Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - 1 - A fls. 363 e seguintes, foi proferida decisão sumária que não tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por Maria Rosa Ribeiro Mendonça, pelos seguintes fundamentos:
"[...]
Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, deve o seu objecto ser constituído por uma norma, a apreciar pelo Tribunal Constitucional sob o ponto de vista da sua conformidade constitucional.
Sucede, porém, que a recorrente pretende a apreciação de uma cláusula constante de um acordo colectivo de trabalho. Deverá tal cláusula ser qualificada como uma norma, para efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional?
A esta pergunta tem o Tribunal Constitucional dado resposta negativa.
Na verdade, constitui orientação maioritária do Tribunal Constitucional a de que as normas das convenções colectivas de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da constitucionalidade a cargo deste Tribunal, pois que não integram o conceito de norma utilizado na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição [e, consequentemente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional].
Tal orientação foi nomeadamente perfilhada pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos n.os 172/93, de 10 de Fevereiro (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 141, de 18 de Junho de 1993, a p. 6454), 250/97, de 18 de Março, 637/98, de 4 de Novembro, 697/98, de 15 de Dezembro, 284/99, de 5 de Maio, 492/2000, de 22 de Novembro, 10/2003, de 15 de Janeiro, e 92/2003, de 14 de Fevereiro (estes disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No primeiro dos acórdãos referenciados - em que estava em causa a apreciação da inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade, da norma constante da cláusula 5.ª do anexo I do contrato colectivo de trabalho entre a Associação Portuguesa das Empresas Industriais de Produtos Químicos e Outras e a Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores das Indústrias Químicas e Farmacêuticas de Portugal e Outros (in Boletim do Trabalho e Emprego, 1.ª série, n.º 16, de 29 de Abril de 1983), quando interpretada no sentido de impedir que uma empresa, depois de entrar no grupo A, possa alguma vez baixar de grupo, ainda que baixe a sua facturação anual, devendo, em consequência, continuar a remunerar sempre os seus trabalhadores de acordo com as tabelas em vigor para o referido grupo A -, disse o Tribunal Constitucional o seguinte:
[...]
Com base na fundamentação transcrita, o Tribunal Constitucional decidiu, no mencionado Acórdão 172/93, não tomar conhecimento do recurso.
É esta a jurisprudência que agora também se perfilha e para a qual se remete.
Não pretendendo a recorrente a apreciação da conformidade constitucional de uma norma, no sentido em que este conceito é utilizado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, conclui-se que não está preenchido um dos pressupostos processuais do presente recurso, não sendo consequentemente possível conhecer do respectivo objecto.
[...]"
2 - Notificada desta decisão, Maria Rosa Ribeiro Mendonça veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da
Lei do Tribunal Constitucional, através do requerimento a fls. 389 e seguintes, em que concluiu do seguinte modo:
"[...]
1 - Através da douta decisão sumária ora reclamada, que pelas razões constantes dos Acórdãos, deste mesmo Tribunal, com os n.os 172/93, 250/97, 637/98 e 697/98, entre outros citados, entendeu não ser possível tomar conhecimento do recurso interposto pelo ora reclamante, defende-se a ideia de que tudo o que respeita a acordos e convenções colectivas de trabalho não está sujeito a controlo de constitucionalidade.
2 - A posição acima expressa decorre do facto de o Tribunal Constitucional, ainda que por maioria, ter vindo a entender que 'as normas das convenções colectivas de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da constitucionalidade a cargo deste Tribunal, pois que não integram o conceito de norma utilizado na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e consequentemente na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional'.
3 - Mais tem vindo a defender o Tribunal Constitucional, e citando o Acórdão 172/93, que '[...] como as normas das convenções colectivas de trabalho não provêm de entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição'.
4 - Tal posição, igualmente expressa na decisão ora reclamada, não pode merecer, como é óbvio, a concordância da recorrente e ora reclamante.
5 - Na verdade, encontrando-nos no domínio do direito do trabalho, começaremos por dizer, com recurso aos Professores Vital Moreira e Gomes Canotilho, que se trata de um verdadeiro direito fundamental dos cidadãos, um direito positivo dos cidadãos perante o Estado (Constituição da República Portuguesa Anotada, 1978, anotação ao artigo 51.º, II).
6 - Por outro lado, qualquer instrumento de regulamentação colectiva de trabalho, como sucede, in concreto, com o ACTV para o sector bancário, para além de fonte de direito de trabalho, é, ao mesmo tempo, um acto normativo (neste sentido, conselheiro Mário de Brito, in separata ao BMJ, "Direito do trabalho", p. 136), podendo também ele ver-se afectado de inconstitucionalidade quer em termos formais quer em termos materiais.
7 - Não admira, pois, que, a esse propósito, tenha Carnelutti afirmado que a convenção colectiva tem o corpo do contrato e a alma da lei.
8 - E a concepção do mundo laboral e da negociação colectiva que se intui através do recurso a estes ilustres juristas corresponde, ao fim e ao cabo, a uma parte de grande importância na vida das nossas sociedades, dada a sua íntima ligação às vertentes sociais, económicas, políticas, et pour cause, jurídicas.
9 - Como afirma o Professor Monteiro Fernandes, in Temas Laborais, Almedina, 1984, p. 117, '[a] negociação colectiva, como processo de produção normativa, reflecte, em cada momento, as preocupações sociais dominantes, em função dos dados da conjuntura económica', concluindo que '[a] convenção colectiva tem-se afirmado como a mais influente fonte do direito do trabalho' - sublinhado nosso.
10 - Dentro de todo o contexto sumariamente exposto, parece à ora reclamante, com todo o respeito, que as razões invocadas para não conhecer do recurso interposto perdem toda a razão de ser.
11 - E perdem toda a razão de ser sobretudo por razões de natureza jurídico/constitucional e por razões ligadas ao leque de atribuições e competências do Tribunal Constitucional.
12 - Em primeiro lugar, da análise dos preceitos constitucionais em causa não se alcança o entendimento avançado pela ilustre conselheira relatora quando, é indiscutível, que o ACTV em discussão comporta um conjunto de normas jurídicas, como tal reconhecidas pelo Estado.
13 - Por outro lado, da leitura do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, em particular do seu n.º 1, alíneas a) e b), o vocábulo 'norma' aí empregue não autoriza qualquer interpretação limitativa, incompatível, aliás, com a ideia de fiscalização concreta de constitucionalidade.
14 - Importa não olvidar que a matéria suscitada no recurso interposto prende-se com a Lei de Bases da Segurança Social e com o artigo 63.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
15 - Aliás, este preceito constitucional, ao dispor que '[t]odo o tempo de trabalho contribui, nos termos da lei, para o cálculo das pensões de velhice e invalidez [...]' (sublinhado nosso), está a reconhecer expressamente a natureza e dignidade pública de ordenamentos jurídicos - como os instrumentos de regulamentação colectiva - que a decisão sumária ora reclamada não reconhece, para mais num domínio fundamental da vida dos cidadãos (a segurança social).
16 - Doutro modo, a aceitar a tese em discussão, não se compreende a possibilidade de recurso a órgãos de soberania, como os tribunais, para dirimir conflitos desta natureza.
17 - Não pode, assim, o ora reclamante aceitar o entendimento defendido pela ilustre conselheira relatora, dada a inexistência de qualquer correspondência com a letra da lei.
18 - O que importa apurar é se uma norma, num determinado caso concreto, ofende ou não o tecido constitucional.
19 - Se dúvidas existissem quanto a este entendimento, bastaria o recurso aos eminentes constitucionalistas atrás citados (Direito Constitucional, 5.ª ed., Almedina, 1992, p. 1061), onde, no âmbito da fiscalização concreta de inconstitucionalidade, depois de afirmarem que '[n]ão há, porém, qualquer restrição quanto à natureza das normas impugnadas: podem ser normas materiais ou processuais, podem incidir sobre o mérito da causa ou apenas sobre meios probatórios ou pressupostos processuais, podem ou não lesar direitos fundamentais ou interesses legítimos das partes. Isto não significa que os problemas de inconstitucionalidade digam apenas respeito a actos normativos, pois não são impensáveis hipóteses de actos privados... directamente violadores da Constituição [...]'.
20 - Os citados ilustres constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira referem ainda, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.º vol., Coimbra Editora, 1985, p. 471, que "[...] é possível estabelecer um elenco dos actos cujo conteúdo, por ser constituído por normas, está sujeito a fiscalização da constitucionalidade" (itálico nosso), elencando especificamente para o efeito as convenções colectivas de trabalho.
21 - Igualmente acrescentam que '[e]mbora a Constituição não seja explícita quanto ao valor jurídico dos contratos e acordos colectivos de trabalho e remeta para a lei a determinação da eficácia das respectivas normas (artigo 56.º, n.º 4), é entendimento corrente de que eles são fonte de direito com valor pelo menos idêntico ao das portarias regulamentares. Deve, pois, entender-se que estão sujeitos ao controlo da constitucionalidade' - ob. cit., p. 474.
22 - Na verdade, e conforme alude igualmente o recente Acórdão 580/2004 deste Tribunal, a propósito do mencionado artigo 56.º, n.º 4, da Constituição, 'a jurisdicidade de tais normas é indiscutível, por estar fundamentada na lei'.
23 - E saliente-se que o aludido douto acórdão deste Tribunal, ainda que por maioria, concluiu que 'as normas constantes de convenções colectivas de trabalho se devem ter como normas para efeitos de controlo de constitucionalidade cometido a este Tribunal'.
24 - E, na modesta opinião do ora reclamante, a prevalecer o entendimento plasmado na douta decisão sumária ora reclamada, qualquer questão emergente de interpretação de um instrumento de regulamentação colectiva, ainda que viciada de manifesta inconstitucionalidade, nunca era passível de apreciação pelo Tribunal Constitucional, continuando a norma afectada a vigorar no ordenamento jurídico.
25 - Tal condicionalismo, a verificar-se, constituiria, decerto, uma evidente contradição com a natureza e objectivos prosseguidos pelo Tribunal Constitucional.
Termos em que deve a presente reclamação ser deferida e, em consequência, ser admitido o recurso interposto pelo ora reclamante, ordenando-se o prosseguimento dos autos."
3 - O recorrido Banco Santander Totta, S. A. (anteriormente Crédito Predial Português, S. A.), respondeu à reclamação apresentada (fl. 396), sustentando que a mesma deve ser indeferida, pelas seguintes razões:
"[...] vem em conformidade, acolher tudo quanto foi decidido na douta decisão sumária proferida naquela data, porquanto, efectivamente, a recorrente não pugna pela apreciação da constitucionalidade de uma 'norma' no sentido previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que, não estando preenchido o pressuposto aí exigido, não é possível conhecer, desde logo, do objecto do presente recurso.
[...]."
Tendo sido determinada pelo Presidente do Tribunal Constitucional a intervenção do plenário, nos termos do artigo 79.º-A, n.º 1, da LTC, cumpre apreciar e decidir.
II - 4 - A decisão sumária reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso, invocou como fundamento o não preenchimento de um pressuposto processual do recurso interposto.
Entendeu-se, de acordo com a orientação maioritária perfilhada pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que as cláusulas das convenções colectivas de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da constitucionalidade a cargo deste Tribunal, por não integrarem o conceito de norma utilizado na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição [e, consequentemente, na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional].
Proferida ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, a decisão sumária reclamada assentou na fundamentação utilizada em acórdãos proferidos pelo Tribunal Constitucional - designadamente no Acórdão 172/93, de 10 de Fevereiro (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 141, de 18 de Junho de 1993, a p. 6454), que parcialmente se transcreveu.
5 - Na reclamação agora deduzida, a reclamante procura sustentar que a competência do Tribunal Constitucional deve abranger a apreciação da conformidade constitucional das cláusulas constantes das convenções colectivas de trabalho.
Invoca a reclamante, apoiando-se em numerosas citações doutrinárias, que "qualquer instrumento de regulamentação colectiva de trabalho", como sucede, no caso concreto, com o ACTV para o sector bancário, é "fonte de direito de trabalho" e, "ao mesmo tempo, um acto normativo" que diz respeito a direitos fundamentais dos cidadãos - o que não seria reconhecido pela decisão sumária ora reclamada, "para mais num domínio fundamental da vida dos cidadãos (a segurança social)".
Como este Tribunal teve oportunidade de esclarecer em diversas ocasiões - concretamente no já mencionado Acórdão 172/93, de 10 de Fevereiro -, não importa aqui saber se as cláusulas constantes das convenções colectivas de trabalho "devem ou não ser consideradas como normas para qualquer outro efeito, nomeadamente para efeitos de classificação doutrinal: do que se cura é de apurar se a Constituição pretendeu submetê-las ao específico sistema de controlo da constitucionalidade constante do artigo 280.º (e 281.º)".
Ora, na averiguação e determinação do que seja norma, para efeitos de fiscalização da sua constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, este Tribunal tem sublinhado que deve utilizar-se "um conceito funcional adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade [...] e consonante com a sua justificação e sentido" (Acórdão 26/85, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 96, de 26 de Abril de 1985, a p. 3871). Não se trata portanto de um conceito material, ou de outro tipo, de norma, mas antes de um conceito adequado à justificação do sistema de fiscalização da constitucionalidade.
Especificamente quanto ao problema de saber se as cláusulas constantes das convenções colectivas de trabalho integram o conceito de norma para efeitos de fiscalização concreta da constitucionalidade a cargo deste Tribunal - não obstante as divergências detectadas entre os autores portugueses que se pronunciaram sobre tal problema durante os últimos anos -, mantém-se actual a posição definida pelo Tribunal Constitucional no leading case que tem vindo a ser citado (o Acórdão 172/93) e que agora se recorda:
"[...]
4 - Seja qual for a concepção que se queira adoptar sobre a natureza jurídica das convenções colectivas de trabalho (isto é, quer se propenda para uma concepção contratualista, jurisprivatística, quer para uma concepção jurispublicística, quer para uma concepção intermédia, quer para a de um tertium genus), uma coisa é certa: no nosso direito vigente, as convenções colectivas de trabalho não têm constitucionalmente fixado o regime da sua eficácia, já que a Constituição remete tal fixação para a lei ordinária no artigo 56.º, n.º 4 (57.º, n.º 4, na versão anterior à revisão de 1989).
E a lei ordinária concretiza essa norma remissiva no Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro. Dispõe o artigo 7.º deste diploma:
"1 - As convenções colectivas de trabalho obrigam as entidades patronais que as subscrevem e as inscritas nas associações patronais signatárias, bem como os trabalhadores ao seu serviço que sejam membros quer das associações sindicais celebrantes quer das associações sindicais representadas pelas associações sindicais celebrantes.
2 - As convenções outorgadas pelas uniões, federações e confederações obrigam as entidades patronais empregadoras e os trabalhadores inscritos, respectivamente, nas associações patronais e nos sindicatos representados nos termos dos estatutos daquelas organizações, quando outorguem em nome próprio ou em conformidade com o mandato a que se refere o artigo 4.º"
Daqui resulta que a lei estabelece que as convenções colectivas obrigam exclusivamente as entidades que as celebram e bem assim as organizações e trabalhadores que nelas estão ou venham a estar inscritos. E tanto assim que, para estender a eficácia dessas convenções a terceiros, se torna necessário usar um acto normativo público, a portaria de extensão, prevista no artigo 29.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Comparativamente, o artigo 39.º, último parágrafo, da Constituição italiana estabelece: "I sindacati [organizações profissionais de trabalhadores ou empresários] registrati [...] possono, rappresentati unitariamente in proporzione dei loro iscritti, stipolare contratti collettivi con efficacia obbligatoria per tutti gli appartenenti alle categorie alle quali il contrato si referisce." Gustavo Zagrebelsky começa por comentar que aquela norma implica o reconhecimento explícito do contrato colectivo de trabalho como modo de produção de normas jurídicas, isto é, como fonte de direito (segundo a conhecida formulação de Carnelutti, para quem tal contrato tem corpo de contrato e alma de lei). Todavia, logo acrescenta que aquela norma autorizatória nunca teve qualquer concretização, por obstáculos técnicos e políticos que foram opostos à sua regulamentação e que radicam sobretudo na contradição, latente em tal norma, entre o princípio da liberdade de organização sindical e a necessidade de regulamentar as associações profissionais, para tornar efectiva a eficácia erga omnes prevista naquele artigo 39.º; e, daí, retira, como consequência, que os contratos colectivos hoje efectivamente celebrados não assumem a natureza de fontes de direito em sentido próprio (Manuale di Diritto Costituzionale, 1, "Il sistema delle fonti del diritto", UTET, Turim, 1988, pp. 247 e segs.).
Quanto ao direito português, apesar de o artigo 56.º, n.º 4, da Constituição (actual redacção) dar ao legislador ordinário a possibilidade de estabelecer a eficácia das normas das convenções colectivas de trabalho, estas não são efectivamente configuradas, na legislação ordinária, como actos normativos públicos, as entidades que as subscrevem não têm poderes de autoridade e o clausulado normativo que elas integram não obriga terceiros.
5 - Segundo A. Menezes Cordeiro (Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1991, p. 321), "com as particularidades acima examinadas, que têm a ver com deveres instrumentais, as convenções colectivas surgem no termo do livre exercício de poderes de celebração e de estipulação. Elas formam-se nos moldes contratuais e têm eficácia porque as pessoas constituíram livremente associações para que estas, também em liberdade, contratassem em termos colectivos. - Os poderes que explicam este mecanismo não são originários, antes assentando numa normativização conferida pelo direito objectivo. Mas isso ocorre precisamente com os diversos negócios jurídicos. - A autonomia colectiva representa assim uma particular forma de autonomia privada; as convenções colectivas de trabalho são negócios (privados) colectivos".
Mas, mais à frente, este autor acrescenta que "a privatização das convenções colectivas, fortemente alicerçada no princípio da filiação e na liberdade sindical e de associação, não pode ser levada até ao fim... O regime em vigor reconhece expressamente a contratação colectiva - artigo 57.º, n.os 3 e 4, da Constituição - e aponta-a como fonte - artigo 12.º, n.º 1, da LCT -, sendo um facto que ela permite a revelação de normas jurídicas. [...] As convenções colectivas são, pois, negócios (privados) colectivos e fontes mediatas do direito" (ib., p. 322).
O argumento retirado do texto do artigo 12.º, n.º 1, da Lei do Contrato Individual de Trabalho não será assim tão decisivo na determinação da natureza jurídica da convenção colectiva de trabalho: é preciso ter em conta que tal diploma é o Decreto-Lei 49 408, de 24 de Novembro de 1969, e que aí as convenções colectivas de trabalho são colocadas em último lugar na ordem de precedência, depois das normas legais, das emitidas pelo Ministério das Corporações e Previdência Social, e mesmo depois das normas corporativas. Trata-se, como se vê, de uma disposição legal estabelecida no quadro do anterior sistema jurídico corporativo, cuja desactualização é patente.
Em resumo: a lei regulamenta a eficácia específica das convenções colectivas, impondo a sua obrigatoriedade unicamente quanto àqueles que devem considerar-se representados pelas entidades que as subscrevem, à luz dos princípios do direito do trabalho. As organizações profissionais que as celebram não têm poderes de autoridade, mas apenas poderes de representação, isto é, de defesa e de promoção da defesa dos direitos e interesses dos respectivos filiados (cf. artigo 56.º, n.º 1, da Constituição). E, assim, o clausulado que elas incorporam não contém normas, entendidas como padrões de conduta emitidos por entidades investidas em poderes de autoridade.
6 - Ora, se pode discutir-se qual o exacto alcance da palavra norma estabelecida no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição, parece seguro, pelo menos, que com ela se teve em vista apenas os actos dispositivos de entidades investidas em poderes de autoridade e, mais precisamente, os actos dispositivos dos poderes públicos. Por exemplo, esta questão é dada como assente no Acórdão 26/85 (Diário da República, 2.ª série, de 26 de Abril de 1985), onde se concluiu que nem todos os actos dos poderes públicos devem considerar-se normas (e, portanto, sujeitos à fiscalização do Tribunal Constitucional): aí se optou por um conceito funcionalmente adequado, segundo o qual não são normas as decisões judiciais e os actos da administração sem carácter normativo, nem os actos políticos ou actos de governo em sentido estrito.
Tal conceito funcionalmente adequado seria retomado depois no Acórdão 150/86 (Diário da República, 2.ª série, de 26 de Julho de 1986), onde se considerou ser o mesmo aplicável não só aos casos de fiscalização abstracta mas também aos casos de fiscalização concreta, e que neste domínio o que importa verificar é se o preceito a examinar tem por parâmetro de validade imediata a lei ou a Constituição, pois que neste último caso nada justificará que esse exame escape à jurisdição e à competência do Tribunal Constitucional.
O Tribunal, contudo, sempre afirmou com clareza que escapam ao seu poder de cognição as normas provenientes da autonomia privada, salvo quando decorrentes da atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas (Acórdão 472/89, in Diário da República, 2.ª série, de 22 de Setembro de 1989, e Acórdãos n.os 156/88 e 157/88, in Diário da República, 2.ª série, de 17 de Setembro e de 26 de Julho de 1988, respectivamente).
7 - Ora, como as normas das convenções colectivas de trabalho não provêm de entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
É certo que o artigo 56.º, n.º 4, da Constituição se refere a normas das convenções colectivas de trabalho. Todavia, com isto não pretende obviamente usar o termo no sentido de normas provenientes dos poderes públicos, as únicas que são consideradas no sistema de fiscalização de constitucionalidade pelo artigo 3.º, n.º 3, da Constituição, como nota Jorge Miranda no texto acima referido.
E esta conclusão não conflitua com o decidido no Acórdão 392/89 (Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro de 1989), na medida em que aí se conheceu de uma norma constante de uma convenção colectiva de trabalho objecto de uma portaria de extensão. É que, como então se assinalou, "a cláusula foi aplicada ex vi de uma portaria de extensão, que, assim, a 'apropriou', fazendo seu o respectivo conteúdo normativo", sendo certo que "as normas de uma portaria preenchem, seguramente, o conceito de norma para o efeito da sua submissão ao controlo de constitucionalidade."
[...]"
As considerações constantes do acórdão que se transcreveu mantêm plena validade perante o texto do actual Código do Trabalho (cf. artigo 552.º).
Reafirma-se, assim, que as convenções colectivas de trabalho, porque fundadas no exercício da autonomia privada, não contêm actos normativos sujeitos à fiscalização concreta da constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa.
A esta conclusão não pode objectar-se com a invocação de uma eventual violação do princípio da igualdade que decorreria da circunstância de a jurisprudência do Tribunal Constitucional incluir no conceito de norma, relevante para efeitos do artigo 280.º da Constituição, as denominadas "portarias de extensão". É que, como assinalou o conselheiro Paulo Mota Pinto em declaração de voto junta ao Acórdão 580/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), "é seguro que, para o conceito de norma relevante para efeitos do controlo de constitucionalidade, há uma diferenciação relevante - ou, pelo menos, não arbitrária e razoável entre normas, como as resultantes de portarias de extensão, que são fruto do imperium estadual, e cláusulas, como as das convenções colectivas de trabalho, que se fundam no exercício da autonomia das partes".
6 - Os argumentos aduzidos na reclamação em apreciação nada trazem, pois, de inovatório relativamente aos que foram considerados nos acórdãos mencionados na decisão sumária reclamada e não são, por isso, susceptíveis de alterar o entendimento deste Tribunal segundo o qual as cláusulas das convenções colectivas de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.
Conclui-se, assim, que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do presente recurso, por ele não ser constituído por normas, na acepção da alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.
III - 7 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 27 de Abril de 2005. - Maria Helena Brito - Paulo Mota Pinto - Carlos Pamplona de Oliveira - Benjamim Rodrigues - Gil Galvão - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração junta) - Maria Fernanda Palma (vencida pelas razões constantes dos Acórdãos n.os 214/94, 368/97 e 580/2004 deste Tribunal) - Mário José de Araújo Torres (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Vítor Gomes (vencido, nos termos da declaração anexa) - Rui Manuel Moura Ramos (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Artur Maurício.
Declaração de voto
Não acompanho o entendimento segundo o qual as cláusulas das convenções colectivas de trabalho não estão sujeitas à fiscalização concreta da constitucionalidade, por não integrarem o conceito de norma utilizado nos artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa e 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional.
Acompanho antes o entendimento expresso na declaração de voto do Sr. Conselheiro José de Sousa e Brito no Acórdão 172/93 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 24.º vol, pp. 458 e segs.) e, depois, no Acórdão 214/94 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 27.º vol, pp. 1057 e segs.).
As cláusulas das convenções colectivas de trabalho devem estar sujeitas à fiscalização concreta da constitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional, na medida em que nelas concorrem as características que integram o conceito funcional de norma que foi sendo delineado pela jurisprudência deste Tribunal - "um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade" instituído nos artigos 277.º e seguintes da Constituição da República Portuguesa "e consonante com a sua justificação e sentido" (Acórdão 26/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5.º vol, p. 18). - Maria João Antunes.
Declaração de voto
Discordei quer da submissão a Plenário do julgamento da questão que constituiu objecto do precedente acórdão quer do sentido da decisão nele maioritariamente acolhida.
1 - A intervenção do Plenário do Tribunal Constitucional, no âmbito dos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade, pode resultar de iniciativa do Presidente, "quando o considerar necessário para evitar divergências jurisprudenciais" (artigo 79.º-A da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional - Lei 28/82, de 15 de Novembro, alterada, por último, pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro - LTC), ou de recurso interposto pelas partes (obrigatório para o Ministério Público, quando intervier no processo como recorrente ou recorrido), "se o Tribunal Constitucional vier a julgar a questão da inconstitucionalidade ou ilegalidade em sentido divergente do anteriormente adoptado quando à mesma norma" (artigo 79.º-D da LTC).
Constitui entendimento pacífico deste Tribunal o de que este último recurso só é admissível se as decisões divergentes respeitarem a juízos de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade) tendo por objecto a mesma norma, e já não em situações de divergências jurisprudenciais de índole adjectiva, incluindo as relativas à competência do Tribunal ou à determinação das questões idóneas a integrar o objecto do recurso de constitucionalidade (cf., por último, o Acórdão 649/2004, onde se sustentou a conformidade dessa solução com o disposto no artigo 224.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa - CRP). A incerteza e insegurança que derivariam da coexistência, prolongada no tempo, de juízos de inconstitucionalidade e de não inconstitucionalidade da mesma norma, prolatados pelo Tribunal a quem a Constituição - com óbvios propósitos de segurança jurídica e de uniformização jurisprudencial - atribuiu uma função de concentração da justiça constitucional acarretam inconvenientes [todas as decisões dos restantes tribunais relativas à norma em causa passariam a ser recorríveis para o Tribunal Constitucional ou com fundamento em terem recusado a aplicação da norma por inconstitucionalidade ou com fundamento em terem aplicado tal norma em sentido contrário ao anteriormente decidido pelo Tribunal Constitucional - cf. artigos 280.º, n.os 1, alínea a), e 5, da CRP e 70.º, n.º 1, alíneas a) e g), da LTC] claramente superiores aos inerentes a divergências relativas a questões de índole processual, como, por exemplo, a da competência do Tribunal para conhecer de questões de desconformidade entre normas de direito ordinário e direito internacional convencional (suscitada, antes da revisão de 1998 da LTC, a propósito da alteração da taxa de juros das letras e livranças em desconformidade com a respectiva lei uniforme e da sua qualificação como inconstitucionalidade indirecta ou como ilegalidade), ou de questões de violação, pelas interpretações normativas aplicadas pelas decisões recorridas, dos princípios da legalidade penal ou fiscal (cf. Acórdãos n.os 353/86, 141/92, 634/94, 221/95, 682/95, 756/95, 154/98, 205/99, 285/99, 674/99, 122/2000, 383/2000, 358/2001, 32/2003, 196/2003, 197/2003, 203/2003, 210/2003, 238/2003, 331/03, 334/2003, 336/03, 385/2003, 394/2003, 412/2003, 494/2003, 506/2004 e 183/2005, e as observações de Rui Medeiros, "A força expansiva do conceito de norma no sistema português de fiscalização concentrada da constitucionalidade", in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando M. Marques Guedes, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2004, pp. 183-202, em especial pp. 190-194, e de Carlos Lopes do Rego, "O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional", Jurisprudência Constitucional, n.º 3, Julho-Setembro de 2004, pp. 4-15, em especial pp. 11-15), ou, como no presente caso, da qualificação das normas constantes de convenções colectivas de trabalho como normas idóneas a integrarem o objecto de recurso de constitucionalidade.
Sendo menos relevantes os inconvenientes da persistência de divergências jurisprudenciais em questões processuais do que em questões de mérito relativas à constitucionalidade de normas, compreende-se que só quanto a estas últimas situações o legislador tenha aberto às partes a via de recurso para o Plenário e daí também decorre, a meu ver, que deve ser extremamente parcimonioso o uso da faculdade prevista no artigo 79.º-A da LTC. Ela só deverá ser usada em situações de insuperável cristalização das posições dos diversos juízes do Tribunal, que, originando divergentes decisões consoante as maiorias formadas em cada uma das três secções do Tribunal, sejam tidas como gravemente inconvenientes, tendo em conta, designadamente, a "natureza da questão a decidir". E não deverá ser usada, na minha opinião, em questões relativamente às quais se verificaram alterações recentes das posições dos juízes do Tribunal. Ora, quanto à questão de as normas das convenções colectivas de trabalho constituírem, ou não, normas idóneas a integrarem o objecto do recurso de constitucionalidade, a evolução recente das posições dos juízes do Tribunal revela que não se trata de uma "questão fechada": se é certo que a resposta negativa ainda obtém o voto da maioria, trata se de uma maioria que "tende cada vez mais a sê-lo cada vez menos". É público que os três últimos juízes que integraram o Tribunal aderiram, todos eles, à corrente que responde afirmativamente a essa questão (cf. declarações de voto do conselheiro Rui Manuel de Moura Ramos aposta aos Acórdãos n.os 531/2004, 26/2005 e 177/2005, do conselheiro Vítor Manuel Gonçalves Gomes aposta ao Acórdão 66/2005 e da conselheira Maria João Antunes aposta aos Acórdãos n.os 26/2005 e 177/2005). Por outro lado, é sabido que em 2007 ocorrerá a recomposição do Tribunal, com o termo do mandato dos juízes designados em 1998, e das posições conhecidas dos sete juízes que, em princípio, continuarão no exercício de funções para além daquela data resulta que, a serem mantidas essas posições, existe nesse grupo uma maioria no sentido de que as normas das convenções colectivas de trabalho são normas idóneas a integrarem o objecto de recurso de constitucionalidade.
Neste quadro evolutivo, considerei desnecessária e mesmo inconveniente a provocação da intervenção do Plenário, que, com o silenciamento da posição actualmente minoritária, terá o efeito perverso de "matar" definitivamente a questão, sendo altamente improvável que, após um período de cerca de dois anos em que serão sistematicamente rejeitados, com inerente condenação em custas, todos os recursos tendo por objecto questões de inconstitucionalidade reportadas a normas das convenções colectivas de trabalho, alguém ainda venha tentar interpor recursos desse género.
2 - Quanto à questão decidida no precedente acórdão, desde sempre aderi à posição que entende que as normas constantes de convenções colectivas de trabalho são normas para efeitos de integrarem o objecto do recurso de constitucionalidade.
2.1 - Esta tese foi proficientemente defendida na declaração de voto do conselheiro José de Sousa e Brito aposta ao Acórdão 172/93, que, apesar da sua extensão, interessará reproduzir para facilitar o acesso ao conhecimento directo e completo dos seus fundamentos:
"I - Sobre a 'norma' como objecto do processo constitucional.
2 - Conceito funcional de norma. A normatividade como elemento do conceito. - O ponto de partida só pode ser um conceito funcional de norma, ou seja, nas palavras do Acórdão 26/85 (Acórdãos..., cit., 5.º vol., p. 18), 'o que há de procurar-se, para o efeito do disposto nos artigos 277.º e seguintes da Constituição, é [...] um conceito funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade aí instituído e consonante com a sua justificação e sentido'.
A primeira grande clarificação consistiu em substituir as exigências de generalidade das pessoas e abstracção dos factos abrangidos pela previsão da norma pela de normatividade, ou função orientadora do comportamento, relativa à estatuição da norma. Reconheceu-se, assim, o carácter de norma a 'preceitos legais de conteúdo individual e concreto ainda mesmo quando possuam eficácia consuntiva', como eram as normas dos decretos-leis em apreço no Acórdão 26/85, que extinguiam, cada uma delas, uma empresa pública. Já, no mesmo sentido, a Comissão Constitucional tinha considerado normas os preceitos de decretos-leis que regulavam uma classe fechada de casos [...] A razão essencial que justifica esta jurisprudência foi expressa, em minha opinião, já no Parecer 13/82:
"[...] é decerto seguro e indiscutível que a Constituição, ao prever o controlo da constitucionalidade das 'normas' jurídicas, e ao fazê-lo quer no artigo 281.º quer no seguinte teve em vista não toda a actividade dos poderes públicos mas apenas um sector dela, a saber, o que se traduz na emissão de regras de conduta ou padrões de valoração de comportamentos (isto é, de 'normas'): deste modo, fora desse específico controlo ficam os puros actos de aplicação dessas regras ou padrões, que são os actos jurisdicionais e os actos administrativos, stricto sensu. Simplesmente - e este outro argumento será, no nosso modo de ver, decisivo - cumpre atentar em que um preceito legal que rege para um caso concreto, e que nessa medida se apresenta com uma eficácia equivalente à de um acto administrativo, nunca é um puro acto de 'aplicação' do direito preexistente, pois que simultaneamente se traduz num acto de 'criação' de direito novo: é que nele estabelece-se também a regra aplicável ao caso, regra que muitas vezes (se não normalmente) constitui um desvio ou uma excepção às que de outro modo seriam aplicadas, mas que justamente se torna necessária para conferir à providência administrativa adoptada o seu mesmo fundamento de validade (de validade 'legal', claro). Em tal preceito ou disposição legal vai implicitamente contida, por conseguinte, uma norma - uma norma 'individual', decerto, mas que não há razão para subtrair só por esse facto, e como já se disse, à possibilidade do controlo previsto no artigo 281.º da Constituição." (P. 159.)
Formulou-se assim um critério de normatividade: só actos de criação normativa (em sentido amplo, abrangendo manifestamente a modificação e a revogação total ou parcial de normas), por oposição a actos de aplicação normativa, são controlados por via da fiscalização de inconstitucionalidade do Tribunal. É esta a razão material que explica por que os actos com forma legislativa contêm sempre normas, mesmo quando contêm materialmente também actos administrativos: é que contêm então as normas que regem estes actos, que obrigam, como leis formais, particulares, autoridades e tribunais, e relativamente à constitucionalidade das quais as decisões dos tribunais administrativos estão sujeitas à última palavra, em fiscalização concreta, do Tribunal Constitucional.
Mal seria que violações directas da Constituição, por parte de órgãos de soberania ou de região autónoma, com conteúdo normativo e, portanto, projectando-se no futuro através da orientação de comportamentos, não pudessem ser prevenidas em geral e eliminadas em concreto, em última instância, pelo Tribunal Constitucional, podendo, contudo, ser julgadas por outros tribunais. Como assim, se o Tribunal Constitucional foi especificamente instituído 'para administrar a justiça em matérias de natureza jurídico constitucional' (artigo 223.º da Constituição)?
[...]
3 - Afastamento de um conceito formal de norma. - Como se disse no Acórdão 157/88, ao adoptar a doutrina do carácter normativo do conteúdo dos actos legislativos (artigo 115.º, n.º 1, da Constituição), isto é, ao concluir que todas as leis em sentido formal são normas, o Tribunal limita-se a 'extrair a consequência' postulada pela "consideração teológica e funcional (isto é, 'material') das coisas" (pp. 30 e seguintes). Isto não é equivalente a dizer, como o mesmo acórdão equivocadamente disse, que tal consideração postula "um critério ou noção 'formal' de norma". A não ser que se entenda a expressão 'formal' no sentido amplíssimo de 'qualquer preceito ou disposição inserida num diploma normativo', referido no Parecer 13/82 (p. 161). Tratar-se-ia então de um conceito que só seria formal pela abstracção de toda a determinação de conteúdo para lá da simples normatividade e da restrição, aliás injustificada, ao direito escrito. Mas quando se fala em 'conceito formal de norma' tem-se mais frequentemente em vista o conceito de 'lei em sentido formal', que Baenel definiu, na esteira de Laband, como 'aquele acto do Estado que - segundo determina mais de perto o direito positivo - foi produzido e declarado de uma forma solene determinada, especialmente com intervenção da representação popular', e que pode ter ou não como conteúdo uma proposição jurídica (Das Gesetz im formellen und materiellen Sinne, 1888, reimpressão, 1968, pp. 204-205). A exigência material de normatividade equivale à de ter como conteúdo uma proposição jurídica, o que afasta um conceito formal no sentido referido, independentemente da questão de saber onde passariam os seus limites no direito português - onde se justificaria uma delimitação baseada no conceito de 'acto legislativo' do n.º 1 do artigo 115.º da Constituição.
4 - Necessidade de outros critérios adicionais. Normatividade do objecto do processo e 'generalidade' de norma jurídica. - Mas é claro que todos estes argumentos, incluindo a razão essencial primária referida, implicam que as leis formais sejam 'normas', para efeito de fiscalização da constitucionalidade, mas não implicam que só elas o sejam. Os tribunais judiciais aplicam outras formas de regulação e orientação de comportamentos, nomeadamente normas gerais e individuais criadas por autoridades públicas, normas gerais do costume, interno e internacional, normas de direito estrangeiro recebidas por remissão das normas do direito internacional privado, decisões de tribunais com força obrigatória geral, normas de convenções colectivas de trabalho, normas gerais (como os regulamentos de empresa, de uso, de instalação, estatutos, etc.) e individuais criadas por pessoas privadas. Em todos estes casos pode haver violação directa da Constituição (pensa-se em violação do princípio da igualdade, ou da proibição da perda de direitos civis ou profissionais como efeito necessário de penas criminais, para referir exemplos actualmente presentes no Tribunal) por normas do caso e se aplicam os argumentos baseados na 'normatividade' tida em vista pelo Tribunal. Uma delimitação das normas relativamente às quais se justifica a fiscalização da constitucionalidade pelo Tribunal implica outros critérios adicionais. Os principais contributos da jurisprudência do Tribunal para a formulação desses critérios foram os Acórdãos n.os 150/86 e 168/88, para a formulação do critério do reconhecimento estatal, os Acórdãos n.os 156/88 (Diário da República, 2.ª série, de 17 de Setembro de 1988, a pp. 8579 e seguintes) e 472/89, para a formulação do critério da heteronomia, e os Acórdãos n.os 26/85 e 150/86, para o critério da imediação (ou da violação directa da Constituição). Antes de tentar demonstrar esta doutrina, cumpre esclarecer a relação essencial entre a normatividade e a generalidade, relação decisiva para fixar o exacto alcance de todos os critérios envolvidos. A 'normatividade', se exclui a generalidade e abstracção, como características essenciais das previsões das normas que são objecto possível do processo constitucional, não exclui, antes possibilita, a apreciação da 'generalidade' das estatuições, como exigência da conformidade destas à vontade geral. O apuramento desta conformidade é a própria essência do processo constitucional. O objecto do processo tem de ser uma norma, como razão de agir, para se apurar se é uma recta ratio, uma razão correcta, sustentável perante a Constituição. A exigência de generalidade da lei surge historicamente em Rousseau como exigência de racionalidade, baseada na igualdade e na consequente concepção do bem comum como o maior bem de todos: 'como a coisa estatuída se refere necessariamente ao bem comum, segue-se que o objecto da lei deve ser geral bem como a vontade que o dita, e é esta dupla universalidade que faz o carácter da lei' (Rousseau, Du contrat social, 1.ª versão, Oeuvres complètes, Ed. Pleiade, III, p. 438). Estabelece-se assim uma dialéctica entre a 'vontade de todos' e a 'vontade geral', que é a base de toda a teoria do Estado de direito: a vontade de todos, determinada por órgãos legitimados democraticamente, só obriga se conforme à 'vontade geral' e só através da 'vontade de todos' "se pode assegurar que uma vontade particular é conforme à 'vontade geral'" (Du contrat social, 1.2 e 7, edição citada, p. 383). Assim entendida, a exigência de generalidade não depende do carácter mais ou menos determinado dos casos a que se aplica, mas da conformidade com a vontade geral, ou correcção, ou racionalidade, do ponto de vista do Estado de direito, da estatuição normativa, isto é, da susceptibilidade da sua generalização, como diz, no mesmo sentido, Krüger: 'a lei é geral (e portanto correcta) quando passa a prova do critério da capacidade de generalização' (Allgemeine Staatslehre, 2.ª ed., 1966, pp. 306-307).
A norma que é objecto do processo constitucional não tem de ser geral neste sentido, pois poderá concluir-se pela sua inconstitucionalidade, mas tem de pretender sê-lo. A pretensão da generalidade confunde-se com a pretensão de constitucionalidade e não é um requisito autónomo do objecto de processo constitucional, mas fundamenta a heteronomia e o reconhecimento. O momento dialéctico da legitimação democrática conduz à doutrina do reconhecimento. Os dois momentos dialécticos da legitimação democrática e da legitimação racional (pela referência ao bem comum do Estado de direito) implicam a doutrina da heteronomia.
5 - A imediação como elemento do conceito funcional de norma. - A exigência de mediação tem a ver com a dimensão fiscalizadora das competências constitucionais da jurisdição constitucional: o Tribunal Constitucional só excepcionalmente julga acerca da legalidade de quaisquer normas, nomeadamente quando se trata da ilegalidade de um acto legislativo - a que os tribunais, por consequência de inconstitucionalidade, não devem obediência -, ou quando está em causa a autonomia regional (n.º 2 do artigo 280.º da Constituição; artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional). Em todos estes casos, a ilegalidade implica a violação de limites à competência de órgãos soberanos ou de autonomia regional, regulados na Constituição, e assim, uma inconstitucionalidade orgânica indirecta. O Tribunal Constitucional então intervém na sua função típica de fiscalizar competências constitucionalmente definidas, tal como nos juízos de inconstitucionalidade. Esta problemática não existe nas restantes inconstitucionalidades indicadas por ilegalidade. São, portanto, os fins da jurisdição constitucional que implicam a imediação.
A imediação foi formulada logo no já citado Acórdão 26/85: "também os preceitos com a natureza agora considerada têm como parâmetro de validade imediato, não a lei ('outra' lei), mas a Constituição. Nada justifica, por consequência, que o seu exame escape ao controlo específico da constitucionalidade é dizer, à jurisdição e à competência deste Tribunal" (p. 19). Identicamente se pronunciou o Acórdão 150/86 (p. 299). Em rigor, são os fins da jurisdição constitucional e, portanto, o conceito funcional de norma que implicam a imediação. Assim, se não houvesse violação directa da Constituição, é que haveria uma razão para escapar ao controlo específico de constitucionalidade, e tal não se verifica nas hipóteses dos acórdãos. A imediação não era problemática no caso do Acórdão 26/85, em que se julgavam normas de actos legislativos, que estavam imediatamente sujeitos à Constituição. Mas já se tornava decisiva quanto às normas do regulamento de arbitragem julgadas inconstitucionais no Acórdão 150/86, que só violavam directamente a Constituição por não estar em vigor a Lei 31/86, de 29 de Agosto (artigo 16.º), que as teria tornado ilegais. Assim, foi com base na falta de imediação que o Acórdão 266/92, de 14 de Julho, considerou inadmissível o recurso da alegada inconstitucionalidade de uma norma de convenção colectiva de trabalho, por se tratar de mera ilegalidade, deixando debaixo do tapete as questões relativas a outros elementos do conceito de norma (supra, n.º 1).
A jurisprudência do Tribunal tem justamente deduzido a exigência da imediação da alínea i) do n.º 4 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, introduzida pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, negando que haja inconstitucionalidade no sentido da alínea b) do mesmo n.º 1 quando há violação directa da convenção internacional e indirecta do n.º 2 do artigo 8.º da Constituição (cf. os Acórdãos n.os 185/92, 277/92, 351/92, 603/92 e 162/93, todos inéditos).
Contudo, tal como a normatividade, a imediação é uma condição necessária mas não suficiente da existência de uma norma, como objecto do processo constitucional: os negócios jurídicos podem violar directamente a Constituição, mas tal inconstitucionalidade é apenas fundamento de nulidade absoluta do negócio por o seu objecto ser 'contrário à lei', no sentido do artigo 280.º do Código Civil, em que a 'lei' inclui a Constituição.
6 - A heteronomia como elemento do conceito funcional de norma. - No Acórdão 150/86 tratou-se da questão de saber se as normas de um regulamento de arbitragem aprovado pela 'determinação' de uma comissão arbitral, prevista nas Condições Gerais da Venda de Energia Eléctrica em Alta Tensão, anexas ao decreto-lei e constituída para resolver um litígio entre a Electricidade de Portugal, E. P., e a Federação dos Municípios do Distrito de Faro, podem ser objecto de fiscalização concreta do Tribunal Constitucional. Depois de afirmar a normatividade de tal 'determinação', e a imediação das normas questionadas do regulamento de arbitragem que era conteúdo do Acórdão 150/86, trilhou novos caminhos ao discutir a questão de saber se o regulamento de arbitragem é um acto normativo privado. O acórdão recusa uma concepção segundo a qual 'os preceitos em causa só seriam susceptíveis de constituírem objecto da fiscalização concreta de constitucionalidade caso tivessem sido editados sob a forma de acto legislativo ou, quando conceito, no exercício de um poder regulamentar' (p. 297). E continua:
'Dando por adquirido - o que faltaria demonstrar - que os actos normativos privados estão todos eles subtraídos à fiscalização da constitucionalidade, a verdade é que tal natureza não pode, em rigor, ser atribuída à determinação em causa.
E isto, desde logo, porque sendo a comissão arbitral um tribunal arbitral necessário, o afastamento das normas legais vigentes em matéria de processo e a consequente subordinação aos termos processuais fixados por aquela comissão em nada resulta da vontade das partes, pelo que se não pode aí descortinar uma manifestação da autonomia privada.
Mas também, acrescente-se, porque os tribunais, arbitrais exercem poderes soberanos, tal como os restantes tribunais, não sendo legítimo, por isso, negar o carácter público da função que desempenham.'
Estes dois últimos argumentos apontam para duas diferentes determinações do conceito de norma. A subordinação à norma independentemente da vontade das partes aponta para o elemento da heteronomia, o apelo à soberania dos tribunais arbitrais aponta para o elemento do reconhecimento estatal.
A exigência de heteronomia é fácil de demonstrar. Heteronomia é a característica de uma orientação de comportamento que se impõe independentemente da vontade daqueles a quem se dirige. Excluem-se, portanto, as normas criadas pela autonomia privada. Só as normas heterónomas suscitam o problema típico da administração de justiça constitucional, que é o do conflito entre liberdade e autoridade, entre a vontade individual e a vontade geral, que as normas heterónomas resolvem fazendo depender a liberdade e a autodeterminação da pessoa, que são valores que decorrem imediatamente da dignidade da pessoa humana, da vontade alheia, que se impõe, se necessário pela força coercitiva do Estado, em nome da racionalidade do bem comum (neste sentido, citando Herzog, Ferdinand Kirchhof, Private Rechtssetzung, 1987, p. 86). Consequentemente, o Tribunal Constitucional tem vindo a excluir as normas que considera de autonomia privada, da sua esfera de fiscalização.
A heteronomia funcionalmente relevante para a definição de norma jurídica como objecto do processo constitucional não se basta com a simples susceptibilidade de imposição a terceiros. Também as normas de uso por terceiros de certas instalações, de coisas ou de prédios privados, emitidas pelo seu proprietário como tal, e não no âmbito de relações obrigacionais de que seja sujeito, obrigam terceiros independentemente da vontade destes. E, no entanto, tais normas pertencem à autonomia privada. A vontade privada - incluindo a vontade particular de associações infra-estatais - exprime-se nelas dentro da sua esfera própria de actuação no prosseguimento de fins pessoais ou particulares, que não se integram num sistema de fins do Estado. Não têm pretensão de 'generalidade', como qualidade da estatuição normativa, no sentido atrás (n.º 4) apontado. Não têm, por isso, de se legitimar democraticamente, nem racionalmente pelo bem comum do Estado de direito, pelo que não se justifica o específico controlo da sua constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. É a 'generalidade' que fundamenta a heteronomia do direito objectivo, a qual nessa medida se contrapõe à autonomia privada, mesmo quando esta se impõe ao respeito de terceiros. Assim o Tribunal considera no Acórdão 156/88 que uma norma do Regulamento da Prevenção e Controlo do Alcoolismo da CP - Caminhos de Ferro Portugueses, E. P., não podia ser objecto de controlo da constitucionalidade pelo Tribunal por ser proveniente de autonomia privada. Do mesmo modo, o Tribunal decidiu, no Acórdão 472/89 - desta vez profundamente dividido, não quanto à doutrina mas quanto à sua aplicação -, que duas normas, uma do Estatuto e outra do Regulamento de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, não podiam ser objecto de fiscalização de constitucionalidade por parte deste Tribunal porque os poderes regulamentar e disciplinar em questão são poderes privados, que a lei reconhece às associações de direito privado, no quadro da sua autonomia própria (p. 9585).
7 - O reconhecimento como elemento do conceito funcional de norma. - O direito heterónomo que os tribunais aplicam e de que o Tribunal Constitucional controla a constitucionalidade não é apenas constituído por normas criadas por órgãos do Estado. A Constituição incorpora no direito português o direito internacional, nos termos dos artigos 8.º (cf. ainda o artigo 16.º) e 278.º, n.º 1, e refere-se às 'normas' das convenções colectivas de trabalho (n.º 4 do artigo 56.º), resultantes do direito à contratação colectiva que é reconhecido às associações sindicais (n.º 3 do artigo 58.º). Sendo indiscutível o controlo da constitucionalidade das convenções internacionais (n.º 1 do artigo 278.º), que o Tribunal tem feito, tanto preventiva (cf., por exemplo, o Acórdão 168/88) como sucessivamente (cf., por exemplo, o Acórdão 423/87, Acórdãos..., cit., 10.º vol., pp. 77 e segs.), é difícil conceber outra solução para o restante direito internacional, incluindo as normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais (n.º 3 do artigo 8.º) e o costume internacional (n.º 1 do artigo 8.º). Ora, nenhuma forma de ratificação, assinatura ou incorporação transforma os órgãos de Estados estrangeiros e de organizações internacionais e os sujeitos das práticas e das convenções jurídicas costumeiras em poder público do Estado Português, nem este se investe em poderes de autoridade, para usar a dicotomia que fez vencimento no presente acórdão. Tanto basta para negar o monopólio normativo do Estado Português. Tal monopólio não deriva aliás de nenhum princípio constitucional. A soberania interna do Estado apenas exige que o Estado tenha 'a última palavra' (Ossenbühl fala numa 'prerrogativa de criação normativa'), o que equivale à supremacia da Constituição. O monopólio da força física coercitiva apenas exige que as sanções jurídicas garantam coercitivamente o cumprimento das obrigações contidas naquelas normas que o Estado reconhece para tal efeito, a que empresta a força do seu braço. Não impede a existência de outros poderes que não são públicos, nem por si nem por delegação, com competência para criar normas heterónomas, que são reconhecidas como tais pelo Estado. Numa palavra: o Estado detém não o monopólio de criação mas apenas o do reconhecimento das normas como normas jurídicas (neste sentido: Ferdinand Kirchhof, ob. cit., pp. 133 e segs., Fritz Ossenbühl, em Josef Isensee, Paul Kirchhof, Handbuch des Staatsrechts, 1988, § 61, Rn., pp. 30 e segs.).
A jurisprudência do Tribunal tem procurado manter a doutrina do monopólio da criação normativa através da noção de 'atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas'. Segundo o Acórdão 472/89, 'essa atribuição ou devolução de poderes pode incluir também a outorga de faculdades normativas - e, então, as correspondentes normas serão normas públicas, porque justamente produzidas no exercício desse poder público devolvido ou delegado no ente privado' (p. 9584). Não se nega a possibilidade de delegação de poderes normativos públicos. Só que tal delegação é uma ficção indesejável sempre que implica a atribuição a um acto de um sentido diferente daquele que corresponde à intenção do seu autor e ao sentido explícito das palavras em que se manifesta. Não é necessário, para explicar a validade das regras de processo a observar na arbitragem, atribuir um poder público, e menos ainda 'poderes soberanos' (como pretende o Acórdão 150/86, p. 299), às partes e, na falta do seu exercício por estas, aos árbitros que elas escolheram. Como é pura ficção falar de um poder público estatal português derivado atribuído ao governo de um Estado estrangeiro ou ao órgão de uma organização internacional para criar direito internacional convencional. O mesmo se deve dizer, como procurarei mostrar a seguir, do poder de contratação colectiva. Basta, em todos estes casos, evocar as normas legais ou constitucionais, de remissão ou de reconhecimento, que são aplicáveis. Quanto ao costume, tal atribuição nem sequer é concebível, pelo que não pode ser ficcionada.
A imposição dogmática do modelo da delegação de competência normativa pública corresponde, aliás, a uma doutrina da identidade - isto é, dos critérios de pertença de uma norma jurídica a uma ordem jurídica - e da unidade da ordem jurídica - isto é, dos elementos comuns a todas as normas da ordem jurídica -, que encontrou a sua mais acabada expressão na teoria de Kelsen. A consequência indesejável desta doutrina é a impossibilidade de admitir a simultânea validade de ordens normativas diversas - a internacional, as estrangeiras, as eclesiásticas, as institucionais infra-estaduais. A doutrina mais recente tem seguido a orientação pluralista propugnada por Santi Romano (L'ordinamento giuridico, 1918, reimpressão, 1977), que chama a atenção para os factos institucionais ligados à criação, à aplicação e à garantia das normas e considera a ordem estatal como uma entre outras ordens institucionais. Nesta linha, Hart ('Kelsen's Doctrine of the Unity of Law', em Ethics and Social Justice, editado por H. E. Kiefer, M. K. Munitz, 1970, pp. 171 e segs.) defendeu que o critério de pertença de normas jurídicas a um único sistema depende de critérios comuns de reconhecimento dessas normas pelos agentes da aplicação e garantia delas, e não de uma relação de delegação de competência ou de derivação de validade e, portanto, de uma inexistente origem comum. E Wengler (Betrachtungen über den Zusammenhang der Rechtsnormen in der Rechtsordnung und die Verschiedenheit der Rechtsordnungen, em Festschrift für Laun, 1953, pp. 719 e segs.), mostrou como a unidade sistémica da ordem jurídica se revelava não na origem comum das suas normas mas na comum contribuição de todas elas para a definição dos mesmos bens jurídicos. Não importa aqui decidir esta questão doutrinária, apenas mostrar que a transformação de poderes privados ou outros não estatais em poderes públicos é uma desnecessária hipóstase de evitável dogmatismo para explicar a validade dentro do Estado de normas de origem não estatal, validade que resulta simplesmente de normas remissivas, de incorporação normativa ou de reconhecimento de fontes de direito.
8 - Outros elementos do conceito funcional de norma. - A determinação que anteriormente se fez dos elementos do conceito funcional de norma como objecto do processo constitucional não pretende ser exaustiva, mas apenas destacar aqueles elementos que importa questionar na generalidade dos casos e justificar suficientemente a solução a dar ao presente caso. Noutras hipóteses poderá haver outros problemas de delimitação, nomeadamente os relacionados com o âmbito de aplicação espacial e temporal das normas (quanto ao direito estrangeiro, dos órgãos de governo próprio de Macau, pretérito, etc.), que não são aqui relevantes.
II - Sobre as convenções colectivas de trabalho como normas.
9 - Nada mais resta do que aplicar os resultados que uma ponderação da jurisprudência anterior do Tribunal permitia alcançar, às convenções colectivas de trabalho.
Não é duvidosa a normatividade das convenções colectivas de trabalho, porque regulam o comportamento dos membros das associações sindicais subscritoras, dos membros das associações patronais subscritoras e ainda dos trabalhadores ao serviço de empresas públicas ou de capitais públicos, cujo processo de negociação foi autonomizado, sejam ou não membros das associações negociantes. Não se aplicam [só] aos membros actuais, mas também aos futuros e aos que não são membros mas já alguma vez o foram durante o período da sua vigência [artigos 8.º, 9.º e 3.º, n.º 3, da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho (Decreto-Lei 519-C1/79, de 29 de Dezembro)]. Uma vez que a generalidade da previsão normativa não é exigida pelo conceito funcional de norma, sempre seria irrelevante para a normatividade que as convenções não se apliquem aos trabalhadores não filiados nem às entidades patronais não subscritoras ou não filiadas. Mas, dada a delimitação que a lei faz do âmbito de aplicação pessoal das normas das convenções colectivas, é claro que elas não se aplicam a uma classe fechada, mas a uma classe aberta de casos e de pessoas, são susceptíveis de aplicação indefinidamente repetida, são, portanto, gerais e abstractas. Aplicam-se, nomeadamente da forma indicada, a trabalhadores futuros e a futuras entidades patronais.
10 - Também contra o que diz o acórdão, não é duvidoso que a norma sub judicio viola directamente a Constituição, nomeadamente o princípio da igualdade, e não há uma primária ilegalidade que exclua o pretendido exame. É certo que as convenções colectivas não podem 'limitar o exercício dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos' [alínea a) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho], mas a disposição do artigo 6.º da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho não transforma as normas constitucionais em normas legais, não incorpora o princípio da igualdade, que é aplicável à relação de trabalho por força da Constituição e não por força da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho.
11 - As normas das convenções colectivas são potencialmente heterónomas, vinculam as pessoas por elas abrangidas nos termos da lei independentemente e eventualmente contra a vontade dos destinatários das normas. Impõem-se aos contratos individuais de trabalho que lhes estão subordinados como se fossem leis imperativas e mesmo contra leis imperativas: ao alterarem mínimos legais de remuneração, por exemplo, proíbem cláusulas de contratos individuais permitidas por lei [alínea c) do n.º 1 do artigo 6.º e n.º 1 do artigo 14.º da Lei de Regulamentação Colectiva de Trabalho]. As convenções colectivas de trabalho têm, é certo, uma imperatividade em sentido único, só enquanto estabelecem condições mais favoráveis para os trabalhadores: impõem níveis mínimos e não tectos máximos, os quais só podem ser estabelecidos por lei. Além disso, valem para trabalhadores e entidades patronais que não se integram em associações ou entidades subscritoras no momento da celebração da convenção ou que deixaram de as integrar. É certo que para as partes outorgantes, as normas das convenções colectivas são autónomas, são resultado de um processo negocial de criação normativa, regulam de acordo com a sua vontade os seus interesses, mas impõem-se depois aos seus destinatários por força e nos termos da lei, independentemente da contribuição destes para a sua criação.
Dizer que os destinatários são representados pelas associações outorgantes só faz sentido relativamente aos que são associados ao tempo da celebração. Mas mesmo quanto a estes cumpre acentuar que a filiação numa associação sindical ou patronal não tem o sentido de um mandato de representação em futuras convenções colectivas nem é um acto de submissão voluntária a prévias ou futuras convenções colectivas - do mesmo modo que a aquisição de cidadania por naturalização, por exemplo, não é um acto de submissão voluntária às leis do Estado. A sua submissão às convenções colectivas - como além, no caso de naturalização - não deriva normativamente da vontade mas da lei (assim, Ferdinand Kirchhof, ob. cit., pp. 184 e segs.).
Decisiva é, porém, a questão de saber se as convenções colectivas de trabalho têm pretensão de 'generalidade', isto é, se se integram no sistema do direito objectivo, se prosseguem ao fim e ao cabo os fins da Constituição, não obstante o espaço da autonomia na sua negociação. De tal depende justificar-se ou não, quanto a elas, o controlo específico de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional. O mesmo é dizer, na terminologia adoptada (supra, n.º 6), que de tal depende serem ou não heterónomas no sentido funcional relevante.
São úteis a este respeito os contributos constitucionalistas alemão e italiano, não obstante o contexto constitucional e legal seja parcialmente diferente. Na Alemanha é discutida e ainda não foi decidida pelo Tribunal Constitucional Federal a questão de saber se as convenções colectivas são actos de criação de direito e se, por isso, é possível contra eles um Verfassungsbeschwerde (recurso de agravo constitucional). Benda (Benda, Klein, Lehrbuch des Verfassungsprozessrechts, 1991, p. 1835) põe, em minha opinião, o dedo na ferida, embora as suas considerações estejam afinal em contradição com toda a evolução do direito do trabalho para a sua plena integração na ordem constitucional, com paralelas consequências no entendimento das relações entre o Estado e a sociedade como relações jurídicas subordinadas à Constituição. Benda começa por expor a opinião contrária nos seguintes termos: "A opinião que, além do mais, vê nos contratos colectivos objectos possíveis de um agravo constitucional, invoca não por acaso a função objectiva do agravo constitucional. A sua função não é simplesmente esgotar-se na protecção da esfera dos direitos fundamentais do indivíduo. Antes deve preencher também uma 'função geral' dentro da ordem jurídica na medida em que defende o direito constitucional e promove a sua interpretação e desenvolvimento. Daqui resulta a tarefa de conceber o conceito de poder público de modo tão amplo que não fique limitado ao exercício da autoridade estatal, mas abranja outras relações de autoridade, que se tivessem estabelecido a par do poder estatal e subsistissem por força do reconhecimento estatal". Passando a expor a sua própria opinião, escreve: "tais considerações têm, porém, consequências para o entendimento da liberdade no domínio da liberdade sindical (artigo 9.º, secção 3, da lei fundamental), que é uma parte importante da liberdade dos cidadãos. A liberdade sindical e a autonomia das convenções colectivas não são expressão de uma divisão de trabalho entre Estado e partes convencionais ou da assunção pelas forças sociais de funções públicas. Elas devem, ao contrário, respeitar um espaço livre do Estado. Nisso tem-se em conta que as decisões tomadas neste domínio, independentemente do Estado, tais como a conclusão de contratos colectivos, podem ter reflexos muito importantes, mas também prejudiciais, sobre a política económica e financeira. Se as partes convencionais fossem 'poder público', estariam nas suas convenções vinculadas ao bem comum. É certo que a consciência de ser corresponsável pelo todo é um pressuposto essencial também da autonomia convencional. Mas se associações, que representam interesses parciais legítimos, são vinculadas juridicamente ao bem comum ou se lhes é imposta uma 'vinculação social', então não só se limita o carácter liberal da autonomia convencional, como também o Estado se desonera da sua obrigação de actuar no interesse do bem comum, no caso de derivarem perigos da actividade de associações livres e não incorporadas no Estado". Quanto à avaliação que Benda faz dos argumentos dos que defendem que as convenções colectivas são fontes de direito, já aqui se mostrou que o reconhecimento estatal das normas não implica o carácter de poder público das partes convencionais como entidades criadoras de direito. Por outro lado, se é verdade que é a vinculação ao bem comum que fundamenta o reconhecimento das convenções colectivas como direito objectivo e não o invés, não é menos que se trate de uma questão a responder na base do direito positivo, e aí as várias manifestações do reconhecimento podem ser outras tantas provas do carácter jurídico e não de novas regras da autonomia privada, das normas das convenções colectivas. A ser assim, como se pretenderá para o direito português, haverá que concluir-se que as regras achadas por concordância de empregadores e trabalhadores na prossecução dos seus interesses parciais são, em princípio, as mais conformes com o bem comum a que estão não obstante vinculadas e que o Estado não está desonerado de promover através da legislação económica financeira e da legislação laboral de enquadramento e suprimento que lhe competem. Uma orientação relevante, apesar das críticas, parece, aliás, ser a do Tribunal Constitucional Federal Alemão, embora formulada em contextos diferentes do do objecto do processo constitucional. Assim, aquele Tribunal disse que 'a convenção colectiva contém na sua parte normativa regras jurídicas, isto é, disposições imperativas - nos termos do § 4, secção 3.ª, da Lei da Convenção Colectiva - gerais abstractas sobre o conteúdo das relações jurídicas de trabalho por ela abrangidas' (BVerfGE 34, 307 [317]). 'Na criação de normas pelas partes convencionais, trata-se de legislação no sentido material que produz normas em sentido técnico jurídico' (Acórdão de 24 de Maio de 1977: BVerfGE 44, 341).
Em Itália existia a prática de obter a eficácia erga omnes das normas dos contratos colectivos de âmbito limitado através de decretos legislativos delegados de recepção daquelas normas. Estes decretos tinham a natureza de uma lei transitória, provisória e excepcional, mas podiam ser reiterados, obtendo-se assim um efeito semelhante às portarias de extensão do direito português. A Corte Costituzionale (Sentença 70/1963) considerou inconstitucionais as leis de reiteração, por serem uma forma de estabilizar um sistema de eficácia erga omnes das convenções colectivas diverso do previsto no artigo 39.º da Constituição Italiana, que prevê a possibilidade de convenções colectivas de trabalho com eficácia obrigatória para todos os que pertencem às categorias profissionais a que as convenções se referem. Mas a jurisprudência passou a entender que as convenções colectivas assumiam indirectamente uma eficácia geral por aplicação imediata do artigo 36.º da Constituição Italiana, na parte relativa aos direitos retributivos do trabalhador. Em síntese da descrição que faz desta solução, conclui Zagrebelsky (Manuale di Diritto Costituzionale, I, 1984, pp. 252 e segs.) que 'o direito efectivo triunfou sobre o direito formal. Se bem que de modos indirectos, a contratação actual chega a valer de um modo que se assemelha bastante mais ao que é típico das fontes de direito do que dos actos de autonomia privada'.
12 - Passando finalmente ao exame do direito português, deverá dizer-se que ele claramente reconhece as convenções colectivas de trabalho como fontes de direito e que as integra na unidade sistemática do direito objectivo subordinado à Constituição, pelo que as normas das convenções colectivas não são só reconhecidas como heterónomas.
Desde logo, o n.º 4 do artigo 56.º da Constituição tem o sentido de reconhecer como 'normas' jurídicas as das convenções colectivas de trabalho. Quando dispõe que 'a lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas', a Constituição não deixa ao arbítrio do legislador ordinário a própria existência das convenções colectivas como normas jurídicas, mas apenas as modalidades do seu regime. De qualquer modo, a lei tem de respeitar a garantia constitucional às associações sindicais do direito de contratação colectiva (n.º 3 do mesmo artigo 56.º). A redacção do n.º 4 é altamente significativa na medida em que atribui à lei e não à vontade das partes a determinação da legitimidade das partes e do âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas. Se se tratasse de autonomia privada, essa legitimidade e esse âmbito estariam predeterminados pela natureza das coisas: as convenções só poderiam obrigar as partes contratantes. A redacção revela assim que a Constituição teve em vista a manutenção das características essenciais do instituto jurídico no direito português da altura, que se mantêm hoje (artigo 12.º da Lei do Contrato Individual de Trabalho, ainda em vigor; artigos 4.º, 5.º e 9.º da Lei 169-A/76, de 28 de Fevereiro, correspondentes aos artigos 6.º, 14.º e 7.º do Decreto-Lei 519-C1/79), dando justificadamente uma base constitucional à heteronomia, como fonte de direito, das convenções colectivas.
Isto é confirmado, de forma decisiva, pelo confronto entre os n.os 3 e 4 do artigo 56.º Na verdade, a Constituição não reconhece as normas das convenções colectivas como consequência da atribuição de um poder público ou sequer normativo a certas entidades ou órgãos. Apenas ressalva o direito de contratação colectiva de cada associação sindical, como uma possível parte contratual, direito que terá de ser respeitado pela lei definidora das regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções, além de que implica desde logo um espaço de autonomia reservado à contratação colectiva. O reconhecimento das normas das convenções colectivas é feito pela Constituição através da criação da forma jurídica da convenção colectiva, cujas normas, por revestirem essa forma, têm a eficácia que a lei, não a vontade das partes, determinar.
13 - O regime legal veio desenvolver e reafirmar as determinações constitucionais. Além do que já se disse sobre o âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas, importante é a inserção das convenções colectivas no sistema de fontes do direito do trabalho. Do artigo 12.º da Lei do Contrato Individual de Trabalho e dos artigos 5.º, 6.º e 14.º, n.º 1, da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho deriva, nomeadamente, que as convenções colectivas se situam hierarquicamente abaixo das normas jurídicas de origem estatal, mas que regulam os direitos e deveres recíprocos dos trabalhadores e das entidades patronais reconhecido por contrato individual de trabalho, não podendo ser afastadas por estes, salvo para estabelecer condições mais favoráveis aos trabalhadores. As normas convencionais que estabelecem condições mais favoráveis aos trabalhadores prevalecem nessa parte sobre as normas estatais que derrogam relativamente às entidades patronais e aos trabalhadores abrangidos pela convenção. Nestas, as normas que impõem limites mínimos não são dispositivas mas imperativas, contêm uma proibição de limites contratuais abaixo dos mínimos e uma permissão de limites contratuais superiores. As normas mais favoráveis dos contratos individuais movem-se dentro do permitido, não derrogam parcialmente a norma que as permite. Quanto às normas estatais dispositivas, são derrogadas parcialmente pelas convenções colectivas mais favoráveis, e são afastadas pelos contratos individuais em todos os casos. Ora a derrogação parcial de normas estatais só pode ser feita por outras normas jurídicas igualmente heterónomas.
O argumento também vale, por maioria de razão, quando não há subordinação hierárquica, mas identidade de nível, entre a norma estatal e a convenção colectiva. É o que se passa entre as portarias de regulamentação e as convenções colectivas. Estas últimas fazem cessar automaticamente a vigência das portarias em cujo âmbito são aplicáveis, relativamente aos trabalhadores e identidades patronais abrangidas pelas convenções (artigo 38.º da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho).
O mesmo se diga das decisões arbitrais em conflitos colectivos que resultem da celebração ou revisão de uma convenção colectiva, decisões que têm os mesmos efeitos das convenções colectivas (n.º 8 do artigo 34.º da mesma lei). Ora, segundo a doutrina do Acórdão 150/86, as decisões arbitrais contêm normas sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal. É inadmissível que deste ponto de vista as normas das convenções colectivas tenham natureza diferente das normas das decisões arbitrais.
14 - O âmbito da eficácia pessoal das convenções colectivas pode ser estendido, total ou parcialmente, a entidades patronais do mesmo sector económico e a trabalhadores da mesma profissão ou profissão análoga mediante portarias de extensão (artigos 27.º a 29.º da Lei da Regulamentação Colectiva de Trabalho). As portarias de extensão tornam-se necessárias por força do princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição) e da sua especial aplicação que é o princípio de que para trabalho igual salário igual [alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição]. A relatada jurisprudência constitucional italiana (supra, n.º 11) pôs este ponto em relevo. Mesmo sem portaria, a imediata aplicabilidade do princípio já impõe que na mesma empresa os trabalhadores de igual qualificação tenham as mesmas condições remuneratórias, independentemente da sua filiação sindical. Todos eles devem ser considerados no número de trabalhadores por categoria profissional envolvidos no processo que se situem no âmbito da aplicação do acordo a celebrar (n.º 4 do artigo 22.º da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho). Mas o princípio também vale para empresas e trabalhadores fora da convenção mas em iguais circunstâncias. As portarias de extensão não se aplicam aos trabalhadores abrangidos directamente pelas convenções colectivas que estendem. Ora o princípio da igualdade que fundamenta a extensão do âmbito pessoal de um certo regime jurídico proíbe também que tenham diferente regime jurídico trabalhadores e empresas que se encontram em circunstâncias iguais do ponto de vista relevante da igualdade. Ora não há dúvida de que as portarias de extensão são fontes de direito objectivo, contêm normas jurídicas 'gerais' e, portanto, vinculadas ao bem comum como é entendido no Estado de direito democrático da Constituição e sujeitas ao controlo de constitucionalidade do Tribunal Constitucional. É jurisprudência assente (Acórdão 392/89, Diário da República, 2.ª série, de 14 de Setembro, pp. 9177 e segs.) e o acórdão também o confirma (n.º 7). Seria uma ofensa da igualdade se as normas da convenção colectiva não estivessem sujeitas aos mesmos critérios de validade e se as pessoas por esta abrangidas não tivessem os mesmos direitos garantidos da mesma maneira, inclusivamente do ponto de vista da fiscalização concreta da constitucionalidade. E que a lei assim o considera depreende-se desde logo de se tratar de portarias de extensão e não, como na Alemanha, de generalização. Se a portaria tivesse uma diferente natureza jurídica (norma jurídica em vez de regra da autonomia privada), diferentes critérios de apreciação da sua conformidade com a Constituição e diferente regime de controlo da constitucionalidade, então o princípio da igualdade exigiria que o Estado substituísse o título e o regime dos direitos e obrigações resultantes da convenção e 'generalizasse' o regime desta. Não o faz porque pressupõe que as normas da convenção já têm a mesma qualidade jurídica e o mesmo regime que a portaria se limita a estender a outra classe de pessoas.
As portarias não visam, portanto, essencialmente, controlar a conformidade das convenções colectivas com a Constituição e a lei e com a política económico-financeira do Governo. Não há controlo do fundo deste tipo no processo de depósito para publicação e entrada em vigor das convenções, que o Governo controla (artigos 24.º a 26.º da Lei da Regulamentação Colectiva do Trabalho). A interpretação correcta é antes a de que se comete aos parceiros sociais a determinação de certos aspectos da política económico-social e de que essa comissão serve melhor o bem comum do que a interferência do Estado nessa esfera.
15 - Finalmente o Código de Processo do Trabalho prevê acções de anulação e interpretação de cláusulas de convenções colectivas de trabalho (artigos 177.º e segs.), estatuindo-se que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre tais questões tem o valor de assento e como tal é designado, e será publicado na 1.ª série do Diário da República e no Boletim do Trabalho e Emprego. Sem caber discutir aqui a constitucionalidade dos assentos, tem justamente o Tribunal considerado que os assentos contêm normas susceptíveis de controlo específico da constitucionalidade (cf. Acórdão 359/91, Diário da República, 1.ª série-A, de 15 de Outubro de 1991, pp. 5332 e segs.). Seria absurdo que a norma interpretativa de uma cláusula de convenção colectiva de trabalho fosse uma norma jurídica objecto possível do processo constitucional, e que a materialmente idêntica norma interpretada já não o fosse. O assento fixa direito, e por isso só anula ou interpreta normas jurídicas, nunca regras da autonomia privada."
2.2 - Salvo o devido respeito pela opinião que logrou vencimento, afigura-se-me claramente insuficiente afirmar, contra a sólida argumentação desenvolvida na declaração de voto parcialmente transcrita, que "as convenções colectivas de trabalho, porque fundadas no exercício da autonomia privada, não contêm actos normativos sujeitos à fiscalização concreta da constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo 280.º da Constituição da República Portuguesa".
Como na aludida declaração de voto se demonstrou, as normas das convenções colectivas de trabalho não apenas se mostram dotadas de generalidade e abstracção como satisfazem os requisitos da noção funcional de norma que o Tribunal adoptou desde o Acórdão 26/85: elas integram regra de conduta ou padrão de valoração de comportamento para os particulares e para a Administração e critério de decisão para esta e para o juiz.
Além do preenchimento destes critérios de normatividade, as normas das convenções colectivas de trabalho também cumprem, na síntese de José Carlos Vieira de Andrade ("A fiscalização da constitucionalidade das 'normas privadas' pelo Tribunal Constitucional", Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 133.º, n.º 3921, 1 de Abril de 2001, pp. 357-363, em especial p. 358), os "critérios adicionais como a heteronomia (determinação, em cada espécie concreta, de um acto normativo dotado de vinculatividade não dependente da vontade dos destinatários, ou de subordinação à norma independentemente da vontade das partes), o reconhecimento estatal (reconhecimento jurídico-político da força vinculativa heterónoma dos actos normativos, capaz de os impor a terceiros ou a destinatários não participantes no seu processo formativo) e a imediação (a violação directa da Constituição, significando a imediação das normas e princípios constitucionais como parâmetros de controlo)".
A relevância normativa das cláusulas das convenções colectivas de trabalho enquanto fonte constitucionalmente reconhecida do direito do trabalho (cf., por último, Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, parte I, "Dogmática geral", Coimbra, 2005, pp. 229-236, 469-472 e 799-847) foi reforçada com a publicação do Código do Trabalho (CT), ao consentir o afastamento de normas legais por convencionais mesmo que estas se não mostrassem mais favoráveis para os trabalhadores (artigo 4.º, n.º 1), mas ao manter a regra da subsidiariedade dos instrumentos não negociais de regulamentação colectiva de trabalho face aos negociais (artigo 3.º) e ao reafirmar que as mesmas vinculam mesmo trabalhadores e empregadores não representados pelas associações signatárias no momento da celebração (artigo 553.º) ou que delas venham a desfiliar-se (artigo 554.º). Assinale-se ainda que, como resulta do n.º 21 do Acórdão 306/2003, emitido em sede de fiscalização preventiva da constitucionalidade de diversas normas do CT, a pronúncia do Tribunal Constitucional no sentido da não inconstitucionalidade dos regulamentos de extensão radicou, no fundo, no reconhecimento de que eles não representam o exercício (autónomo) do poder regulamentar do Estado, mas antes o alargamento, consentido pelo artigo 56.º, n.º 4, da CRP, do âmbito pessoal das normas constantes de convenções colectivas de trabalho, tidas constitucionalmente como fonte de direito, a par das fontes de origem estatal.
Nada tendo sido aduzido no precedente acórdão que abale a construção desenvolvida na declaração de voto atrás parcialmente transcrita, nem se tendo registado entretanto alteração relevante no sistema das fontes de direito laboral, antes se tendo reforçado a função central da contratação colectiva, votei convictamente no sentido de que questões de constitucionalidade reportadas a normas de convenções colectivas de trabalho constituem objecto idóneo de recurso para o Tribunal Constitucional.
Para além de essa ser, a meu ver, a solução jurídico-constitucionalmente correcta, ela é também a única que - numa época em que parece existir alargado consenso no sentido da necessidade de revitalização da contratação colectiva e em que, portanto, cada vez mais as relações laborais serão reguladas por normas convencionais e não por normas "públicas" - poderá evitar que todo um vastíssimo sector da vida dos cidadãos, com particular relevância constitucional, como o que se prende com os direitos dos trabalhadores, fique privado de acesso ao Tribunal Constitucional. - Mário José de Araújo Torres.
Declaração de voto
Não acompanho o entendimento que não reconhece as normas contidas em convenções colectivas de trabalho como normas para efeito de poderem ser apreciadas em fiscalização de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional, aderindo ao essencial das razões da corrente que, neste domínio, é minoritária na jurisprudência do Tribunal e de que, por mais recente, refiro o Acórdão 580/2004.
Muito em resumo, são para mim decisivos os seguintes elementos positivos que caracterizam especificamente estas normas, no plano das fontes normativas, quanto aos atributos (cf. J. C. Vieira de Andrade, "A fiscalização da constitucionalidade das 'normas privadas' pelo Tribunal Constitucional", Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 133.º, n.º 3921, pp. 357 e segs.) de heteronomia (determinação, em cada espécie concreta, de um acto normativo dotado de vinculatividade não dependente da vontade dos destinatários, ou de subordinação à norma independentemente da vontade das partes) e reconhecimento estatal (reconhecimento jurídico-político da força vinculativa heterónoma dos actos normativos, capaz de os impor a terceiros ou a destinatários não participantes no seu processo formativo) e que claramente as distinguem de outras hipóteses de "normas privadas" que deles não comungam, permitindo qualificá-las de modo diferenciado para efeito do artigo 280.º da Constituição:
São reconhecidas como "normas" pela própria Constituição que como tal se lhes refere expressamente, embora deferindo para a lei as condições da sua eficácia (artigo 56.º, n.º 4);
Têm a sua força regulada no capítulo das fontes do direito laboral, não estando o seu âmbito pessoal de aplicação necessariamente dependente da existência de relação actual de representação dos destinatários pelas entidades celebrantes, ficando sujeitos ao seu regime trabalhadores e empregadores que, no momento em que se conclui o processo negocial e se tornam eficazes, não integram as associações signatárias (cf. artigos 553.º e 554.º do Código de Trabalho);
Pertencem à questão de direito para todos os efeitos da competência dos restantes tribunais, incluindo quanto ao valor e publicação dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça sobre as questões interpretativas, nos termos do artigo 186.º do Código de Processo de Trabalho. - Vítor Gomes.
Declaração de voto
Discordei da intervenção do Plenário no julgamento da questão objecto deste processo assim como da decisão que nele fez vencimento.
1 - Não tendo as divergências reveladas entre as decisões do Tribunal, em matérias processuais, os mesmos inconvenientes que se reconhecem às que se traduzem em juízos de constitucionalidade ou de não inconstitucionalidade sobre a mesma norma, não nos pareceu justificada uma intervenção uniformizadora, contrária à tradição do Tribunal neste domínio (v. o que se passou com a questão do conhecimento das questões de desconformidade entre regras de direito ordinário e de direito internacional convencional), sobretudo quando se manifesta no seio do Tribunal uma evolução no sentido que tem colhido o favor de parte significativa da doutrina. Não se compreende na verdade, para além das demais razões apontadas na declaração de voto do Sr. Conselheiro Mário Torres, que a coexistência e o diálogo das diferentes posições a este respeito manifestadas tenha passado a deixar de ser aceitável quando uma destas posições lograva obter um maior eco entre os juízes e fazia vencimento numa secção.
2 - Quanto à questão central discutida no acórdão, reafirmamos a posição que assumimos em declarações de voto apensas aos Acórdãos n.os 531/2004, 26/2005 e 177/2005 e que fez vencimento no Acórdão 580/2004, que subscrevemos: as regras contidas nas convenções colectivas de trabalho devem considerar-se como "normas", para os efeitos do sistema português de controlo da constitucionalidade.
Esta posição não é nova, como é sabido, tendo sido inicialmente desenvolvida na declaração de voto do Sr. Conselheiro Sousa e Brito aposta ao Acórdão 172/92 e vindo a ser posteriormente acolhida nos Acórdãos n.os 214/94, 368/97, 229/98 e 580/2004, para além de ser igualmente assumida em declarações de voto anexas a outras decisões. Limitar-nos-emos pois a relembrar brevemente as razões essenciais que alicerçam a nossa posição.
Acompanhamos na verdade a tese central avançada naqueles locais quando ela sublinha que para a densificação do conceito de norma "funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade e consoante com a sua justificação e sentido" (Acórdão 26/85), o Tribunal tem essencialmente recorrido aos critérios da normatividade, da heteronomia, do reconhecimento estadual e da imediação (v., por último, José Carlos Vieira de Andrade, "A fiscalização da constitucionalidade das 'normas privadas' pelo Tribunal Constitucional", Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 133, n.º 3921, pp. 357-363). Ora temos por indubitável que as convenções colectivas de trabalho, cujas normas se impõem contra ou independentemente da vontade das pessoas concretas a quem se dirigem, satisfazem a característica da heteronomia; e que o seu conhecimento estadual é por igual inegável, uma vez que obtém sanção estadual, sanção que vai ao ponto, na actualidade, de as suas regras, nos termos do artigo 4.º do Código do Trabalho, afastarem os preceitos deste Código. Integram pois a ordem vigente entre nós e a sua não submissão ao controlo de constitucionalidade por parte deste Tribunal contraria de forma clara a justificação e sentido deste. Foi fundamentalmente por isto que dissentimos da doutrina do presente acórdão. - Rui Manuel Moura Ramos.