I
O pedido e os seus fundamentos
1 - Um grupo de deputados à Assembleia da República requereu em 11 de Novembro de 1999 ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 281.º da Constituição da República Portuguesa, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das «normas constantes do n.º 2 do artigo 10.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho, bem como da Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, constante do Decreto-Lei 318-E/76, de 30 de Abril, por as mesmas violarem o princípio da representação proporcional, expressamente consagrado no n.º 5 do artigo 115.º e do n.º 2 do artigo 231.º da Constituição.» Em requerimento rectificativo, subscrito apenas por um dos deputados requerentes (fl. 29), mas ulteriormente ratificado por quase todos os subscritores do requerimento inicial (fl. 238), veio, todavia, precisar-se que o pedido devia entender-se dirigido:À actual norma do artigo 15.º, n.º 2, do Estatuto Político-Admininistrativo da Região Autónoma da Madeira, segundo a numeração da Lei 130/99, de 21 de Agosto (correspondente, sem alteração de conteúdo, ao artigo 10.º, n.º 2, da redacção originária do Estatuto, aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho);
À norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, constante do Decreto-Lei 318-E/76, de 30 de Abril.
2 - Essas normas dispõem como segue:
Artigo 15.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira:
«2 - Cada um dos círculos referidos no número anterior elege um deputado por cada 3500 eleitores recenseados, ou fracção superior a 1750.» Artigo 2.º, n.º 2, da Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional da Madeira:
«2 - Cada um dos círculos referidos no número anterior elegerá um Deputado por cada 3500 eleitores recenseados ou fracção superior a 1750.» 3 - Os requerentes fundamentam o seu pedido na violação, pelas normas transcritas, do «princípio da representação proporcional, expressamente consagrado no n.º 5 do artigo 113.º [cita-se o artigo 115.º, obviamente por lapso] e no n.º 2 do artigo 231.º da Constituição».
Tal violação - argumentam - decorreria do seguinte:
Conforme, designadamente, tem sido afirmado em jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdãos n.os 1/91 e 183/88), na esteira já da Comissão Constitucional, o sistema de representação proporcional exige, por princípio, círculos eleitorais plurinominais;
Ora, de acordo com os últimos dados definitivos do recenseamento eleitoral publicados pelo STAPE, no círculo eleitoral correspondente ao município de Porto Moniz encontram-se recenseados 3106 eleitores e, no correspondente ao município de Porto Santo, 3906;
Assim, determinando as normas sub judice que cada um dos círculos eleitorais para a Assembleia Regional da Madeira (os quais coincidem com os respectivos municípios) elege um deputado por cada 3500 eleitores recenseados ou fracção superior a 1750, verifica-se que os círculos correspondentes à área dos municípios de Porto Moniz e de Porto Santo são uninominais - o que seria contrário ao princípio da representação proporcional.
4 - Notificados o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-Ministro, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o primeiro limitou-se a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os números do Diário da Assembleia da República contendo os trabalhos preparatórios da Lei 130/99.
O Primeiro-Ministro apresentou resposta mais desenvolvida, que concluiu assim: O n.º 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei 318-E/76, cuja fiscalização da constitucionalidade é requerida, caducou, nos termos do n.º 2 do artigo 302.º do texto primitivo da Constituição, com a eleição da primeira assembleia regional, tendo sido ulteriormente corporizado, qua tale, em normas dos estatutos provisórios e definitivos da Região Autónoma da Madeira, não existindo, por consequência, qualquer sentido útil na sua fiscalização;
O princípio do pedido preclude, em qualquer caso, a justiça constitucional de declarar a inconstitucionalidade de uma norma cujo sentido depende do conteúdo de outra (o n.º 1 do artigo 2.º do mesmo diploma), cuja inconstitucionalidade não foi requerida.
5 - Discutido em plenário o memorando apresentado pelo Presidente, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre decidir.
II
Questões prévias
A) Da utilidade da apreciação do pedido quanto à norma da Lei Eleitoral
6 - O Primeiro-Ministro suscitou a questão da inutilidade da apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 318-E/76 (Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional da Madeira), por se tratar de uma norma «caducada». Em seu entender, constando tal norma de um diploma aprovado ao abrigo e em execução de disposição transitória do texto originário da Constituição, a sua vigência teria cessado logo que se realizaram as primeiras eleições para a Assembleia Regional da Madeira.
6.1 - Ora, é realmente verdade que o Decreto-Lei 318-E/76 foi emitido ao abrigo de um preceito constitucional com aquela natureza - o artigo 302.º, n.º 2, do texto inicial da Constituição - que dispunha assim: «Até 30 de Abril de 1976, o Governo, mediante proposta das juntas regionais, elaborará por decreto-lei, sancionado pelo Conselho da Revolução, estatutos provisórios para as regiões autónomas, bem como a lei eleitoral para as primeiras assembleias regionais».
A esta específica referência às «primeiras» assembleias regionais não pode, contudo, ligar-se (ao contrário do que se pressupôs na resposta em apreço) uma intenção normativa do legislador constituinte, segundo a qual a vigência de tal lei eleitoral (aliás, de tais leis eleitorais) cessaria automática e necessariamente depois de concluído o correspondente processo de eleição, ainda mesmo que o órgão constitucional competente (a Assembleia da República) não houvesse entretanto aprovado a lei «definitiva» sobre a matéria.
E não pode partir-se de tal pressuposto por uma razão simples e perfeitamente óbvia: é que, nessa hipótese, a própria Constituição estaria a gerar a impossibilidade do seu mesmo cumprimento, num ponto essencial da organização do Estado, a saber, o do funcionamento democrático da autonomia regional. Não pode, portanto, deixar de entender-se que a lei eleitoral, ou, mais precisamente, as leis eleitorais previstas no artigo 302.º, n.º 2, do texto originário da Constituição, sempre haveriam de subsistir até que fosse emitida legislação parlamentar (ou, enquanto possível, autorizada pelo Parlamento) que as substituísse.
Pois bem: se tal «substituição» se verificou quanto à eleição da Assembleia Regional dos Açores (Decreto-Lei 267/80, de 8 de Agosto), ainda não ocorreu até agora quanto à eleição da Assembleia Legislativa Regional da Madeira - e de tal maneira que a Lei Eleitoral a esta aplicável continuou, e continua, a ser a constante do Decreto-Lei 318-E/76. A confirmá-lo está a prática pacífica seguida por todos os operadores envolvidos, inclusivamente por este Tribunal, como pode ver-se, por exemplo, no Acórdão 332/92 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 23.º vol., pp. 627 e segs.). De resto os textos legais continuam a remeter para o Decreto-Lei 318-E/76 (cf. artigos 101.º, n.º 3, 102.º e 103.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional), sendo que também outra não é, obviamente, a indicação fornecida na página da Comissão Nacional de Eleições na Internet - http://www.cne.pt/indice.htm. Eis como manifestamente improcede a questão de caducidade global do Decreto-Lei 318-E/76, levantada na resposta do Primeiro-Ministro - e, consequentemente, também a da inutilidade, por essa razão, do conhecimento do pedido quanto à norma do seu artigo 2.º, n.º 2.
6.2 - Poderia, no entanto, questionar-se - e o ponto não deixa igualmente de encontrar eco na resposta do Primeiro-Ministro - se a circunstância de o conteúdo dessa precisa norma ter passado a constar igualmente do Estatuto Político-Administrativo (definitivo) da Região Autónoma da Madeira (n.º 2 do artigo 10.º, na versão original, da Lei 13/91, e n.º 2 do artigo 15.º na versão, agora, da Lei 130/99) não terá implicado, de todo o modo, a derrogação dela - com o que, afinal, mas por este outro e mais limitado fundamento, sempre seria inútil conhecer da sua constitucionalidade.
Todavia, ainda este outro enfoque da questão é de rejeitar. Para concluir assim bastará salientar que não se vê que a pura e simples «repetição» de certa norma de um diploma num outro, com objecto e âmbito de aplicação mais amplo e diverso, tenha de implicar a «revogação» do preceito que originariamente a continha: dir-se-á antes que o que acontece para o que aqui releva é terem passado a ser dois os preceitos que são fonte da norma, de tal modo que, se o segundo vier entretanto a ser eliminado, sempre aquele primeiro subsistirá, sem que se torne necessária a sua expressa repristinação.
6.3 - Em suma: nenhuma razão válida ocorre para julgar inútil o conhecimento do pedido no que diz respeito à norma do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei 318-E/76.
B) Da preclusão da possibilidade de acolher o pedido em consequência
de ele não abranger o n.º 1 dos preceitos questionados
7 - Na resposta do Primeiro-Ministro também se levanta o problema da preclusão do pedido em consequência de a norma do n.º 2 do artigo 2.º da Lei Eleitoral em apreço estar incindivelmente ligada à do n.º 1 do mesmo preceito legal, o qual estabelece: Haverá onze círculos eleitorais, correspondentes a cada um dos concelhos compreendidos pela Região, e designados pelo respectivo nome. Ora - diz-se -, como o pedido não abrange esta outra norma, e o Tribunal não pode alargá-lo a ela (artigo 51.º, n.º 5, da LTC), tão-pouco pode o Tribunal conhecer da constitucionalidade da norma do n.º 2.
7.1 - Não cabendo ao Primeiro-Ministro pronunciar-se sobre o pedido senão no respeitante ao Decreto-Lei 318-E/76, a questão enunciada vem considerada na respectiva resposta apenas com referência ao n.º 2 do artigo 2.º desse diploma. Mas, na verdade, ela poderá suscitar-se exactamente nos mesmos termos quanto à outra norma impugnada - o n.º 2 do artigo 15.º do Estatuto -, já que o n.º 1 deste artigo tem, embora com outra fórmula, um conteúdo preceptivo inteiramente coincidente com o do n.º 1 do artigo 2.º da Lei Eleitoral, ao determinar: Cada município constitui um círculo eleitoral, designado pelo respectivo nome.
Assim, analisar-se-á o problema com referência a ambas as normas abrangidas pelo pedido.
7.2 - Não pode negar-se certa pertinência à questão colocada na resposta do Primeiro-Ministro. A existência de dois círculos uninominais na eleição para a Assembleia Legislativa Regional da Madeira não decorre apenas do número de eleitores recenseados a que as normas questionadas fazem corresponder cada mandato: decorre desse facto necessariamente conjugado com o da dimensão dos círculos eleitorais em causa e, nomeadamente, da coincidência de tais círculos com a área de cada município.
Não obstante, não tendo a eliminação dos efeitos a que conduz a existência de círculos uninominais de passar obrigatoriamente pela modificação da área dos círculos, não se afigura inadmissível pôr o problema da constitucionalidade em causa sem questionar aquela área.
E a verdade é que já antes - tanto no Acórdão 183/88 (Acórdãos..., cit. 12.º vol., a pp. 7 e segs.) como no Acórdão 1/91 - o Tribunal admitiu apreciar tal problema, colocado precisamente nestes termos. Não se vê, então, por que não haja de fazê-lo de novo agora. O que não quer dizer que nessa apreciação não possa, ou mesmo não deva, entrar em linha de conta com esse outro elemento, que é o da área dos círculos.
III
Apreciação da questão de constitucionalidade
8 - A referência - no ofício que remete o pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas acima transcritas e no requerimento que corporiza o pedido propriamente dito -, aos círculos eleitorais de Porto Moniz e Porto Santo não significa que o pedido deva (ou até sequer possa) ser lido como dirigindo-se às normas questionadas do Estatuto Político-Administrativo da Madeira e da Lei Eleitoral da correspondente Assembleia na modulação concreta que adquirem na área dos círculos de Porto Moniz e de Porto Santo (ou seja, enquanto, e só, aplicadas nesses círculos).
Antes há-de naturalmente entender-se que se pretende ver apreciada a constitucionalidade das normas do artigo 15.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira e do artigo 2.º, n.º 2, da Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, qua tale, com o fundamento de que, e na medida em que, a sua aplicação conduz à existência de dois círculos uninominais na eleição para aquela Assembleia (os correspondentes aos municípios de Porto Moniz e de Porto Santo.) 9 - A redacção das normas impugnadas vem não apenas da versão originária da Lei Eleitoral (que se manteve inalterada) como do próprio Estatuto Provisório da Madeira (Decreto-Lei 318-D/76, de 30 de Abril), o qual, no n.º 2 do seu artigo 7.º, dispunha exactamente como veio a fazê-lo o Estatuto «definitivo», no n.º 2 do artigo 10.º, primeiro, e, agora, no n.º 2 do artigo 15.º A norma constante do Estatuto foi, no entanto, objecto de duas tentativas de alteração.
A primeira teve por fonte a proposta de lei 57/V, da Assembleia Regional da Madeira, segundo a qual a mesma norma (então, o n.º 2 do artigo 7.º) passaria a dispor: Cada um dos círculos eleitorais referidos no número anterior elegerá um deputado por quatro mil eleitores recenseados ou fracção superior a dois mil. Esta proposta foi aprovada pela Assembleia da República, convertendo-se no decreto 99/V desta última. Só que, submetido tal diploma a fiscalização preventiva de constitucionalidade, este Tribunal veio a pronunciar-se pela inconstitucionalidade da alteração que ele pretendia introduzir - no já mencionado Acórdão 183/88 -, pelo que, consequentemente, foi o mesmo vetado pelo Presidente da República e não chegou essa alteração a concretizar-se.
A segunda tentativa de alteração ocorreu aquando do processo de elaboração e aprovação da versão inicial do Estatuto «definitivo», processo esse iniciado com a proposta de lei 135/V. No seguimento desta proposta, a Assembleia da República aprovou, para o n.º 2 do artigo 10.º desse Estatuto, uma norma de conteúdo exactamente igual ao da acabada de referir. Mas acrescentava-se-lhe, no ponto que interessa, uma outra (que seria o n.º 3 do mesmo artigo 10.º), do seguinte teor: Cada círculo elege sempre, pelo menos, dois deputados. Também estas normas (constantes do decreto 293/V da Assembleia da República) foram submetidas (juntamente com uma terceira) a fiscalização preventiva de constitucionalidade, mas este Tribunal, então, já não se pronunciou pela inconstitucionalidade do regime que o conjunto das duas normas estabelecia - no citado Acórdão 1/91. Só que, alterado entretanto o decreto da Assembleia (para eliminação da outra norma submetida ao Tribunal na mesma ocasião e, essa sim, julgada inconstitucional), o Presidente da República veio a vetá-lo politicamente, em razão, justamente, da solução que nele se consagrava (e ficou descrita) para a distribuição, pelos respectivos círculos eleitorais, dos deputados regionais. Tendo o diploma voltado, de novo, à Assembleia da República, esta alterou-o em conformidade com o veto presidencial (sessão de 24 de Abril de 1991), ou seja, mantendo a solução do Estatuto Provisório e da Lei Eleitoral. Daí a redacção com que o n.º 2 do artigo 10.º (agora, artigo 15.º) do Estatuto veio a ficar, na versão (a inicial) da Lei 13/91 (sobre estas vicissitudes do processo de aprovação do Estatuto «definitivo», cf., por exemplo, o «Relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais», sobre a proposta de lei 234/VII, relativa à revisão do mesmo Estatuto em 1999, no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, de 20 de Maio de 1999, a pp. 1821 e segs., junto aos autos).
10 - Os elementos de facto relativos ao número de eleitores recenseados, indicados pelos requerentes (3106 inscritos no concelho de Porto Moniz e 3906 no concelho de Porto Santo), são os constantes de Actualização do Recenseamento Eleitoral - 1997 - Resultados Definitivos, edição do STAPE, p.
236.
Entretanto, os dados relativos ao recenseamento disponibilizados pelo STAPE através da Internet (http://www.stape.pt/re15-999.txt), tendo como referência 15 de Setembro de 1999, são os seguintes:
Concelho de Porto Moniz:
Achadas da Cruz ... 222 Porto Moniz ... 1 771 Ribeira da Janela ... 341 Seixal ... 1 730 Total ... 3 064 Concelho de Porto Santo ... 3 902 A situação, portanto, não se alterou de modo relevante, no que interessa à questão de inconstitucionalidade suscitada.
11 - Como decorre do que ficou descrito anteriormente, o Tribunal Constitucional já se pronunciou em duas ocasiões - nos citados Acórdãos n.os 183/88 e 1/91 - sobre a problemática em apreço no presente processo, ou seja, sobre a compatibilidade da existência de círculos uninominais com o princípio da representação proporcional (sendo que, no segundo desses arestos, foi igualmente abordada a questão conexa da «igualdade do voto»).
No Acórdão 183/88, o Tribunal entendeu ser inconstitucional a alteração que então se pretendia fazer ao preceito do Estatuto Provisório, porque a mesma implicava o aumento, de dois para três, do número de círculos uninominais na eleição da Assembleia Regional da Madeira - «sendo a existência desses círculos contrária ao princípio da representação proporcional».
Também no Acórdão 1/91 se afirmou que «O sistema de representação proporcional exige, por princípio, círculos eleitorais plurinominais. Onde o sufrágio for uninominal, o sistema de representação será necessariamente maioritário».
12 - O artigo 113.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe «Princípios gerais de direito eleitoral», preceitua, no n.º 1, que «O sufrágio directo, secreto e periódico constitui a regra geral de designação dos titulares dos órgãos electivos da soberania, das regiões autónomas e do poder local» e, no n.º 5, que «A conversão dos votos em mandatos far-se-á de harmonia com o princípio da representação proporcional».
O princípio da representação proporcional é reafirmado em outras normas constitucionais: no n.º 1 do artigo 149.º, quanto à eleição dos deputados à Assembleia da República, no n.º 2 do artigo 231.º, a propósito da eleição das Assembleias Legislativas Regionais, e no n.º 2 do artigo 239.º, relativamente à eleição das assembleias das autarquias locais. Determina, com efeito, o n.º 2 do artigo 231.º que «a assembleia legislativa regional é eleita por sufrágio universal, directo e secreto, de harmonia com o princípio da representação proporcional».
Ao princípio da representação proporcional foi atribuída tal importância no funcionamento do sistema eleitoral português e na própria construção do regime democrático que o legislador constitucional o erigiu em limite material de revisão da Constituição. Na verdade, nos termos do artigo 288.º, alínea h), «As leis de revisão constitucional terão de respeitar o sufrágio universal, directo, secreto e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania, das regiões autónomas e do poder local, bem como o sistema de representação proporcional». Este aspecto foi especialmente sublinhado nos mencionados Acórdãos n.os 183/88 e 1/91 do Tribunal Constitucional, assim como, já antes, nos Pareceres n.os 29/78 e 11/82 da Comissão Constitucional [publicados, respectivamente, em Pareceres da Comissão Constitucional, 7.º vol., a pp. 47 e segs. (p. 60), e 19.º vol., a pp. 57 e segs. (p.
86)].
Na Constituição Portuguesa, os princípios fundamentais relativos ao sistema eleitoral não foram portanto deixados à liberdade de conformação do legislador (G. Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3.ª ed., Coimbra, s/d (mas 1999), p. 300; em geral, para uma aproximação entre o sistema eleitoral e a constituição em diversos países, cf. Massimo Luciani, «Cours constitutionnelles et systèmes électoraux», Annuaire International de Justice Constitutionelle, XII, 1996, a pp. 416 e segs.].
13 - A propósito da relação entre a «representação política» e a «representação da opinião pública», escreveu Maurice Duverger [«A influência dos sistemas eleitorais na vida política» (1950), agora em Sistemas Eleitorais:
o Debate Científico, coordenação e selecção de textos de Manuel Braga da Cruz, Imprensa do Instituto de Ciências Sociais, 1998, a pp. 115 e segs. (p.
134)]:
«A representação política contém dois actos sucessivos, que importa distinguir:
a) A expressão da opinião pública na distribuição dos votos pelos candidatos às eleições (a que chamamos 'representação da opinião' no sentido estrito);
b) A tradução dessa distribuição dos votos pela repartição dos mandatos (a que chamamos 'representação dos partidos').» Por definição, o sistema proporcional é aquele que, na eleição das assembleias representativas, apresenta maior exactidão, do ponto de vista da representação dos partidos: ele tem como objectivo garantir que todas as correntes políticas significativas obtêm representação, fazendo eleger candidatos seus, e que as várias correntes políticas obtêm representação em proporção da sua quota de votos, sem discrepâncias significativas [assim, na doutrina portuguesa, por todos, G. Canotilho, V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, a p. 523; na doutrina estrangeira, cf. os trabalhos já clássicos de: Douglas W. Rae, The Political Consequences of Electoral Laws, 2.ª ed., New Haven and London, 1975, a pp.
96 e segs.; Jean-Marie Cotteret, Claude Émeri, Les systèmes électoraux, 4.ª ed., Paris, 1983, a pp. 56 e segs.; Richard Rose, «En torno a las opciones en los sistemas electorales: Alternativas políticas y técnicas», Revista de Estudios Políticos, 34, Jul.-Ag. 1983, a pp. 69 e segs. (p. 92); Dieter Nohlen, «Los sistemas electorales entre la ciencia y la ficción. Requisitos históricos y teóricos para una discusión racional», Revista de Estudios Políticos, 42, Nov.-Dic., 1984, a pp. 7 e segs. (p. 25); id., «Panorama des proportionnelles», Pouvoirs, 32, 1985, a pp. 31 e segs. (p. 32)].
Em abstracto, a proporcionalidade perfeita só seria possível se toda a zona abrangida pelas eleições - cada país, cada região, em suma, cada comunidade política - formasse um círculo eleitoral único. A percentagem de votos necessária para assegurar um mandato seria então determinada pelo número de mandatos disponíveis e seria igual em todo o território da comunidade política considerada. Razões de natureza política e histórica levam geralmente a adoptar técnicas menos puras e a repartir o país (a região) numa série de círculos eleitorais mais pequenos, tendencialmente correspondentes a certas divisões administrativas. No caso das eleições regionais a que se refere o presente processo, os círculos eleitorais coincidem com os municípios, sendo certo, porém, que nada na Constituição impõe tal coincidência.
Ora, a proporcionalidade na atribuição dos mandatos varia não apenas em função da modalidade eleitoral adoptada, mas também consoante o número de mandatos atribuídos aos círculos eleitorais, isto é, consoante a dimensão dos círculos eleitorais. Nos casos em que é atribuído um elevado número de mandatos a cada círculo eleitoral, o resultado tem mais probabilidades de se aproximar da proporcionalidade (pelo menos, até uma certa dimensão do círculo eleitoral, já que os estudos neste domínio revelam que a proporcionalidade dos resultados aumenta a um ritmo decrescente); ao contrário, nos casos em que a cada círculo eleitoral é atribuído um número reduzido de mandatos, é mais provável que os resultados apresentem um desvio mais acentuado em relação à proporcionalidade. No limite, situa-se o círculo eleitoral de um só mandato, ou círculo uninominal, em que é inevitavelmente beneficiado o partido mais votado: ao representante desse partido é necessariamente atribuído o único mandato existente, não sendo possível respeitar a regra da proporcionalidade.
Em conclusão: com este tipo de círculos eleitorais (círculos eleitorais uninominais), mesmo um sistema de representação proporcional - se não for conjugado com certos outros mecanismos, como, por exemplo, com uma regra de distribuição à escala nacional (ou regional) dos votos restantes nos diversos círculos eleitorais ou com outro esquema de complementaridade como o admitido actualmente no artigo 149.º, n.º 1, da Constituição -, não garante a regra da proporcionalidade na conversão dos votos em mandatos, contrariando assim a exigência feita pela Constituição da República Portuguesa.
E ainda que se pretenda valorizar a dimensão final do princípio da proporcionalidade - considerando que tal princípio em nenhuma circunstância se realiza em termos absolutos e que, por isso, ele deve ser assegurado no conjunto do sistema eleitoral, considerando o resultado global obtido -, a verdade é que a exigência constitucional do recurso ao princípio da proporcionalidade na conversão dos votos em mandatos impõe que o resultado obtido deva ser corrigido em cada círculo eleitoral, de modo que o princípio da representação proporcional tenha reflexo em cada círculo.
De todo o modo, existindo na Região Autónoma da Madeira um total de onze círculos eleitorais, é significativa a percentagem de círculos uninominais a que conduz o critério utilizado nas normas em apreço para delimitar a dimensão dos círculos eleitorais (dois em onze, ou seja, 18% dos círculos eleitorais são uninominais).
IV
Decisão
14 - Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral - por violação do princípio da representação proporcional consagrado nos artigos 113.º, n.º 5, e 231.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa -, da norma do artigo 15.º, n.º 2, do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei 13/91, de 5 de Junho, na redacção e numeração da Lei 130/99, de 21 de Agosto, e da norma do artigo 2.º, n.º 2, da Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa Regional da Madeira, constante do Decreto-Lei 318-E/76, de 30 de Abril.Lisboa, 29 de Março de 2000. - Maria Helena Brito - Artur Maurício - Bravo Serra - Guilherme da Fonseca - Alberto Tavares da Costa - Luís Nunes de Almeida - Maria Fernanda Palma - Maria dos Prazeres Beleza - José de Sousa e Brito - Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto) - Messias Bento (vencido pelas razões que expus no voto de vencido que apus ao acórdão 183/88, citado neste acórdão) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, pelas razões constantes da declaração de voto que juntei ao Acórdão 183/88, a que se faz referência no presente aresto, e para as quais remeto - limitando-me agora, e no contexto dessas razões, aditar a observação de que a «perfeição» de um sistema proporcional só em termos «normativos» poderá apreciar-se, já que a proporcionalidade eleitoral nunca será em absoluto realizável, em termos «matemáticos»).
Declaração de voto
1 - Não acompanhei a posição que fez maioria por razões que já estiveram subjacentes à aceitação que dei à decisão tomada no Acórdão 1/91, que subscrevi.Sinteticamente, entendo que o princípio da proporcionalidade em direito eleitoral é subsidiário do princípio da igualdade quanto ao resultado ou na repartição de mandatos, conforme se entendeu naquele acórdão, sendo que a representação proporcional absoluta, que não é imposta pela Constituição, se não corresponde a uma impossibilidade matemática ou de facto, só aproximadamente se consegue quando a lei eleitoral opta por um único círculo eleitoral. É no confronto entre a repartição de mandatos e os votos obtidos por cada formação política concorrente, no âmbito do colégio eleitoral, que se devem apurar os desvios à proporcionalidade - não círculo por círculo, cada um dos quais não é mais do que um desdobramento geográfico desse mesmo colégio. Aliás à Constituição não repugna esta concepção, quando proclama que os deputados representam todo o país e não os círculos por que são eleitos (artigos 152.º, n.º 2, que também se há-de entender como vigorando para as Regiões Autónomas).
Assim, tendo de se compadecer com as distorções impostas pela dimensão dos círculos, a representação proporcional pode conviver com círculos uninominais desde que o nível de distorção não desfigure a proporcionalidade global. Não é o caso como se pode inferir dos números referidos no presente Acórdão e mais profusamente no anterior.
2 - Acresce que a norma apreciada, inserida em diploma onde se contém a regra da correspondência entre municípios e círculos eleitorais, que não vem questionada, deve ser compreendida dentro do sistema. Nessa perspectiva cobra reforço um juízo favorável à sua legitimidade constitucional. Os critérios de determinação dos círculos assumem importância crucial, porque por via da definição dos círculos se podem praticar operações de verdadeira engenharia eleitoral, com vista à fabricação de maiorias parlamentares, aspectos estes que também foram referidos no Acórdão 1/91.
No caso, a opção pela correspondência entre concelhos e círculos significa que se pretendeu ancorar a distribuição geográfica dos mandatos a dados objectivos ou, pelo menos, a situações que não foram conformadas com vista à obtenção de determinados efeitos em sede eleitoral. É o caso flagrante do círculo correspondente a Porto Santo, cuja descontinuidade geográfica com o restante território constitui um dado objectivo evidente e inultrapassável, a tal ponto que será legítimo duvidar da racionalidade intrínseca da própria divisão do território regional em círculos eleitorais se o de Porto Santo não for reconhecido como válido, ainda que elegendo um único deputado.
Vítor Nunes de Almeida.