Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 269/2025
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à declaração de inconstitucionalidade de norma constante do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditado pela Lei 27/2019, de 28 de março.
Para o efeito, invoca que o Acórdão 602/2023, da 2.ª Secção, decidiu «Julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditada pela Lei 27/2019, de 28 de março, na interpretação segundo a qual a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, depende, em todos os casos, e independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas, do depósito prévio das mesmas, por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Constituição da República Portuguesa», e que esta mesma norma havia já sido julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023, da 3.ª Secção, embora com formulação distinta. Nos citados Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023, decidiu-se «Julgar inconstitucional, por violação do direito de acesso aos tribunais e à justiça, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, conjugado com o princípio da proporcionalidade, decorrente do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, a norma contida no n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aditada pela Lei 27/2019, de 28 de março, na interpretação segundo a qual o tribunal não pode dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário».
2 - Por despacho do Presidente do Tribunal Constitucional datado de 17 de setembro de 2024, o pedido foi admitido, tendo sido determinada a notificação do Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 54.º e no n.º 3 do artigo 55.º, ambos da LTC.
Em 9 de outubro de 2024, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e remeteu uma nota técnica sobre os trabalhos preparatórios do diploma que aprovou a norma objeto de fiscalização, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II. FUNDAMENTAÇÃO
4 - O Ministério Público tem legitimidade, nos termos do artigo 82.º da LTC, para pedir a declaração de inconstitucionalidade de norma, com força obrigatória geral, que tenha sido julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos, nos termos do n.º 3 do artigo 281.º da Constituição.
O Ministério Público invoca que a norma sob fiscalização foi julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 153/2022, 446/2023 e 602/2023, ainda que com distintas formulações. Nos dois primeiros arestos, o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais segundo a qual «o tribunal não pode dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário»; no último dos Acórdãos, o julgamento de inconstitucionalidade incidiu sobre a norma do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais segundo a qual «a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte depende, em todos os casos, e independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas, do depósito prévio das mesmas».
Assiste razão ao requerente quando sustenta que a norma julgada inconstitucional é a mesma, ainda que com diferentes formulações. Em qualquer dos casos, está sempre em causa a regra segundo a qual não pode o juiz dispensar o depósito do valor integral das notas justificativas, independentemente das circunstâncias do caso concreto; a norma que impede o juiz de desobrigar o reclamante a proceder a tal depósito quando considere o valor excessivamente oneroso ou arbitrário. O que surge confirmado, de resto, pela circunstância de a fundamentação do Acórdão 602/2023 consistir em mera remissão para o Acórdão 153/2022.
Nessa medida, nada obsta ao conhecimento do pedido, tendo por objeto a norma julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 153/2022, 446/2023 e 602/2023: a norma contida no n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais (RCP) segundo a qual o tribunal não pode dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário.
5 - A norma que constitui objeto do pedido insere-se no regime da reclamação do valor das custas de parte pela parte delas devedora.
5.1 - As custas de parte «compreendem o que cada parte haja despendido com o processo e tenha direito a ser compensada em virtude da condenação da parte contrária» (n.º 4 do artigo 529.º do Código de Processo Civil [CPC]). Ora, nos termos do n.º 1 do artigo 533.º do CPC que «as custas da parte vencedora são suportadas pela parte vencida, na proporção do seu decaimento e nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais», determinando-se no respetivo n.º 2 que as despesas que compõem as custas de parte são (i) as taxas de justiça pagas; (ii) os encargos efetivamente suportados pela parte; (iii) as remunerações pagas ao agente de execução e as despesas por este efetuadas; e (iv) os honorários do mandatário e as despesas por este efetuadas.
Tais quantias devem constar de nota discriminativa e justificativa, fazendo menção a todos os elementos essenciais relativos ao processo e às partes (cf. n.º 3 do artigo 533.º do CPC). Assim, as custas de parte não se incluem na conta de custas a elaborar pelo tribunal, cabendo a sua reivindicação diretamente pela parte vencedora, mediante apresentação da respetiva nota discriminativa e justificativa, ali se levando em consideração a condenação em custas determinada na decisão final (cf. artigo 527.º do CPC).
Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 26.º do RCP, «a parte vencida é condenada, nos termos previstos no Código de Processo Civil, ao pagamento dos seguintes valores, a título de custas de parte: a) os valores de taxa de justiça pagos pela parte vencedora, na proporção do vencimento; b) os valores pagos pela parte vencedora a título de encargos, incluindo as despesas do agente de execução; c) 50/prct. do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, para compensação da parte vencedora face às despesas com honorários do mandatário judicial, sempre que seja apresentada a nota referida na alínea d) do n.º 2 do artigo anterior; e d) os valores pagos a título de honorários de agente de execução». Assim, as custas de parte traduzem-se no reembolso de certas despesas que a parte vencedora suportou, razão pela qual «até 10 dias após o trânsito em julgado, ou após a notificação de que foi obtida a totalidade do pagamento ou do produto da penhora, dependendo dos casos, as partes que tenham direito a custas de parte remetem para o tribunal, para a parte vencida e para o agente de execução, quando aplicável, a respetiva nota discriminativa e justificativa» (n.º 1 do artigo 25.º do RCP).
5.2 - Pretendendo a parte vencida contestar o valor apresentado pela parte vencedora a título de custas de parte, deve apresentar reclamação no prazo de 10 dias, sendo esta decidida no mesmo prazo pelo juiz (n.º 1 do artigo 26.º-A do RCP). Da decisão que recaia sobre essa reclamação cabe recurso em um grau se o valor em causa exceder 50 UC, cabendo à tramitação desse incidente o previsto no artigo 31.º do RCP para a reclamação da conta de custas (cf. n.os 3 e 4 do artigo 26.º-A do RCP).
A apreciação da reclamação depende, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 26.º-A do CPC, do depósito prévio do valor integral constante da nota discriminativa e justificativa impugnada. Como efeito jurídico desta norma, quando pretenda reclamar do valor da nota justificativa apresentada pelas partes que tenham direito a custas de parte (n.º 1 do artigo 25.º do RCP), deve o reclamante fazer o depósito integral do valor da nota justificativa, ainda que o devedor beneficie da prerrogativa de fazer o pagamento das custas em prestações.
5.3 - A norma cuja declaração de inconstitucionalidade é pedida foi extraída deste n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aditada pela Lei 27/2019, de 28 de março, inserta no regime aplicável à reclamação da nota justificativa das custas de parte:
«Artigo 26.º-A
Reclamação da nota justificativa
1 - [...]
2 - A reclamação da nota justificativa está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota.
3 - [...]
4 - [...]»
Na interpretação normativa sob fiscalização - a única sobre que pode incidir o presente pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral -, o tribunal não pode dispensar o depósito integral do valor da nota justificativa quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário.
6 - A conformidade constitucional da obrigação de depósito integral dos valores das notas justificativas enquanto condição de admissibilidade da respetiva reclamação não é questão inédita para o Tribunal Constitucional. Com efeito, este Tribunal já afirmou a sua conformidade constitucional nos Acórdãos n.os 370/2020, 461/2020 e 462/2020, todos da 1.ª Secção; e nos Acórdãos n.os 726/2020 e 56/2021, da 3.ª Secção.
No Acórdão 370/2020 recuperou-se a jurisprudência já desenvolvida a propósito da norma, de igual redação, constante do n.º 2 do artigo 33.º da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, na redação dada pela Portaria 82/2012, de 29 de março; norma essa que se inspirava no disposto no n.º 4 do artigo 33.º-A do Código das Custas Judiciais, que também mereceu uma decisão negativa de inconstitucionalidade deste Tribunal:
«Com efeito, o Acórdão 347/2009 considerou que a norma do artigo 33.º-A, n.º 4, “quando aplicada a processos de execução e enquanto faz depender a admissibilidade da reclamação e do recurso da nota discriminativa e justificativa das custas de parte do depósito prévio do montante nela fixado”, não lesava, por violação do princípio da proibição do excesso, o direito consagrado no artigo 20.º da Constituição. Estava então em causa a aplicação da referida norma a execuções em que a nota discriminativa e justificativa das custas de parte excedia, acentuadamente, o montante da própria dívida exequenda inicial (sendo a quantia exequenda inicial de € 44 600,73 e a nota de despesas objeto de reclamação de € 64 750,63).
O Tribunal começou por aferir a legitimidade do fim visado pela norma do artigo 33.º-A, n.º 4, do CCJ, enquanto instrumento destinado a, por um lado, “garantir que o custeamento do processo corra efetivamente por conta de quem lhe deu causa e não por conta do Estado e da Comunidade”, e, por outro, a “adequar o regime das custas ao atual modelo do processo executivo, em que a figura do ‘solicitador de execução’ aparece como um dado novo”. Assim, a norma visava “não só [...] garantir o pagamento das custas, mas ainda [...] moderar e razoabilizar, quanto a elas, o regime processual de reclamações e recursos, de forma a evitar o seu uso dilatório”.
Sendo pacífico o caráter restritivo que a norma em apreciação comportava face ao direito previsto no artigo 20.º da Constituição, o Tribunal aferiu, depois, a eventual violação do princípio da proporcionalidade, na dimensão de proibição do excesso, considerando a jurisprudência constitucional aplicável em matéria de custas:
“O Tribunal tem dito, em jurisprudência constante, que a norma contida no artigo 20.º da Constituição (mormente, a resultante do disposto no seu n.º 1) não contém nenhum imperativo de gratuitidade da justiça. Sendo o direito, que aí se consagra, de acesso ao tribunal, um direito pluridimensional [...], ampla será, também, a liberdade de conformação do legislador ordinário quanto à disciplina das custas que o exercício de tal direito, inevitavelmente, acarretará.
Certo é, no entanto, que essa liberdade terá limites, sempre que se demonstrar que os custos da utilização da máquina judiciária, fixados pelo legislador como correlativo da criação e afetação, por parte do Estado, de importantes meios ao fim de ‘realização da justiça’, são, pela sua dimensão, de tal modo excessivos ou onerosos que acabam por inibir o acesso que o cidadão comum deve ter ao juiz e ao tribunal. Quanto a este ponto, tem também sempre dito o Tribunal que o teste da proporcionalidade se deve fazer tendo em conta a exigência de um ‘equilíbrio interno ao sistema’ que todo o regime de custas, pela sua razão de ser, terá que perfazer. (Assim, vejam-se, entre outros, os Acórdãos n.os 552/91, 467/91 e 1182/96, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).”
E foi a propósito da alegada rutura do equilíbrio interno ao sistema, pelo excesso, coenvolvida na exigência, para reclamar da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, do prévio depósito do montante indicado nessa mesma nota, que o Tribunal considerou que tal só ocorreria caso o processo da respetiva elaboração não fosse controlado. Na verdade,
“[Diz o recorrente que o montante de tais custas pode] ascender a níveis excessivos pela ausência de controlo (mormente de controlo judicial) que terá o seu processo de elaboração. Assim sendo, conclui, não se pode exigir (como o faz o n.º 4 do artigo 33.º-A) que, para reclamar da nota que discrimina e justifica tais custas, se deposite previamente o montante por ela fixado. Não se pode porque a Constituição o proíbe [...].
No entanto, para que tal argumentação colhesse, necessário seria que se demonstrasse o carácter não controlado do processo de elaboração da nota de custas a que se refere o n.º 1 do artigo 33.º-A. Sucede, porém, que a atuação do agente de execução - pois é ela que centralmente está em causa - para além de ser controlada, em aspetos que agora não relevam, pelas pertinentes normas processuais, tem, naquilo que para o caso importa, suficiente controlo. A Portaria 708/2003, que veio regulamentar o regime fixado pela alínea e) do n.º 1 do artigo 33.º-A do CCJ, dispõe, no seu artigo 4.º, que ‘[o] juiz, a Câmara dos Solicitadores, o exequente e o executado e qualquer terceiro que tenha um interesse legítimo no processo têm direito a ser informados sobre a conta corrente discriminada da execução’, e que ‘[o] solicitador da execução, no ato de citação, para além das informações impostas pelas normas processuais, deve informar o executado do montante provável dos seus honorários e despesas’.
[T]anto basta para se conclua que, face às finalidades prosseguidas pelo n.º 4 do artigo 33-A do CCJ, se não torna desproporcionada a exigência, que nele se faz, de depósito prévio da quantia fixada na nota de custas, como condição da admissão da reclamação ou recurso.”
11 - No caso sub iudicio, é igualmente aplicável esta doutrina sobre os limites do equilíbrio interno do regime de custas. Com efeito, na linha da jurisprudência contida no Acórdão 347/2009, importa garantir que a solução legal quanto à elaboração da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, prosseguindo um fim legítimo, permite à instância judicial controlar minimamente o equilíbrio entre o montante peticionado a título de custas de parte e as circunstâncias concretas, relativas à lide e à complexidade da respetiva tramitação, e à própria parte, prevenindo hipóteses de, por lapsos inadvertidos mas grosseiros ou manipulações malévolas, impor custos indevidos e imprevisíveis à parte vencida.
O fim legalmente prosseguido é idêntico ao considerado no supracitado Acórdão, intensificado porventura agora pela preocupação de estimular a cooperação do devedor (cf. supra o n.º 6). No tocante às garantias do aludido equilíbrio interno, verifica-se que as mesmas, na solução em análise, até são reforçadas.
Em primeiro lugar, cumpre ter presente que das três rubricas que devem constar da nota discriminativa e justificativa das custas de parte segundo o artigo 25.º, n.º 2, do RCP - taxa de justiça, encargos e honorários e despesas de mandatário ou agente de execução -, o valor de duas delas é, desde logo, indicado pela secretaria do tribunal e o valor da terceira encontra-se perfeitamente balizado.
Assim, nos termos do artigo 30.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, com a notificação da decisão que ponha termo ao processo, deve a secretaria remeter às partes uma nota descritiva com os seguintes elementos:
a) Indicação das quantias efetivamente pagas a título de taxa de justiça;
b) Indicação das quantias efetivamente pagas a título de encargos.
Por outro lado, no que se refere aos honorários e despesas de mandatário ou agente de execução, rege, por remissão contida no artigo 32.º, n.º 1, da mesma Portaria, o limite fixado no artigo 26.º, n.º 3, alínea c), do RCP: ‘50 % do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora’.
Ou seja, a margem para lapsos ou manipulações quantitativas não verificáveis antes de qualquer reclamação é objetivamente muito limitada. Ademais, o custo máximo imputável a custas de parte é, em larga medida, antecipável a partir do cálculo da taxa de justiça aplicável e do tipo de processo, permitindo, desse modo, e se existir uma situação de risco real de comprometimento de acesso à justiça, mobilizar atempadamente o apoio judiciário, em especial, na modalidade de dispensa, total ou parcial, de taxa de justiça e demais encargos com o processo [cf. o artigo 16.º, n.º 1, alínea a), da Lei 34/2004, de 29 de julho].
A isto acresce, em segundo lugar, que a própria nota discriminativa e justificativa das custas de parte tem de ser remetida não apenas à parte vencida mas também ao próprio tribunal (cf. o artigo 25.º, n.º 1, do RCP e o artigo 31.º, n.º 1, da Portaria 419-A/2009, na redação originária). Mais: resulta da aplicação subsidiária à reclamação da nota justificativa das disposições relativas à reclamação da conta constantes do artigo 31.º do RCP - isto de acordo com a previsão do artigo 33.º, n.º 4, da Portaria 419-A/2009 - que ‘oficiosamente, a requerimento do Ministério Público ou dos interessados, o juiz mandará reformar a conta [ou a nota justificativa] se esta não estiver de harmonia com as disposições legais’. Saliente-se que esta possibilidade de reforma oficiosa se encontra prevista como uma consequência da sujeição da conta ao princípio da legalidade - princípio o que também vale para a elaboração da nota discriminativa e justificativa das custas de parte. Aliás, de outro modo, nem se compreenderia a exigência legal de envio de tal nota também ao tribunal.
Os dois aspetos considerados - a predeterminação normativa do valor máximo admissível das custas de parte num dado processo e a necessidade de dar conhecimento simultâneo ao tribunal e à parte vencida da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, abrindo a possibilidade de uma reforma oficiosa da nota apresentada - constituem um controlo mínimo suficiente para assegurar que a sujeição da reclamação daquela nota ao depósito prévio do respetivo valor não rompe o equilíbrio interno do regime de custas, neste domínio específico das custas de parte. Consequentemente, atentos os valores coenvolvidos em tal regime, mormente o da moderação e racionalização das reclamações, a sujeição em causa prevista no artigo 33.º, n.º 2, da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, na redação dada pela Portaria 82/2012, de 29 de março, não pode ser considerada excessiva, pelo que a mesma sujeição não viola o princípio da proporcionalidade.”
Não se vislumbrando especificidades que determinem uma apreciação distinta da já anteriormente efetuada no aresto que se vem de citar, é de proferir, in casu, idêntico juízo de não inconstitucionalidade incidente sobre a norma constante do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditado pela Lei 27/2019, de 28 de março, que determina que a apreciação da reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte está sujeita ao depósito da totalidade do valor da nota.»
7 - Assim, resulta da jurisprudência deste Tribunal que a norma segundo a qual a admissibilidade da reclamação das notas justificativas depende do depósito integral do seu valor se dirige a prosseguir um fim legítimo e constitucionalmente solvente: garantir que o custeamento do processo corra efetivamente por conta de quem lhe deu causa e não por conta do Estado e da comunidade; e, por outro lado, moderar e razoabilizar, quanto às custas de parte, o regime processual de reclamações e recursos, de forma a evitar o seu uso dilatório.
As razões da conformidade constitucional deste regime foram sintetizadas no Acórdão 153/2022:
«9 - Na jurisprudência deste Tribunal (Acórdãos n.os 370/2020, 461/2020, 462/2020, 726/2020 e 56/2021) aquele juízo de não inconstitucionalidade assentou na consideração dos demais ‘‘mecanismos de controlo interno’’, consagrados nas demais normas do regime jurídico das custas de parte, e que evitariam que o valor apresentado pela parte vencedora a título de custas de parte pudesse ser desproporcionado ou imprevisível. No fundo, se a ratio constitucionalmente solvente da norma do n.º 2 do artigo 26.º-A do RCP é evitar que, ‘‘a coberto de uma reclamação de custas de parte a parte vencida possa adiar o pagamento do montante devido à parte vencedora, por outro lado não estará no espectro dessa mesma ratio que a parte vencedora possa aproveitar-se dessa norma para peticionar montantes inexigíveis e que obrigarão a sacrifícios da parte contrária, ou até mesmo que lhe seja permitido evitar o efeito cominatório da reclamação, atenta a falta de capacidade da parte vencida em depositar tais quantias’’ (Eduardo Peixoto Gomes, ‘‘Limitações na reclamação de custas de parte’’, Ab Instantia, ano i, n.º 2, 2013, p. 259).
Desde logo, porque as quatro parcelas que compõem o valor de custas de parte (taxa de justiça; encargos ou despesas; honorários do mandatário; honorários do agente de execução - n.º 1 do artigo 25.º do RCP) estão normativamente balizadas, o que evitará que a parte sucumbente seja surpreendida por valores imprevisíveis e, por outro lado, impedirá que a parte vencedora, por lapso grosseiro ou por conduta malévola, reivindique montantes arbitrários. No que concerne à taxa de justiça, ela é normativamente fixada por referência ao valor e à complexidade da causa, nos termos do disposto nos artigos 5.º e seguintes do RCP; os encargos estão delimitados nos artigos 16.º e seguintes do RCP; os honorários do mandatário estão circunscritos a ‘‘50/prct. do somatório das taxas de justiça pagas pela parte vencida e pela parte vencedora, para compensação da parte vencedora face às despesas com honorários do mandatário judicial’’ [cf. alínea c) do n.º 2 do artigo 26.º do RCP]; por fim, os honorários do agente de execução são normativamente fixados no artigo 50.º da Portaria 282/2013, de 29 de agosto (na redação que lhe foi conferida, por último, pela Portaria 239/2020, de 12 de outubro). Deste modo, as normas vigentes permitem às partes litigantes prever, face ao valor e complexidade da causa, o montante em que podem vir a ser condenadas a título de custas de parte; e a sua apresentação pela parte vencedora está expressamente regulada - pelo que, sempre que o credor de custas de parte cumpra as normas, sempre se chegará a um valor razoável e antecipável pela parte sucumbente.
Por outro lado, levou-se em linha de conta, naqueles arestos, que o regime jurídico vigente admite ao tribunal rever oficiosamente a conta de custas, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 31.º do RCP. No fundo, porque ‘‘Para efeitos de reclamação da nota justificativa são aplicáveis subsidiariamente, com as devidas adaptações, as disposições relativas à reclamação da conta constantes do artigo 31.º’’ (nos termos do n.º 4 do artigo 26.º-A do RCP), entendeu-se ser possível um controlo judicial dos montantes apresentados pela(s) parte(s) vencedora(s), que prevenirá a oneração da parte vencida da obrigação de pagamento de valores injustificados.
Em consequência, entendeu este Tribunal que a obrigação de depósito integral do valor da nota justificativa como condição de admissão da reclamação não constitui uma restrição desproporcionada ao direito de acesso ao direito e à justiça, já que os ‘‘mecanismos de controlo interno’’ sempre impediriam que o valor a depositar se revelasse manifestamente oneroso ou arbitrário.»
8 - A interpretação normativa cuja inconstitucionalidade é discutida não diz respeito à obrigação de depósito integral das notas justificativas - que, como referido, já viu a respetiva conformidade constitucional asseverada por diversas vezes por este Tribunal. Diferentemente, está em causa a inexistência da faculdade de o juiz dispensar o depósito integral do montante das notas justificativas, quando o considere desproporcionado.
A conformidade constitucional de um regime que postule a obrigatoriedade de depósito de certa quantia como condição de acesso à tutela jurisdicional tem em conta o resultado a que aquela conduza em face de uma situação concreta. Nessa medida, o Tribunal leva em consideração a existência ou ausência de mecanismos corretivos (v. g., estabelecimento de limites máximos; possibilidade de revisão pelo julgador): «Quanto a este ponto, tem também sempre dito o Tribunal que o teste da proporcionalidade se deve fazer tendo em conta a exigência de um “equilíbrio interno ao sistema” que todo o regime de custas, pela sua razão de ser, terá que perfazer. (Assim, vejam-se, entre outros, os Acórdãos n.os 552/91, 467/91 e 1182/96)» (cf. Acórdão 678/2014). No fundo, e como se concluiu no Acórdão 301/2009, «a potencialidade de um critério gerar valores desproporcionados de custas, por não acolhimento de fatores que os teriam evitado, só releva quando essa potencialidade, em face das circunstâncias do caso e do montante concretamente apurado, se tenha concretizado», razão pela qual a censura constitucional sobre a norma tem em consideração o valor quantitativamente determinável por aplicação de certo critério normativo: «as configurações casuísticas no plano da fiscalização concreta da constitucionalidade contam como elemento de valoração, sem pôr em causa a natureza normativa do nosso sistema de controlo», porquanto «a ausência de previsão desses fatores corretivos só releva quando eles, no caso em apreciação, teriam atuado restritivamente, reconduzindo o valor pecuniário a prestar aos limites da proporcionalidade que, de outro modo, resulta violada» (Acórdão 301/2009).
Concluiu-se no Acórdão 153/2022:
«[O] critério desenvolvido por este Tribunal para apreciação da licitude jurídico-constitucional das normas que impõem o depósito prévio de montantes como condição de acesso aos serviços de justiça olha ao resultado desproporcionado a que conduza a sua aplicação, pois só nesse caso se pode concluir que o legislador, ao não prever suficientes mecanismos de retificação ou controlo, violou o cânone da proporcionalidade. Só aí é que o critério normativo redunda numa limitação excessiva do direito fundamental de acesso aos serviços de justiça, transgredindo simultaneamente a segunda e terceira dimensões do princípio da proporcionalidade (necessidade da medida e proporcionalidade em sentido estrito). Por esta razão, este Tribunal vem decidindo a inconstitucionalidade de tais normas com fundamento na inexistência de um limite máximo ou na impossibilidade de o tribunal reduzir o valor a pagar ou depositar em certo caso concreto (cf. Acórdãos n.os 227/2007; 470/2007; 471/2007; 116/2008; 266/2010; 421/2013; 604/2013; 844/2014).
Em linha com estes critérios, a conformidade constitucional da interpretação normativa sob fiscalização (segundo a qual não é permitido ao tribunal dispensar o reclamante do depósito integral do valor da nota justificativa quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário) fica dependente da suficiência dos mecanismos de controlo interno para impedir uma fixação arbitrária do valor a depositar pelo reclamante. Como, de resto, resulta do Acórdão 347/2009, convocado para a apreciação da norma do n.º 2 do artigo 26.º-A do RCP pelos Acórdãos n.os 370/2020, 461/2020, 462/2020, 726/2020 e 56/2021.»
9 - Ora, forçoso é concluir que os mecanismos corretivos que precaveriam a possibilidade de apresentação de notas justificativas de valor arbitrário e imprevisível (cujo depósito integral seria sempre condição para a sua reclamação) não são infalíveis, sobretudo atendendo a que (i) a doutrina e a jurisprudência apontam no sentido de não haver lugar a correção ou reforma oficiosa da nota de custas; e a que (ii) a norma que determinava que a secretaria do Tribunal remetesse às partes a indicação das quantias efetivamente pagas a título de taxa de justiça e a título de encargos, constante do n.º 2 do artigo 30.º da Portaria 419-A/2009, de 17 de abril, foi revogada.
Assim, é possível que a aplicação das regras legais conduza à imposição à parte vencida de valores imprevisíveis e excessivos. Ilustrando o que vem de se dizer, atente-se ao exemplo do caso subjacente ao Acórdão 153/2022: «para uma ação com valor de € 2 474 219,00 (e em que, por isso, a previsibilidade da parte vencida quanto ao montante das custas de parte se fixava, em € 133 824 de taxa de justiça e 50 % deste valor [€ 66 912] a título de compensação pelos honorários do mandatário, a que acresceriam os encargos), o valor de custas de parte ascende a € 894 336. Pretendendo a parte vencida reclamar de um valor de custas de parte tão elevado, determinar-se-ia, por força do disposto no n.º 2 do artigo 26.º-A do RCP, o depósito integral daquele montante - 1336 % do montante de referência [€ 66 912].».
Nessa medida, a moderação e a previsibilidade do valor da nota justificativa assenta em uma presunção de cumprimento ou observância da lei pelos intervenientes que previna a apresentação, pela parte vencedora, de uma nota justificativa de valor arbitrário. Quando assim não for, resta à parte vencida impugnar os valores apresentados mediante a apresentação de uma reclamação, nos termos do disposto no artigo 26.º-A do RCP. Reclamação essa que só pode ser apreciada pelo tribunal se depositado o valor integral da nota justificativa.
10 - É neste contexto que importa apreciar a conformidade constitucional da norma segundo a qual o tribunal não pode dispensar o reclamante de proceder ao depósito integral do valor da nota justificativa quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário. Está em causa a omissão, pelo legislador, de um mecanismo corretivo que possibilite ao juiz conhecer da reclamação de uma nota justificativa cujo valor seja considerado excessivamente oneroso ou arbitrário, dispensando o interessado de depositar a totalidade dessa quantia.
A conformidade constitucional de normas que não admitam ao juiz a dispensa do utente de serviços de justiça de fazer o depósito ou pagamento de certas quantias como condição de acesso ao direito e aos tribunais não é questão inédita para este Tribunal. No Acórdão 153/2022, fez-se uma súmula da jurisprudência do Tribunal Constitucional neste domínio:
«Desde logo, tendo por base o direito de livre acesso aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, o Tribunal Constitucional já incidiu sobre a bondade constitucional de tais exigências quando feitas em sede de custas judiciais. Ora, sendo claro que a Constituição não impõe a gratuitidade dos serviços de justiça (cf., entre muitos, Acórdãos n.os 352/91; 1182/96 e 422/2000), tem o legislador ampla liberdade para conformar o regime de custas processuais - designadamente em sede de taxa de justiça inicial, cujo pagamento é condição de admissibilidade do pleito. Simplesmente, porque o direito de acesso ao Direito e aos tribunais ‘‘é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da proteção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de direito’’ (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, p. 408), a que é aplicável o regime dos direitos, liberdades e garantias (Acórdãos n.os 364/2004 e 301/2009), a subordinação do acesso a serviços de justiça ao depósito de quantias muito elevadas pode implicar uma limitação do acesso aos tribunais, na medida em que inibam os cidadãos de a eles recorrer. Nestes casos, a sua conformidade constitucional fica vinculada ao regime das leis restritivas dos direitos, liberdades e garantias, dependendo, inter alia, da sua idoneidade para salvaguarda de outro interesse ou direito constitucionalmente protegido e do cumprimento do princípio da proporcionalidade (cf. n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
E, note-se, assim será mesmo nos casos em que o obrigado ao pagamento ou depósito não é economicamente carenciado: o acesso aos serviços e justiça não pode ser obstaculizado ‘‘por exigências desproporcionadas de carácter económico impostas às partes, porque esse acesso é negado não só quando o interessado não tiver meios económicos suficientes mas também quando ele tiver meios económicos suficientes, mas lhe for pedido, em termos de custas ou equivalente, algo de desproporcionado’’ (Miguel Teixeira de Sousa, “A jurisprudência constitucional e o direito processual civil”, XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, p. 75). No fundo, e como se concluiu no Acórdão 301/2009, o direito de acesso aos serviços de justiça seria esvaziado ‘‘se ao legislador fosse dado fixar montantes de custas judiciais de tal forma elevados que perdessem toda a conexão razoável com o custo e o valor do serviço prestado. Pois, desse modo, o ‘custo da justiça’ não poderia ser suportado, sem sacrifícios inexigíveis, pela generalidade dos cidadãos, constituindo um obstáculo insuperável ao exercício de um direito que a Constituição reconhece. Nesta perspetiva, para satisfação adequada do direito de acesso aos tribunais, na sua dimensão prestacional, impõe-se, não apenas a remoção, através do sistema de apoio judiciário, das incapacitações causadas por insuficiência de meios dos mais carenciados para pagar taxas, ainda que de montante ajustado, mas também a fixação dessas taxas em valores não excessivamente gravosos, para o universo de todos aqueles que não estão isentos do seu pagamento ou não beneficiam das reduções previstas. Ambas as vertentes se encontram cobertas pela proibição de denegação de justiça por insuficiência de meios económicos.’’.
Similares conclusões vêm sendo retiradas por este Tribunal - também com fundamento no direito de livre acesso aos tribunais - quando em causa esteja a obrigação de depósito de valores de diferente natureza como ónus necessário para a obtenção de tutela jurisdicional. Em jurisprudência que remonta à Comissão Constitucional, considerou-se transgredirem o direito de acesso ao direito várias normas que impunham o depósito de quantias como condição de prosseguimento de ações ou recursos. Veja-se a síntese do Acórdão 30/88:
“Em abono de tal entendimento, refira-se que a extinta Comissão Constitucional foi por mais de uma vez chamada a confrontar a citada disposição constitucional com normas de direito ordinário de conteúdo idêntico ou paralelo àquela de que agora nos ocupamos, tendo-se pronunciado pela respetiva inconstitucionalidade.
Assim, no Parecer 8/78 (in Pareceres, vol. 5.º, pp. 3 e segs.), em que se concluiu pela inconstitucionalidade da regra constante da segunda parte do corpo do artigo 262.º do Código de Processo das Contribuições e Impostos, na parte em que aí se obstava ao seguimento do recurso quando o recorrente não havia prestado caução ou não havia prestado toda a caução, devido a insuficiência de meios económicos, a Comissão Constitucional teve ocasião de afirmar que a Constituição se deveria ter por violada sempre que, por insuficiência de tais meios, o cidadão pudesse ver frustrado o seu direito à justiça, tendo em conta o sistema jurídico-económico em vigor para o acesso aos tribunais na ordem jurídica portuguesa. E, no mesmo parecer, a Comissão Constitucional salientava que a Constituição ‘‘indo além do mero reconhecimento duma igualdade formal no acesso aos tribunais’’, se propunha ‘‘afastar neste domínio a desigualdade real nascida da insuficiência de meios económicos, determinando expressamente que tal insuficiência não pode constituir motivo para denegação da justiça’’.
Mais tarde, no Parecer 9/82 (in Pareceres, vol. 19.º, pp. 29 e segs.), a Comissão Constitucional viria igualmente a concluir pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 189.º, n.º 1, do Código das Custas Judiciais, na parte em que, conjugado com o disposto no artigo 192.º, n.º 2, do mesmo diploma, obstava ao seguimento do recurso quando o recorrente não havia procedido, por insuficiência de meios económicos, ao depósito das multas em que se encontrava em dívida, louvando-se, para tanto, em idênticos fundamentos.
Finalmente, e também pelos mesmos motivos, a Comissão Constitucional viria a julgar inconstitucional a norma constante do artigo 192.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, aplicável ex vi do artigo 103.º do Código das Custas Judiciais do Trabalho, na parte em que impõe o depósito das quantias da condenação como condição de seguimento do recurso e nos casos em que o recorrente, por insuficiência económica, o não possa efetuar (Acórdão 478, in Apêndice ao Diário da República, de 23 de agosto de 1983).
Foi essa a razão pela qual se concluiu, no mesmo Acórdão 30/88, “pela inconstitucionalidade da norma em apreço, na parte em que obsta ao seguimento do recurso judicial, quando o recorrente, por insuficiência de meios económicos, não procede ao prévio depósito do quantitativo da coima”. E, do mesmo passo, se julgou inconstitucional a interpretação normativa extraída da alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º, conjugada com a primeira parte do n.º 1 do artigo 6.º, ambos do RCP, segundo a qual a apreciação da impugnação judicial da decisão administrativa que negou a concessão de apoio judiciário está condicionada ao pagamento prévio da taxa de justiça (Acórdão 420/2006).
Quer isto dizer que as normas definidoras das quantias exigíveis como condição de acesso a serviços de justiça - seja a título de depósito prévio ou de obrigação de pagamento - são constitucionalmente ilegítimas “quando inviabilizem ou tornem particularmente oneroso o acesso aos tribunais para o cidadão médio” (Acórdão 352/91), estando limitadas pela imposição constitucional da proporcionalidade (Acórdãos n.os 227/2007 e 731/2013).»
11 - Nos termos desta jurisprudência, que aqui se reitera, a inexistência da faculdade de o juiz dispensar o reclamante de proceder ao depósito como condição de acesso à tutela jurisdicional apenas seria constitucionalmente admissível se os «mecanismos de controlo interno» assegurassem que aquele valor não fosse imprevisível ou excessivo. Não sendo assim, o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais impede a preclusão da faculdade de o juiz dispensar o depósito daqueles montantes quando os considere desproporcionados ou arbitrários.
A falência ou insuficiência dos mecanismos de controlo internos que previnam a apresentação de uma nota justificativa manifestamente excessiva ou arbitrária implica, pois, a inconstitucionalidade da norma que proíbe o juiz de dispensar a parte vencida de depositar a integralidade da nota de custas como condição de acesso à tutela jurisdicional, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais (n.º 1 do artigo 20.º da Constituição). Trata-se de uma restrição desproporcionada àquele direito, como se concluiu no Acórdão 153/2022:
«13 - Concluiu o tribunal a quo que a dimensão normativa cuja aplicação foi recusada - segundo a qual o tribunal não pode dispensar o reclamante de proceder depósito integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário - transgride o princípio da proporcionalidade na restrição do direito de acesso ao direito e aos tribunais: por um lado, por violar a subdimensão da necessidade ou exigibilidade - não constituindo a medida menos restritiva do direito de acesso à justiça capaz de realizar a moderação das reclamações -, já que uma utilização indevida da reclamação das notas justificativas sempre poderia ser prevenida por outros expedientes, quer através do regime da litigância de má-fé (arts. 542.º e ss do Código de Processo Civil [CPC]), quer por via da aplicação da taxa sancionatória excecional (art. 531.º do CPC); por outro lado, por não ser a medida adequada à satisfação dos interesses dos credores das custas de parte - porquanto a obrigação de pagamento da dívida apenas se vence depois do exercício do direito a reclamar das notas justificativas.
É este o juízo que cumpre acompanhar. O critério normativo fiscalizado - segundo o qual não é permitido ao tribunal dispensar o reclamante do depósito integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário - tem subjacente a falência dos ‘‘mecanismos de controlo interno’’ que garantiriam a sua conformidade constitucional. De acordo com a dimensão normativa sindicada, não existe mecanismo corretivo que, quando o tribunal considere o valor a depositar manifestamente excessivo ou arbitrário, assegure a tutela jurisdicional efetiva para questionar aquele mesmo valor, conduzindo, desse modo, à obrigação de depósito de valores manifestamente exagerados que não podem considerar-se necessários ao objetivo de racionalização das reclamações.»
12 - Resta concluir, pois, que a norma contida no n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aditada pela Lei 27/2019, de 28 de março, interpretada no sentido de não ser permitido ao tribunal dispensar o reclamante do depósito integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário, opera uma restrição desproporcionada ao direito à tutela jurisdicional efetiva, em violação do disposto no n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o disposto no n.º 2 do artigo 18.º, ambos da Constituição, devendo ser declarada inconstitucional com força obrigatória geral.
III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditada pela Lei 27/2019, de 28 de março, na interpretação segundo a qual o tribunal não pode dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário, por violação do direito de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade (n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).
Atesto o voto de conformidade do Senhor Conselheiro Teles Pereira, que não assina por não estar presente. Afonso Patrão.
Lisboa, 25 de março de 2025. - Afonso Patrão - João Carlos Loureiro - Joana Fernandes Costa (vencida quanto ao conhecimento, conforme declaração em anexo) - Carlos Medeiros de Carvalho (vencido quanto ao conhecimento no termos da declaração de voto do Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Joana Fernandes Costa) - Gonçalo Almeida Ribeiro - José Eduardo Figueiredo Dias - Mariana Canotilho - Rui Guerra da Fonseca - Maria Benedita Urbano - Dora Lucas Neto - António José da Ascensão Ramos - José João Abrantes.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida quanto ao conhecimento.
1 - De acordo com o artigo 82.º da LTC, «sempre que a mesma norma tiver sido julgada inconstitucional ou ilegal em 3 casos concretos, pode o Tribunal Constitucional, por iniciativa de qualquer dos seus juízes ou do Ministério Público, promover a organização de um processo com as cópias das correspondentes decisões, o qual é concluso ao presidente, seguindo-se os termos do processo de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade ou da ilegalidade previstos na presente lei».
Como refere Lopes do Rego, «[o] mecanismo da generalização dos juízos de inconstitucionalidade tem levado a que um número crescente de decisões de inconstitucionalidade incida não sobre normas “objetivamente consideradas” mas sobre concretas e específicas dimensões, sentidos ou interpretações normativas que a jurisprudência, formada no domínio da fiscalização concreta, vem julgando inconstitucionais. Tal implica que deva necessariamente verificar-se uma estrita e perfeita sobreposição ou coincidência entre as normas ou dimensões normativas, julgadas inconstitucionais, e que suportam o pedido de generalização deduzido» (Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 2010, p. 313).
Ao contrário da maioria, considero que tal pressuposto não se encontra verificado no caso.
2 - Segundo resulta do requerimento apresentado pelo Ministério Público, foi pedida ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditado pela Lei 27/2019, de 28 de março, na interpretação segundo a qual «a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte depende, em todos os casos, e independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas, do depósito prévio das mesmas», que foi julgada inconstitucional no Acórdão 602/2023.
O presente Acórdão, por sua vez, declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, na interpretação segundo a qual «o tribunal não pode dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário», que foi julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023.
Nas três referidas ocasiões, o Tribunal julgou inconstitucionais normas resultantes da interpretação do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais. Porém, não julgou inconstitucional no Acórdão 602/2023 a mesma norma que fora julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023.
3 - A comparação entre os enunciados apreciados, por um lado no Acórdão 602/2023 e, por outro, nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023, revela, desde logo, uma radical falta de identidade no plano formal.
Enquanto o Acórdão 602/2023 se refere à circunstância de a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte depender, em todos os casos, e independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas, do depósito prévio das mesmas, os Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023 aludem à impossibilidade de o tribunal dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário.
4 - A falta de identidade no plano formal projeta-se, quanto a mim, no plano substantivo.
Diversamente do entendimento seguido pela maioria, creio que as diferenças identificadas nos enunciados normativos em confronto não representam uma falta de correspondência meramente formal, traduzindo antes diferentes dimensões normativas do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais.
A interpretação julgada inconstitucional no Acórdão 602/2023 refere-se à subordinação da «reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte» ao «depósito prévio das mesmas», «independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas». Já a interpretação julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023 diz respeito à impossibilidade de, sendo aquela a regra vigente, «o tribunal dispensar o depósito do valor integral das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário» (sublinhado aditado).
Isto é, naquela primeira dimensão, inequivocamente mais ampla, está em causa o efeito diretamente produzido pela norma objetivamente consagrada no n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, que consiste em fazer depender a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte do depósito prévio das mesmas, «independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas». Já na segunda está somente em causa a circunstância de aquele regime não ser acompanhado da atribuição ao tribunal da faculdade de dispensar o depósito do valor integral das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário. Por isso se disse nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023 que a violação da Constituição provinha da «omissão, pelo legislador, de um mecanismo corretivo que possibilite ao juiz conhecer da reclamação de uma nota justificativa cujo valor seja considerado excessivamente oneroso ou arbitrário, dispensando o interessado de depositar a totalidade dessa quantia».
Daqui se retira, pois, que, ao julgar inconstitucional a norma constante do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditado pela Lei 27/2019, de 28 de março, na interpretação segundo a qual «a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte, depende, em todos os casos, e independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas, do depósito prévio das mesmas», o Acórdão 602/2023 acabou por sediar a violação da Constituição na própria configuração do regime-regra ali previsto, ao passo que os Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023, ao julgarem inconstitucional o n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, na interpretação segundo a qual «o tribunal não pode dispensar o depósito do valor integral do valor das notas justificativas quando o considere excessivamente oneroso ou arbitrário», imputaram a violação da Constituição à ausência de uma válvula de escape que, justamente por ser aquela a regra aplicável, permitisse ao tribunal intervir para corrigir situações de excesso manifesto.
A norma julgada inconstitucional no Acórdão 602/2023 é, por isso, mais ampla do que aquela que foi julgada inconstitucional nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023, o que comprova a ausência de identidade substancial entre as interpretações do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais de que o presente Acórdão se socorre para dar por verificado o requisito quantitativo estabelecido no artigo 82.º da LTC.
5 - Aliás, o modo como os Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023, por um lado, e o Acórdão 602/2023, por outro, definiram a sua relação com a anterior jurisprudência do Tribunal acerca do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais é elucidativa do diferente sentido e alcance das normas julgadas inconstitucionais num e noutro caso.
Os Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023 não puseram em causa a orientação seguida nos Acórdãos n.os 370/2020, 461/2020, 462/2020, 726/2020 e 56/2021, segundo a qual «a obrigação de depósito integral do valor da nota justificativa como condição de admissão da reclamação não constitui uma restrição desproporcionada ao direito de acesso ao direito e à justiça, já que os «mecanismos de controlo interno» sempre impediriam que o valor a depositar se revelasse manifestamente oneroso ou arbitrário». O que consideraram foi que, como «estes mecanismos corretivos (e que precaveriam a possibilidade de apresentação de notas justificativas de valor arbitrário e imprevisível, cujo depósito integral seria sempre condição para a sua reclamação) não são infalíveis», o legislador se encontrava constitucionalmente obrigado a ir mais longe, permitindo a intervenção do tribunal em caso de «falência dos ‘‘mecanismos de controlo interno’’ que garantiriam a [...] conformidade constitucional» do regime, o mesmo é dizer, atribuindo-lhe a faculdade de desonerar a parte da «obrigação de depósito de valores manifestamente exagerados que não podem considerar-se necessários ao objetivo de racionalização das reclamações».
Já o Acórdão 602/2023 entendeu que a fundamentação adotada nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023 «se afasta[va] de jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional sobre questão paralela» - isto é, da orientação seguida nos Acórdãos n.os 370/2020, 461/2020, 462/2020, 726/2020 e 56/2021 -, sendo, nessa medida, aplicável à «norma constante do n.º 2 do artigo 26.º-A do Regulamento das Custas Processuais, aditada pela Lei 27/2019, de 28 de março, na interpretação segundo a qual a reclamação da nota discriminativa e justificativa das custas de parte depende, em todos os casos, e independentemente da ponderação do caso concreto em análise, nomeadamente da situação económica e financeira do reclamante e do montante de tais custas, do depósito prévio das mesmas».
Também por aqui se vê que entre as dimensões normativas julgadas inconstitucionais nos Acórdãos n.os 153/2022 e 446/2023, por um lado, e no Acórdão 602/2023, por outro, não se verifica a «estrita sobreposição ou coincidência» que o Tribunal tem exigido para a generalização do juízo de inconstitucionalidade com base na sua repetição em, pelo menos, três casos concretos (cf. Acórdãos n.os 171/2014 e 174/2014). - Joana Fernandes Costa.
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