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Acórdão 743/96, de 18 de Julho

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Sumário

Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 2º do Código Civil, - assentos -, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no nº 5 do artigo 115º da Constituição. (proc. 240/94).

Texto do documento

Acórdão 743/96
Processo 240/94
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O pedido e os seus fundamentos
O procurador-geral-adjunto em exercício no Tribunal Constitucional, como representante do Ministério Público, veio requerer, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, que este Tribunal «aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral».

Alegou que «tal segmento normativo foi explicitamente julgado inconstitucional, por violação do preceituado no artigo 115.º, n.º 5, da Constituição, através dos Acórdãos n.os 810/93, de 7 de Dezembro (publicado no Diário da Republica, 2.ª série, n.º 51, de 2 de Março de 1994, a p. 1989), 407/94, de 17 de Maio, e 410/94, de 18 de Maio, estes inéditos», instruindo o respectivo pedido com cópia destes arestos.

II - A resposta do órgão autor da norma
Em conformidade com o disposto nos artigos 54.º e 55.º da Lei do Tribunal Constitucional, foi notificado o Primeiro-Ministro, a fim de, querendo, se pronunciar sobre o pedido, não havendo, porém, sido oferecido qualquer resposta.

Cabe agora apreciar e decidir.
III - O Acórdão 810/93 do Tribunal Constitucional
1 - O Tribunal Constitucional, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, julgou pela primeira vez inconstitucional a norma do artigo 2.º do Código Civil, «na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 5, da Constituição», no Acórdão 810/93 (in Diário da República, 2.ª série, de 2 de Março de 1994), tirado pelo plenário do Tribunal, cuja intervenção teve lugar ao abrigo do disposto no artigo 79.º-A, n.º 1, da sua Lei Orgânica.

As decisões que posteriormente vieram a ser proferidas sobre aquela matéria - entre as quais se incluem os Acórdãos n.os 407/94 e 410/94, referenciados no pedido - limitaram-se a receber e perfilhar a fundamentação ali aduzida e que passou a constituir a orientação jurisprudencial do Tribunal.

E assim sendo, importa tão-somente repetir aqui as linhas essenciais da argumentação que serviu de suporte àquele aresto.

Vejamos então.
2 - Depois de se assinalarem algumas das vicissitudes sofridas pelo instituto dos assentos ao longo do seu percurso histórico, ensaiou-se naquele acórdão uma síntese conclusiva na qual se fizeram avultar os aspectos mais marcantes e balizadores da evolução neles verificada.

E o perfil dessa síntese foi assim delineado:
a) Os assentos da Casa da Suplicação constituíam interpretação autêntica das leis e tinham força legislativa;

b) Desde a sua instituição, em 1832, até à entrada em vigor do Decreto 12353, de 22 de Setembro de 1926, o Supremo Tribunal de Justiça não dispunha de competência para proferir assentos, mas tão-somente para uniformizar a jurisprudência, através da interpretação e aplicação da lei nos casos concretos que lhe eram submetidos;

c) O artigo 66.º deste último diploma instituiu um recurso inominado de uniformização de jurisprudência para o pleno do Supremo Tribunal de Justiça;

d) A jurisprudência estabelecida por estes acórdãos era obrigatória para os tribunais inferiores e para o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto não fosse alterada por outro acórdão da mesma proveniência;

e) Apesar de o Decreto 12353 não atribuir, explícita ou implicitamente, a estes acórdãos a designação de assentos, o Supremo Tribunal de Justiça assim passou a chamá-los a partir de Dezembro de 1927;

f) O Código de Processo Civil de 1939 consagrou a denominação de assentos para os acórdãos proferidos pelo pleno do Supremo Tribunal de Justiça, mantendo no mais o regime do Decreto 12353;

g) O Código de Processo Civil de 1961 eliminou a faculdade de alteração dos assentos pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça;

h) O artigo 2.º do Código Civil de 1967 veio atribuir à doutrina fixada pelos assentos força obrigatória geral;

i) O Decreto-Lei 47690, de 11 de Maio de 1967, na redacção dada ao artigo 769.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, eliminou a referência que ali se fazia a respeito da eficácia dos assentos.

3 - Passando-se seguidamente a analisar a controvérsia doutrinal sobre a caracterização jurídico-dogmática dos assentos e depois de se deixar menção da forma como o nosso pensamento jurídico se tem concretizado a este respeito actos de natureza jurisdicional e normas jurídicas no seu sentido geral, como qualquer outro do sistema, ou mesmo puros actos de natureza legislativa -, escreveu-se no acórdão que se vem acompanhando do modo seguinte:

«O Tribunal Constitucional, sem nunca haver considerado expressamente o tema da validade constitucional do instituto em apreço, e embora com o único fito de avaliar da sua adequação ao conceito de norma, como pressuposto de sujeição a um juízo de constitucionalidade, teve ensejo de definir que «a fixação de doutrina, com força obrigatória geral, operada através dos assentos, traduz a existência de uma norma jurídica com eficácia erga omnes, em termos de, quanto a ela, ser possível o accionamento do processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade» (cf. Acórdãos n.os 8/87 e 359/91, in Diário da República, 1.ª série, de, respectivamente, 9 de Fevereiro de 1987 e 15 de Outubro de 1991).

Esta mesma caracterização dos assentos como actos normativos foi também assumida, nomeadamente, nos Acórdãos n.os 40/84, 68/86 e 104/86, in Diário da República, 2.ª série, de, respectivamente, 7 de Julho de 1984, 7 de Junho e 4 de Agosto de 1986, havendo-se escrito no primeiro destes arestos, nomeadamente:

«O carácter normativo dos assentos é, na verdade, irrecusável, face ao disposto no artigo 2.º do Código Civil, segundo o qual os tribunais podem 'fixar doutrina com força obrigatória geral'. Os assentos interpretativos - espécie de assentos sobre os quais se centrará doravante a nossa atenção - fixam o sentido juridicamente relevante de um preceito preexistente e com ele a partir daí se confundem [...] A norma a que se dirige tal tipo de assento, de norma de interpretação variável evolui, por força da valoração jurídica sobreposta que aquele consequencia, a norma de interpretação estável ou, pelo menos, mais estável (o assento, como norma jurídica, também é susceptível de interpretação). A norma visada sofre, por via do assento interpretativo, profunda recomposição: é uma nova norma, deste modo recomposta, que passa a existir no direito positivo. Há pois como que uma fusão entre a norma atingida e a norma do assento que a modula.»

Com efeito, nesta linha de entendimento e à luz de tudo quanto vem de se expor, há-de afirmar-se que os assentos se apresentam com carácter prescritivo, constituindo verdadeiras normas jurídicas com o valor de 'quaisquer outras normas do sistema', revestidas de carácter imperativo e força obrigatória geral, isto é, obrigando não apenas os tribunais, mas todas as restantes autoridades, a comunidade jurídica na sua expressão global.

No dizer denso e impressivo de Castanheira Neves, constituem os assentos `uma prescrição jurídica (imperativo ou critério normativo-jurídico obrigatório) que se constitui no modo de uma norma geral e abstracta, proposta à predeterminação normativa de uma aplicação futura, susceptível de garantir a segurança e a igualdade jurídicas, e que não só se impõe com a força ou a eficácia de uma vinculação normativa universal, como se reconhece legalmente com o carácter de fonte de direito.»

4 - Num terceiro momento passou a abordar-se a validade jurídico-constitucional do instituto dos assentos face ao texto constitucional de 1976, examinando-se a versão originária e as implicações resultantes das alterações introduzidas em alguns preceitos na revisão constitucional de 1992, para se rematar este excurso analítico com as considerações seguintes:

«Como é consabido, os assentos não são os próprios acórdãos do tribunal pleno, mas estritamente as proposições normativas de estrutura geral e abstracta que se autonomizam, formal e normativamente, desses acórdãos. O assento é o 'preceito que coroa a decisão do caso concreto' com 'força genérica' (Antunes Varela, Do Projecto ao Código Civil, p. 18), não a própria decisão do caso concreto ou o conteúdo normativo casuístico dessa decisão.

Originados embora numa decisão jurisprudencial que deles constitui pressuposto jurídico, os assentos normativamente objectivam, para além dessa decisão, uma prescrição que fica a valer geral e abstractamente para o futuro, sendo assim equiparados a fontes de direito.

E tanto assim sucede nos casos em que o assento fixa uma das várias interpretações possíveis da lei (assentos interpretativos), como nos casos em que preenche uma lacuna do sistema e cria a norma correspondente, para depois fazer aplicação dela ao caso concreto (assentos integrativos).

Por via do assento interpretativo a norma visada sofre 'profunda recomposição: é uma nova norma, deste modo recomposta, que passa a existir no direito positivo' [...] verificando-se como que uma fusão entre a norma interpretada e aquela que, a final, o assento acaba por modular e redefinir.

O assento integrativo não opera em termos de traduzir uma reconstrução entre uma norma existente e a norma que nele se institui, representando antes uma norma inteiramente original, que preenche uma lacuna do sistema em conformidade com as regras gerais da integração da lei definidas no artigo 10.º do Código Civil.

Deste modo, sendo função dos assentos interpretar ou integrar autenticamente as leis, a norma que lhes atribui força obrigatória geral não pode deixar de incorrer em colisão com o artigo 115.º, n.º 5, da Constituição.

E contra esta conclusão não serve invocar o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da Constituição, que manda publicar no jornal oficial, para além das decisões do Tribunal Constitucional, as 'dos outros tribunais a que a lei confira força obrigatória geral'.

Com efeito, esta disposição, na qual alguma doutrina e jurisprudência tem descortinado uma indicação do direito constitucional positivo no sentido da legitimidade constitucional dos assentos (cf. Oliveira Ascensão, 'Os acórdãos com força obrigatória geral do Tribunal Constitucional como fonte de direito', in Nos Dez Anos da Constituição, 1986, p. 262; Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, n.os 3813 e 3814, de 1 de Abril e 1 de Maio de 1992; Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 1986, in Diário da República, de 17 de Maio de 1986), limita-se a prever a possibilidade de existirem decisões dos tribunais com força obrigatória geral, caso em que será exigida a sua publicação no Diário da República, como aliás sucede com as decisões de declaração de ilegalidade dos regulamentos tiradas pelo Supremo Tribunal Administrativo.

E, assim sendo, não pode ver-se neste preceito a intenção de decidir do problema da validade constitucional dos assentos, pois que, em tal caso, para além de o legislador constituinte não se revelar 'razoável nem avisado', seria de todo 'aberrante que se tivesse querido tomar posição numa questão desta importância através de um preceito com um objectivo tão particular e mesmo de manifesta índole regulamentar' (cf. Castanheira Neves, O Instituto dos Assentos e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, Coimbra, 1983, p. 408).

Não vale assim invocar em defesa da constitucionalidade dos assentos, a norma sobre a publicidade dos actos, já que nela não se contém qualquer ressalva relativa à proibição da interpretação ou integração dos actos legislativos por actos de outra natureza, como sucede, manifestamente, com os assentos, ao fixarem doutrina que, com força obrigatória geral, interpreta ou integra autenticamente as leis em sentido formal.»

5 - Enfrentando-se por fim a questão da constitucionalidade da norma do artigo 2.º do Código Civil, centrou-se a fundamentação que haveria de conduzir à emissão de um juízo de inconstitucionalidade, essencialmente, na seguinte retórica argumentativa:

«A génese da colisão constitucional da norma do artigo 2.º do Código Civil radica no facto de os assentos se arrogarem o direito de interpretação ou integração autêntica da lei, com força obrigatória geral, assumindo assim a natureza de actos não legislativos de interpretação ou integração das leis.

A disposição genérica contida naquela norma relativamente à força vinculativa geral dos assentos esteve na origem da eliminação do n.º 2 do artigo 769.º do Código de Processo Civil de 1961, que, numa linha de continuidade do artigo 768.º do Código de Processo Civil de 1939, prescrevia que a doutrina assente pelo acórdão que resolvesse o conflito de jurisprudência seria 'obrigatória para todos os tribunais'.

E, deste modo, a disputa que se vinha travando sobre o valor jurídico a atribuir aos assentos a partir daquele preceito (o único que contemplava tal matéria) - para uns, os assentos apenas vinculariam os tribunais hierarquicamente subordinados àquele que os houvesse emitido, enquanto, para outros, dispunham de uma vinculação normativa idêntica às das normas gerais do sistema jurídico - veio a ser expressamente resolvida através da consagração do entendimento doutrinal que perfilhava a eficácia geral e incondicionada dos assentos, isto é, a vinculação normativa geral própria das fontes de direito.

Por outro lado [...] o Código de Processo Civil de 1961 suprimiu a possibilidade de modificação dos assentos constante do artigo 769.º do Código de 1939, possibilidade essa já contemplada no artigo 66.º do Decreto 12353, que, por seu turno, recebera inspiração no Decreto 4620.

A consagração de um tal sistema, rígido e imutável, para além de anquilosar e impedir a evolução da jurisprudência, necessariamente ditada pelo devir do direito e da sua adequada realização histórico-concreta, contraria manifestamente o sentido mais autêntico da função jurisprudencial.

Ora, tanto a eficácia jurídica universal atribuída à doutrina dos assentos como o seu carácter de imutabilidade não só se apresentam como atributos anómalos relativamente à forma inicial da sua instituição em 1939 mas também se configuram como formas de caracterização inadequada de um instituto que visa a unidade do direito e a segurança da ordem jurídica.

E parece poder afirmar-se que, desprovida desta caracterização, isto é, sem força vinculativa geral e sujeita, em princípio, à contradita das partes e à modificação pelo próprio tribunal dela emitente, aquela doutrina perderá a natureza de acto normativo de interpretação e integração autentica da lei.

Desde que a doutrina estabelecida no assento apenas obrigue os juízes e os tribunais dependentes e hierarquicamente subordinados àquele que o tenha emitido, e não já os tribunais das outras ordens nem a comunidade em geral, deixa de dispor de força obrigatória geral, o que representa, no entendimento de Marcello Caetano, a perda automática do valor que é próprio dos actos legislativos (cf. Manual de Direito Administrativo, Lisboa, 1973, t. I, pp. 122 e segs.)

Com efeito, desde que o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto pelas partes, disponha de competência para proceder à revisibilidade dos assentos - e não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre os pressupostos e a amplitude do esquema processual a seguir em ordem à concretização desse objectivo -, a eficácia interna dos assentos, restringindo-se ao plano específico dos tribunais integrados na ordem dos tribunais judiciais de que o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da respectiva hierarquia, perderá o carácter normativo para se situar no plano da mera eficácia jurisdicional e revestir a natureza de simples 'jurisprudência qualificada'.

E assim sendo, a norma do artigo 2.º do Código Civil, entendida como significando que os tribunais podem fixar, por meio de assentos 'doutrina obrigatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente, susceptível de por este vir a ser alterada', deixará de conflituar com a norma do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição.

É que, com tal sentido, o assento não representa já um acto normativo não legislativo capaz de, com eficácia externa, fazer interpretação ou integração autêntica das leis.

Mas, neste quadro de caracterização normativo-processual do instituto, o facto de aos juízes dos tribunais integrados na ordem do tribunal emitente do assento (até mesmo os deste Tribunal enquanto não se operar a sua reversibilidade) ser imposta a aplicação da doutrina nele contida não representará violação da sua independência decisória?

Tem-se por seguro que não.
Com efeito, não acompanhando embora o entendimento de Marcello Caetano no sentido de que 'existindo uma hierarquia de tribunais, admite-se que a decisão do superior possa ser tornada obrigatória para os que dele dependam, exactamente como as instruções na hierarquia administrativa' (cf. ob. e loc. cits.), e tendo bem presente o princípio da independência dos tribunais consagrado no artigo 206.º da Constituição, há-de ponderar-se que a definição jurisprudencial contida na decisão do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos propostos, não envolve prejuízo da autonomia da interpretação do direito, que se compreende na independência dos tribunais.

Uma tal definição jurisprudencial, provinda do mais alto tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais (no presente processo de fiscalização concreta de constitucionalidade apenas importa considerar os assentos do Supremo Tribunal de Justiça), sem eficácia externa erga omnes e susceptível, em princípio, de impugnação processual pelas partes interessadas na causa, há-de ter-se como adequado elemento integrativo da própria estrutura jurisdicional de que promana. A subordinação devida pelos tribunais àquela jurisprudência tem algo de comum com a generalidade das decisões proferidas em via de recurso, às quais é devido acatamento mesmo quando delas dissintam os juízes dos tribunais de instância.

Aliás, a própria Constituição, no artigo 281.º, n.º 3, regendo sobre a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma, julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos, não impondo embora uma automática e obrigatória intervenção do Tribunal em tal sentido, instituiu um sistema cuja matriz também radica na unidade do direito e, de algum modo, na uniformidade da jurisprudência.

Este afloramento constitucional do valor da uniformização jurisprudencial há-de ser entendido em termos de, numa perspectiva global do funcionamento do sistema judiciário, justificar a subordinação de todos os tribunais judiciais à 'jurisprudência qualificada' do Supremo Tribunal de Justiça, sem que de tal subordinação resulte comprometida a sua independência decisória.»

E, na decorrência da fundamentação cujos momentos capitais se deixaram transcritos, concluiu-se no sentido da inconstitucionalidade da «norma do artigo 2.º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 5, da Constituição» [muito embora seja este o texto do original arquivado no Tribunal Constitucional, por lapso manifesto, aquando da sua publicação no Diário da República, foi omitida a referência ao n.º 5 daquele preceito constitucional].

Os Acórdãos n.os 407/94 e 410/94, mencionados no pedido em concomitância com o Acórdão 810/93 como decisões fundamento, limitaram-se, seguindo na peugada deste último, a acolher e sufragar a argumentação ali aduzida.

IV - A fundamentação
1 - Reitera-se agora o entendimento perfilhado naqueles acórdãos e a fundamentação que os suportou em termos de se julgar inconstitucional a norma do artigo 2.º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral.

A Constituição não proíbe o legislador de estabelecer institutos adequados à uniformização da jurisprudência - era essa a primeira e essencial vocação dos assentos -, mas veda-lhe seguramente a criação de instrumentos ali não previstos, que, com eficácia externa (e, por maioria de razão, com força obrigatória geral), interpretem, integrem, modifiquem, suspendam ou revoguem normas legais.

A colisão daquela norma com o texto constitucional radica, assim, no facto de os assentos se arrogarem o direito de interpretação ou integração autêntica da lei, com força obrigatória geral, assumindo a natureza de actos não legislativos de interpretação ou integração das leis.

2 - Naqueles arestos, complementarmente à apreciação da específica questão de constitucionalidade e em plano circunscrito aos considerandos desenvolvidos na fundamentação, ponderou-se «que a unidade progressiva da jurisprudência, ao invés da integral erradicação dos assentos, justifica a sua continuidade no ordenamento, devendo porém no quadro das exigências constitucionais, encontrar-se o ponto de equilíbrio que legitime a subsistência das irrecusáveis vantagens que neles se contêm», ensaiando-se depois, num quadro teórico de inteira abstracção, a identificação de um sistema de uniformização da jurisprudência susceptível de aquiescência constitucional.

Mas, e contrariamente ao sentido e alcance com que alguma doutrina se pronunciou sobre o Acórdão 810/93 (cf. Castanheira Neves, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 127.º, n.º 3839, pp. 63 e segs, e n.º 3840, pp. 79 e segs, e Jorge Teixeira Lopes, Polis, ano I, n.º 1, Outubro-Dezembro, 1994, pp. 157 e segs, não se empreendeu ali, em termos decisórios, qualquer tarefa de reconstrução de um regime jurídico legislativamente adoptado, nem se invadiu tão-pouco a liberdade de conformação do legislador.

Com efeito, o Tribunal limitou-se, situando-se, aliás, no plano que lhe pertence como tribunal supremo e órgão superior de administração da justiça em matéria de natureza jurídico-constitucional, a apresentar subsídios jurisprudenciais como complemento da sua actividade decisória, fazendo-o enquanto órgão de criação do direito, como necessariamente hão-de ser considerados todos os tribunais supremos (cf., ainda sobre esta matéria, Vitalino Canas, Introdução às Decisões de Provimento do Tribunal Constitucional, 2.ª ed., 1994, pp. 16 e 17).

3 - Como quer que seja, o certo é que o Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de Dezembro, que procedeu à revisão do Código de Processo Civil e introduziu alterações no Código Civil e na Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, na esteira daquele aresto e da problematicidade ali suscitada, veio pôr termo à existência do instituto dos assentos e determinar, concomitantemente, a revogação da norma do artigo 2.º do Código Civil.

Na respectiva exposição preambular, justificou-se assim o sentido das soluções ali adoptadas:

«Questão de particular complexidade é a que decorre da criação dos mecanismos processuais adequados à fixação de jurisprudência na área do processo civil, face às dúvidas reiteradamente afirmadas pela doutrina sobre a natureza 'legislativa' - e a constitucionalidade dos assentos e à necessidade de harmonizar o regime do actual recurso para o tribunal pleno com o decidido pela jurisprudência constitucional no Acórdão 810/93, de 7 de Dezembro.

A solução encontrada baseou-se, no essencial, no regime da 'revista ampliada', instituída e regulada no projecto do Código de Processo Civil como sucedâneo do actual recurso ordinário para o tribunal pleno: considera-se tal solução claramente vantajosa em termos de celeridade processual, eliminando uma 'quarta instância' de recurso e propiciando, mais do que o remédio a posteriori de conflitos jurisprudenciais já surgidos, a sua prevenção.

Faculta-se às partes, de forma clara, a faculdade de intervirem activamente na detecção e prevenção dos possíveis conflitos jurisprudenciais, sendo certo que tal intervenção será possibilitada e incrementada pelo indispensável cumprimento do princípio do contraditório e pela necessidade da sua prévia audição, de modo a prevenir a prolação de decisões surpresa.

Não se acompanhou, todavia, a solução consistente em tratar o acórdão das secções cíveis reunidas, proferido em julgamento ampliado do recurso de revista, como 'assento', optando-se antes pela revogação de tal instituto típico e exclusivo do nosso ordenamento jurídico.

Na verdade, como se refere no citado Acórdão 810/93 do Tribunal Constitucional, sempre seria condição indispensável à não caracterização do assento como acto normativo de interpretação e integração autêntica da lei o não ter a doutrina por ele fixada força vinculativa geral e estar sujeita 'em princípio, à contradita das partes e à modificação pelo próprio tribunal dela emitente'.

Deste modo, para além de a doutrina do assento não poder vincular tribunais situados fora da ordem dos tribunais judiciais, não bastaria, para operar a 'constitucionalização' do instituto dos assentos, prever a possibilidade de o próprio Supremo Tribunal de Justiça, em recursos que ulteriormente perante si decorressem, 'revogar' o assento anteriormente emitido, sendo indispensável garantir às próprias partes, em qualquer instância, a possibilidade de impugnarem ou contraditarem a doutrina que nele fez vencimento.

Quebrada pela jurisprudência constitucional a força vinculativa genérica dos assentos e imposto o princípio da sua ampla revisibilidade - não apenas por iniciativa do próprio Supremo, no âmbito dos recursos perante ele pendentes, mas a requerimento de qualquer das partes, em qualquer estado da causa -, pareceu desnecessária a instituição dos necessariamente complexos mecanismos processuais que facultassem a revisão do decidido, por se afigurar que a normal autoridade e força persuasiva da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, obtida no julgamento ampliado de revista - e equivalente, na prática, à conferida aos actuais acórdãos das secções reunidas -, será perfeitamente suficiente para assegurar, em termos satisfatórios, a desejável unidade da jurisprudência, sem produzir o enquistamento ou cristalização das posições tomadas pelo Supremo.»

Deste modo, o legislador, considerando «quebrada pela jurisprudência constitucional a força vinculativa genérica dos assentos e imposto o princípio da sua ampla revisibilidade» e recordando as possíveis vias de compatibilização constitucional do instituto ali enunciados, confrontou-se com duas possíveis vias de solução: a) proceder à «instituição dos necessariamente complexos mecanismos processuais que facultassem a revisão do decidido»; b) revogar definitivamente o instituto dos assentos.

Optou-se por esta última alternativa, aditando-se ao Código de Processo Civil os artigos 732.º-A e 732.º-B, nos quais se instituiu um sistema de julgamento ampliado de revista, ponderando-se que «a usual autoridade e força persuasiva da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, obtida no julgamento ampliado de revista e equivalente, na prática, à conferida aos actuais acórdãos das secções reunidas, será perfeitamente suficiente para assegurar, em termos satisfatórios, a desejável unidade da jurisprudência, sem produzir o enquistamento ou cristalização das posições tomadas pelo Supremo».

4 - Nos termos do seu artigo 16.º, n.º 1, o Decreto-Lei 329.º-A/95 deveria entrar em vigor no dia 1 de Março de 1996.

Contudo, a Lei 6/96, de 29 de Fevereiro, veio diferir o início da vigência daquele diploma para o dia 15 de Setembro de 1996.

Desde modo, a norma do artigo 2.º do Código Civil, revogada pelo artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei 329-A/95, ainda subsiste no ordenamento, mantendo por isso inteira utilidade o pedido a que os presentes autos se reportam.

E assim sendo, reiterando e acolhendo por inteiro a fundamentação desenvolvida nos acórdãos fundamento, em especial no Acórdão 810/93, conclui-se no sentido da inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral.

V - A decisão
Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 2.º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 5, da Constituição.

Lisboa, 28 de Maio de 1996. - Antero Alves Monteiro Dinis - Luís Nunes de Almeida - Messias Bento - Fernando Alves Correia - Bravo Serra - Vítor Nunes de Almeida - Armindo Ribeiro Mendes - José de Sousa e Brito - Alberto Tavares da Costa - Guilherme da Fonseca (com declaração de voto junta) - Maria Fernanda Palma (com declaração de voto) - José Manuel Cardoso da Costa.


Declaração de voto
Circunscrito o objecto do presente processo de fiscalização abstracta à ponderação de anteriores e repetidos juízos de inconstitucionalidade das mesmas normas jurídicas, para se avançar para uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dessas normas, aqui o artigo 2.º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 5, da Constituição, vejo-me impedido de votar vencido, pois, em rigor, entenderia aquele artigo 2.º, todo ele, em desconformidade com a lei fundamental, e não apenas na referida parte.

Este meu entendimento vem já do tempo em que exerci funções de procurador-geral-adjunto neste Tribunal Constitucional, e, em peças processuais, a propósito da questão de saber se um assento do Supremo Tribunal de Justiça é uma norma, para efeitos de fiscalização concreta da sua constitucionalidade, acompanhei, embora não fosse esse o thema decidendum, a posição de Castanheira Neves quanto à «invalidade constitucional do instituto dos assentos» (cf. a contra-alegação apresentada no processo 69/83).

Partindo exactamente da consideração daquele autor - e de outros, como Oliveira Ascensão, O Direito - Introdução e Teoria Geral, p. 283 - sobre a natureza jurídica do assento como «uma nova norma jurídica que, como tal, fundamentalmente, se impõe no sistema jurídico», repercutindo-se «ao nível jurídico da legislação ordinária» (O Instituto dos «Assentos» e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, p. 368), poderia concluir, como faz a conselheira Maria Fernanda Palma, na declaração de voto junta ao Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 299/95, que a norma do artigo 2.º do Código Civil «conflitua com o princípio da tipicidade dos actos legislativos estabelecido no artigo 115.º da Constituição» e que a eficácia interna dos assentos «viola o princípio da independência decisória dos juízes, consagrado no artigo 206.º da Constituição».

«E, decisivamente, no plano dos valores do Estado de direito em sentido material, essa eficácia interna contenderia com o princípio democrático (artigo 2.º da Constituição), tornando os assentos fontes de direito não derivadas da autovinculação subjacente ao cometimento de função legislativa a órgãos representativos dos cidadãos» - acrescenta-se nessa declaração de voto, que acompanho. - Guilherme da Fonseca.


Declaração de voto
Votei o presente acórdão, sem prejuízo do voto de vencida e respectiva declaração no Acórdão 299/95, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Julho de 1995, por ser claro que este acórdão tem uma estrita função generalizadora, visando apenas dotar de força obrigatória geral o anterior julgamento proferido pelo Tribunal sobre o artigo 2.º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do artigo 115.º, n.º 5, da Constituição. Assim, apesar de continuar a considerar inconstitucional, de modo mais absoluto, esta norma legal, entendo que o julgamento maioritário, reiterado por três vezes, que sobre ele incidiu cria o pressuposto necessário à generalização. - Maria Fernanda Palma.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/75768.dre.pdf .

Ligações deste documento

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  • Tem documento Em vigor 1926-09-22 - Decreto 12353 - Ministério da Justiça e dos Cultos - Direcção Geral da Justiça e dos Cultos - 2.ª Repartição

    Simplifica e acelera o processo civil e comercial.

  • Tem documento Em vigor 1967-05-11 - Decreto-Lei 47690 - Ministério da Justiça - Gabinete do Ministro

    Introduz modificações nos textos do Código de Processo Civil a fim de consagrar as inovações e as alterações exigidas pela entrada em vigor da nova Lei Civil (Código Civil aprovado pelo Decreto Lei 47344, de 25 de Novembro de 1966).

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1995-12-12 - Decreto-Lei 329-A/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais

  • Tem documento Em vigor 1996-02-29 - Lei 6/96 - Assembleia da República

    Altera a data da entrada em vigor do Decreto Lei 329-A/95 de 12 de Dezembro, que aprova a revisão do Código de Processo Civil. O referido Código entra em vigor no dia 15 de Setembro de 1996 e só se aplica aos processos iniciados após essa data, salvo o estipulado no nº 2.

Ligações para este documento

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