Acórdão 30/99
Processo 1140/98
Acordam no plenário do Tribunal Constitucional:
1 - O presidente da Assembleia de Freguesia de Serreleis (concelho de Viana do Castelo) requereu ao Tribunal Constitucional, por carta enviada ao seu Presidente, datada de 26 de Dezembro de 1998 e com registo de entrada neste Tribunal de 29 do mesmo mês e ano, a apreciação da constitucionalidade e da legalidade, nos termos do artigo 11.º, n.º 1, da Lei 49/90, de 24 de Agosto (diploma a que, salvo indicação em contrário, se referem todos os preceitos citados), de uma consulta directa a nível local sobre a localização de um campo de jogos (polidesportivo).
Juntou fotocópia da proposta da consulta, subscrita por quatro membros da Assembleia de Freguesia, e da acta 6 da sessão deste órgão autárquico, onde aquela proposta foi aprovada.
D. e A., cumpre decidir.
2 - Com interesse para a decisão da causa, dos autos resulta assente o seguinte:
A - Subscrita por quatro membros da Assembleia de Freguesia de Serreleis, foi elaborada uma «proposta», datada de 18 de Novembro de 1998, nos seguintes termos:
«Considerando que:
1.º A Junta de Freguesia de Serreleis pretende construir um polidesportivo (campo para a prática de diversos jogos) por detrás do Salão Paroquial de Serreleis e em terreno próprio da freguesia e contíguo a este salão;
2.º A construção desse polidesportivo é uma aspiração dos jovens da freguesia de há muitos anos a esta parte;
3.º A publicidade feita ao possível início das obras do polidesportivo provocou uma reacção de oposição à execução de tal obra por parte da Comissão da Fábrica da Igreja Paroquial de São Pedro de Serreleis no local escolhido pela Junta de Freguesia;
4.º Em assembleia extraordinária desta Assembleia de Freguesia, convocada para se pronunciar sobre se deveria construir por detrás do Salão Paroquial, foi deliberado, por unanimidade, submeter a questão da localização a consulta directa dos cidadãos eleitores da freguesia, ou seja, a referendo.
Assim, esta Assembleia delibera, nos termos dos artigos 6.º, n.º 1, 8.º, alínea b), e 10.º da Lei 49/90, de 24 de Agosto, o seguinte:
1.º Consultar os eleitores da freguesia de Serreleis, através de referendo, sobre se o local escolhido pela Junta de Freguesia para a instalação do polidesportivo, por detrás do Salão Paroquial, deve ou não ser mantido;
2.º A pergunta a fazer aos eleitores deve ter o seguinte teor:
'Concorda com a construção de um campo de jogos para desportos diversos (polidesportivo) na parte de trás do Salão Paroquial de Serreleis?
Sim.
Não.'»
B - Em 20 de Dezembro seguinte realizou-se uma reunião ordinária da Assembleia de Freguesia de Serreleis, em que estiveram presentes todos os seus membros, à excepção de um, cuja falta foi devidamente justificada, com a seguinte ordem de trabalhos:
«1 - Aprovação do plano de actividades para noventa e nove.
2 - Deliberação sobre a proposta de referendo para consulta dos eleitores de Serreleis sobre a localização do polidesportivo.
3 - Aprovação da pergunta a fazer aos eleitores.»
C - Apresentada a proposta referida em A à votação da assembleia foi ela aprovada por unanimidade.
D - Igualmente por unanimidade, foi aprovada a pergunta a efectuar na consulta aos eleitores nos seguintes termos:
«Concorda com a construção de um campo de jogos para desportos diversos (polidesportivo) na parte de trás do Salão Paroquial de Serreleis?
Sim.
Não.
3 - Não se verificam irregularidades formais no processo, como se passa a demonstrar.
3.1 - O requerimento foi enviado pelo presidente do órgão competente ao Tribunal Constitucional, no prazo de oito dias a contar da deliberação, conforme estabelece o artigo 11.º, n.º 1, e veio acompanhado do texto da deliberação e da cópia da acta da sessão respectiva, como exige o disposto no n.º 2 do mesmo artigo 11.º
3.2 - A proposta de consulta directa foi, como se viu, apresentada por quatro membros da Assembleia de Freguesia de Serreleis, pelo que se mostra cumprido o disposto no artigo 8.º, alínea b).
Na verdade, de acordo com os dados fornecidos pelo STAPE, in Actualização do Recenseamento Eleitoral - 1997, a freguesia de Serreleis tinha inscritos, em Maio de 1997, 943 eleitores; nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março, a Assembleia de Freguesia é composta por sete membros quando o número de eleitores é igual ou inferior a 1000; composta, assim, a Assembleia de Freguesia de Serreleis por sete membros, os quatro proponentes perfazem (e ultrapassam mesmo), o terço exigido pelo citado artigo 8.º, alínea b).
3.3 - Cumprido se mostra também o disposto no artigo 9.º, n.º 1 - a proposta apresentada contém a pergunta (única) a submeter aos eleitores.
3.4 - Datada a proposta de consulta local de 18 de Novembro de 1998 e tomada a deliberação em 20 de Dezembro de 1998, não terá sido cumprido o que prescreve o artigo 6.º, n.º 2 - a deliberação deveria ocorrer no prazo de 15 dias a contar da data da recepção da proposta para realização da consulta.
De todo o modo, não parece que o desrespeito de tal prazo determine a caducidade da proposta; a consagração de um prazo entre a recepção da proposta e a deliberação representará, antes, uma medida favorável ao seguimento da proposta visando obstar a que o órgão competente protele a sua votação.
Nesta medida, tomada efectivamente a deliberação com a aprovação da proposta, degrada-se em não essencial a formalidade, irrelevando o apontado incumprimento.
3.5 - Por último, a deliberação da Assembleia de Freguesia foi tomada à pluralidade de votos, como o impõe o artigo 10.º
4 - Sobre o conteúdo da consulta e a formulação da pergunta aprovada não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade e ou ilegalidade.
4.1 - A pergunta a submeter aos eleitores da área da freguesia de Serreleis - se concordam com a construção de um campo de jogos para desportos diversos (polidesportivo) na parte de trás do Salão Paroquial de Serreleis - permite uma resposta inequívoca, pela simples afirmativa ou negativa.
Por outro lado, ela não sugere, explícita ou implicitamente, uma qualquer resposta.
Cumpridos se mostram assim os comandos ínsitos nos n.os 1 e 2 do artigo 7.º
4.2 - Nos termos do artigo 240.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (revisão de 1997) é lícito às autarquias locais «submeter a referendo dos respectivos cidadãos eleitores matérias incluídas nas competências dos seus órgãos, nos casos, nos termos e com a eficácia que a lei estabelecer».
O preceito corresponde ao do anterior artigo 241.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, deixando, porém, de se qualificar como exclusiva a competência onde, necessariamente, se deveriam inserir as matérias susceptíveis de serem submetidas a referendo.
Teve já o Tribunal Constitucional oportunidade de se pronunciar sobre o sentido desta alteração, concluindo então que «haverá hoje que entender que são matérias de referendo local [...] as da competência meramente consultiva dos órgãos das autarquias locais»; deixou-se, porém, em aberto a questão de saber se, em face da segunda parte do n.º 1 do artigo 240.º da Constituição da República Portuguesa, «se deve ter por implicitamente revogado nessa parte o n.º 1 do artigo 2.º da Lei 49/90 ou se, desaparecido o obstáculo constitucional, a proibição ainda se mantém» (Acórdão 390/98, in Diário da República, 2.ª série, n.º 259, de 9 de Novembro de 1998, a p. 15834).
Também aqui, mas por outras razões, não se afigura decisivo tomar posição sobre uma tal questão, já que a matéria em causa se integra nas atribuições da freguesia e invadida não é a esfera de competência de órgãos de qualquer outro ente público.
Para este efeito, importa, antes do mais, deixar claro que a pergunta a colocar não visa apurar se os eleitores concordam, ou não, com a construção de um campo de jogos (e o investimento público que tal demandaria), mas tão-só com a afectação de um determinado terreno - que, dando por assente o que consta da proposta, se integra no património da freguesia («terreno próprio da freguesia») - a campo de jogos.
Nesta medida, não releva para determinar se a consulta local incide sobre matéria da competência dos órgãos da freguesia a consideração de poderes que se reportem, nomeadamente, à realização do investimento público respeitante à construção do referido campo (cf., v. g., artigos 1.º, n.º 2, 8.º, alínea f) do n.º 4, e 11.º do Decreto-Lei 77/84, de 8 de Março), ao regime de instalação e funcionamento de instalações desportivas de uso público (Decreto-Lei 317/97, de 25 de Novembro) ou de outros relacionados com o ordenamento urbanístico da área em causa.
É função das autarquias locais, nos termos do artigo 235.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, a prossecução de interesses próprios das populações respectivas, interesses esses que «radicam nas comunidades locais, enquanto tais, isto é, que são comuns nos residentes e que se diferenciam dos interesses da colectividade nacional e dos interesses próprios das restantes comunidades locais» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., p. 882).
Este princípio fundamental mostra-se concretizado no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei 100/84, de 29 de Março (LAL), que consagra como «atribuição» das autarquias locais «o que diz respeito aos interesses próprios, comuns e específicos das populações respectivas».
O mesmo preceito enumera, a título exemplificativo, alguns desses «interesses», relevando, para o caso, o que respeita à «administração de bens próprios» e à «cultura, tempos livres e desporto».
No que concerne à «administração de bens próprios» - poder inerente à autonomia de uma pessoa colectiva com património próprio -, já o Código Administrativo, no seu artigo 253.º, apontava como atribuição das juntas de freguesia (então único órgão paroquial) deliberar «sobre a administração dos bens próprios da freguesia» (n.º 6).
No âmbito das citadas atribuições, o artigo 15.º, n.º 1, alínea i), da LAL confere à assembleia de freguesia competência para estabelecer as normas gerais de administração do património da freguesia e o artigo 27.º, n.º 1, alínea h), do mesmo diploma atribui à junta de freguesia o poder de prover à administração corrente do património da freguesia.
Com a Lei 23/97, de 2 de Julho, que expressamente reforça as atribuições e competências das freguesias (artigo 1.º), inscreve-se como um dos domínios das atribuições da freguesia o da «cultura, tempos livres e desporto» [artigo 2.º, alínea f)].
Ora, neste quadro de atribuições e competências, a afectação de um bem próprio da freguesia a um certo fim integra-se no poder de administração dos orgãos da autarquia, e a prossecução desse fim, no caso, visando a satisfação de necessidades comuns e específicas da respectiva população na área do desporto, mostra-se legalmente legitimada pelo citado artigo 2.º, alínea f), da Lei 23/97.
A consulta local em apreço incide, deste modo, sobre matérias da competência dos órgãos da freguesia de Serreleis, sendo da competência - no caso, efectivamente exercida - da assembleia de freguesia respectiva a deliberação sobre a sua realização, nos termos do artigo 6.º, n.º 1.
5 - Pelo exposto, e em conclusão, decide o Tribunal Constitucional ter por verificada a constitucionalidade e a legalidade do referendo local cuja realização foi deliberada pela Assembleia de Freguesia de Serreleis na sua sessão de 20 de Dezembro de 1998.
13 de Janeiro de 1999. - Artur Maurício - Messias Bento - Guilherme da Fonseca - Vítor Nunes de Almeida - José de Sousa e Brito - Paulo Mota Pinto - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra - Maria Fernanda Palma - Maria dos Prazeres Beleza - Maria Helena Brito - Luís Nunes de Almeida - José Manuel Cardoso da Costa.