Acórdão 532/2000
Processos n.os 295/00 e 494/00
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.os 1, alínea c), e 2, alínea g), da Constituição da República e 51.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), requereu ao Tribunal Constitucional, em processo de fiscalização abstracta sucessiva (processo 295/00), a declaração, com força obrigatória geral, da ilegalidade da norma contida no artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, de 9 de Fevereiro, que aprova o Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2000.
O requerente impugna a legalidade da norma referida, considerando que a mesma é desconforme com as disposições conjugadas do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril (Orçamento do Estado para o ano de 2000), e do n.º 1 do artigo 26.º da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas), que, assim, ela ultrapassa o âmbito de competência legislativa regional, tal como se acha delimitada nos artigos 227.º, n.º 1, alínea a), e 229.º, n.º 3, da Constituição da República, e 37.º, n.º 1, alínea c), da Lei 13/91, de 5 de Junho, alterada pela Lei 130/99, de 21 de Agosto (lei esta que é o Estatuto da Região Autónoma da Madeira).
A fundamentar o pedido, diz-se, em síntese, o seguinte:
O artigo 26.º da Lei 13/98 (Lei de Finanças das Regiões Autónomas) determina que anualmente a Lei do Orçamento do Estado definirá os limites máximos do endividamento líquido regional para cada ano. Trata-se - acrescenta-se - de uma solução normativa que vem dar continuidade à sucessiva consagração, em Orçamentos do Estado anteriores, dos montantes máximos de endividamento líquido regional, como se exemplifica especificadamente;
Em execução do disposto no artigo 26.º da Lei 13/98, o artigo 93.º da Lei 3-B/2000 (Orçamento do Estado para o ano de 2000), veio determinar que a Região Autónoma da Madeira não poderá contrair empréstimos que impliquem um aumento do seu endividamento líquido em montante superior a 5 milhões de contos, incluindo todas as formas de dívida;
Porém, a Assembleia Legislativa Regional da Madeira, pelo artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, autorizou o Governo Regional a aumentar o endividamento líquido global até 20 milhões de contos - o que, obviamente, excede, em 15 milhões de contos, o valor que veio a ser previsto no artigo 93.º do Orçamento do Estado para 2000;
Por outro lado, a Lei 3-B/2000 apresenta-se (como logo se extrai do seu formulário inicial) como uma «lei geral da República»; enquanto, por outro lado, no tocante ao sistema financeiro, o poder legislador regional se encontra constitucionalmente adstrito [cf. artigos 164.º, alínea t), 227.º, n.º 1, alínea j), e 229.º, n.º 3] à observância da Lei 13/98, a qual se reveste da natureza da lei orgânica, de valor reforçado (cf. artigos 166.º, n.º 2, e 112.º, n.º 3, da Constituição da República);
Ora, neste contexto, há-de considerar-se que o conteúdo essencial do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, conferindo um «conteúdo substantivo ao preceituado no artigo 26.º, n.º 1, da Lei 13/98», traduz uma «opção legislativa fundamental» daquela primeira lei - «na medida em que contém um princípio essencial do sistema de coordenação entre as finanças do Estado e das Regiões Autónomas». Ou seja (é o que se pretende concluir): consubstancia-se num «princípio essencial» de uma «lei geral da República»;
Deste modo, o artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M encontra-se ferido do vício de ilegalidade superveniente por não se conformar com a disciplina jurídica contida na conjugação das normas do artigo 26.º, n.º 1, da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro, e do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril.
2 - Notificado para se pronunciar, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º, 55.º, n.º 3, e 56.º, n.º 4, da LTC, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira veio contestar o pedido, sustentando o seguinte:
As normas do artigo 26.º da Lei 13/98 e do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, invocadas pelo Ministro da República como parâmetro de avaliação da norma impugnada do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, são inconstitucionais, por violação do princípio da autonomia política e da autonomia orçamental das Regiões, que se extraem no título VII, em particular das normas dos artigos 225.º e 227.º, n.º 1, alínea p), da Constituição;
Porque inconstitucionais, aquelas normas não podem constituir-se em parâmetro de legalidade;
Daí não dever o Tribunal Constitucional declarar a ilegalidade superveniente do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, suscitada pelo Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira.
Nos termos da resposta do Presidente da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, «a medida constitucionalmente adequada da invenção concreta da Lei de Finanças das Regiões no plano da dívida pública regional não se pode ter no confronto linear dessa intervenção com os poderes gerais de decisão financeira das Regiões. Isso conduziria a uma falácia metódica que impossibilitaria um juízo sobre a proporcionalidade, em razão de sempre sobrarem para as Regiões outros poderes. Saber se a norma-parâmetro do artigo 26.º da Lei de Finanças das Regiões, integrada pela norma do artigo 93.º da Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2000, constitui ou não referente constitucionalmente válido de legalidade do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, de 9 de Fevereiro, pressupõe uma definição positiva prévia do conteúdo mínimo inexpugnável da autonomia financeira das Regiões, indagando, concretamente, se esta autonomia inclui alguma margem de decisão sobre a dívida pública regional, e em que termos.
A questão da constitucionalidade das normas-parâmetro invocadas pelo Ministro da República - questão que, em resposta, aqui se suscita - exige uma delimitação competencial entre Estado e Regiões, em matéria de dívida pública, exige, enfim, saber se o poder de decidir sobre essa dívida pode ser subtraído ou desproporcionadamente amputado à capacidade decisória das Regiões.
[...] E a pergunta é: a Lei de Finanças das Regiões, integrada pelas determinações concretas da Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2000, pode dispor em termos tais para a dívida pública que à Região não deixe uma margem razoável de decisão? A questão da dívida pública pode ser praticamente retirada do poder de autodestinação financeira das Regiões? Não tem a dívida pública uma ligação directa aos programas de investimento e ao desenvolvimento económico-social constitucionalmente proclamado como thelos da autonomia (Constituição da República, artigo 225.º, n.º 2)?
A ideia de justa medida, que não é apenas uma ideia abstracta de justiça, mas uma ideia materialmente conformadora da nossa ordem democrática, traduzida na racionalidade estrutural da Constituição e na máxima da proporcionalidade que se lhe liga, é, aqui, a ideia rectora da interpretação. E para ela melhor arrimo metódico não há do que aquele que se tem no quadro comparativo dos limites da dívida regional em diferentes anos orçamentais, apresentado pelo Ministro da República no requerimento de fiscalização de legalidade.
As leis do Orçamento Geral do Estado, ali indicadas, fixaram assim os limites da dívida pública regional: 1994 - 14 milhões de contos, 1995 - 18 milhões de contos, 1996 - 16 milhões de contos, 1997 - 16 milhões de contos, 1998 - 12 milhões de contos. A média é, como se vê, de 15,2 milhões de contos para estes anos. Agora, a Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2000 fixa em 5 milhões de contos o limite da mesma dívida, inferior a um terço daquela média.
Em intervenção manifestamente desproporcionada face ao conteúdo essencial da autonomia financeira das Regiões, a lei da República surpreende com um quantum que inibe o poder decisório das mesmas Regiões.
Ora, não havendo nesta temática da dívida regional um quadro de dependência operativa entre o Orçamento do Estado e o Orçamento das Regiões, como acontece com as transferências orçamentais, não sendo este o campo de interacção necessária entre o sistema financeiro nacional e o subsistema financeiro regional, a fixação de limites pelo Estado àquela dívida, estreitando para além do razoável os poderes de decisão financeira das Regiões, só pode ser inconstitucional.
Para mais, a natureza jurídica do Orçamento, que não é a de uma lei só formal, mas a de 'uma decisão político-normativa verdadeiramente substancial' (na expressão de José Manuel Cardoso da Costa, 'Sobre as autorizações legislativas da Lei do Orçamento', in Estudos em Homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro), reclama critérios materiais de julgamento da intervenção da lei na capacidade de decisão orçamental das Regiões.
Admitirá a Constituição, por exemplo, uma fixação por lei da República de um limite zero de dívida pública regional? Admitirá a Constituição que se elimine - e o mesmo é dizer, se reduza drasticamente - a autonomia creditícia das Regiões?
É isso que se passa com as normas-parâmetro do artigo 26.º da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas), e do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril (Orçamento do Estado para 2000): ao atingirem desproporcionadamente um campo de actividade financeira essencial da Região, atingem, do mesmo passo, a sua capacidade de decisão orçamental. Por essa via, põem em causa a autonomia política, garantida no sistema de normas do título VII, e, em particular, no artigo 225.º da Constituição da República.».
3 - Posteriormente, o Presidente do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira requereu, nos termos da alínea a) do n.º 1 e da alínea g) do n.º 2 do artigo 281.º da Constituição da República, a declaração da insconstitucionalidade, com força obrigatória geral (processo 494/2000), das normas constantes do artigo 26.º da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas) e do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para o ano de 2000).
Os fundamentos do pedido são, em síntese, os seguintes:
O requerente imputa a inconstitucionalidade das normas questionadas à violação, por estas, de dois tipos de princípios constitucionais: por um lado, à violação do núcleo essencial da autonomia político-administrativa das Regiões, como é autonomia financeira [artigo 227.º, n.º 1, alíneas h) e p), da Constituição da República], por outro, à violação dos princípios da imparcialidade, da igualdade e da proporcionalidade.
Começa o requerente por salientar que foi «numa linha de reforço da autonomia regional» que a revisão constitucional de 1997 veio prever a definição do regime de finanças das Regiões Autónomas por lei da Assembleia da República [artigos 161.º, alínea c), 164.º, alínea t), e 229.º, n.º 3, da Constituição da República], revestindo a forma de lei orgânica (artigo 166.º, n.º 2, da Constituição da República) - nesse contexto citando o próprio preâmbulo da Lei 13/98 e o comentário do deputado José Magalhães sobre o significado, nesse ponto, de tal revisão. E daí parte para sustentar que, contrariamente a tal desígnio, chegou-se antes - com as normas questionadas - «à subversão de uma lei que se pretendeu garantística da autonomia regional», pois que transformada em «instrumento de amputação financeira e [...] de direitos constitucionalmente conferidos às Regiões», e mesmo «em fundamento e instrumento de arbitrariedade e de aniquilamento da autonomia política e financeira regional».
Pode dizer-se que a argumentação do requerente se desenvolve em três patamares, nos quais o âmbito ou a extensão da inconstitucionalidade se apresenta delimitado em termos sucessivamente mais estritos (como que numa argumentação «subsidiária», portanto), patamares argumentativos esses que são, em muito apertada síntese, os seguintes:
a) Em primeiro lugar, sustenta o Presidente do Governo Regional da Madeira - tendo em conta, por um lado, o âmbito de matérias sobre que pode versar a Lei de Finanças das Regiões Autónomas, e, por outro, «o núcleo duro inexpugnável da autonomia financeira das Regiões» - que não é constitucionalmente admissível a fixação, por lei da República (e, mais precisamente por aquela lei) de limites de endividamento das Regiões.
Assim, e mais especificamente, argumenta o requerente:
Que a autonomia político-administrativa regional - verdadeira garantia institucional, e até limite material da revisão constitucional - comporta, na sua vertente financeira, um poder de planeamento e um poder orçamental inteiramente autónomos relativamente aos do Estado, os quais configuram «uma verdadeira situação de independência orçamental»;
Que, nessa vertente financeira, vai incluída, a par de outras (nomeadamente a autonomia patrimonial), a autonomia creditícia, sendo que desde os Estatutos provisórios das Regiões se previu a possibilidade de as mesmas contraírem empréstimos - só ficando dependentes de autorização da Assembleia da República os empréstimos «externos»;
Que, dispondo as Regiões de património próprio para garantia do cumprimento das obrigações que assumam, a restrição da sua autonomia creditícia «envolve e afecta necessariamente a autonomia patrimonial» daquelas. E, mais ainda, põe em causa a sua «independência orçamental», já que a definição do montante do défice é conatural à elaboração de qualquer orçamento;
Por outro lado, que «o objecto natural e exclusivo da Lei de Finanças das Regiões Autónomas é a matéria das transferência orçamentais, os direitos de participação nas receitas tributárias do Estado e o estabelecimento dos princípios base da adaptação do sistema fiscal nacional às especificidades regionais»;
Mas que, ao contrário, o direito das Regiões de disporem e gerirem o seu património e de celebrar actos e contratos, bem como a sua autonomia creditícia, se encontram consagrados na alínea h) do artigo 227.º da Constituição da República e não dependem, nomeadamente por força desta disposição constitucional, de qualquer regulação legislativa ou regulamentação do poder central, sendo imediatamente exequíveis.
É a partir destas premissas que o requerente - se considera justificada a necessidade de autorização do Parlamento nacional para a contracção de empréstimos externos pelas Regiões (aqui considerando especialmente o quadro da União Europeia) e também a definição, por aquele, do limite do endividamento regional gozando de aval do Estado - vem a entender que, para além disso, são constitucionalmente inadmissíveis outras interferências da Assembleia da República na autonomia creditícia das Regiões. Assim - diz - «a prática, que se foi instituindo [...] de se ir fixando no Orçamento do Estado valores limite de endividamento das Regiões Autónomas resultou de uma situação conjuntural e de um contexto específico [descrito a seguir], encontrando justificação apenas no plano fáctico e político, sem ter, porém, qualquer cobertura constitucional».
b) Em segundo lugar, considera o Presidente do Governo Regional da Madeira que - «ainda que fosse constitucionalmente admissível a fixação de limites de endividamento [regional], e não é» - sempre o não seria o limite estabelecido no n.º 3 do artigo 26.º da Lei 13/98, segundo o qual, em resultado de endividamento adicional ou de aumento de crédito, o serviço de dívida total, incluindo as amortizações anuais e os juros, não deverá exceder, em caso algum, 25% das receitas correntes do ano anterior, com excepção das transferências e comparticipações do Estado para cada Região (pp. 13-20).
A este respeito, sublinha o requerente a imprescindibilidade do recurso ao crédito enquanto instrumento económico-financeiro, «de que nenhum governo política e administrativamente autónomo pode ser privado»; e chama a atenção para o alcance da fixação de um limite máximo ao crédito, de carácter geral e abstracto (como o do n.º 3 do artigo 26.º), o qual - diz - não permite considerar «as necessidades, contingências e circunstâncias, naturalmente variáveis de ano para ano». Por outro lado - e enfatizando agora especialmente a «essencialidade» da autonomia financeira, enquanto elemento e mesmo «cerne» da autonomia político-administrativa das Regiões, bem como a ampliação desta na Revisão Constitucional de 1997 -, salienta que, «ainda que se entenda que a autonomia creditícia não está constitucionalmente garantida», a fixação de limites ao recurso ao crédito, tendo «reflexos determinantes e decisivos ao nível da autonomia financeira», terá de defrontar-se com «limites constitucionais», consistentes na «garantia da autonomia político-administrativa regional e nos princípios conformadores da igualdade, imparcialidade e proporcionalidade».
É assim que o requerente entende violados pelo n.º 3 do artigo 26.º:
Em primeiro lugar, o princípio da autonomia regional, na sua vertente financeira, sendo que, porém, no tocante à violação de tal princípio, parece que a argumentação do requerente acaba por não autonomizar-se da expendida quanto ao artigo 26.º, no seu conjunto;
Depois, o princípio da igualdade, «na medida em que o Governo da República não está sujeito a limites de endividamento fixados em abstracto, com base nos valores da dívida pública e das receitas». Aliás - acrescenta-se, a propósito -, o princípio da solidariedade nacional postula exactamente o contrário da sujeição das Regiões Autónomas a uma política de forte contenção orçamental;
E, em seguida, o princípio da imparcialidade, «na vertente de dever de ponderação de todos os interesses e valores em causa no caso concreto», na medida em que se estabelece um limite de endividamento de carácter geral e abstracto, com total alheamento e indiferença do plano económico e orçamento regionais, e do contexto e circunstancialismo de cada ano.
Entretanto, neste contexto, e para sublinhar «a desigualdade e arbitrariedade de critérios utilizada», acrescenta-se que «ainda que fosse admissível a fixação de um plafond máximo» de recurso ao crédito, «não se descortina com que base é que se adopta uma noção ampla e generosa de dívida pública total, nela incluindo as amortizações anuais e os juros e, simultaneamente, se exclui arbitrariamente do conceito de receitas as transferências e comparticipações do Estado para cada Região, acolhendo assim uma noção restritiva de receitas» - o que se traduz num «duplo agravamento» dos limites do endividamento.
c) Estando em causa até aqui - consoante se vê - o artigo 26.º da Lei 13/98 (seja in totum, seja em particular o seu n.º 3), no terceiro «patamar» argumentativo do requerimento do Presidente do Governo Regional da Madeira o que se questiona é antes a «concretização» que, do disposto nesse preceito, foi feita pelo artigo 93.º da Lei 3-B/2000, ou seja, da Lei do Orçamento do Estado para 2000. É esta, pois, a norma cuja inconstitucionalidade agora se argui: nela se fixou em 5 milhões de contos de aumento do endividamento líquido o limite da possibilidade de contracção de empréstimos, no ano corrente, pelas Regiões Autónomas, quer dos Açores, quer da Madeira.
A tal respeito, evoca o requerente «os limites da dívida pública regional fixados nas leis do Orçamento do Estado dos últimos anos», os quais se situaram, num período de cinco anos, numa «média anual de 15,2 milhões de contos» (14 milhões, em 1994; 18 milhões, em 1995; 15 milhões, em 1996 e 1997, e 12 milhões, em 1998). Tal evocação basta - diz - «para constatar, à saciedade, a manifesta irrazoabilidade e arbitrariedade» da fixação, agora, do limite de 5 milhões de contos, o qual, por «tão reduzido, afecta, desproporcionada e drasticamente, o conteúdo essencial da autonomia financeira, e, por essa via, da autonomia político-administrativa da Região Autónoma da Madeira».
É a violação do princípio da proporcionalidade, pois, que o requerente imputa à norma ora em apreço.
Mas não sem acrescentar que nela, para mais, se desconsiderou o facto de a Assembleia Legislativa Regional da Madeira haver fixado, no Orçamento Regional para 2000, um montante de recurso ao crédito bastante superior ao limite estabelecido no Orçamento do Estado - o que também implica a violação do princípio do n.º 2 do artigo 26.º da Lei 13/98, que manda considerar as propostas dos Governos Regionais na fixação anual dos limites do recurso ao crédito.
4 - Em resposta, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou os exemplares do Diário da Assembleia da República, contendo os trabalhos preparatórios das Leis n.os 13/98 e 3-B/2000.
5 - O Presidente do Tribunal ordenou a junção do processo 295/00 ao processo 494/00, uma vez que as questões de constitucionalidade que são objecto deste último processo foram suscitadas previamente, como «excepção», na resposta do órgão que emanou a norma no primeiro processo (cf. os artigos 64.º, LTC, e 275.º, CPC).
II - Fundamentos
A) Objecto do pedido de declaração da inconstitucionalidade
6 - Objecto do pedido do Presidente do Governo Regional da Região Autónoma da Madeira é a declaração da inconstitucionalidade das normas do artigo 26.º da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas) e do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril (Lei do Orçamento do Estado para 2000). Essas normas são do teor seguinte:
«Artigo 26.º
Limites ao endividamento1 - Tendo em vista assegurar a coordenação efectiva entre as finanças do Estado e das Regiões Autónomas, serão definidos anualmente na Lei do Orçamento do Estado limites máximos do endividamento líquido regional para cada ano.
2 - Tais limites serão fixados tendo em consideração as propostas apresentadas em cada ano pelos Governos Regionais ao Governo e obedecerão às metas por este estabelecidas quanto ao saldo global do sector público administrativo.
3 - Na fixação de tais limites atender-se-á a que, em resultado de endividamento adicional ou de aumento do crédito à Região, o serviço de dívida total, incluindo as amortizações anuais e os juros, não exceda, em caso algum, 25% das receitas correntes do ano anterior, com excepção das transferências e comparticipações do Estado para cada Região.
4 - Para efeitos do número anterior, não se considera serviço de dívida o montante das amortizações extraordinárias.
5 - No caso dos empréstimos cuja amortização se concentra num único ano, para efeitos do n.º 3, proceder-se-á à anualização do respectivo valor.
Artigo 93.º
Necessidades de financiamento das Regiões Autónomas
As Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira não poderão contrair empréstimos que impliquem um aumento do seu endividamento líquido em montante superior a 5 milhões de contos para a Região Autónoma da Madeira e 5 milhões de contos para a Região Autónoma dos Açores, incluindo todas as formas de dívida.»
Impõe-se, contudo, uma precisa delimitação do objecto do processo quanto ao preceito do artigo 93.º da Lei 3-B/2000. Neste preceito estabelecem-se dois limites de recurso ao crédito durante o exercício orçamental de 2000, embora de igual montante: um para a Região Autónoma dos Açores e outro para a Região Autónoma da Madeira. Importa, consequentemente, deixar claro que só este último - o limite fixado para a Madeira -, ou seja, o preceito do artigo 93.º, nessa parte, cabe apreciar no presente processo.
Há logo, para tanto, uma razão óbvia: é que ao Presidente do Governo Regional da Madeira só assiste «legitimidade» para requerer a apreciação e declaração da inconstitucionalidade dessa parte do preceito, como resulta do artigo 281.º, n.º 2, alínea g), primeira parte, da Constituição da República. Mas a tal razão acresce que o contexto do pedido não impõe a conclusão de que aquela entidade haja pretendido impugná-lo, ao mesmo preceito, em medida mais extensa.
Numa outra dimensão, porém, deverá ainda clarificar-se o objecto do processo: é o de que ele se restringirá ao conhecimento da questão da eventual inconstitucionalidade da parte do artigo 93.º que acabou de circunscrever-se, não se estendendo também ao conhecimento de uma eventual «ilegalidade» da mesma norma - mais precisamente a que residiria na violação do n.º 2 do artigo 26.º da Lei 13/98, a que o requerente não deixou de aludir, na parte final do seu requerimento [(cf., supra, n.º 3, alínea c), in fine].
Também aqui a razão é óbvia, pois que radica na circunstância de o «pedido» vir reportado, tão-só, àquele primeiro vício - não assumindo a referência ao segundo, tal como feita no requerimento inicial, mais do que um carácter «lateral» e secundário.
B) A questão da conformidade constitucional do artigo 26.º da Lei 13/98
7 - Antes de referir os precedentes próximos da Lei 13/98, convirá anotar que a possibilidade de recurso ao crédito (ou à obtenção de receitas de empréstimos) pelas Regiões Autónomas nunca chegou a ser prevista expressa e especificamente na Constituição - continuando ainda hoje, e a esse nível, a não poder extrair-se mais do que da combinação das alíneas h) e p) do n.º 1 do artigo 227.º Mas foi-o logo nos Estatutos Provisórios [como continua a sê-lo nos Estatutos em vigor: v., no dos Açores, os artigos 102.º, alínea f), e 109.º, e, no da Madeira, os artigos 108.º, alínea f), e 113.º e seguintes].
Além disso, ainda na década de 80, alguns diplomas do Governo da República foram emitidos sobre aspectos parcelares da matéria - sendo que num deles (o Decreto-Lei 187/81, de 2 de Julho, relativo à Madeira) se condicionava à autorização do Ministro das Finanças a emissão de empréstimos obrigacionistas (prática semelhante se havendo seguido, ao que parece, ainda que sem diploma específico, quanto aos Açores; cf., para uma informação mais detalhada, E. Paz Ferreira, As Finanças Regionais, 1985, pp. 290-292).
Entretanto, é geralmente sabido que a acumulação da dívida das Regiões Autónomas (quaisquer que tenham sido as suas causas), em particular da Madeira, gerou um problema, ao nível do relacionamento político-financeiro com a República, que conheceu não poucas dificuldades e vicissitudes.
Expressão e consequência de tal problema e dessas dificuldades e vicissitudes veio a ser a emissão do Decreto-Lei 336/90, de 30 de Outubro, o qual, visando «a definição dos regimes de endividamento e de financiamento dos défices das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira», dispôs assim globalmente, pela primeira vez, sobre a contracção de empréstimos públicos pelas Regiões Autónomas.
Estabeleciam-se nesse diploma (v. artigos 2.º e 3.º) limites ao endividamento regional equivalentes aos consagrados o artigo 26.º da Lei 13/98 (além de outros).
Mas, na doutrina, não deixaram de suscitar-se dúvidas sobre a adequação constitucional de um simples «decreto-lei» (ainda que autorizado) para tratar da matéria (que cairia no âmbito «estatutário»), bem como sobre a própria compatibilidade do diploma com a sua lei autorizadora (cf., neste sentido, e sobre o contexto da emissão do Decreto-Lei 336/90, E. Paz Ferreira, «Aspectos recentes da autonomia financeira», em Estudos de Direito Financeiro Regional, 1995, vol. I, p. 98).
Seja como for, foi a partir deste Decreto-Lei 336/90, e ao abrigo e em execução dele, que passaram a estabelecer-se anualmente, no Orçamento do Estado, os limites do endividamento regional. Veja-se, logo, o artigo 7.º da Lei 65/90, de 28 de Dezembro (aprovando o Orçamento do Estado para 1991) - o qual estabelecia, para esse ano, um máximo de 7 milhões de contos para o aumento do endividamento líquido dos Açores, ao passo que, no tocante à Madeira, pura e simplesmente excluía a possibilidade de qualquer aumento.
Assim se chegou à Revisão Constitucional de 1997 - na qual, decerto tirando a lição da experiência anterior, e com o fito de «estabilizar» as regras do relacionamento financeiro entre as Regiões Autónomas e a República, veio prever-se que o mesmo passasse a ser objecto de um quadro legal (artigo 229.º, n.º 3), com o «valor reforçado» de «lei orgânica» [artigo 164.º, alínea t), e artigo 166.º, n.º 2].
Essa lei - a qual, com tão específica credencial constitucional, deixou de poder ser objecto das dúvidas, quanto à «suficiência» para regular a matéria, que se suscitaram a propósito do Decreto-Lei 336/90 - veio justamente a ser a Lei 13/98.
A Lei 13/98 teve por base a proposta de lei 148/VII (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 20 de Outubro de 1997) cuja preparação foi determinada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 12/96, de 24 de Janeiro. A elaboração da proposta foi objecto de uma ampla participação, sendo o seu resultado a tradução de «um acordo entre o Governo da República e os governos das Regiões Autónomas» (cf. a intervenção do Ministro Sousa Franco, Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 20 de Novembro de 1997, p. 586).
Não é de estranhar, por isso, que a proposta de lei haja sido aprovada por unanimidade, tanto na generalidade (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 21 de Novembro de 1997, p. 627), como em votação final global (Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 19 de Dezembro de 1997, pp. 806-807), e haja sido objecto de escassas críticas e correspondentes propostas de alteração na especialidade (Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 20 de Novembro de 1997, pp. 235-240, e de 20 de Dezembro de 1997, pp. 346-358).
Mas o que especialmente importa assinalar é que, nem ao longo do tratamento parlamentar da proposta de lei 148/VII, nem no respectivo debate, foi suscitada qualquer reserva relativamente à disciplina ora vertida no artigo 26.º da Lei 13/98 - e, isto, sendo certo que a «resolução» do problema do endividamento regional era um dos aspectos centrais do diploma, tendo ocupado destacado lugar naquele debate. Ao contrário: a resolução desse problema, no quadro do mesmo diploma, foi antes saudada, não só pelo Governo, como por diversas bancadas (vejam-se, especialmente, as intervenções dos Deputados Guilherme Silva do PSD e Medeiros Ferreira do PS, no já citado Diário da Assembleia da República, 1.ª série, de 20 de Novembro de 1997, pp. 589 e 591).
8 - A questão da admissibilidade da previsão, em diploma legal da República, de limites ao endividamento regional, e da fixação anual desses limites no Orçamento do Estado, foi já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, justamente a propósito do atrás citado Decreto-Lei 336/90, e, mais especificamente dos seus artigos 2.º, 3.º e 4.º (os quais estabeleciam uma disciplina paralela, como já se disse, à do artigo 26.º da Lei 13/98): tal aconteceu no Acórdão 624/97, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 38.º vol., p. 73 e segs.
Limitado pelos termos do pedido que desencadeou tal apreciação - formulado por um grupo de deputados da Assembleia Regional dos Açores - pronunciou-se «formalmente» o Tribunal, nessa oportunidade, apenas sobre a conformidade «estatutária» do mencionado diploma, e, mais precisamente, sobre a sua compatibilidade com o Estatuto da Região Autónoma dos Açores, nos pontos em que este confere à respectiva Assembleia Legislativa Regional a competência para aprovar o Orçamento da Região, bem como para autorizar o Governo Regional a contrair empréstimos (v. n.º 6 do acórdão). Mas não se deixou (aí mesmo) de chamar a atenção para o facto de ocorrer uma «coincidência de conteúdo» entre as respectivas normas estatutárias e as dos artigos 229.º, n.º 1, alínea o) [agora artigo 227.º, n.º 1, alínea p)] e 234.º (agora artigo 232.º, n.º 1, da Constituição da República - assim deixando o Tribunal (intencionalmente) perceber que a sua pronúncia sobre a conformidade estatutária das normas em causa levava «substancialmente» implícita, ao fim e ao cabo, uma apreciação também da sua conformidade constitucional (cf. ainda n.º 7, in fine, do acórdão).
Em qualquer caso, o quadro constitucional tido em conta - relevante desde logo para a própria questão da conformidade estatutária - foi ainda, naturalmente, o anterior à Revisão Constitucional de 1997 (como logo no n.º 4 do acórdão se advertiu).
Pois bem, mesmo nesse quadro constitucional de referência, o Tribunal considerou, por unanimidade, que o Decreto-Lei 336/90 não era ilegal, por violação de estatuto regional - o que vale por dizer que também o não considerou (e o não julgaria) inconstitucional, em resumo, entendeu o Tribunal:
Por um lado, e numa perspectiva orgânico-formal, que era da reserva da Assembleia da República aprovar a lei de enquadramento dos orçamentos regionais e a lei de enquadramento do recurso ao crédito (as quais limitam, naturalmente, o âmbito da competência dos parlamentos regionais nessas matérias), e que o Decreto-Lei 336/90, devidamente credenciado por autorização legislativa, mais não era do que uma expressão parcelar dessas leis de enquadramento.
Por outro, e numa perspectiva material, que o regime (a «tramitação») que em tal diploma se estabelecia não diminuía substancialmente as competências (as competências financeiras, evidentemente) reconhecidas pelos estatutos aos órgãos regionais (no caso, especificamente, aos órgãos de governo próprio dos Açores).
9 - A vertente orgânico-formal da questão, tal como o Tribunal a houve de encarar no mencionado acórdão, acha-se superada; o quadro constitucional é outro e é outra a natureza do diploma em apreço.
O problema que agora cumpre analisar é antes o de saber se a Lei de Finanças das Regiões Autónomas pode versar sobre a matéria do recurso ao crédito pelas regiões. Tal problema, porém, não vem, em rigor, suscitado no presente processo em termos orgânico-formais (como seria o caso se se pretendesse que só o Estatuto e não aquela lei era idóneo para o tratamento da dita matéria), mas na perspectiva mais radical (e, portanto, «material») de que o modo como a dita lei a trata (prevendo o estabelecimento de limites ao recurso ao crédito) não é consentido pela Constituição.
Seja como for, importa antes de mais mostrar que - contrariamente ao sustentado pelo Presidente do Governo Regional da Madeira - a matéria da dívida pública regional tem cabimento na Lei de Finanças das Regiões Autónomas. Mais precisamente, não pode ser estranha a uma lei de finanças regionais que visa, nos termos do artigo 229.º, n.º 3, da Constituição da República, «regular as relações financeiras entre a República e as Regiões Autónomas» e que, por isso, não tem de limitar-se aos aspectos ou matérias pretendidos pelo requerente [supra, n.º 3, alínea a)].
Para tanto não são despiciendos, decerto, os «trabalhos preparatórios» da Lei 13/98 e o consenso, em torno do tema, que eles revelam. Decisivos são, porém, os argumentos já invocados no Acórdão 624/97 acerca dos artigos 2.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei 336/90, de conteúdo semelhante ao do artigo 26.º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, para demonstrar a sua conformidade com o artigo 32.º, n.º 1, alínea m), do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma dos Açores, artigo esse que reservava à assembleia legislativa regional a aprovação do orçamento regional em termos idênticos aos da alínea p) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição da República Portuguesa: «em primeiro lugar, a nível dos princípios, a autonomia financeira regional nunca poderia, no quadro de um Estado unitário, como o português, ser sinónimo de independência financeira. Em segundo lugar, sob o ponto de vista de realidade dos factos, a autonomia financeira das Regiões Autónomas encontra 'uma limitação significativa na circunstância de não ser previsível que, a curto prazo, as Regiões venham a dispor de receitas suficientes para assegurar a cobertura das despesas, o que as leva a terem de elaborar os seus orçamentos com uma certa ligação com o Orçamento Geral do Estado em função das transferências que este lhes irá proporcionar' (cf. E. Paz Ferreira, As Finanças Regionais, Lisboa, INCM, 1985, p. 267).
Assim sendo, a discriminação obrigatória, nos relatórios anexos ao Orçamento do Estado, das transferências orçamentais para as Regiões Autónomas não deixa de implicar, em face da impossibilidade de as Regiões cobrirem as suas despesas com receitas próprias, um quadro lógico de dependência operativa dos Orçamentos das Regiões Autónomas em relação à prévia aprovação do Orçamento do Estado, que prevê afinal as mesmas transferências. Surge, assim, inevitavelmente uma dependência, de natureza lógico-funcional, entre o Orçamento do Estado e os Orçamentos das Regiões Autónomas, a qual se articula com o 'princípio da solidariedade', inerente à correcção das desigualdades derivadas da insularidade, previsto nos artigos 227.º, n.º 2, e 231.º, n.º 1, da Constituição (hoje, artigos 225.º, n.º 2, e 229.º, n.º 1)» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 38, pp. 95-96).
São neste contexto particularmente relevantes, «por se repercutirem na generalidade dos cidadãos do território português e não apenas nos habitantes das Regiões» (ibidem, p. 94), os efeitos do excesso de endividamento de uma região com autonomia político-administrativa. Vale aqui, mutatis mutandis, o que o Primeiro-Ministro, na sua resposta no processo em que foi tirado o Acórdão 624/97, disse acerca do excesso de recurso ao crédito público: «entre outras consequências, o mesmo acaba por determinar, não apenas um aumento da quantidade de moeda em circulação no território nacional, mas também se acaba por repercutir nos valores das taxas de juro no mercado. Acresce também que o Estado Português, com a assinatura do Tratado da União Europeia, assumiu novos compromissos internacionais, no que respeita aos défices orçamentais e ao peso da dívida pública no produto interno bruto, sendo os valores de referência avaliados em termos consolidados para o conjunto do território nacional» (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 38, p. 94).
Por estas razões, pode também aqui dizer-se com o Primeiro-Ministro, na referida resposta, que a solução legislativa de «remeter a fixação anual dos limites máximos de endividamento regional para o Orçamento do Estado tem, nestes termos, plena lógica, não só porque as orientações macroeconómicas do Estado são fixadas no Orçamento do Estado, mas também porque é esta mesma lei que assegura o fluxo de uma parte das receitas correntes das Regiões, através das transferências anuais para aqueles territórios» (ibidem).
Mas se tais considerações mostram, de modo que se julga insofismável, como a matéria da dívida pública tem pleno cabimento na regulamentação da lei de finanças regionais, elas são, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, suficientes e determinantes para concluir pela legitimidade constitucional da definição, por tal lei, de limites ao endividamento regional, ou de critérios para a fixação deles - nomeadamente dos definidos no preceito em apreciação.
Decerto que a previsão desses limites - e, em particular, do que é o seu elemento central: a fixação anual, pelo Orçamento do Estado, do plafond de endividamento das Regiões - representa uma «constrição» da autonomia financeira (mormente da autonomia orçamental), e também da autonomia patrimonial, constitucionalmente garantidas às Regiões: mas é uma constrição que, por um lado, encontra fundamento em exigências ou razões (como a da unidade do Estado) igualmente com relevo constitucional, e, por outro lado, não vai ao ponto de «subverter» e destruir tal autonomia. Ou, como se disse ainda no Acórdão 624/97 (Acórdãos do Tribunal de Contas, 38, p. 95): não é «nuclearmente redutora» da mesma autonomia.
Entretanto, as mesmas considerações valem ainda, de modo particular, para afastar a tese, defendida pelo requerente, de que só teria cabimento constitucional prever a intervenção dos órgãos da República no tocante à contracção, pelas Regiões, de empréstimos externos ou a que seja concedido aval do Estado.
10 - O Presidente do Governo Regional questionou especialmente a admissibilidade constitucional do limite estabelecido pelo n.º 3 do artigo 26.º da Lei 13/98. Importa, portanto, atentar no exacto alcance do preceito agora em causa, e indagar da sua coerência e razoabilidade em termos de pura «lógica económica» (ou financeira).
Ora, o que no n.º 3 do artigo 26.º da Lei 13/98 se estabelece é um limite máximo «permanente» ou «fixo», reportado não directamente à dívida pública total (ao chamado «stock da dívida») de cada região, mas ao serviço dessa dívida, ou seja, ao montante do encargo anual que ela vai implicar no orçamento regional - limite esse que é função do nível anual de certas receitas: as receitas correntes, fora transferências e comparticipações do Estado. Pois bem:
É uma exigência de lógica económica - é conforme ao padrão de um comportamento económico racional - que o nível de endividamento de qualquer agente (privado ou público) se proporcione à sua capacidade de solver os correspondentes encargos, ou seja, à sua capacidade para gerar autonomamente receitas e para afectá-las a tais encargos. E como os mesmos encargos não se concentram, em regra, num único período (num único ano), mas se repartem pelos sucessivos períodos económicos, compreende-se que a capacidade de endividamento dependa, desde logo, do nível de receitas autonomamente geradas e disponíveis em cada período;
Assim, não contraria a lógica económica que se defina um limite ao endividamento de certo ente público financeiramente autónomo por referência ao «serviço anual da dívida» e ao montante das receitas que anualmente tal ente seja capaz de autónoma e efectivamente gerar;
Como o serviço anual da dívida se mede, não só pelo montante das «amortizações» dela que hão-de fazer-se no período, mas também pelo dos «juros» que durante o mesmo hão-de ser pagos, também não contraria aquela lógica que tal limite respeite ao conjunto (à soma) de umas e outros;
E tão-pouco contraria a mesma lógica que esse limite seja função do nível das «receitas correntes» do mesmo ente público, com exclusão das transferências e comparticipações do Estado: é que apenas essas (que serão, assim, as provenientes de impostos, taxas, rendimentos da propriedade, outras transferências e venda de bens e serviços correntes: cf. a Classificação Económica das Receitas Públicas), são, por um lado (e diversamente das «receitas de capital»), receitas, não só efectivas, como regulares (isto é, normal ou regularmente obtidas em cada ano) desse ente; e são, por outro lado (diversamente das «transferências e comparticipações do Estado») receitas autonomamente geradas por tal ente. Ou seja, pelo que em especial toca a este segundo aspecto, e mais precisa ou explicitamente: definindo-se a autonomia financeira do ente em causa (no caso, da Região Autónoma) por referência ao Estado, compreender-se-á que para medir a sua capacidade de endividamento «autónomo» não conte o financiamento do Estado (ainda que o mesmo se traduza, para aquele, numa receita «efectiva»).
Entretanto:
Como não é obviamente possível operar, na concretização do limite ora em apreço, com o nível de receitas correntes do próprio ano, compreende-se que se adopte o do «ano anterior»;
Por outro lado, e finalmente, afigura-se que não é desproporcionado ou desrazoável tomar como referência, para esse limite, 25% das ditas receitas. É como se se dissesse (se não é isso mesmo que se diz) que a dívida não pode ser tal que acarrete a afectação de mais de 25% dessas receitas ao serviço dela: ora, não parece que esta seja, em si mesma, uma regra prudencial excessiva.
Eis como o disposto no n.º 3 do artigo 26.º da Lei 13/98 não se apresentará como desconforme com a lógica económico-financeira.
Sendo assim, não parece que possa dizer-se que tal preceito tenha vindo estabelecer um limite à autonomia financeira das Regiões Autónomas não consentido pela Constituição.
A autonomia financeira regional é, decerto, reconhecida pela Constituição, em preceitos específicos (como os que o requerente invoca) e, desde logo, enquanto necessariamente implicada na própria autonomia político-administrativa das regiões. Mas ela não significa nem absoluta «independência» financeira nem absoluta separação entre as finanças do Estado e as das Regiões, sendo que a definição dos exactos termos da intercomunicabilidade entre umas e outras (o que significa, ao cabo e ao resto, a definição da própria extensão de tal autonomia) é, hoje, expressamente devolvida para a lei (a lei orgânica) prevista no artigo 229.º, n.º 3, da Constituição da República (isto, claro, salvo o que se acha já directamente prescrito na Constituição: cf. as diversas alíneas do artigo 227.º interessando o tema). Ora, desenhado assim (agora inequivocamente) o quadro constitucional da matéria, o que não será, em todo o caso, consentido a tal lei é (como noutras situações semelhantes) que ela venha a estabelecer uma regulamentação ou um regime de todo despropositado e excessivo, que acabe por desfigurar e destruir a autonomia constitucionalmente garantida. Mais uma vez, pois, o princípio da proporcionalidade será aqui um critério decisivo. Eis por que, não se antolhando ele desrespeitado pelo preceito em apreço, daí poderá logo extrair-se a conclusão que começou por avançar-se.
E isso tanto mais quanto não deve ignorar-se que a disciplina ora estabelecida para a dívida pública regional não aparece isolada na Lei 13/98, mas antes se insere na definição de um quadro global de relações de intercomunicabilidade entre o sistema financeiro da República e os sistemas financeiros de cada Região, em que, por sua vez, passa a estar garantido um certo grau de financiamento anual dos orçamentos regionais pelo Orçamento do Estado, calculado segundo um critério fixo (cf. o artigo 30.º).
11 - É certo que o Presidente do Governo Regional insiste sobretudo na circunstância de o n.º 3 do artigo 26.º introduzir um limite «abstracto» e de carácter permanente ao endividamento regional, insensível à evolução e às alterações da conjuntura. Só que, por um lado, isso não é absolutamente exacto, pois o dito limite, sendo função do nível das receitas correntes, sempre varia com a variação anual destas (tomando como referência o último valor delas susceptível de ser considerado: ut supra); e, por outro lado, o plafond de 25% parece conceder ainda uma margem considerável de adaptação à conjuntura.
Repare-se, de resto, em que o limite condiciona, tão-só, o endividamento «adicional» ou o «aumento» do crédito.
Por sua vez, quanto, em especial, às observações do requerente relativas à inclusão dos «juros» no montante do serviço da dívida e à não inclusão das «transferências do Estado» no montante das receitas correntes, a sua improcedência já emerge do acima exposto.
As considerações precedentes, relativas à não violação, pelo preceito em apreço, do princípio da autonomia financeira regional, conduzem igualmente, e sem mais, a concluir que o mesmo preceito tão-pouco viola o que o requerente chama de princípio da «imparcialidade».
Com efeito, o que aí está em causa é justamente, e tão-só, o argumento do carácter «abstracto» e permanente do limite do n.º 3 do artigo 26.º, e da impossibilidade que ele criaria de se atender ao circunstancialismo concreto de cada ano - argumento que acabou de apreciar-se.
12 - Das razões invocadas pelo Presidente do Governo Regional da Madeira contra a admissibilidade constitucional da norma ora em apreço, resta, assim, a da violação do princípio da «igualdade».
A tal respeito, cumpre liminarmente reconhecer que o já citado «Regime geral de emissão e gestão da dívida pública directa do Estado» (Lei 7/98) não contém, de facto, nenhum preceito de conteúdo paralelo, idêntico ou semelhante, ao do n.º 3 do artigo 26.º da Lei 13/98.
Simplesmente, não faz sentido invocar, neste contexto, o princípio da igualdade ou falar de «desigualdade de tratamento» (pretensamente inadmissível): é que esta última disposição insere-se num complexo normativo que visa regular as relações financeiras entre dois entes públicos e definir o grau e os termos em que a um deles é reconhecida «autonomia», nessa matéria, relativamente ao outro (conexionando-se, directa e mais precisamente, com o princípio segundo o qual será fixado pelo Orçamento do Estado o limite máximo de endividamento líquido regional em cada ano). Ora, semelhante problema não se coloca, como é obvio, quanto à dívida pública do Estado, cuja gestão cai, toda ela, dentro, já não da «autonomia», mas da sua «soberania» financeira.
C) A questão da conformidade constitucional do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, na parte relativa à Região Autónoma da Madeira
13 - É imputada pelo requerente a esta norma - em que (recorde-se) se fixa em 5 milhões de contos o máximo de aumento do endividamento líquido da Madeira no ano corrente - a violação do «princípio da proporcionalidade».
Deverá assim pôr-se em relevo, antes de mais, que uma tal imputação (e a sua eventual procedência) tem como pressuposto um entendimento (que seria constitucionalmente imposto pelo princípio da autonomia financeira regional) de que o legislador do Orçamento do Estado não goza de uma «absoluta» liberdade na fixação anual do limite máximo de aumento do endividamento das Regiões: tal limite não poderia ser fixado em zero, nem sequer abaixo de um certo mínimo, tido como razoável (ou em que a possibilidade de endividamento ficasse reduzida a um valor negligenciável).
Por outro lado, vai implícita, na arguição de semelhante vício, a convicção de que o conhecimento dele (ou seja, o controlo da observância, no caso, do princípio da proporcionalidade) não excede o poder de cognição do Tribunal Constitucional.
Ora, não pode deixar de registar-se, desde logo, o facto de encontrarmos logo um precedente (pelo menos) que, se bem que ocorrido ainda no quadro do Decreto-Lei 336/90, contraria, na prática, a primeira das premissas enunciadas: assim, o disposto no artigo 7.º da Lei do Orçamento para 1991, atrás citado (supra, n.º 7), que proibia o aumento do endividamento líquido da Região (como, aliás, em outro quadro legal, fizera o artigo 6.º da Lei 101/89, de 29 de Dezembro - Lei do Orçamento para 1990 -, no âmbito do Programa de Reequilíbrio Financeiro da Região Autónoma da Madeira, em que o Estado suportou uma comparticipação extraordinária nos juros de dívida daquela Região correspondente a 50% do seu valor anual). Note-se que o artigo 26.º, n.º 3, da Lei 13/98 implica que seja proibido qualquer aumento de endividamento se o serviço de dívida total for igual ou superior a 25% das receitas correntes no anterior, com excepção das transferências e comparticipações do Estado.
Seja como for, sempre a extensão do controlo jurisdicional de constitucionalidade, em situações ou relativamente a normas como as sub judicio, terá de confrontar-se com inevitáveis limitações: é que se está (ser-se-ia tentado a dizer assim) perante uma norma jurídica em mero sentido «formal», e em que se verte, sim, uma decisão, não só de carácter radical e essencialmente técnico-político (no sentido de que é e não pode deixar de ser confiada ao saber técnico, à opção e ao critério de escolha e à responsabilidade do órgão e da maioria legislativa), como de política conjuntural.
Dir-se-á, pois, que, sob pena de o Tribunal agir ultra vires, só lhe cabe, para julgar aqui do respeito pelo princípio da proporcionalidade, controlar se o legislador excedeu a margem de discricionariedade que lhe está, nesta matéria, reservada.
Ora, a hipótese em apreço está longe de evidenciar uma violação do princípio da proporcionalidade; está longe de permitir que se afirme que o máximo de aumento de endividamento líquido, consentido à Região Autónoma da Madeira no ano de 2000 - e tão-só de limite de aumento de endividamento se trata -, foi fixado num valor excessivamente baixo (e muito menos «negligenciável»); e certamente que o legislador se manteve dentro da margem de discricionariedade que lhe está reservada.
É certo que o requerente argumenta, comparando esse valor com os fixados ao longo do quinquénio de 1994-1998 e o correspondente valor médio, que se baixou para um terço deste. Só que, cabe contra-argumentar, nesse mesmo plano, que o limite máximo de aumento de endividamento líquido da Madeira (como também dos Açores) no ano de 1999 fora já fixado igualmente em 5 milhões de contos (artigo 80.º da Lei 87-B/98, de 31 de Dezembro).
D) Objecto do pedido de declaração da ilegalidade
14 - Objecto do pedido do Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira é a declaração da ilegalidade da norma do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, de 9 de Fevereiro (aprova o Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2000), que dispõe:
«Endividamento líquido
Para fazer face às necessidades de financiamento do Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2000, fica o Governo Regional autorizado a aumentar o endividamento líquido global até 20 milhões de contos.»
E) Legitimidade do requerente
15 - O Ministro da República requerente invoca como normas de referência, ou normas-parâmetro, de cuja violação decorre a ilegalidade da norma sub judicio, as «disposições conjugadas» do artigo 93.º da Lei 3-B/2000 e do n.º 1 do artigo 26.º da Lei 13/98. Ora:
Por um lado, a sua legitimidade para requerer a este Tribunal a declaração de ilegalidade de normas retringe-se aos casos de «violação do estatuto da respectiva Região ou de lei geral da República» (artigo 281.º, n.º 2, alínea g), da Constituição da República);
Mas, por outro, se a Lei 3-B/2000 se autoqualifica como «lei geral da República (consoante agora, depois da revisão Constitucional de 1997, se exige, no artigo 112.º, n.º 5, da Constituição da República), o mesmo não acontece com a lei 13/98, a qual, por sua vez, também não integra «formalmente» o estatuto das Regiões Autónomas (pese a sua natureza «para-estatutária» ou até «materialmente estatutária»).
Daí a pergunta: acarretará isto alguma dificuldade no que respeita ao conhecimento do pedido?
A resposta será seguramente negativa se se acolher a tese - defendida por Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. V, 1997, p. 394 - segundo a qual a exigência de autoqualificação como «lei geral da República» é de ter por dispensada, quando se esteja perante uma lei pertencente à reserva parlamentar (como acontece com a Lei 13/98), ou ainda noutros casos, quando contenha disposições que só fazem sentido nesse pressuposto.
Mas, ainda que se não acolha tal tese - ou, então, uma tese mais restritiva, mas conduzindo, na hipótese, ao mesmo resultado, como seria a de que, uma vez verificado o primeiro pressuposto do n.º 5 (que a sua razão de ser envolva a sua aplicação a todo o território nacional), não há que fazer a exigência da parte final do artigo 112.º, n.º 5, da Constituição da República, quanto a «leis orgânicas» -, ainda assim a resposta será a mesma: é que a circunstância de uma das normas de referência, invocadas pelo requerente, ser indubitavelmente uma «lei geral da República» deve considerar-se bastante para assegurar a legitimidade daquele para o pedido.
Decisivamente, aliás, muito embora o requerente impute a ilegalidade à violação das «disposições conjugadas», que invoca, da Lei 3-B/2000 e da Lei 13/98, bem poderá dizer-se que a norma de referência directamente relevante na espécie é a consignada no preceito daquela primeira lei (isto é, na Lei do Orçamento): é ela que fixa o limite alegadamente desrespeitado pela norma sub judicio, o que vale por dizer que é com ela que esta última contrasta.
Quanto à norma da Lei 13/98, a mesma também interessa e vem, decerto, ao caso; mas «indirectamente», enquanto necessário fundamento legitimante do preceito da lei orçamental.
F) A questão da ilegalidade da norma do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, de 9 de Fevereiro
16 - A primeira questão que se põe é a de saber quais são as normas de referência que aqui devem considerar-se relevantes. A questão põe-se por causa do carácter superveniente do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, relativamente ao preceito sub judicio. Quando foi aprovado o Orçamento da Madeira para 2000, e publicada a respectiva lei, não havia ainda sido aprovado, nem muito menos publicado, o Orçamento do Estado para o mesmo ano (sendo que o atraso na elaboração deste se deveu, como é sabido, à realização de eleições legislativas em Outubro de 1999). O artigo 93.º da Lei do Orçamento do Estado para o ano corrente é, assim, uma norma superveniente à do artigo 6.º do decreto legislativo que aprovou o Orçamento da Madeira, também para este ano, ora em apreço. Será que esta circunstância torna questionável a identificação da norma do artigo 93.º como norma de referência da questão de ilegalidade?
Tudo depende do entendimento que - face ao disposto no artigo 26.º, n.º 1, da Lei 13/98 e, mais amplamente, às relações de intercomunicabilidade (v., por exemplo, também o artigo 30.º) que essa lei veio estabelecer (ou «estabilizar») entre as finanças e o Orçamento da República e as finanças e os Orçamentos da Regiões - deva perfilhar-se, em caso de atraso na aprovação daquele primeiro Orçamento. Assim, e cingindo-nos, quanto possível, ao ponto que agora importa, apresentam-se, prima facie, três alternativas:
Ficarem as assembleias legislativas regionais livres para fixarem, no nível que entenderem, o limite máximo do endividamento regional;
Deverem, ao contrário, aguardar por essa fixação no Orçamento do Estado, e protelar assim a elaboração do orçamento regional até que aquele esteja aprovado;
Ou poderem, de todo o modo, promover a aprovação do orçamento regional, antes mesmo de aprovado o do Estado, mas dentro dos limites do direito orçamental transitório, ou intemporal, que se deve considerar aplicável.
Têm-se por inaceitáveis o primeiro e o segundo entendimentos, porque ambos «excessivos» - o primeiro comprime desnecessariamente o poder de coordenação financeira global do Estado e contradiz o princípio de divisão de poderes expresso no artigo 229.º da Constituição da República e desenvolvido através da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, nomeadamente através do seu artigo 26.º - o segundo comprime desnecessariamente a autonomia financeira (e orçamental) regional, e especialmente o poder de aprovar o orçamento regional consagrado no artigo 227.º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República. Restará, pois, o terceiro dos entendimentos enunciados.
17 - Os termos em que o Ministro da República requerente formula o pedido - declaração de ilegalidade «superveniente» - não serão, em qualquer caso (isto é, seja qual for o alcance que se deva atribuir-lhes), limitativos da possibilidade de o Tribunal conhecer da ilegalidade da norma sub judicio em toda a extensão do seu âmbito temporal de aplicação (e, portanto, desde o início da sua vigência). Trata-se - naquela referência ou formulação - da «qualificação» da ilegalidade, ou seja, da caracterização e delimitação dos efeitos da contrariedade da norma em apreço com outra que lhe está supra-ordenada; não se trata da delimitação da própria «norma» submetida à apreciação do Tribunal. O princípio enunciado no artigo 51.º, n.º 5, primeira parte, da LTC, segundo o qual o Tribunal só pode declarar a ilegalidade de normas cuja apreciação tenha sido requerida, não representa assim um obstáculo a que a norma sub judicio seja considerada em toda aquela extensão.
Por sua vez, o teor da segunda parte do mesmo artigo 51.º, n.º 5, da LTC, que permite ao Tribunal decidir com fundamentação na violação de normas ou princípios «constitucionais» diversos daqueles cuja violação foi invocada - porque deve ser objecto de adequada interpretação ou integração - não constituirá obstáculo a que a norma do artigo 6.º do diploma orçamental da Madeira possa ser apreciada, se dever ser esse o caso, à luz de preceito ou preceitos (naturalmente constantes de «lei geral da República») diversas dos (ou de algum dos) invocados pelo requerente, mesmo que exprimam normas ou princípios legais - como é próprio da declaração de ilegalidade - e não directamente constitucionais.
Por outro lado, dada a implicação orçamental da norma questionada, não se afigura concebível uma sua mera ilegalidade «superveniente», stricto sensu, isto é, com simples efeitos ex nunc, a partir da entrada em vigor do artigo 93.º da Lei do Orçamento do Estado para 2000: tal traduzir-se-ia na vigência de dois diferentes orçamentos, ao longo do ano de 2000, na Região Autónoma da Madeira, o que seria contrário ao princípio da «anualidade» orçamental (artigo 106.º, n.º 1, da Constituição da República). De resto, o próprio Orçamento do Estado para 2000 retrotraiu expressamente os seus efeitos a 1 de Janeiro (cf. artigo 103.º da respectiva lei) - o que se afigura em consonância com o princípio do artigo 15.º, n.º 6, da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado (Lei 6/91, de 20 de Fevereiro), princípio este reproduzido no artigo 15.º, n.º 6, da Lei de Enquadramento do Orçamento da Região Autónoma da Madeira (Lei 28/92, de 1 de Setembro).
18 - Resta determinar quais os princípios de direito orçamental transitório ou intertemporal aplicáveis, dentro do pressuposto atrás (n.º 16) adoptado.
O primeiro princípio que se oferece como aplicável, quando se verifique atraso do orçamento estadual, é o que se pode extrair do n.º 3 do artigo 26.º da Lei 13/98. Na verdade, não é de admitir que, estando as assembleias regionais sujeitas ao limite que foi fixado pela Assembleia da República, não estejam entretanto, na falta ou demora dessa fixação, sujeitas ao limite máximo a que está sujeita a própria Assembleia da República. Será que, uma vez respeitado este limite, as assembleias regionais ficam livres de fixar o limite do endividamento ao nível que entenderem? A resposta terá de ser negativa, porque tal solução não deixaria de contradizer o princípio de divisão de poderes expresso no artigo 229.º da Constituição da República e concretizado em conformidade com a Constituição, através do artigo 26.º da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, segundo o qual, «tendo em vista assegurar a coordenação efectiva entre as finanças do Estado e das Regiões Autónomas», compete à Assembleia da República fixar o limite máximo do endividamento líquido anual.
Poderá, então, dizer-se que tal princípio é respeitado na medida em que as assembleias regionais ficam obrigadas a eventualmente corrigirem o valor que tiverem fixado nos termos que se acabam de precisar, de harmonia com o que vier a ser estabelecido naquele Orçamento (naturalmente, se o limite deste for inferior). Para o efeito, deverão fazer aprovar um orçamento rectificativo, reportado a todo o ano económico. Se o não fizerem (ou enquanto o não fizerem), a norma regional que haja fixado um limite superior ao que o Orçamento do Estado veio definir enfermará de ilegalidade, por violação deste último.
Em contrário, há que ponderar que esta solução ainda permite, embora transitoriamente - mas, como se demonstrará adiante, desnecessariamente -, que seja a assembleia legislativa regional a fixar o limite do endividamento, sem o contrapeso do critério da Assembleia da República, que o sistema legal impõe, em conformidade com a Constituição. Acrescente-se que não faz sentido reconhecer às assembleias regionais, por um lado, o direito a aprovar o orçamento regional antes do Orçamento do Estado, e obrigá-las, por outro, a alterá-lo ulteriormente, em função desse, num ponto nuclear da definição da política financeira, que é a fixação do nível do défice; em segundo lugar, porque tal poderia conduzir à necessidade de aprovar um orçamento não formalmente equilibrado, o que a Constituição (artigo 105.º, n.º 4) não consente (assim seria, se não houvesse possibilidade de obter receitas «efectivas» adicionais suficientes para cobrir os compromissos entretanto já assumidos). Isto, porém, não significará isentar as assembleias regionais, na hipótese (de atraso do Orçamento do Estado), de todo e qualquer limite na fixação do seu endividamento: só que ele há-de ser o limite que for de considerar em vigor à data da aprovação do orçamento regional.
Somos assim levados a entender que as assembleias regionais estão sujeitas ao princípio da manutenção da vigência do Orçamento do Estado do ano anterior, expresso no artigo 15.º da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado e nomeadamente nos seus n.os 1 e 2, segundo os quais se mantêm em vigor tal orçamento, «incluindo o articulado e os mapas orçamentais, com as alterações que nele tenham sido introduzidas ao longo da sua efectiva execução» (n.º 1), e «abrangendo a autorização para a cobrança de todas as receitas nele previstas, bem como a prorrogação da autorização referente aos regimes das receitas que se destinavam apenas a vigorar até ao final do referido ano» (n.º 2). Esta alternativa conduz à manutenção em vigor do artigo 80.º da Lei do Orçamento do Estado para 1999 (Lei 87-B/98, de 31 de Dezembro), o qual fixou para o ano de 1999 em 5 milhões de contos o aumento de endividamento líquido anual da Região Autónoma da Madeira.
Só esta alternativa respeita, na medida do possível, a repartição de competências querida pela Lei de Finanças das Regiões Autónomas, pelo que é a única que respeita o sistema querido pela Constituição.
Importa, então, apurar o sentido da manutenção em vigor do artigo 80.º da Lei do Orçamento do Estado para 1999, que é, assim, em conjugação com o princípio que se extrai do artigo 15.º, n.os 1 e 2, da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, a norma de referência da apreciação da legalidade do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M.
Define-se, através do artigo 80.º, um limite concreto ao endividamento anual de 1999 da Região Autónoma da Madeira, que se obterá através da soma do limite de aumento de 5 milhões de contos ao montante do endividamento líquido global no final de 1998. Significa então a manutenção em vigor do artigo 80.º para o ano de 2000 a manutenção do mesmo limite de endividamento no orçamento regional para 2000? Ou significa antes a manutenção da anterior regra de aumento anual do endividamento, pelo que o montante de endividamento permitido ao orçamento regional para 2000 passou a ser de mais 5 milhões além do montante de endividamento líquido global no final de 1999?
A favor do primeiro entendimento poderá, numa certa perspectiva, dizer-se que é da responsabilidade política da Assembleia da República, de acordo com o n.º 1 do artigo 26.º da Lei das Finanças das Regiões Autónomas, fixar um limite máximo do endividamento líquido regional em cada ano, que respeite o limite máximo absoluto estabelecido no n.º 3 do mesmo artigo. Se se estabelecesse uma regra de aumento do endividamento anual, não estaria eventualmente garantido, no ano seguinte, o limite absoluto do endividamento respeitado no ano anterior. A transformação dos critérios de aumento em cada ano em regras de aumento transitoriamente válidas poderia conduzir a limites orçamentais contrários às razões determinantes do voto democrático do Orçamento do Estado em cada ano. Os limites resultantes da manutenção do orçamento no ano seguinte não conduziriam à manutenção dos limites do ano anterior, mas a novos limites, dependendo da forma de determinação dos anteriores limites: se a forma fosse a indicação de um valor determinado, manter-se-ia o limite; se a forma fosse a indicação de um critério de aumento, alterar-se-ia o limite.
E nesta mesma perspectiva, não se diga que a manutenção sem alteração do limite do ano anterior faria recair sobre a Região a impossibilidade da adaptação à conjuntura resultante da manutenção dos limites concretos do orçamento anterior por causa do atraso da Assembleia da República. Tal rigidez é o custo necessário do princípio da manutenção do orçamento. Mas uma regra de adaptação à conjuntura do direito orçamental intertemporal, que pressupõe a aplicação do artigo 15.º da Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, é ainda a do artigo 8.º da Lei 7/98, de 3 de Fevereiro, que estabelece o «Regime geral de emissão e gestão da dívida pública», que se transcreve:
«1 - Se o Orçamento do Estado não entrar em execução no início do ano económico a que se destina, por qualquer motivo, nomeadamente por não votação, não aprovação ou não publicação, poderá o Governo autorizar, por resolução, a emissão e contratação de dívida pública fundada até um valor equivalente à soma das amortizações que entretanto se vençam com 25% do montante máximo do acréscimo de endividamento líquido autorizado no exercício orçamental imediatamente anterior.
2 - Os empréstimos públicos realizados ao abrigo do regime intercalar estabelecido no presente artigo deverão integrar, com efeitos ratificatórios, o Orçamento do Estado do exercício a que respeitam.»
Ora, sempre na mesma perspectiva, dir-se-á que acréscimo idêntico ao previsto no n.º 1 deste preceito será igualmente aqui aplicável, por identidade de razão.
Numa outra perspectiva, defender-se-á, considerando as aludidas diferenças entre, por um lado, a autorização ao Governo para contratação de dívida pública pelo Estado e, por outro, a fixação pelo parlamento nacional de limites ao endividamento das regiões, a manutenção integral dos critérios fixados no Orçamento do Estado no ano anterior, com, se for caso disso, manutenção do limite de aumento do endividamento, em igual medida, no novo exercício orçamental.
De todo o modo, o artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, ao autorizar um aumento do endividamento líquido global da Região até 20 milhões de contos, excede de forma manifesta o limite da norma de direito intertemporal aplicável, resultante da conjugação do artigo 80.º da Lei 87-B/98 com o princípio que se extrai do artigo 15.º, n.os 1 e 2, da Lei 6/91.
O artigo 93.º da Lei 3-B/2000, que aprova o Orçamento do Estado para 2000, embora não seja norma de referência da questão de ilegalidade, não deixaria de ser aplicável a eventuais orçamentos rectificativos da Região Autónoma da Madeira.
G) A questão prévia da conformidade constitucional das normas de referência
19 - Esta questão, levantada pelo Presidente da Assembleia Legislativa Regional, foi respondida atrás, a propósito do pedido de declaração de inconstitucionalidade [supra, alínea B), n.os 7-12], para que se remete.
Deixou, no entanto, de ser directamente aplicável, como norma de referência, o artigo 93.º da Lei 3-B/2000. Mas a questão posta quanto a ele, teria igual cabimento quanto ao artigo 80.º da Lei 87-B/98.
Todavia valem aqui, dado o teor literal idêntico do artigo 80.º da Lei 87-B/98 ao do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, todos os fundamentos que se aduziram no sentido da não inconstitucionalidade da norma deste último artigo, na parte relativa à Região Autónoma da Madeira [supra, alínea c), n.º 13].
Também, pela mesma razão, vale, mutatis mutandis, o que se disse quanto ao carácter de lei geral da República das «disposições conjugadas» do artigo 93.º da Lei 3-B/2000 e do n.º 1 do artigo 26.º da Lei 13/98 (supra, n.º 15).
H) Limitação de efeitos
20 - É claro que a Região Autónoma da Madeira não ficará desonerada de reembolsar as importâncias dos empréstimos que haja contraído ilegalmente.
Considerando ainda a incerteza jurídica que, admite-se, terá existido no momento da aprovação do Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2000, devem ressalvar-se, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição da República, por razões de equidade e de segurança jurídica, os empréstimos já contraídos, bem como os necessários para assegurar compromissos já assumidos.
III - Conclusão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não declarar a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 26.º da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro, e do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril;
b) Declarar a ilegalidade da norma do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, de 9 de Fevereiro, por violação do artigo 80.º da Lei 87-B/98, de 31 de Dezembro, em conjugação com o princípio que se extrai do artigo 15.º, n.os 1 e 2, da Lei 6/91, de 20 de Fevereiro;
c) Limitar os efeitos da ilegalidade, de forma a salvaguardar os empréstimos já contraídos, bem como os necessários para assegurar compromissos já assumidos.
6 de Dezembro de 2000. - José de Sousa e Brito - Paulo Mota Pinto - Guilherme da Fonseca - Alberto Tavares da Costa - Luís Nunes de Almeida - Maria Fernanda Palma - Maria Helena Brito [vencida quanto à fundamentação da decisão constante da alínea b), nos termos da declaração de voto junta] - Vítor Nunes de Almeida [vencido, quanto à fundamentação da decisão constante da alínea b), de acordo com a declaração de voto junta] - Artur Maurício [vencido no que respeita à fundamentação da decisão constante da alínea b), conforme declaração de voto junta] - Messias Bento [vencido apenas quanto à fundamentação da decisão de ilegalidade constante da alínea b), conforme a declaração de voto junta] - Bravo Serra (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, no essencial, pelas razões da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Bravo Serra) - José Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Votámos a decisão de ilegalidade da norma do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, mas por diferentes fundamentos.
Diferentemente do que se conclui no acórdão, consideramos que a norma violada é a do artigo 93.º da Lei do Orçamento do Estado para 2000 (e, indirectamente, a norma legitimante deste preceito da lei orçamental, que consta do artigo 26.º, n.º 1, da Lei de Finanças das Regiões Autónomas, Lei 13/98, de 24 de Fevereiro).
De acordo com este nosso entendimento, quando se verifique atraso na aprovação do Orçamento do Estado, as Assembleias Legislativas Regionais podem inicialmente fixar no respectivo orçamento da Região o limite do endividamento, mas deverão depois corrigi-lo de harmonia com o que vier a ser estabelecido no Orçamento do Estado (naturalmente, se este limite vier a ser fixado em montante inferior). Para o efeito, deverão as Assembleias Legislativas Regionais fazer aprovar um orçamento rectificativo, reportado a todo o ano económico. Se o não fizerem (como aconteceu neste caso), a norma do diploma regional que haja fixado um limite superior ao determinado no Orçamento do Estado enferma de ilegalidade, por violação da norma constante da lei que aprova este Orçamento.
Concluímos, pois, que a norma do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, de 9 de Fevereiro, é ilegal, por violação do artigo 93.º da Lei do Orçamento do Estado para 2000 (Lei 3-B/2000, de 4 de Abril). - Maria Helena Brito - Vítor Nunes de Almeida - Artur Maurício - Messias Bento.
Declaração de voto
Votei vencido quanto à decisão tomada nos vertentes autos, impondo-se que, de forma necessariamente sintética, indique as razões da minha discordância quanto à tese que fez vencimento no aresto a que a presente declaração se encontra apendiculada.
1 - Tenho para mim como certo que a tese vencedora, para chegar à conclusão que chegou, teve de partir do princípio de que seria constitucionalmente legítimo ao legislador ordinário da República estabelecer anualmente limites máximos de endividamento às Regiões Autónomas, mesmo que esse endividamento não implique, quer endividamento externo, quer qualquer responsabilização directa ou indirecta do Estado ou, ainda, que este tenha de conceder qualquer caucionamento ou aval aos contraendos empréstimos ou formas de endividamento.
E mais: partiu também do princípio de que a legitimidade constitucional para um tal estabelecimento de limites pode repousar num livre alvedrio do legislador parlamentar da República, e isso sem que, sequer, se figure uma situação na qual o limite em concreto estabelecido para determinado ano possa, uma vez ultrapassado, constituir sérios riscos com projecção na economia e nas finanças do todo nacional, como seria, verbi gratia, o caso de acentuado aumento da quantidade de moeda em circulação, de aumento das taxas de juro do mercado, de elevada repercussão nos compromissos internacionais assumidos pelo Estado no sentido de diminuir os défices orçamentais e o peso da dívida pública confrontadamente com o produto interno bruto.
Ora, na minha óptica, em situações como estas últimas exemplificadas, seria ainda porventura sustentável defender - em nome da unidade do Estado - que o mesmo pudesse vir a fixar um limite máximo de endividamento regional (repete-se, se este não implicar o recurso ao crédito externo ou o caucionamento ou aval a conceder pelo Estado) para além do qual os riscos acima assinalados assumiriam foros de plausibilidade. Nessa senda, identicamente se poderia sustentar uma conclusão de harmonia com a qual uma regra tal como a estatuída no n.º 3 do artigo 26.º da Lei 13/98, de 24 de Fevereiro, não seria passível de censura constitucional, entendida essa regra, obviamente, como estabelecendo o limite máximo acima do qual os objectivos macroeconómicos do Estado seriam seriamente afectados, o que, indubitavelmente, criaria graves riscos no relacionamento financeiro entre ele e as Regiões Autónomas.
Simplesmente, e como disse, o princípio de que o presente acórdão partiu e agora está em causa foi o de que era lícito ao Estado, em cada ano económico, fixar, no Orçamento Geral do Estado, um determinado limite de endividamento das Regiões, sem que tivesse explicado - ou, sequer, sem que isso resulte das demais regras orçamentais - quais as razões que levam, ou melhor, têm de levar, concretamente, a essa fixação, designadamente se os reais objectivos macroeconómicos, financeiros ou os compromissos internacionalmente assumidos pelo Estado a imporiam inevitavelmente, sob pena de se criar aquelas já exemplificadas situações.
É que, sem isso, o limite anual fixado ex vi do n.º 1 do citado artigo 26.º da Lei 13/98 «funcionará» como um limite estipulado ad libitum pelo legislador parlamentar, o que, no meu modo de ver, é algo de constitucionalmente censurável.
Como o próprio acórdão, aliás, não silencia, a lei fundamental reconhece a autonomia financeira das Regiões Autónomas, sendo que os limites máximos do respectivo endividamento estabelecidos anualmente no Orçamento Geral do Estado não podem deixar de representar uma constrição daquela autonomia financeira e, também, da sua autonomia patrimonial, também esta reconhecida na Constituição.
Só que, sendo isto assim, não consigo lobrigar como é possível afirmar, por um lado, que as Regiões Autónomas têm de desfrutar dos princípios da autonomia financeira e patrimonial - desfrute que lhes é concedido constitucionalmente - e, por outro, que ainda é compatível com esse desfrute uma limitação ou constrição de um «activo» orçamental que consiste, justamente, no poder de realizar operações de carácter financeiro destinadas à obtenção de meios financeiros e que implicam um endividamento das Regiões, endividamento esse que não tem directa repercussão externa, bem como não demanda a assunção de encargos ou directa responsabilização de e pelo próprio Estado. E isto, como é o caso, quando não se figuram situações em que o limite concreto - constante do Orçamento do Estado - do endividamento não tem por alvo obstar à criação de situações em que seria insuportável a consecução dos objectivos macroeconómicos (já exemplificados) do Estado.
É que, ao fazer-se aquela última afirmação, está-se, em boa verdade, embora proclamando-a primeiramente, a negar a autonomia financeira regional e, consequentemente, a negar os poderes que às Regiões Autónomas estão concedidos nas alíneas h) e p) do n.º 1 do artigo 227.º da Constituição.
Neste contexto, pronunciei-me pela inconstitucionalidade da norma ínsita no n.º 1 do artigo 26.º da Lei 13/98 e, sequentemente, da norma constante do artigo 93.º da Lei 3-B/2000, de 4 de Abril.
2 - Ao tratar da questão acarretada pelo pedido - formulado pelo Ministro da República para a Região Autónoma da Madeira - de declaração da ilegalidade da norma vertida no artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M, de 9 de Fevereiro, o acórdão de que esta declaração faz parte integrante teve, obviamente, de aceitar como válida a norma do artigo 80.º da Lei 87-B/98, de 31 de Dezembro, norma essa que foi editada na sequência da imposição estatuída no n.º 1 do artigo 26.º da Lei 13/98.
Ora, tendo acima concluído pela ilegitimidade constitucional deste último normativo, segue-se que também concluirei por idêntico vício das normas que à luz daquele foram emitidas. Consequentemente, na minha perspectiva, um e outras não poderão servir de parâmetro para se aferir da legalidade de diplomas legislativos regionais que estabeleçam regras que vão contraditar os comandos que naqueles se prescrevem.
Por este motivo, votei no sentido de a norma do artigo 6.º do Decreto Legislativo Regional 4-A/2000/M não padecer de ilegalidade, e isto a aceitar que a via trilhada pelo acórdão para o descortinado vício - violação das disposições conjugadas dos artigos 80.º da Lei 87-B/98 e 15.º, n.º 1, da Lei 8/91, de 20 de Fevereiro - é algo de curial, questão acerca da qual se me suscitam as mais acentuadas dúvidas. - Bravo Serra.