdade de abertura de instrução, pelo que mal andou o Supremo ao confirmar aquela aplicação] -, o recorrente está a pretender sindicar directamente decisões jurisdicionais ocorridas durante o processo, porventura contrárias aos ditos princípios constitucionais, mas manifestamente insindicáveis nesta sede.
Não pode, igualmente, conhecer-se desta matéria.
3.3 - Pretende ainda o recorrente impugnar a conformidade constitucional da norma retirada do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, segundo a qual "a mesma se aplica aos magistrados jubilados, gozando estes de foro especial, desde que a jubilação não resulte de afastamento em procedimento disciplinar, foro que visa ainda a defesa dos interesses da função"; é assim que o recorrente define a norma que pretende sindicar, e, portanto, é quanto a esta interpretação normativa que o Tribunal deve limitar a sua análise.
Ora, pelas já faladas razões relativas à instrumentalidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o Tribunal Constitucional não deve sindicar normas aplicadas na decisão recorrida que não constituem a ratio decidendi da decisão, ou seja, normas que não preenchem só por si o fundamento da decisão. Ou seja: quando, na decisão recorrida, se usa uma fundamentação plúrima ou complexa, ou determinada por graus de valência sucessiva, cabe ao recorrente o ónus de impugnar globalmente o fundamento normativo da decisão, por forma que toda a sua justificação jurídica, sendo invalidada, determine a reformulação do aresto de acordo com o respectivo juízo de inconstitucionalidade. Ao invés, se permanecer incólume um qualquer segmento autónomo do fundamento da mesma decisão, é evidente que a decisão se manteria por força do motivo não atacado.
Serve isto para dizer que, no acórdão recorrido, o fundamento determinante para desatender a questão suscitada pelo recorrente quanto ao tribunal competente para o julgar - no fundo, é este o problema suscitado quanto à aplicação da norma do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais - não tem a ver com a norma enunciada no requerimento de recurso mas com outra, conforme bem resulta do seguinte trecho daquela decisão:
"[...] O arguido, como se viu, encontra-se desligado do serviço para efeitos de aposentação/jubilação, por despacho do CSM de 15 de Dezembro de 2003, publicado no Diário da República, de 5 de Janeiro de 2004.
Tal significa que só cessou as respectivas funções exactamente naquele dia 5 de Janeiro de 2004, tal como resulta directamente do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), do EMJ.
Logo, aquando da efectivação do julgamento, em 12 de Dezembro de 2003, era o Tribunal da Relação o competente para o julgamento, tal como impõe o artigo 15.º, n.º 2, do mesmo Estatuto.
E tal competência não pode agora ser posta em causa, sabido que é que a alteração dos factores atributivos da competência no decurso da causa, mormente os pressupostos de facto, é em regra, irrelevante, sobretudo se tal alteração for no sentido de retirar ao tribunal competente a competência de que dispunha aquando da introdução do feito em juízo.
Até porque, a ser de outro modo, ficaria, em certa medida, na disponibilidade do arguido a possibilidade de pôr em causa o princípio constitucional ínsito no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição, segundo o qual nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
Daí a improcedência manifesta da excepção invocada. [...]"
Temos, assim, por seguro que a dimensão normativa que fundamentou, de forma essencial, o juízo de improcedência da questão suscitada quanto ao foro especial de que o arguido beneficiou, não resulta de o Supremo Tribunal de Justiça ter entendido que era de aplicar "aos magistrados jubilados, desde que a jubilação não resulte de afastamento em procedimento disciplinar". Com efeito, da decisão resulta que a razão da solução encontrada tem a ver com a regra que proíbe retirar ao tribunal competente a competência de que dispunha aquando da introdução do feito em juízo. Torna-se, assim, inútil - uma vez que em causa não está a regra que visa genericamente conceder aos magistrados judiciais um foro especial - apreciar a questão da conformidade constitucional da norma invocada no recurso.
Com este fundamento, também se não conhecerá da alegada inconstitucionalidade dessa norma, retirada do n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais.
3.4 - Resta, ainda, saber - dentro desta óptica de delimitação do objecto do recurso - se, "no que concerne à alínea c) n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal Português", o Supremo Tribunal de Justiça "interpretou e aplicou esta norma como um efeito automático da punição principal por crime de desobediência" cometido mediante recusa de submissão às provas estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito do álcool.
O Supremo Tribunal de Justiça, depois de recordar, sobre este assunto, os termos em que a Relação de Lisboa emitira o seu juízo de condenação, disse:
"[...] O mínimo que se pode dizer destas quantificações é que elas são benevolentes.
Para além da densidade palpável da ilicitude, no caso traduzida por actuação a todos os títulos censurável e veementemente inaceitável de um juiz de direito investido na alta função de administrar justiça em nome do povo - para mais em funções tão expostas e socialmente exigentes como as de juiz de círculo e, assim, com especial obrigação de assumir comportamento irrepreensível - no seu, no mínimo, incívico comportamento perante os agentes da autoridade em exercício legítimo de fiscalização rodoviária, a culpa mostra-se igualmente elevada, mormente quando aferida pelo afinco demonstrado em não assumir o crime, sem qualquer dúvida praticado. Por isso, os 60 dias de multa fixados pela Relação, numa moldura até 120, não pecam por excesso.
E o quantitativo diário encontrado de Euro 25, a representar substancialmente menos de metade do vencimento do arguido, igualmente não se podem ter por excessivos, sabendo-se que a pena de multa, se não quer ser um andrajoso simulacro de punição, tem de ter como efeito causar, pelo menos, algum desconforto, se não, mesmo, um sacrifício económico palpável, tal como defende o acórdão recorrido, citando nomeadamente um aresto deste Supremo Tribunal relatado pelo Exmo. Conselheiro Carmona da Mota e que o ora relator subscreveu como primeiro-adjunto.
Em direito penal, a pena, qualquer que seja a óptica por que seja encarada, ainda que com fins meramente preventivos, justamente porque o é, implica sacrifício.
Por isso, tendo em conta as circunstâncias do caso, mormente os critérios dos artigos 71.º e 47.º do Código Penal, não se mostra exagerado o quantitativo da multa aplicada.
As mesmas considerações valem para a medida de inibição de conduzir, fixada ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, e cujo limite máximo, em abstracto, poderia ir até um ano. [...]"
Da leitura desta parte da decisão não pode concluir-se que o Supremo Tribunal de Justiça tenha aplicado a norma que o recorrente impugna.
Na verdade, ao determinar a medida de inibição de conduzir, tendo em conta o preceito sancionador resultante da alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, o aresto recorrido procedeu à valoração do grau de culpa, da ilicitude, das necessidades de prevenção geral e especial e de todas as demais circunstâncias concretamente apuradas, para aplicar e graduar essa medida. Resulta, assim, da decisão que o Supremo Tribunal de Justiça ponderou previamente a aplicação desta sanção, tendo concluído, com fundamento na valoração do grau de culpa, da ilicitude, das necessidades de prevenção geral e especial e nas demais circunstâncias, ser de aplicar, com uma determinada medida, tal sanção acessória.
Deve recordar-se que o arguido não questiona a conformidade constitucional da norma em virtude de ela impor uma pena acessória. O que contesta é a norma por força da qual seria imposta a aplicação automática dessa pena, ou seja, a norma de que resultasse a imposição de uma pena não submetida à ponderação prévia do juiz. O que não ocorreu.
Verifica-se, portanto, que o Supremo Tribunal de Justiça também não aplicou esta norma que o recorrente acusa de inconstitucional.
4 - Importa, finalmente, tratar da questão relativa à alegada inconstitucionalidade orgânica da norma do n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada, "na redacção do artigo 4.º do Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, emitido ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, sem indicação de autorização legislativa, em violação do princípio de reserva de lei penal da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, que o douto acórdão considerou existir, mas o decreto-lei omite".
Trata-se de uma falsa questão.
Na verdade, a Assembleia da República autorizou o Governo, através da Lei 97/97, de 23 de Agosto - editada nos termos dos artigos 164.º, alínea e), 168.º, n.º 1, alíneas b), c) e d), e 169.º, n.º 3, da Constituição -, a proceder à revisão do Código da Estrada aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, designadamente - artigo 3.º, alínea d) - instituindo a "punição como desobediência da recusa, por condutor ou outra pessoa interveniente em acidente de trânsito, em submeter-se aos exames legais para detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas estupefacientes ou psicotrópicas, e ainda dos médicos ou paramédicos que, injustificadamente, se recusem a proceder às diligências previstas na lei para diagnosticar os referidos estados".
Na sequência desta autorização parlamentar, o Governo, através do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, "no uso da autorização legislativa concedida pelos artigos 1.º a 3.º da Lei 97/97, de 23 de Agosto, e nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição", alterou o artigo 158.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, que passou a ter a seguinte redacção:
"Artigo 158.º
Princípios gerais
1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas estupefacientes ou psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) Os demais utentes da via pública, sempre que sejam intervenientes em acidente de trânsito.
2 - Quem praticar actos susceptíveis de falsear os resultados dos exames a que seja sujeito não pode prevalecer-se daqueles para efeitos de prova.
3 - Quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, para as quais não seja necessário o seu consentimento nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 159.º, é punido por desobediência."
O tipo penal criado no ordenamento jurídico pela alteração assim introduzida no n.º 3 do artigo 158.º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, subsistiu e manteve-se inalterado depois do Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro.
Não existe, portanto, qualquer motivo que obrigasse o Governo a munir-se de credencial parlamentar prévia para editar este último diploma ou para, na sequência da sua aprovação, proceder à republicação completa do Código da Estrada.
Na verdade, sobre problema semelhante, já o Tribunal ponderou (Acórdão 340/2005) o seguinte:
"[...] 7.1 - Tem, desde logo, razão o Ministério Público quando alega que é irrelevante a circunstância de ter sido alterada a numeração do 'artigo de lei' que incorpora a 'norma' em causa. Com efeito, mantendo-se, como se mantém, o enquadramento sistemático do preceito no âmbito do processo de justificação notarial, não resulta, por simples efeito dessa renumeração do artigo, qualquer alteração da norma que nele se contém.
7.2 - Por outro lado, também as alterações de redacção a que fizemos referência não se afiguram relevantes, parecendo resultar de mera alteração de estilo sem aptidão para consubstanciar uma modificação do conteúdo da norma que no preceito se contém.
7.3 - Finalmente, importa considerar a alteração que se traduz em o novo preceito - bem como o artigo 106.º que o precedeu - ter passado a remeter para a pena prevista para o crime de 'falsas declarações perante oficial público', enquanto o artigo 107.º da versão originária do Código de 1967 remetia para a pena prevista para o crime de 'falsidade'. Vejamos.
O Código Penal de 1886 (em vigor à data da edição do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967) continha, no título III do livro segundo, um capítulo VI, 'Das falsidades', onde se incriminavam as 'declarações falsas', e que incluía as seguintes secções: I, 'Da falsidade de moeda, notas de bancos nacionais e de alguns títulos do Estado', II, 'Da falsificação de escritos', III, 'Da falsificação de selos, cunhos e marcas', IV, 'Disposição comum às secções antecedentes deste capítulo', V, 'Dos nomes, trajos, empregos e títulos supostos ou usurpados', e VI, 'Do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública'.
O Código Penal de 1982 eliminou o capítulo antes designado por 'Das falsidades' e procedeu a uma rearrumação sistemática dos crimes que nele se incluíam. Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que - tal como os de falsificação de documentos, moeda, pesos e medidas - são considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade (capítulo II do título IV) e, por outro, aqueles que são considerados 'crimes contra a realização da justiça' e como tal incluídos no título dos 'crimes contra o Estado' (capítulo III do título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de depoimento ou declarações, a que corresponde o actual artigo 359.º do Código Penal, ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360.º do mesmo Código, preceito para o qual a decisão recorrida, em juízo de interpretação de direito infraconstitucional que a este Tribunal não cabe sindicar, entendeu que o artigo 97.º do actual Código do Notariado remeteria.
Ora, integrada neste contexto, como tem de sê-lo, facilmente se percebe que - como nota o Ministério Público na sua alegação - a diferença que, nesta parte, se constata entre a redacção do artigo 107.º do Código do Notariado de 1967 e o artigo 97.º do actual Código do Notariado - recorde-se: a substituição da remissão para o crime de 'falsidade' pela remissão para o crime de 'falsas declarações perante oficial público' - é 'meramente consequencial das modificações sistemáticas introduzidas no Código Penal', visando simplesmente adequar aquele preceito do Código do Notariado à nova designação e arrumação sistemática do Código Penal de 1982.
8 - Assim sendo, como efectivamente é, não se mostrando a norma contida no artigo 97.º do actual Código do Notariado inovadora nem representando qualquer alteração face ao anterior regime, já que o seu conteúdo corresponde, nos termos acima descritos, ao teor da que constava do artigo 107.º da versão originária do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei 47 619, de 31 de Março de 1967, não incorre aquela norma no vício de inconstitucionalidade orgânica. [...]"
É, assim, insubsistente a alegação de inconstitucionalidade orgânica invocada pelo recorrente.
5 - Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não tomar conhecimento do recurso quanto à alegada inconstitucionalidade das normas retiradas dos seguintes preceitos: n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, artigos 394.º, 398.º, 283.º e 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e alínea c) do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal;
b) No mais, negar provimento ao recurso;
c) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 11 de Julho de 2006. - Carlos Pamplona de Oliveira - Maria Helena Brito - Rui Manuel Moura Ramos - Maria João Antunes - Artur Maurício.