Acórdão 2/99
Processo 32/98. - Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em plenário:
Demandada no Tribunal do Trabalho de Lisboa por Diamantino Joaquim Baptista Granja e outros, em acção com processo ordinário emergente de contrato individual de trabalho, a ré Caminhos de Ferro Portugueses, E. P., requereu, na contestação, apoio judiciário na modalidade de dispensa total do pagamento de preparos e custas, assentando o pedido no facto de a exploração industrial da rede ferroviária nacional que lhe está cometida não proporcionar receitas que suportem as custas, tornando necessária a concessão de subsídios anuais da ordem dos milhões de contos por parte do Estado.
Por isso, diz, goza da presunção de insuficiência económica prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de Dezembro, como foi entendido no acórdão da Relação de Évora, que cita.
O requerido apoio judiciário foi indeferido in limine, essencialmente na consideração de que a presunção de insuficiência económica relativamente a «quem reunir as condições exigidas para a atribuição de quaisquer subsídios em razão da sua carência de rendimentos» aproveita apenas às pessoas singulares que, por qualquer motivo, não tenham rendimentos de modo a prover à sua alimentação; a ré, como outras empresas públicas, não beneficia da presunção invocada.
Do assim decidido agravou a ré, sem êxito, pois o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou inteiramente o despacho recorrido.
Invocando a oposição deste julgado com o decidido pelo Acórdão da Relação de Évora de 7 de Março de 1996, proferido no agravo n.º 966/95, a requerente do apoio interpôs recurso de agravo para este Supremo Tribunal, invocando as disposições dos artigos 732.º-A, 732.º-B e 678.º, n.º 4, todos do Código de Processo Civil.
A agravante rematou a sua alegação com as conclusões seguintes:
a) O legislador fixou um quadro de presunções legais sem distinguir expressamente a que tipos de pessoas se aplica;
b) Não restam dúvidas quanto à insuficiência económica da recorrente e à sua situação altamente deficitária;
c) A recorrente goza da presunção legal de insuficiência económica que é aplicável às pessoas colectivas;
d) Essa presunção legal de que goza a recorrente não foi ilidida, como se reconhece no Acórdão da Relação de Évora de 7 de Março de 1996, junto por certidão;
e) Julgando em contrário, o acórdão em recurso violou os artigos 20.º do Decreto-Lei 387-B/87 e 350.º, n.º 1, do Código Civil, pelo que deve ser revogado, concedendo-se à recorrente o benefício do apoio judiciário.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Admitido o recurso, foi determinado pelo, ao tempo, Exmo. Vice-Presidente deste Supremo Tribunal que se procedesse a julgamento ampliado pela uniformização da jurisprudência, certo que o acórdão recorrido e o da Relação de Évora de 7 de Março de 1996 deram interpretações contraditórias à norma do artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 387-B/87.
Ponderada, mais tarde, a necessidade de intervenção do plenário das secções cíveis por a decisão a proferir não se situar em domínio da exclusiva competência da jurisdição laboral, determinou o Exmo. Presidente deste Supremo que, para constituir uniformização, o julgamento não pode confinar-se à Secção Social, sob pena de eventuais contradições no Supremo Tribunal de Justiça, interessando sem dúvida às secções cíveis e, eventualmente, à criminal a decidir, como questão prévia, em plena reunião.
A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta emitiu douto parecer no sentido de ser negado provimento ao agravo, propondo para a decisão uniformizadora de jurisprudência a redacção seguinte:
«A atribuição pelo Estado de subsídios às empresas públicas não integra, para efeitos de concessão de apoio judiciário, a presunção de insuficiência económica estabelecida na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de Dezembro.»
Colhidos os vistos e decidida a questão prévia no sentido de igualmente intervir a secção criminal, cumpre decidir.
Antes de mais, há que dizer que a oposição entre o Acórdão da Relação de Évora de 7 de Março de 1996, certificado a fls. 64-7, e o acórdão recorrido, de fls. 89-92, se afigura manifesta.
Na verdade, decidindo-se no primeiro que a empresa pública Caminhos de Ferro Portugueses goza da presunção de insuficiência económica contida na alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de Dezembro, mercê dos subsídios recebidos do Estado, já o acórdão recorrido considerou que tal presunção não aproveita às empresas públicas, caso da recorrente.
Portanto, mais do que a concreta situação económico-financeira da recorrente em cada um dos momentos que peticionou o apoio judiciário, foi a divergente interpretação da norma do citado artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 387-B/87 que conduziu às decisões opostas.
Acolhido no artigo 20.º da lei fundamental, o princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais encontra expressão naquele Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de Dezembro, com alterações introduzidas pela Lei 46/96, de 3 de Setembro.
Destinando-se o sistema de acesso ao direito e aos tribunais «a promover que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, de conhecer, fazer valer ou defender os seus direitos» (n.º 1 do artigo 1.º do diploma), a concretização de tais objectivos passa pela actuação de mecanismos sistematizados de informação jurídica e de protecção jurídica (n.º 2 do preceito).
No tocante à protecção jurídica, pois esta é a figura que nos interessa, ela reveste as modalidades de consulta jurídica (artigos 6.º e 11.º a 14.º - os preceitos citados sem indicação são do Decreto-Lei 387-B/87) e de apoio judiciário (artigos 6.º, 15.º e seguintes), compreendendo este a dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas, ou o seu diferimento, assim como do pagamento dos serviços do advogado ou solicitador.
Segundo o n.º 1 do artigo 7.º, tem direito à protecção jurídica as pessoas singulares que demonstrem não dispor de meios económicos bastantes para suportar os honorários dos profissionais forenses, devidos por efeito da prestação dos seus serviços, e para custear, total ou parcialmente, os encargos normais de uma causa judicial.
O n.º 4 do preceito, na redacção dada pela Lei 46/96, reconhece às pessoas colectivas de fins não lucrativos direito a apoio judiciário quando façam a prova a que alude o n.º 1, enquanto o n.º 5, ao considerar as sociedades, os comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio e os estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, dispõe que «têm direito à dispensa, total ou parcial, de preparos e do pagamento de custas ou ao seu diferimento, quando o respectivo montante seja consideravelmente superior às possibilidades económicas daqueles, aferidas designadamente em função do volume de negócios, do valor do capital ou do património e do número de trabalhadores ao seu serviço» - este n.º 5 foi introduzido pela Lei 46/96.
Na redacção original, o n.º 4 do artigo 7.º dispunha que as pessoas colectivas e as sociedades têm direito a apoio judiciário quando façam a prova a que alude o n.º 1.
Resulta do exposto que, relativamente às pessoas colectivas, sociedades e comerciantes em nome individual nas causas relativas ao exercício do comércio, a protecção jurídica que lhes é concedida é mais restrita do que aquela a que têm direito as pessoas singulares, como resulta que o desempenho da actividade lucrativa impõe ao titular uma demonstração mais exigente da necessidade do apoio judiciário que requeira.
E compreende-se a razão de ser da lei - se o exercício de uma actividade comercial ou industrial apresenta, por norma, altos e baixos, sucedendo-se períodos prósperos a outros de ganhos reduzidos ou de falta deles, não é uma ocasional diminuição de receitas que reflecte a saúde financeira da sociedade ou do comerciante.
É certo que a recorrente é uma empresa pública, concessionária da exploração dos serviços de caminho de ferro em Portugal.
Integrando o sector empresarial do Estado, goza de personalidade jurídica e é dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, regendo-se pelas regras do direito privado no que não se mostrar especialmente regulado nos respectivos estatutos e no diploma que define o regime jurídico das empresas públicas (artigos 2.º e 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei 260/76, de 8 de Abril, e estatutos anexos ao Decreto-Lei 109/77, de 25 de Março).
Devendo observar, na gestão financeira e patrimonial, «os princípios da boa gestão empresarial» (artigo 27.º, n.º 1, dos estatutos), por forma a assegurar a viabilidade económica e o equilíbrio financeiro indicados no artigo 21.º do Decreto-Lei 270/76, na redacção do Decreto-Lei 29/84, de 24 de Janeiro, à recorrente é imposta pelo Estado, por razão de política económica e social, a prática de preços que não garantem a cobertura dos custos totais de exploração.
Por isso, o Estado obriga-se a atribuir à empresa as adequadas compensações financeiras [vejam-se os artigos 28.º, n.º 2, alínea h), e 29.º, n.º 2, do estatutos referidos].
Se são razões de política económica e social que o Estado, titular da empresa, considera que deve prosseguir que levam à atribuição de subsídios ou compensações financeiras, se o mesmo Estado entende não dever isentar de custas as empresas públicas, não se desenham razões justificativas para dispensar a recorrente de fazer a prova da carência de meios para custear os encargos da acção, como resulta do que se contém nos n.os 4 e 5 do artigo 7.º do Decreto-Lei 387-B/87.
Se o que ficou exposto não se desenha muito compatível com uma presunção de carência de meios por parte da recorrente, e nem importa considerar o que representa meia dúzia de contos num orçamento de muitos milhões, seguro é que apenas pessoas singulares são abrangidas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 20.º como gozando da presunção de insuficiência económica.
Se é inequívoco que tal sucede relativamente a quem estiver a receber alimentos por necessidade económica e ao requerente de alimentos [alíneas a) e e)], ao titular de baixos rendimentos provenientes do trabalho [alínea c)] e ao filho menor, para efeitos de investigar ou impugnar a sua maternidade ou paternidade [alínea d)], outra não pode ser a conclusão quanto ao caso da alínea b), o de «quem reunir as condições exigidas para atribuição de quaisquer subsídios em razão da sua carência de rendimentos».
Fala a lei dos que podem reclamar subsídios por carência de rendimentos, expressão que no contexto das outras situações que o preceito prevê não se vislumbra que possa contemplar empresas públicas, subsidiadas por razões criadas por quem as subsidia.
Mas se tivermos presente que a Lei de autorização legislativa n.º 41/87, de 23 de Dezembro, que levou à publicação do Decreto-Lei 387-B/87, permitiu a aprovação pelo Governo de um diploma destinado a assegurar a todos os cidadãos o acesso ao direito e aos tribunais (artigo 1.º), respeitando, entre outras linhas de orientação fundamentais, a previsão de esquemas de protecção para as pessoas que demonstrarem não dispor de meios económicos bastantes, «estabelecendo-se nesse sentido as adequadas presunções de insuficiência económica, sem prejuízo do disposto em legislação especial, por forma a proteger especialmente requerentes de alimentos, os cidadãos com baixos rendimentos, os menores e as vítimas de acidentes de viação» [alínea d) do n.º 2 do artigo 2.º], é forçoso concluir, com Salvador da Costa, Apoio Judiciário, 2.ª ed., 1986, p. 151, que a alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º do Decreto-Lei 387-B/87 «reporta-se à situação de indigência ou de acentuada pobreza. Abrange os cidadãos que estejam a cargo, ou percebam ou estejam em condições de perceber subsídios da segurança social».
Este o sentido que, por respeito aos princípios consignados no artigo 9.º do Código Civil, tem de ser conferido à norma questionada.
Por isso, e concluindo, o agravo improcede.
Termos em que se acorda em negar provimento ao recurso.
E uniformizando a jurisprudência, decide-se que:
Não aproveita às empresas públicas, ainda que subsidiadas pelo Estado, a presunção de insuficiência económica estabelecida no artigo 20.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 387-B/87, de 29 de Dezembro.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 3 de Fevereiro de 1999. - António Manuel Pereira - Armando Figueira Torres Paulo - Pedro Elmano de Figueiredo Marçal - Roger Bennett da Cunha Lopes - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira - Armando Acácio Gomes Leandro - Agostinho Manuel Pontes de Sousa Inês - Afonso de Melo - José Miranda Gusmão (vencido conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Quirino Soares) - Fernando da Costa Soares (vencido conforme declaração de voto do Exmo. Conselheiro Quirino Soares) - Fernando Machado Soares - Jorge Alberto Aragão Seia (com a declaração que adoptaria a proposta de redacção para a decisão formulada pela Exma. Magistrada do Ministério Público) - Abílio dos Santos Brandão - Rui Manuel Brandão Lopes Pinto - José Manuel Peixe Pelica (com a declaração de que me parece mais adequada a dimensão expressa pelo Ministério Público) - Emanuel Leonardo Dias - Augusto Alves - Virgílio António da Fonseca Oliveira - José Damião Mariano Pereira - Florindo Pires Salpico - Norberto José Araújo de Brito Câmara - Armando Castro Tomé de Carvalho - João Augusto de Moura Ribeiro Coelho - Carlindo Rocha da Mota e Costa - Joaquim Lúcio Faria Teixeira - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida (com a declaração de que preferiria a redacção proposta pela Exma. Magistrada do Ministério Público) - Hugo Afonso dos Santos Lopes - José Augusto Sacadura Garcia Marques - Fernando João Ferreira Ramos - Luís Flores Ribeiro - Abílio Padrão Gonçalves - Herculano Albino Valente Matos Namora - Vítor Manuel de Almeida Deveza - João Henrique Martins Ramires - Luís António Noronha do Nascimento - António Sousa Lamas - Dionísio Alves Correia (com a declaração de voto no sentido da norma sugerida pelo Ministério Público) - Francisco António Lourenço - António Correia de Abranches Martins - António Luís Sequeira Oliveira Guimarães - Armando Lopes de Lemos Triunfante - Armando Moita dos Santos Lourenço - Abílio Vasconcelos Carvalho - José Alberto de Azevedo Moura Cruz - Joaquim José de Sousa Dinis - Dionísio Manuel Dinis Alves - Manuel Maria Duarte Soares - João Alfredo Diniz Nunes - Abel Simões Freire - Ilídio Gaspar Nascimento Costa (adiro à declaração de voto do conselheiro Quirino Soares) - António Quirino Duarte Soares (com a declaração de que voto a confirmação do acórdão recorrido mas não a norma uniformizadora de jurisprudência, pois adoptaria a proposta pela Exma. Magistrada do Ministério Público, que é a que exprime, com rigor, o concreto conflito jurisprudencial) - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira [vencido. Entendo que o subsídio concedido pelo Estado à CP tem natureza compensatória dos prejuízos de exploração resultantes de uma imposição, de natureza política, de preços abaixo do custo, o que faz presumir, na minha opinião, a insuficiência económica. Por tal razão, votei que o acórdão deveria fixar a jurisprudência no sentido de que: «Aproveita às empresas públicas subsidiadas pelo Estado a presunção da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º da Lei do Apoio Judiciário, quando tal subsídio seja concedido como compensação por prejuízos decorrentes de sua exploração normal, efectuada, por imposição política, a preços inferiores ao do respectivo custo»].