O Sr. Procurador-Geral-Adjunto neste Supremo Tribunal veio interpor o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão proferido por este Supremo Tribunal no dia 15 de Abril de 1993 no processo 43499, invocando como fundamento a oposição entre tal aresto e o acórdão prolatado também neste Tribunal em 20 de Novembro de 1991 no processo 41754.
Pelo Acórdão de 21 de Setembro de 1995, a fl. 40, foi constatada a invocada oposição de julgados no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão de direito.
A legislação é o Código Penal de 1982 - Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro -, e a questão de direito é a de saber «se as chapas de matrícula de veículos automóveis são ou não de considerar como documentos autênticos e se a sua alteração dolosa integra a prática do crime de falsificação de documento autêntico».
No acórdão recorrido considerou-se que as chapas de matrícula dos veículos automóveis não são documentos autênticos, pelo que a sua alteração dolosa não constitui o crime de falsificação de documento autêntico previsto no artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e 2, do Código Penal.
Contrariamente, no acórdão fundamento, decidiu-se que as chapas de matrícula com a respectiva numeração são documentos autênticos, ou, melhor, equiparáveis a autênticos, pelo que a sua alteração dolosa integra o referido crime do artigo 228.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Código Penal.
O Sr. Procurador-Geral-Adjunto emitiu exaustivo parecer, que conclui propondo se fixe a seguinte jurisprudência obrigatória:
«A alteração dolosa da matrícula de um veículo automóvel, nele aposta, constitui o crime de falsificação de documento autêntico previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 228.º, n.os 1, alínea a), e 2, e 229.º, n.º 3, do Código Penal.» Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, já que nada a tal obsta.
A divergência jurisprudencial que move o presente recurso, e respeita à incriminação da alteração dolosa da chapa de matrícula de um veículo automóvel, radica na diversa valoração da chapa de matrícula dos veículos automóveis enquanto prova.
Na verdade, não existe desacordo a respeito de uma tal chapa de matrícula ter de ser considerada jurídico-penalmente um documento. É a solução que inequivocamente resulta da lei, já que o artigo 229.º do Código Penal de 1982, afastando-se da noção civilística de documento - cf. artigo 362.º do Código Civil -, define documento como «a declaração compreendida num escrito, inteligível para a generalidade ou um certo círculo de pessoas que, permitindo reconhecer o seu emitente, é idóneo a provar um facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente» - n.º 1 -, acrescentando, além do mais, que o documento é «equiparável o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar um facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta» - n.º 3. E uma chapa de matrícula aposta num veículo automóvel está nele incorporada como um sinal para provar o facto juridicamente relevante da matrícula e que permite à generalidade das pessoas reconhecer que o veículo tem a matrícula respectiva.
A questão posta confina-se a determinar se as apontadas chapas de matrícula são documentos particulares ou corporizam documentos autênticos ou com igual força.
E reveste-se de interesse, essencialmente, em termos de punição - a falsificação de documentos particulares era punida com prisão até 2 anos e multa até 60 dias e a falsificação de documentos autênticos ou com igual força com prisão de 1 a 4 anos e multa até 90 dias, como ressalta do artigo 228.º, n.os 1 e 2, do Código Penal de 1982.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal encontra-se dividida neste ponto:
No sentido de que a alteração fraudulenta da matrícula aposta num veículo automóvel integra o crime de falsificação de documento autêntico do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 229.º, n.º 3, ambos do Código Penal de 1982, decidiram, entre outros, os Acórdãos de:
14 de Outubro de 1987, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 370, p. 298;
16 de Outubro de 1991, recurso n.º 42168;
30 de Outubro de 1991, recurso n.º 41195;
20 de Novembro de 1991, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 411, p. 255;
21 de Maio de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 417, p. 398;
21 de Maio de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 417, p. 399;
15 de Fevereiro de 1995, Colectânea de Jurisprudência, Supremo Tribunal de Justiça, 1995, I, p. 205;
9 de Janeiro de 1996, recurso n.º 47295;
12 de Junho de 1996, recurso n.º 48700;
19 de Junho de 1996, recurso n.º 48637;
3 de Julho de 1996, recurso n.º 15/96;
18 de Dezembro de 1996, recurso n.º 830/96;
15 de Janeiro de 1997, recurso n.º 240/96; e 26 de Fevereiro de 1997, recurso n.º 1072/96;
No sentido de que o apontado facto consubstancia o crime de falsificação de documento particular do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), com referência ao artigo 229.º, n.º 3, ambos do Código Penal de 1982, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos de:
30 de Abril de 1992, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 416, p. 403;
24 de Março de 1993, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 325, p. 420;
15 de Abril de 1993, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 426, p. 211;
15 de Abril de 1993, recurso n.º 43499; e 12 de Outubro de 1996, recurso n.º 289/96.
Esta diversidade de entendimentos na nossa jurisprudência surgiu já na vigência do Código Penal de 1982 e vem a resultar da revogação do Decreto-Lei 274/75, de 4 de Junho, pelo Decreto-Lei 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou e fixou o início de vigência do mesmo Código - cf. o seu artigo 6.º, n.º 2.
Aquele decreto-lei, traduzindo «a necessidade de obstar à criminalidade quer no domínio do furto de automóveis quer na contrafacção dos seus elementos identificadores» - cf. o respectivo preâmbulo -, previa como crime punível com prisão maior de dois a oito anos a «aposição ou colocação de números de matrícula não correspondentes ao veículo e a viciação fraudulenta de quaisquer documentos ou elementos essenciais à identificação dos veículos a motor».
A revogação deste preceito, que previa situações de falsificação consideradas especialmente graves, não significa, porém, que o legislador tenha pretendido descriminalizar os factos nele previstos ou mesmo sancioná-los de forma não agravada mas tão-só que naquele Código Penal tinham o adequado tratamento quer a nível de previsão quer a nível de sanção.
Nenhuma razão se alcança para o abandono da agravação quando o certo é que as necessidades de prevenir a criminalidade no que respeita ao furto de veículos automóveis e à contrafacção dos seus elementos identificadores e que justificaram aquele Decreto-Lei 274/75 se mantinham pelo menos tão intensas quanto o eram aquando da gestação e publicação deste diploma.
E a manutenção da qualificação em causa é a solução que melhor satisfaz as apontadas razões de política jurídico-criminal, em nada extravasando da letra da lei, sendo certo que, na interpretação da lei, o intérprete deve presumir que «o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» - cf. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil.
Daí que por correcto tenhamos que a alteração fraudulenta da matrícula aposta num veículo automóvel integra o crime de falsificação agravada do artigo 228.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Código Penal de 1982.
Ora, este n.º 2 elenca os diversos documentos susceptíveis de conduzir à agravação nele cominada: documento autêntico ou com igual força, testamento cerrado, letra de câmbio, documento comercial transmissível por endosso e qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 244.º Excluídos os últimos, por manifestamente nada terem a ver com uma chapa de matrícula de um veículo automóvel, para precisar a qualificação desta restam-nos o documento autêntico e o com igual força à do documento autêntico.
O normativo penal não contém qualquer noção de documento autêntico nem de documento com igual força.
E o conceito civilístico de documento autêntico - «autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, por autoridades públicas nos limites da sua competência ou dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública [...]» (artigo 363.º, n.º 2, do Código Civil) - não nos parece de acolher para atingir o correcto enquadramento jurídico-penal do documento em causa.
Uma chapa de matrícula de um veículo automóvel nem é exarada por autoridade pública nem por notário ou qualquer outro oficial público, o que quer dizer que se não trata de um documento autêntico.
Assim, não poderá deixar de ser configurada na outra categoria legal justificativa da agravação do n.º 2 do citado artigo 228.º, n.º 2, do Código Penal de 1982, documento com igual força à de autêntico. Para o que se torna, porém, necessário que esteja incorporada no veículo a que respeita a matrícula.
Salvo excepções que carecem de interesse in casu, todos os veículos automóveis em condições de serem utilizados estão sujeitos a matrícula donde constem as características que os permitem identificá-los - cf. artigos 41.º do Código da Estrada vigente à data dos factos dos autos e 121.º, n.º 1, do Código da Estrada actualmente em vigor, na redacção original do Decreto-Lei 114/94, de 3 de Maio, e 117.º, n.º 1, na actual redacção do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
Esta matrícula era feita a requerimento do proprietário do veículo numa direcção de viação e o respectivo número era ali atribuído - cf. artigo 44.º, n.os 1 e 2, do anterior Código da Estrada. Actualmente, é feita também a requerimento do respectivo proprietário, mas na Direcção-Geral de Viação, que a certifica por emissão do livrete - cf. artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 190/94, de 18 de Julho. O respectivo número era constituído por um grupo de duas letras e dois grupos de dois números, dispostos pelos modos convenientes, e é-o agora por dois grupos de dois algarismos e um grupo de duas letras, separados entre si por traços - cf. artigos 44.º, n.os 1 e 2, do anterior Código da Estrada, 34.º, n.º 1, e 35.º do Regulamento do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto 39987, de 22 de Dezembro de 1954, este na sua redacção anterior e na da Portaria 884/91, de 28 de Agosto.
Ora, a chapa de matrícula é precisamente o número de matrícula que vem a materializar, desde que fixada de forma inamovível no veículo a que corresponde esse número de matrícula - cf. artigo 37.º do Regulamento do Código da Estrada, na sua redacção anterior e na da mencionada Portaria 884/91, além do artigo 118.º, n.º 4, do Código da Estrada, redacção do Decreto-Lei 2/98.
Assim, é a autoridade pública que, dentro dos limites da sua competência, efectua a matrícula dos veículos automóveis e atribui o correspondente número, sem que todavia emita as respectivas chapas.
Estas, como simples coisas móveis suporte material dos grupos de letras e de números ou de números e letras que representam o número de matrícula, são livremente adquiridas às entidades particulares que as comercializam.
Porém, antes de apostas nos veículos automóveis a que respeitam carecem de relevância. A sua eficácia jurídica só surge com a respectiva aposição no veículo.
É a aposição da chapa de matrícula no veículo que verdadeiramente releva para efeitos de a mesma poder ser considerada jurídico-penalmente documento. Só depois de aposta no veículo, só depois de fixada no veículo de forma inamovível, é que ela cumpre o seu efeito identificador e revelador de que foi feita a matrícula do veículo e que o respectivo número é o que dela consta.
Um veículo só pode circular com chapas de matrícula, mas estas têm de expressar o correspondente número de matrícula e nenhum outro.
E a falsificação de chapas de matrícula de veículo automóvel, como ilícito criminal, consubstancia-se pela substituição das chapas com número de matrícula dado pela autoridade pública por outras com letras e números ou números e letras diversos, ou pela alteração das letras e números ou dos números e letras de uma chapa com o número de matrícula dado pela autoridade pública de modo a formar um novo número.
A substituição das chapas de matrícula com número dado pela autoridade pública por outras com o mesmo número e para apor no mesmo veículo não é crime.
Daí que, em bom rigor, a falsificação atinja não a chapa em si mas o próprio número de matrícula dado pela autoridade pública, número que, como resulta dos artigos 42.º, n.º 1, e 44.º, n.os 2 e 5, do Código da Estrada de 1954, até é anterior à emissão do correspondente certificado de matrícula que vem a ser o livrete.
A chapa de matrícula aposta num veículo constitui o suporte material, visível para toda a gente e obrigatório, de um número criado por entidade pública com competência para tal - por isso com a fé pública que daí decorre.
Não foi emitida por essa entidade, mas, uma vez fixada no veículo automóvel a que respeita a matrícula, passa a ter a mesma força probatória que um documento autêntico. Não é um documento autêntico nem um documento autenticado - a lei penal nem sequer acolheu esta classificação de documento -, mas um documento com igual força, na terminologia legal do artigo 228.º, n.º 2, do Código Penal.
Em suma, na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a chapa de matrícula de um veículo automóvel, nele aposta, é um documento com igual força à de um documento autêntico, pelo que a sua alteração dolosa consubstancia um crime de falsificação de documento previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 228.º, n.os 1, alínea a), e 2, e 229.º, n.º 3, daquele diploma.
A decisão recorrida insere-se na corrente jurisprudencial que entende que as chapas de matrícula dos veículos automóveis não são documentos autênticos, pelo que a sua alteração dolosa não constituía o crime de falsificação de documento autêntico previsto no artigo 228.º, n.os 1, alínea a), e 2, do Código Penal, mas apenas o crime previsto no artigo 228.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma.
Há que a rever, de harmonia com o disposto no artigo 445.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Esta tarefa terá de ser levada a cabo neste Supremo Tribunal, mas, pela Secção - nesse sentido, M. Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 5.ª ed., 1992, p. 606.
Termos em que acordam em julgar procedente o recurso e, em consequência:
a) Fixar com efeitos obrigatórios para os tribunais portugueses a seguinte jurisprudência:
«Na vigência do Código Penal de 1982, redacção original, a chapa de matrícula de um veículo automóvel, nele aposta, é um documento com igual força à de um documento autêntico, pelo que a sua alteração dolosa consubstancia um crime de falsificação de documento previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 228.º, n.os 1, alínea a), e 2, e 229.º, n.º 3, daquele diploma.»; e b) Revogar a decisão recorrida e determinar que os autos, com o acórdão recorrido, sejam enviados à Secção, a fim de ser proferida decisão final em harmonia com a doutrina fixada por este acórdão.
Não é devida taxa de justiça.
Lisboa, 5 de Novembro de 1998. - Hugo Afonso dos Santos Lopes - Pedro Elmano de Figueiredo Marçal - Armando Acácio Gomes Leandro - Augusto Alves - Emanuel Leonardo Dias (vencido, nos termos da declaração que junto) - Virgílio António Fonseca Oliveira (vencido pelas razões constantes do voto de vencido do Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, explicitando ainda o seguinte: o legislador utilizou um conceito normativo na formulação do preceito. Esse conceito não é carecido de preenchimento valorativo pelo julgador, pois que o seu preenchimento é o que resulta directamente da lei, no caso do Código Civil. A chapa de matrícula é apenas um sinal, não participando do conteúdo essencial dos documentos para efeitos penais, apenas se lhe equiparando. Não recorrendo à lei civil, o julgador teria de descobrir uma norma a definir o conceito de documento «com igual força» para depois operar subsunção, o que não aparece no acórdão. Mas essa norma está imposta na lei, como se disse, não abrangendo o sinal «chapa de matrícula») - Luís Flores Ribeiro - Norberto Brito Câmara - Florindo Pires Salpico - João Henrique Martins Ramires (vencido pelas razões expostas nos votos de vencido exarados pelos Exmos. Conselheiros Leonardo Dias e Virgílio de Oliveira) - Manuel Maria Duarte Soares - Manuel Andrade Saraiva - José Mariano Pereira - Bernardo Guimarães Fisher Sá Nogueira - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira (vencido, segundo declaração que junto) - António Sousa Guedes (vencido, pelas razões que foram aduzidas no acórdão de que fui relator de 15 de Abril de 1993, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 426, p. 211, que mantenho) - José Pereira Dias Girão - António Luís Sequeira Oliveira Guimarães - Álvaro José Guimarães Dias - António Abranches Martins - Dionísio Manuel Dinis Alves.
Declaração de voto
Um número de matrícula (com o que se significa uma combinação de um grupo de duas letras e dois grupos de dois algarismos) não é uma declaração, uma vez que não exprime um pensamento humano de natureza cognoscitiva; é, simplesmente, um sinal.Mas um sinal, em si e só por si, não é um documento.
Com efeito, para efeitos penais, apenas se equipara a documento o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa, para provar um facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta (cf. artigo 229.º, n.º 3, do Código Penal de 1982).
Logo, sendo inquestionável que está em causa a prova de matrícula de um automóvel sob um certo número, só é documento o número de matrícula materialmente inscrito naquele.
Assim sendo, só com a materialização da inscrição de um número de matrícula num veículo (mediante a afixação de uma chapa que o contém) se cria tal documento.
Quem é o autor desse documento? Obviamente, do nosso ponto de vista, o particular que promove a materialização do sinal do veículo, afixando-lhe ou fazendo-lhe afixar as chapas com um número de matrícula.
Objecta-se, porém, que, assim, se ignora que, sendo a Direcção-Geral de Viação quem atribui o número de matrícula, é essa entidade a autora do sinal que aquele consubstancia.
Simplesmente, já o referimos, um número de matrícula enquanto não aposto num veículo, em si e só por si, não é um documento e, por outro lado, parece claro que, só porque procede à matrícula dos automóveis, a Direcção-Geral de Viação não tem que ser havida como a autora de todos os documentos elaborados por particulares em que estes tenham o dever de reproduzir, com verdade, os números de matrícula dos seus veículos. Por isso, e porque, efectivamente, não cabe, por lei, à Direcção-Geral de Viação (ou a outra autoridade pública) proceder ou, por qualquer forma, superintender à inscrição material de tais números, nos veículos automóveis, a tese de que aquela, por ser a autora do sinal, é a autora do documento, cuja execução material delegaria no particular, carece, manifestamente, de fundamento. Na verdade, porque o dever de prover o veículo de chapas de matrícula recai, unicamente, sobre o particular e decorre directamente da lei, não pode deixar de se entender que, ao afixar as chapas com um número de matrícula, aquele actua por conta própria e com total autonomia, e que, por isso mesmo, é o autor do documento em questão.
Qual a natureza do mesmo documento? Temos entendido que, não competindo, não sendo feita nem sequer confirmada pela Direcção-Geral de Viação ou qualquer outra autoridade pública, notário ou outro oficial provido de fé pública a inscrição material dos números de matrícula nos veículos automóveis, estes, na falta de lei expressa que lhes confira esse valor, não poderão ser considerados documentos autênticos ou com igual força. Com efeito, mesmo que se admita que os conceitos penais de documento autêntico e documento com igual força não coincidem, exactamente, com os de documento autêntico e autenticado da lei civil (o acórdão defende essa tese mas, contra o que se lhe impunha, não define documento autêntico e de igual força para efeitos estritamente penais), não parece que possa atribuir-se, por princípio e em geral, aquela força probatória a documentos criados por particulares e em relação aos quais não se verificou qualquer tipo de intervenção de uma autoridade pública ou de qualquer oficial investido de fé pública.
Fixaria, portanto, a jurisprudência obrigatória no sentido de que a alteração dolosa do número de matrícula de um veículo automóvel, integraria, verificados os demais elementos constitutivos do tipo legal, um crime simples de falsificação de documento. - Emanuel Leonardo Dias.
Declaração de vencido
A questão das chapas de matrícula tem gerado uma certa polémica neste Supremo e se é certo que vários acórdãos, inclusivamente o presente, têm defendido que - a falsificação do número do motor, do châssis ou das chapas de matrículas de veículos automóveis que se traduz em falsificação de documentos que, embora oriundos de entidades particulares, tem por lei uma força probatória equivalente à dos documentos públicos - temos entendido, pela nossa parte, exactamente o contrário, como de resto continuamos a entender.Com efeito, o Código Penal de 1982, no seu artigo 229.º, e o mesmo se passa com o actual [artigo 255.º, alínea a)], estabeleceu um conceito de documento, relevante para efeitos jurídico-penais, mas não indicou qualquer critério que defina a expressão «documento autêntico ou com igual força», pelo que poderá depreender-se que a lei penal terá acolhido o conceito de documentos autênticos, particulares e autenticados proposto pelo artigo 363.º, n.os 2 e 3, do Código Civil, como defendeu o Acórdão deste Supremo de 19 de Novembro de 1997, no processo 39176, embora sem coincidência absoluta.
Segundo este critério, são documentos autênticos os exarados com as formalidades legais pelas autoridades públicas, nos limites da sua competência ou pelo notário ou outro oficial dotado de fé pública, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído; e serão documentos particulares todos os outros, avultando aqui os documentos lavrados por indivíduos que não exerçam nenhum cargo de autoridade, nem desempenhem qualquer função certificadora dotada de fé pública.
Há ainda que considerar entre os documentos autênticos e os documentos particulares os documentos autenticados, os quais se definem como documentos particulares na sua origem, com reconhecimento especial (autêntico) do notário e que assim por força da natureza desse reconhecimento, têm a força probatória dos documentos autênticos.
Seguindo estes critérios, os documentos particulares que estão numa relação de exclusão de partes quanto aos documentos autênticos e autenticados serão fundamentalmente aqueles que são lavrados por indivíduos que não exerçam nenhum cargo de autoridade, nem desempenham qualquer função certificadora dotada de fé pública, como vimos.
Teremos então que nos documentos autênticos há uma intervenção desde a origem da autoridade ou oficial público, ao passo que nos documentos autenticados a entidade pública intervém apenas num momento ulterior (cf.
O Novo Código Penal, de Leal Henriques e Simas Santos, vol. 3.º, p. 150).
Poderá, portanto, dizer-se que no documento particular não há intervenção em nenhum momento de qualquer entidade pública, como acontece precisamente com as chapas de matrícula ou número de motor, pelo que tal número ou aquelas chapas nunca poderão ser considerados como integrando o conceito de documento autêntico ou autenticado.
O número da chapa permite à generalidade das pessoas reconhecer que foi classificada como tal e destina-se a fazer a prova do facto juridicamente relevante da sua identificação, pelo que pode considerar-se um documento para efeitos jurisdicionais penais, de harmonia com o artigo 229.º, n.º 3, do Código Penal de 1982 [agora artigo 255.º, alínea a), do Código Penal revisto] embora se trate de mero sinal materialmente feito.
Todavia, esse número de registo não é composto por qualquer autoridade pública, por notário ou outro oficial dotado de fé pública, no círculo de actividades a cada um atribuído, mas a sua autoria é atribuída a um qualquer particular, sem função certificadora dotada de fé pública.
Desta forma, o número de chapa de matrícula e congéneres, pelo conceito civilístico, é tão-somente um documento particular, devendo a sua viciação ser punida pelo n.º 1 do artigo 228.º, e não pelo n.º 2 do mesmo preceito, agora pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal revisto.
Sendo o conceito de documento autêntico excepcional em relação ao conceito residual de documento particular, verifica-se, também, que só pode considerar-se como documento autêntico o que a lei define como tal, o que não é manifestamente o caso da chapa de matrícula. (Cf. o acórdão deste Supremo Tribunal proferido no processo 270/96, por nós relatado.) - Sebastião Duarte de Vasconcelos da Costa Pereira.