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Acórdão 346/2015, de 30 de Julho

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Sumário

Não julga inconstitucionais as normas constantes dos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, na interpretação de que é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor

Texto do documento

Acórdão 346/2015

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional

Relatório

O Magistrado do Ministério Público, invocando o disposto nos artigos 205.º, n.º 1, da Organização Tutelar de Menores, 1865.º, n.º 5, e 1866.º, a contrario sensu, do Código Civil, propôs no Tribunal Judicial da Comarca de Cascais ação comum declarativa contra Luís Miguel Ferreira Ilharco, peticionando que fosse reconhecido que o menor Salvador Miguel de Almeida é filho do Réu.

Após contestação do Réu realizou-se audiência de Julgamento, tendo sido proferida sentença em 4 de novembro de 2013 que julgou a ação procedente.

O Réu recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 12 de novembro de 2014, julgou o recurso improcedente.

O Réu recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, requerendo a fiscalização da constitucionalidade dos artigos 202.º e seguintes da OTM, 1864.º e seguintes do Código Civil e 1869.º e seguintes do Código Civil, na interpretação de que é possível proceder à averiguação oficiosa e/ou reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor.

Apresentou alegações, com as seguintes conclusões:

(a) O ora recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade dos artigos 202.º e seguintes da OTM, 1864.º e seguintes do Código Civil, e 1869.º e seguintes do Código Civil, na interpretação de que é possível proceder a averiguação oficiosa e/ou reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor, por violação do disposto no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

(b) Note-se, a este respeito, que o artigo 67.º, n.º 2, alínea d), da CRP, dispõe: «Incumbe, designadamente, ao Estado, para proteção da família: garantir, no respeito da liberdade individual, o direito ao planeamento familiar, promovendo a informação e o acesso aos métodos e aos meios que o assegurem, e organizar as estruturas jurídicas e técnicas que permitam o exercício de uma maternidade e paternidade conscientes.» (os sublinhados são nossos).

(c) A identidade de interesses, a semelhança das situações, entre o direito da mulher à determinação do momento adequado para exercer a maternidade (ou não, ou mesmo nunca) e o aqui discutido direito do homem a determinar o momento adequado para exercer a paternidade (ou não, ou mesmo nunca), implicará que todo o argumentário aplicado à situação da mulher aquando dos referendos efetuados em Portugal em torno da I.V.G. e aquando da subsequente decisão do legislador de a despenalizar, nos termos referidos no artigo 142.º, n.º 1, al. e), C. P., na redação introduzida pela Lei 16/2007, de 17 de abril, seja aplicável agora, de modo semelhante, ao homem.

(d) Os interesses (ou critério de determinação da igualdade relativa) subjacentes à vontade de não procriar são substancialmente iguais para mulheres e homens, a autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade - sendo estes interesses que também o Senhor Conselheiro Rui Moura Ramos referiu no seu voto de vencido no Acórdão 75/2010, do Tribunal Constitucional.

(e) E nem se invoque, em contrário e como parece fazer o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o "interesse do menor" ou o direito do mesmo à sua identidade/filiação.

(f) Aliás, a lei inglesa (Family Law Act de 1985, secção 55A) prevê o não estabelecimento da paternidade no caso de se tratar de uma criança e se concluir que o estabelecimento não seria no seu melhor interesse.

(g) A declaração de inconstitucionalidade das citadas normas não implica uma violação do direito ao nome, até por nada obrigar, atualmente, a que os apelidos sejam, também, os do pai, pois a lei admite que a criança possa ter apelidos só da mãe, como resulta do art. 1875.º, n.º 1, C. C.

(h) Pelo Acórdão 401/2011 do Tribunal Constitucional foi decidido que o direito a conhecer a paternidade biológica (ou direito ao conhecimento das origens genéticas) e o de estabelecer o respetivo vínculo jurídico, não são valores absolutos, tendo de ser compatibilizado com outros, como o da reserva da vida privada.

(i) Note-se que mesmo no nosso ordenamento jurídico se prevê, em alguns casos, a relativização do vínculo genético: art. 1839.º, n.º 3, C. C., não é permitida a impugnação da paternidade com fundamento em inseminação artificial ao cônjuge que nela consentiu, e, na Lei 32/2006, de 26 de julho, o teor do artigo 10.º, n.º 2, os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer e o do artigo 21.º, o dador de sémen não pode ser havido como pai da criança que vier a nascer, não lhe cabendo quaisquer poderes ou deveres em relação a ela.

(j) Em todo o caso, dúvidas não subsistirão de que, no nosso ordenamento jurídico, se mostra consagrada a autodeterminação parental da mulher, pois está legalmente consagrada a possibilidade de a mulher optar pela interrupção voluntária da gravidez até à décima semana - cf. Lei 16/2007, de 17 de abril, que alterou a redação do artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal, aditando ainda ao mesmo a alínea e).

(k) Sendo que a vontade do homem não é acautelada juridicamente nos casos em que este pretenda que o filho nasça e a mulher não, abortando.

(l) Não só a mulher é livre de não ter um filho que o homem quer, como também é livre de o ter quando o homem não o quer.

(m) No mencionado Acórdão 75/2010 do Tribunal Constitucional foi tido em devida conta que para a mulher "o respeito pela vida intrauterina não se traduz apenas, como para terceiros, num dever de omitir qualquer conduta que a ofenda, [vindo] também a implicar, após o nascimento, na vinculação, por largos anos, a deveres permanentes de manutenção e cuidado para com um outro, os quais oneram toda a sua esfera existencial.

(n) Após o nascimento não será aplicável para o homem o mesmo argumento?

(o) Tendo a interrupção voluntária da gravidez, por mera opção da mulher, sido introduzida no ordenamento jurídico e considerada compatível com o teor dos arts. 24.º (direito à vida), 25.º (direito à integridade pessoal) e 36.º (família, casamento e filiação) da C.R.P. enquanto corolário do direito ao livre desenvolvimento da personalidade e do direito à reserva da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º? 1, C.R.P.), ficou consagrada a tutela do direito à autodeterminação negativa em sede de procriação, para a mulher, discriminando o homem em razão do sexo atentos os artigos 202.º e seguintes da OTM, 1864.º e seguintes do Código Civil, e 1869.º e seguintes do Código Civil, na interpretação de que é possível proceder a averiguação oficiosa e/ou reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor.

(p) Assim, e com o douto suprimento de V. Exas., deverá salvo melhor opinião ser declarada a inconstitucionalidade dos artigos 202.º e seguintes da OTM, 1864.º e seguintes do Código Civil, e 1869.º e seguintes do Código Civil, na interpretação de que é possível proceder a averiguação oficiosa e/ou reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor, por violação do disposto no artigo 13.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa."

O Ministério Público contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.

*

Fundamentação

1 - Delimitação do objeto do recurso

Com o presente recurso questiona-se não só a constitucionalidade das ações de reconhecimento judicial da paternidade, previstas nos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, mas também a dos processos de averiguação oficiosa da paternidade que antecedem necessariamente aquelas ações quando propostas pelo Ministério Público, previstas e reguladas no artigo 1864.º a 1868.º do Código Civil e 202.º a 207.º da Organização Tutelar de Menores.

O processo de averiguação oficiosa é um processo pré-judicial que tem como finalidade habilitar o Ministério Público a intentar ação de reconhecimento de paternidade viável, na prossecução do interesse público da rápida superação da dúvida sobre a filiação dos cidadãos cuja paternidade se encontra omissa no registo, e cuja consagração pelo Código Civil aprovado pelo Decreto-Lei 47344, de 25 de novembro de 1966, visou evitar a possibilidade de propositura de ações temerárias em situações em que o melindre dos factos a apurar pode colocar em causa, em maior ou menor grau, a intimidade ou a dignidade dos intervenientes.

No presente caso, o recurso é interposto de um Acórdão do Tribunal da Relação que confirmou sentença da 1.ª instância que julgou procedente ação de reconhecimento judicial da paternidade intentada pelo Ministério Público, nos termos do artigo 1865.º, n.º 5, do Código Civil, após ter sido proferido despacho de viabilidade em averiguação oficiosa, pelo que uma eventual inconstitucionalidade do processo de averiguação oficiosa é uma questão que já não terá qualquer repercussão sobre a decisão recorrida, por respeitar a fase pré-judicial anterior já ultrapassada.

Assim, tendo o recurso de constitucionalidade uma natureza instrumental face ao processo onde o mesmo é deduzido, deve o seu objeto restringir-se à questão da constitucionalidade das ações de reconhecimento judicial da paternidade, previstas nos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, na interpretação de que é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor.

2 - Do mérito do recurso

O Recorrente questiona a constitucionalidade das normas acima referidas, na medida em que permite que se estabeleça um vínculo jurídico de paternidade contra a vontade do pretenso pai.

No nosso sistema legal vigora um regime diferenciado de estabelecimento da paternidade. Se a mãe é casada, presume-se que o pai é o marido da mãe (artigo 1826.º, n.º 1, do Código Civil). Fora do casamento a paternidade estabelece-se por perfilhação (artigo 1849.º do Código Civil) ou em resultado da procedência de ação de investigação de paternidade (artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil), podendo esta ação ser livremente intentada pelo filho ou pelo Ministério Público na sequência da procedência de uma averiguação oficiosa.

É este último modo de estabelecimento da relação jurídica de paternidade, para o qual é irrelevante a vontade do pretenso pai, que o Recorrente entende violar princípios constitucionais.

Argumenta o Recorrente que deve ser assegurado ao pai biológico o direito a rejeitar a paternidade como decorrência do livre desenvolvimento da sua personalidade e da reserva da sua vida privada e familiar, tal como se permitiu que a mulher pudesse proceder à interrupção voluntária da gravidez até às dez semanas, em nome do seu direito à autodeterminação, sob pena de se verificar uma desigualdade de tratamento, baseada no género. Esta posição segue a tese defendida por Jorge Martins Ribeiro, em "O direito do homem a rejeitar a paternidade de filho nascido contra a sua vontade. A igualdade na decisão de procriar" (ed. de 2013 da Coimbra Editora).

A preocupação com o direito da autodeterminação parental do homem não é nova na longa e atribulada história do estabelecimento jurídico da paternidade (cf. Guilherme de Oliveira, em "Critério jurídico da paternidade", pág. 97 e seg., ed. de 1998, da Almedina).

Na verdade, se com a Revolução Francesa, por um lado, em nome da igualdade, se atribuiu aos filhos naturais reconhecidos alguns dos direitos que cabiam aos filhos legítimos, por outro, a Lei do 12 do Brumário do ano 11 (2 de novembro de 1793) passou a limitar a possibilidade de investigação da paternidade às situações em que se verificasse uma situação de posse de estado, tendo o Código Civil de Napoleão substituído esta exceção pelos casos de rapto (artigo 340).

Encoberta pelos argumentos mais imediatos dos receios da falibilidade da prova da paternidade e da caça às fortunas, a fundamentação desta solução não deixava de ter a sua sede no respeito pela autonomia da vontade do progenitor. Se a bandeira da igualdade tinha promovido uma mitigada equiparação dos filhos naturais aos legítimos, a defesa da liberdade exigia o respeito pela vontade individual.

Como explica Guilherme de Oliveira a proibição do reconhecimento forçado da paternidade residia "no entendimento que se tinha, na época, do princípio fundamental da liberdade, e, no individualismo crescente. O século XVIII favoreceu empenhadamente, o culto da pessoa que o renascimento propusera ao mundo civilizado, e essa confiança na autonomia individual, na ausência de todo o constrangimento produziu, na matéria que nos interessa, a predileção pelo reconhecimento voluntário; um homem não devia ser obrigado a reconhecer um filho quando não se dispusera a perfilhá-lo. A perfilhação significava uma admissão livre do estatuto jurídico de pai; só a vontade soberana do progenitor podia atribuir ao filho natural - cujo nascimento irregular lhe dava uma baixa condição - um estatuto social semelhante aos bem-nascidos" (Em "Curso de direito da família", vol. II, Tomo I, pág. 205-206, ed. 2006, Coimbra Editora).

Este sistema viria a ser "exportado" sucessivamente para outros países latinos como Portugal, onde o Código Civil de 1867 (artigo 130.º) decretou como regra a proibição das ações de investigação da paternidade ilegítima, apenas a permitindo, a título excecional, nos casos em que houvesse um sinal da vontade de assumir a paternidade, o que sucedia quando existisse um escrito do pai em que este expressamente declarasse a sua paternidade ou quando o filho se encontrasse em situação de posse de estado, e ainda nos casos de estupro violento ou rapto à época da conceção, hipóteses em que, devido à censurabilidade das condutas adotadas, não se justificava a manutenção do direito à autodeterminação

O Decreto 2, de 25 de dezembro de 1910 (artigo 34.º), seguindo mais uma vez o modelo francês do projeto Rivet-Béranger, mais tarde convertido na Lei de 16 de novembro de 1912, veio acrescentar a estas exceções as hipóteses de sedução com abuso de autoridade, abuso de confiança ou promessas de casamento e de convivência notória com a mãe no período da conceção, abrindo, assim, timidamente, o leque de possibilidades de determinação da paternidade sem o assentimento do pai.

O Código Civil de 1966, sem alteração do paradigma proibitivo, veio, contudo, alargar o campo prático das causas excecionais de admissibilidade da ação de investigação da paternidade, nelas incluindo o concubinato e a sedução simples.

A livre investigação da paternidade só regressaria com a Revolução de 1974, a aprovação da Constituição de 1976 e a reforma do Código Civil operada pelo Decreto-Lei 496/77, de 25 de novembro, recolhendo consenso a opinião que o direito ao conhecimento da paternidade biológica, assim como o direito ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, cabem no âmbito de proteção quer do direito fundamental à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição), quer do direito fundamental de constituir família (artigo 36.º, n.º 1, da Constituição).

Como se refere no Acórdão 401/11 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), "a identidade pessoal consiste no conjunto de atributos e características que permitem individualizar cada pessoa na sociedade e que fazem com que cada indivíduo seja ele mesmo e não outro, diferente dos demais, isto é, "uma unidade individualizada que se diferencia de todas as outras pessoas por uma determinada vivência pessoal" (Jorge Miranda/Rui Medeiros, em "Constituição Portuguesa Anotada", Tomo I, pág. 609, da 2.ª ed., da da Coimbra Editora).

Este direito fundamental pode ser visto numa perspetiva estática - onde avultam a identificação genética, a identificação física, o nome e a imagem - e numa perspetiva dinâmica - onde interessa cuidar da verdade biográfica e da relação do indivíduo com a sociedade ao longo do tempo.

A ascendência assume especial importância no itinerário biográfico, uma vez que ela revela a identidade daqueles que contribuíram biologicamente para a formação do novo ser. O conhecimento dos progenitores é um dado importante no processo de autodefinição individual, pois essa informação permite ao indivíduo encontrar pontos de referência seguros de natureza genética, somática, afetiva ou fisiológica, revelando-lhe as origens do seu ser. É um dado importantíssimo na sua historicidade pessoal. Como expressivamente salienta Guilherme de Oliveira, «saber quem sou exige saber de onde venho» (em "Caducidade das ações de investigação", ob. cit., pág. 51), podendo, por isso dizer-se que essa informação é um fator conformador da identidade própria, nuclearmente constitutivo da personalidade singular de cada indivíduo.

Mas o estabelecimento jurídico dos vínculos da filiação, com todos os seus efeitos, conferindo ao indivíduo o estatuto inerente à qualidade de filho de determinadas pessoas, assume igualmente um papel relevante na caracterização individualizadora duma pessoa na vida em sociedade. A ascendência funciona aqui como um dos elementos identificadores de cada pessoa como indivíduo singular. Ser filho de é algo que nos distingue e caracteriza perante os outros, pelo que o direito à identidade pessoal também compreende o direito ao estabelecimento jurídico da maternidade e da paternidade.

Por outro lado, o direito fundamental a constituir família consagrado no artigo 36.º, n.º 1, da Constituição, abrange a família natural, resultante do facto biológico da geração, o qual compreende um vetor de sentido ascendente que reclama a predisposição e a disponibilização pelo ordenamento de meios jurídicos que permitam estabelecer o vínculo da filiação, com realce para o exercitável pelo filho, com o inerente conhecimento das origens genéticas.

Na verdade, o direito a constituir família, se não pode garantir a inserção numa autêntica comunidade de afetos - coisa que nenhuma ordem jurídica pode assegurar - implica necessariamente a possibilidade de assunção plena de todos os direitos e deveres decorrentes de uma ligação familiar suscetível de ser juridicamente reconhecida. Pela natureza das coisas, a aquisição do estatuto jurídico inerente à relação de filiação, por parte dos filhos nascidos fora do matrimónio, processa-se de forma diferente da dos filhos de mãe casada, uma vez que só estes podem beneficiar da presunção de paternidade marital. Mas essa aquisição, deve ser garantida através da previsão de meios eficazes. Aliás a perentória proibição de discriminação dos filhos nascidos fora do casamento (artigo 36.º, n.º 4, da CRP) não atua só depois de constituída a relação, projeta-se também na fase anterior, exigindo que os filhos nascidos fora do casamento possam aceder a um estatuto idêntico aos filhos nascidos do matrimónio. A infundada disparidade de tratamento, em violação daquela proibição, tanto pode resultar da atribuição de posições inigualitárias, em detrimento dos filhos provenientes de uma relação não conjugal, como, antes disso, e mais radicalmente do que isso, do estabelecimento de impedimentos desrazoáveis a que alguém que biologicamente é filho possa aceder ao estatuto jurídico correspondente.

É, pois, pacífica a previsão constitucional dos direitos ao conhecimento da paternidade biológica e do estabelecimento do respetivo vínculo jurídico, como direitos fundamentais."

No atual ordenamento jurídico português, a ação de investigação de paternidade prevista nos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil constitui o único meio destinado à efetivação do direito fundamental ao estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade biológica, sendo também o meio mais eficaz de satisfação do direito ao conhecimento da ascendência biologicamente verdadeira quando o suposto pai recusa qualquer colaboração.

Apesar de não estarmos perante um direito absoluto que não possa ser confrontado com valores conflituantes, podendo estes exigir uma tarefa de harmonização dos interesses em oposição, ou mesmo a sua restrição (v.g. artigos 1987.º do C. Civil, 10.º, n.º 2, e 21.º, da Lei 32/2006, de 26 de julho, ou o estabelecimento de prazos de prescrição no artigo 1817.º do Código Civil), o seu conteúdo exige necessariamente uma situação de sujeição do progenitor, ao qual não assiste um espaço de autodeterminação pela negativa. O Direito do filho ao estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade, em correspondência com a verdade biológica, é incompatível com um reconhecimento da autodeterminação parental neste domínio.

O Recorrente defende que as razões que justificaram que o nosso ordenamento jurídico reconheça a autodeterminação parental da mulher, quando se permite que esta opte pela interrupção voluntária da gravidez até à décima semana - cf. Lei 16/2007, de 17 de abril - valem também para a autodeterminação parental do homem, constituindo uma discriminação, em razão do sexo, não permitir que este também tenha liberdade de determinar se quer ou não exercer a paternidade.

Esta linha de argumentação parte de um erro de princípio - a constelação de interesses e valores em jogo na definição da licitude penal do ato de interrupção voluntária da gravidez por parte da mulher é substancialmente diversa daquela que preside aos termos da participação do homem no estabelecimento do vínculo jurídico da paternidade de criança já nascida.

Na verdade, naquela primeira situação está sobretudo em discussão a possibilidade do legislador preferir, como meio de proteção da vida intrauterina numa fase inicial da gravidez em que a mulher e o nascituro ainda se apresentam como uma unidade, "ganhar" a grávida para a solução da preservação da potencialidade de vida, através da promoção de uma decisão refletida, mas deixada, em último termo, à sua responsabilidade, em vez de optar pela crua ameaça com uma punição criminal, de resultado comprovadamente fracassado (cf. Acórdão 75/10, acessível em www.tribunal constitucional.pt). O reconhecimento de autonomia decisória à mulher sobre o prosseguimento da gravidez, exercido em determinadas circunstâncias previstas na lei, não resulta de uma superiorização do direito à autodeterminação, funcionando antes esse reconhecimento como uma via alternativa de proteção ao nascituro recém-concebido. Daí que sejam totalmente imprestáveis os fundamentos que presidiram à solução consagrada na Lei 16/2007, de 17 de abril, para fundamentar um pretenso direito do homem a rejeitar a paternidade de filho após o seu nascimento.

Por igual razão não colhe a alegação de que o facto do reconhecimento jurídico da paternidade poder ser efetuado sem o consentimento do pai, constitui uma descriminação em razão do sexo, proibida pelo artigo 13.º, n.º 2, da Constituição, face à possibilidade conferida à mãe de, por sua decisão, interromper a gravidez nas primeiras dez semanas, uma vez que não estamos perante situações valorativamente iguais, sob nenhum ponto de vista, pelo que não é possível identificar um termo de comparação que permita fazer operar o princípio da igualdade.

Este princípio já foi convocado na verificação da constitucionalidade da própria solução introduzida pela Lei 16/2007, de 17 de abril, com fundamento na omissão da exigência de participação do progenitor masculino no processo de formação da decisão sobre a interrupção da gravidez, existindo aí efetivamente uma identidade valorativa de situações.

Concluiu-se que, nos casos em que nessa altura (dez semanas de gravidez) a paternidade já poderia ser reconhecida, "a solução normativa consistente na inexigibilidade do consentimento do progenitor para a realização da interrupção da gravidez prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal não envolve qualquer desqualificação arbitrária da paternidade enquanto valor social eminente, nem se apresenta carecida de justificação objetiva e racional, em termos de poder ser considerada violadora do princípio da igualdade. A solução está, por assim dizer, na "natureza das coisas", por condicionada pela realidade biológica da gestação humana." Entendeu-se que "a colocação da possibilidade de realização da interrupção voluntária da gravidez, com sujeição ao regime previsto nessa norma, na dependência do assentimento de ambos os progenitores não poderia deixar de equivaler à atribuição ao progenitor masculino de um direito de veto.

Não sendo concebível a previsão da possibilidade de recurso aos tribunais para dirimir uma eventual divergência entre a grávida e o progenitor acerca da realização, nos termos previstos na alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal, de uma interrupção da gravidez desejada pela primeira e indesejada pelo segundo, um princípio de direção conjunta do destino do embrião ou do feto redundaria aqui na atribuição ao progenitor da prerrogativa de, por ato unilateral e discricionário, impedir a aplicação daquela alínea e, com isso, reconvocar a proteção do direito penal, submetendo, com isso, a grávida à ameaça da pena - apesar de esta ter sido considerada, pelo legislador de 2007, instrumento não necessário de tutela da vida intrauterina até às 10 semanas de gravidez." (Acórdão 75/10 acima citado).

Ora, tendo-se entendido que existia uma justificação para um tratamento diferenciado dos progenitores na decisão de prosseguimento da gravidez nas primeiras dez semanas, não faz qualquer sentido que, numa pretensa lógica de compensação, aquele a quem não se assegurou a participação naquela decisão, fique liberto do dever de assumir a paternidade do filho que entretanto nasceu, sob invocação do princípio da igualdade. Tal solução não só não é exigida pelo princípio da igualdade, o qual tem como pressuposto a qualificação das situações em comparação como iguais, como seria ela própria geradora de desigualdade e redundaria num sacrifício injustificado do direito fundamental de uma pessoa já nascida ver estabelecido o vínculo jurídico da paternidade.

Por estas razões não ofende qualquer parâmetro constitucional, designadamente o princípio da igualdade, as normas constantes dos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, interpretadas com o sentido de que é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor, devendo o recurso interposto ser julgado improcedente.

*

Decisão

Nestes termos decide-se:

a) não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, na interpretação de que é possível proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor.

e, em consequência,

b) julgar improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por Luís Miguel Ferreira Ilharco.

*

Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 23 de junho de 2015. - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Pedro Machete (com declaração) - Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro.

Declaração de Voto

Votei a decisão exclusivamente por considerar que a norma sindicada não viola o princípio da igualdade, inexistindo portanto uma discriminação negativa do homem em razão do sexo.

Na verdade, as situações do homem e da mulher, quanto ao estabelecimento da filiação biológica nos casos em que uma pessoa com pai ou mãe desconhecido pode ser seu filho ou filha (tertium comparationis), são iguais; como igual é o tratamento jurídico dispensado a essas mesmas situações: é possível proceder ao reconhecimento judicial de tal filiação - a paternidade ou maternidade biológica - contra a vontade do possível progenitor. Tal resulta em relação ao pretenso pai, dos artigos 1865.º, n.º 5, e 1869.º do Código Civil, e, em relação à pretensa mãe, dos artigos 1808.º, n.º 4, e 1814.º do mesmo diploma.

O estabelecimento do critério de comparação relevante - o estabelecimento da filiação biológica nos casos em que esta é desconhecida - é determinado pela ratio do tratamento jurídico concretamente em causa: o direito fundamental à identidade pessoal (do filho ou filha que desconhece a identidade de um ou de ambos os seus progenitores) e o direito fundamental de constituir família (v. respetivamente, os artigos 26.º, n.º 1, e 36.º, n.º 1, ambos da Constituição), correspondendo aos possíveis progenitores uma posição jurídica passiva. A situação fáctica e valorativa conexa à interrupção voluntária da gravidez - em que se confrontam, pelo menos, o direito à vida e à proteção da vida intrauterina e o direito à autodeterminação da mãe - não é comparável. - Pedro Machete.

208807644

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1028346.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1966-11-25 - Decreto-Lei 47344 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Aprova o Código Civil e regula a sua aplicação.

  • Tem documento Em vigor 1977-11-25 - Decreto-Lei 496/77 - Ministério da Justiça

    Revê o Código Civil aprovado pelo Decreto Lei 47344, de 25 de Novembro, nos domínios, e quanto à parte geral, do direito internacional privado, fixação da maioridade, regime do domicílio legal dos menores e aquisição da personalidade jurídica das associações. Revê ainda, no direito da família, a disciplina do casamento (e do divórcio), da filiação, da adopção e dos alimentos e, no direito sucessório, a posição do cônjuge sobrevivo.

  • Tem documento Em vigor 1998-10-07 - Decreto-Lei 303/98 - Ministério da Justiça

    Dispõe sobre o regime de custas no Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2006-07-26 - Lei 32/2006 - Assembleia da República

    Regula a utilização de técnicas de procriação medicamente assistida (PMA). Cria o Conselho Nacional de Procriação medicamente Assistida (CNPMA), que funciona no âmbito da Assembleia da República, e estabelece as suas atribuições, composição e funcionamento.

  • Tem documento Em vigor 2007-04-17 - Lei 16/2007 - Assembleia da República

    Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez .

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2018-05-07 - Acórdão do Tribunal Constitucional 225/2018 - Tribunal Constitucional

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das seguintes normas da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho: dos n.os 4, 10 e 11 do artigo 8.º, e, consequentemente, das normas dos n.os 2 e 3 do mesmo artigo, na parte em que admitem a celebração de negócios de gestação de substituição a título excecional e mediante autorização prévia; do n.º 8 do artigo 8.º, em conjugação com o n.º 5 do artigo 14.º da mesma Lei, na parte em que não admite a revogação do consentimento da gestante de substituição até (...)

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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