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Acórdão do Tribunal Constitucional 1/2025, de 27 de Janeiro

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Sumário

Decide não dar por verificada a legalidade do referendo local, por iniciativa popular, cuja realização foi deliberada pela Assembleia Municipal de Lisboa, na sua sessão de 3 de dezembro de 2024.

Texto do documento

Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1/2025



Processo 1121/24

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - A Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa submeteu ao Tribunal Constitucional a deliberação da Assembleia Municipal de realização de um referendo local, por iniciativa popular, tomada na sessão ordinária de 03/12/2024, para verificação preventiva da constitucionalidade e da legalidade, em cumprimento do disposto no artigo 25.º da Lei Orgânica 4/2000, de 24 de agosto, que aprovou o Regime Jurídico do Referendo Local (RJRL).

1.2 - [sic] O pedido, enviado em 09/12/2024, foi instruído, além do mais, com o texto original da iniciativa popular, a deliberação de realização do referendo e cópia da ata da sessão em que esta foi tomada e, bem assim, com as listas de assinaturas dos cidadãos subscritores, que incluem um primeiro lote junto no momento da proposta da iniciativa popular e um segundo lote junto no dia 06/12/2024.

1.3 - [sic] O referendo contém duas perguntas, formuladas da seguinte forma:

«1 - Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação?

2 - Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imóveis destinados a habitação?»

2 - Por despacho do Vice-Presidente do Tribunal Constitucional, em substituição do Presidente do Tribunal Constitucional, datado de 09/12/2024, foi liminarmente admitido o pedido e ordenada a distribuição do processo.

3 - Discutido o memorando a que se refere o n.º 3 do artigo 29.º do RJRL e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de acordo com o que então se estabeleceu.

II - Fundamentação

4 - A possibilidade de realização de consultas referendárias a nível local está prevista no artigo 240.º da Constituição, preceito aditado pelo artigo 163.º da Lei Constitucional 1/97, de 20 de setembro, mas que mergulha as suas raízes no artigo 241.º, n.º 3 (introduzido pelo artigo 184.º da Lei Constitucional 1/82, de 30 de setembro), relativo à possibilidade de os órgãos das autarquias locais efetuarem «consultas directas aos cidadãos eleitores recenseados na respectiva área [...]» [vd., desenvolvidamente, António Filipe, O referendo na experiência constitucional portuguesa, Coimbra, Almedina, 2016, pp. 331-346; anteriormente, só podendo considerar as consultas diretas, vd. Ricardo Leite Pinto, Referendo local e descentralização política (Contributo para o estudo do referendo local no constitucionalismo português), Coimbra, Almedina, 1988, pp. 73-92; também José de Matos Correia/ Ricardo Leite Pinto, Lições de ciência política e direito constitucional (eleições, referendo, partidos políticos e sistemas constitucionais comparados), Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2018, pp. 93-100; ainda, de forma sintética em virtude do objeto de investigação - referendo nacional -, Luís Barbosa Rodrigues, O referendo português a nível nacional, Coimbra, Coimbra Editora, 1994, pp. 142-143, e Maria Benedita Urbano, O referendo: perfil histórico-evolutivo do instituto. Configuração jurídica do referendo em Portugal, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, p. 131, elencando os projetos de Revisão que o previam - Aliança Democrática (AD), Acção Social Democrata Independente (ASDI) e Frente Republicana e Socialista (FRS); no percurso pelos «projectos doutrinários», Maria Benedita Urbano menciona também o de Jorge Miranda (p. 138), limitado ao referendo local, defendendo este uma «consagração [...] progressiva» dos instrumentos referendários, cf. p. 139, n. 309].

O referendo local, no caso com iniciativa popular, é um modo de «aprofundamento da democracia participativa» (artigo 2.º da Constituição), de «participação na vida pública» (artigo 48.º, n.º 1, da Constituição), de «participação política dos cidadãos» (artigo 109.º da Constituição). Esta dimensão participativa assumiu logo na versão originária da Constituição um papel relevante (vd., para uma síntese, Jorge Miranda, A Constituição de 1976: formação, estrutura, princípios fundamentais, Lisboa, Petrony, 1978, pp. 459-472) e conheceu, por via de revisão constitucional, outras concretizações, com especial relevo para o referendo (nacional, regional e local).

O instituto do referendo local tem, aliás, raízes na história constitucional portuguesa. Consagrado na Constituição de 1911, previa-se, no artigo 66.º, no que toca à «organização e atribuições dos corpos administrativos», que seria elaborada lei especial, que assentaria em diversas bases, entre as quais se contava o «[e]xercício do referendum nos termos que a lei determinar» (4.ª base; na doutrina, vd., Marnoco e Sousa, Constituição Politica da Republica Portuguêsa: Commentario, Coimbra, F. França Amado, Editor, 1913, n.º 260, pp. 593-595). Marnoco e Sousa louva a sua adoção:

«Com o referendum, os agreggados administrativos virão a ser animados por uma nova vida, preparando-se assim um meio favoravel ao bom funcionamento do regimen representativo» (p. 594).

Na Lei 88, de 7 de agosto de 1913, no Capítulo II («Da competência e atribuições das câmaras municipais»), dispunha-se, no artigo 96.º, no § 1.º, o seguinte:

«As deliberações a que se referem os n.os 11.º, 15.º, 19.º, 20.º, 24.º e 35.º, do artigo 94.º serão submetidas ao referendum dos eleitores do concelho, se a décima parte dos mesmos eleitores assim o requerer».

Esta possibilidade de referendo em determinadas matérias (desde a contração de empréstimos até à venda de carnes verdes, passando pelo lançamento de contribuições diretas ou indiretas, municipalização de serviços locais, organização de serviços no campo das mutualidades, seguros, previdência e crédito e ainda a celebração de acordos com outras câmaras municipais) foi, nas palavras de César Oliveira [“A República e os municípios”, in Idem (Dir.), História dos municípios e do poder local [Dos finais da Idade Média até à União Europeia], Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 243-283, p. 262], «a grande inovação na administração local introduzida pela República, no âmbito da Lei 88, de 7 de Agosto de 1913».

Se em relação às deliberações do município mencionadas o referendo era facultativo, só podendo ser imposto por via da iniciativa de 10 % dos eleitores do concelho, o mesmo não se passava quanto a algumas deliberações das juntas de paróquia referentes à aquisição de bens imobiliários, à expropriação por utilidade pública, ao lançamento de contribuições, a empréstimos e ainda à fundação, dotação e extinção de estabelecimentos de utilidade paroquial. Nestas hipóteses, era obrigatória a consulta popular para as deliberações «se tornarem executórias» (artigo 147.º), sendo o universo eleitoral limitado aos eleitores da paróquia (sobre a elaboração deste diploma, os seus traços fundamentais, a alteração limitativa do âmbito do referendo pela Lei 446, de 18 de setembro de 1915, e depois, em 1916, a Lei 621, de 23 de junho, cf. também António Filipe, O referendo na experiência constitucional portuguesa, pp. 124-136).

A Constituição de 1933, no artigo 126.º (depois, 127.º) consagrava também a possibilidade de submissão a referendum das deliberações dos corpos administrativos. No entanto, foi limitado às deliberações das freguesias e mesmo essa solução acabou por ser abandonada a favor do chamado «referendo orgânico» (cf. a síntese de Marcello Caetano, Manual de direito administrativo, t. I, 10.ª ed., Lisboa, 1973, n.º 102, p. 234), tendo este último contribuído também para o não acolhimento, no texto originário da Constituição da República Portuguesa, do referendo local (cf. Jorge Miranda, A Constituição de 1976: formação, estrutura, princípios fundamentais, p. 397).

O artigo 240.º da Constituição dispõe que «as autarquias locais podem submeter a referendo dos respetivos cidadãos eleitores matérias incluídas nas competências dos seus órgãos, nos casos, nos termos e com a eficácia que a lei estabelecer» (n.º 1) e «a lei pode atribuir a cidadãos eleitores o direito de iniciativa de referendo» (n.º 2).

O referendo local pode, assim, resultar de iniciativa representativa ou de iniciativa popular. No caso presente, a iniciativa referendária foi protagonizada por um grupo de cidadãos, pelo que cabe na segunda modalidade, e é de âmbito municipal.

O referendo por iniciativa popular está consagrado no RJRL, cujo artigo 10.º, n.º 2, dispõe que «[a] iniciativa cabe ainda, nos termos da presente lei, a grupos de cidadãos recenseados na respetiva área». A iniciativa popular é objeto de regulação específica, que consta da Secção II do Capítulo I do Título II do RJRL.

No que respeita à titularidade, forma e representação, a iniciativa popular, para o que ora importa, deve: (i) ser proposta à assembleia deliberativa por um mínimo de 5000 ou 8 % dos cidadãos eleitores recenseados na respetiva área, consoante o que for menor (artigo 13.º, n.º 1); (ii) ser reduzida a escrito, incluindo a pergunta ou perguntas que se pretende submeter a referendo e conter em relação a todos os promotores o nome, número de bilhete de identidade e assinatura conforme ao bilhete de identidade (artigo 15.º, n.º 1), sendo possível às assembleias (municipais ou de freguesia) solicitar aos serviços competentes da Administração Pública a verificação administrativa, por amostragem, da autenticidade das assinaturas e da identificação dos subscritores da iniciativa (artigo 15.º, n.º 2); (iii) mencionar, na parte inicial, a identificação dos mandatários (designados pelos subscritores), em número não inferior a 15 (artigo 16.º, n.º 1), cabendo-lhes designar entre si uma comissão executiva e o respetivo presidente, para os efeitos de responsabilidade e representação previstos na lei (artigo 16.º, n.º 2).

Relativamente à tramitação, a iniciativa popular de âmbito municipal é endereçada ao presidente da assembleia municipal, que a indeferirá liminarmente sempre que, de modo manifesto, os requisitos legais se não mostrem preenchidos; caso seja admitida, concluída a sua apreciação por uma comissão especificamente constituída para o efeito - que pode também convidar ao aperfeiçoamento do texto apresentado, tendo em vista a sanação de eventuais vícios ou a melhoria da redação das questões apresentadas -, é remetida ao presidente da assembleia para agendamento (artigo 17.º do RJRL).

Da apreciação da iniciativa popular pela assembleia municipal pode resultar o seu arquivamento, a sua conversão em deliberação ou a sua rejeição (artigo 18.º do RJRL). Na conversão da iniciativa popular, não tem a assembleia a faculdade de alterar o texto, traduzindo-se numa mera conversão formal.

A iniciativa popular que não for objeto de indeferimento liminar será publicada em edital afixado nos locais de estilo da autarquia a que diga respeito e, existindo, no respetivo boletim (artigo 19.º do RJRL).

5 - Compete ao Tribunal Constitucional, em fiscalização preventiva obrigatória, verificar a constitucionalidade e a legalidade do referendo - artigo 223.º, n.º 2, alínea f), da Constituição, artigos 11.º e 105.º da Lei 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional - LTC), e artigos 25.º e seguintes do RJRL.

A título prévio, cabe-lhe apreciar a regularidade do pedido de fiscalização preventiva para decidir sobre a sua admissão. No caso, a requerente tem legitimidade para o pedido de fiscalização preventiva do referendo local, na qualidade de presidente do órgão assembleia municipal que deliberou a sua realização, o pedido foi apresentado em tempo e o processo mostra-se regularmente instruído (artigos 25.º e 28.º, n.os 1 e 2, do RJRL), daí que tenha sido ordenada a distribuição do pedido.

Distribuído o processo, o Tribunal verifica a constitucionalidade e a legalidade do referendo. Relativamente ao objeto deste controlo, o RJRL fala tanto em «deliberação de realização do referendo» (artigo 25.º, n.º 1) ou «deliberação de referendo» (artigo 27.º, n.º 1) como em «consulta» (cf. o artigo 28.º, n.º 10). Assim, desde logo, o elemento literal permite-nos afirmar que ao Tribunal Constitucional compete controlar não só o teor da consulta propriamente dita, ou seja, as perguntas que a integram (controlo material), mas também os pressupostos da deliberação, incluindo os requisitos da iniciativa popular e as formalidades do procedimento de deliberação (controlo formal) - como exemplos de casos em que o Tribunal procedeu a esta segunda modalidade de controlo, vejam-se os Acórdãos n.os 391/1998, 694/1999 e 2/2000, todos proferidos em sede de processo de fiscalização preventiva de referendo local [sobre o objeto de controlo em sede referendária, vd., na doutrina, Jorge Miranda, Fiscalização da constitucionalidade, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2022, p. 319, centrando-se na análise do procedimento referendário nacional, mas sublinhando depois (p. 321) a similitude das regras relativas à fiscalização preventiva dos referendos locais; José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 1048-1049; José Manuel Cardoso da Costa, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, p. 51; Fernando Alves Correia, Justiça constitucional, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2019, pp. 212-213; Jaime Valle, A fiscalização preventiva no sistema português de controlo, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 76-77, p. 89].

Não se diga que obsta ao referido controlo formal a conversão da iniciativa popular em deliberação da assembleia municipal na medida em que esta sanaria eventuais irregularidades procedimentais - a intervenção da assembleia municipal, manifestada em tal conversão, não afasta o carácter popular da iniciativa.

Para melhor compreender esta afirmação, importa atentar na natureza e nas características do referendo por iniciativa popular. Enquadrado nos procedimentos de democracia semidirecta em geral (cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, pp. 297-298), o referendo por iniciativa popular constitui um processo híbrido ou misto. Há uma participação popular no início (impulso popular), mas também na consulta - fala-se de uma “iniciativa proativa” [“proactive initiative”: cf. Daniel Moeckli, “1. Introduction to the legal limits of direct democracy”, in Daniel Moeckli/Anna Forgács/Henri Ibi (ed.), The legal limits of direct democracy: a comparative analysis of referendums and initiatives across Europe, Cheltenham; Northampton, Edward Elgar Publishing, 2021, pp. 1-9, p. 6], que passa pelo estabelecimento da agenda, no caso, as perguntas. No entanto, a iniciativa popular, ainda que cumprindo os requisitos formais e materiais, não leva necessariamente à realização do referendo, exigindo-se que a assembleia municipal se pronuncie favoravelmente. Por seu turno, nos termos do artigo 27.º, n.º 3, do RJRL, em caso de decisão negativa do Tribunal Constitucional, esta será notificada à assembleia municipal, que convidará, de imediato, a comissão executiva mencionada no n.º 2 do artigo 16.º a apresentar uma proposta de reformulação da deliberação no prazo de cinco dias. Acresce que, de acordo com o disposto no artigo 15.º, n.º 3, do RJRL, a iniciativa popular preclude a iniciativa superveniente sobre a mesma questão, quer por parte de deputados à referida assembleia quer por parte do órgão executivo.

De tudo quanto foi exposto retira-se que a iniciativa popular não é consumida pela deliberação de referendo; pelo contrário, ela mantém a sua autonomia, tanto que, havendo vícios, é obrigatório remeter o processo aos cidadãos, atuando por meio da referida comissão executiva, competindo a esta, em primeira linha, proceder às alterações e/ou diligências necessárias para os suprir.

5.1 - No caso, a iniciativa referendária foi exercida por um grupo de cidadãos, ao abrigo do disposto no artigo 10.º, n.º 2, do RJRL.

Como referido supra, a iniciativa popular deve ser proposta à assembleia deliberativa por um mínimo de 5000 ou 8 % dos cidadãos eleitores recenseados na respetiva área, consoante o que for menor (artigo 13.º, n.º 1, do RJRL). Note-se que o legislador chegou a ser bastante mais exigente: na referida Lei 88, de 7 de agosto de 1913, no Capítulo II («Da competência e atribuições das câmaras municipais»), previa-se, no artigo 96.º, § 1.º, que «[a]s deliberações a que se referem os n.os 11, 15, 19, 20, 24 e 35 do artigo 94.º serão submetidas ao referendum dos eleitores do concelho, se a décima parte dos mesmos eleitores assim o requerer»; no que toca às assinaturas, o § 2. º do mesmo preceito estabelecia que elas deviam ser apresentadas no prazo de 20 dias após a deliberação e reconhecidas por notário, sem que houvesse lugar ao pagamento de algum emolumento.

A iniciativa referendária popular pressupõe a recolha de um determinado número de assinaturas e a sua verificação destinada a aferir se está preenchido um dos seus requisitos fundamentais - a subscrição da proposta por 5000 eleitores recenseados na respetiva área ou 8 %, consoante o que for menor. Trata-se de uma formalidade essencial, cuja inobservância compromete a própria existência de uma iniciativa popular válida, dando origem a uma ilegalidade relevante, por violação de um preceito previsto no RJRL. Daí que seja também fundamental que se proceda a um controlo efetivo das assinaturas, desde logo antes da deliberação, aspeto relevante no processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade e legalidade do referendo.

Em termos de direito comparado, encontramos sistemas de verificação a priori e a posteriori. Nos primeiros, cabe aos interessados solicitar a um órgão competente a certificação das assinaturas: veja-se, por exemplo, a legislação suíça [ao nível federal, artigo 62.º (Attestation de la qualité d’électeur) da Loi fédérale sur les droits politiques (LDP) du 17 décembre 1976 (disponível em https://www.fedlex.admin.ch/eli/cc/1978/688_688_688/fr); refira-se que as «exigências formais» a observar são «pormenorizadas» (Kaspar Ehrenzeller/Roger Nobs, “Art. 141”, in Die schweizerische Bundesverfassung: St. Galler Kommentar, 2, 4.ª ed., Zürich; St. Gallen, Dike Verlag; Zürich; Genf, Schulthess, 2023, pp. 3712-3739, p. 3719, também com uma síntese do processo, cabendo a certificação aos órgãos que, à luz do direito cantonal, sejam competentes)]; no segundo, cabe ao órgão que recebe a iniciativa popular essa verificação, ainda que, se tal for permitido, com recurso a entidades públicas que possam atestar quer a autenticidade das assinaturas quer que se trata de eleitores recenseados na respetiva área. Em relação a este último requisito, vale o que é enunciado como um princípio da unidade do “domicílio político” [“Einheit des politischen Wohnsitzes”: cf. Schweizerisches Bundesstaatsrecht, 9.ª ed., Zürich, Schulthess Verlag, 2016, Rn. (número à margem) 1371, p. 407], pelo que, em termos de cidadania eleitoral, há uma conexão com determinada circunscrição territorial (neste referendo local, com o concelho de Lisboa). Este ponto, como veremos, tem relevância para aferir da validade das assinaturas, ao excluir pessoas recenseadas noutros municípios, ainda que tal tenha resultado da mudança de residência, hipótese que pode assumir algum peso se a recolha de assinaturas envolver um longo período (no caso, cerca de um ano e meio).

Em Portugal, na ausência de um sistema de certificação prévio, o órgão que recebeu as assinaturas deve proceder à sua verificação. No artigo 15.º, n.º 2, do RJRL, prevê-se a possibilidade de «solicitar aos serviços competentes da Administração Pública a verificação administrativa, por amostragem, da autenticidade das assinaturas e da identificação dos subscritores da iniciativa».

Trata-se de um preceito que tem paralelo na Lei 15-A/98, de 3 de abril, que aprovou a Lei Orgânica do Regime do Referendo (LORR), no artigo 17.º, n.º 4: «[a] Assembleia da República pode solicitar aos serviços competentes da Administração Pública a verificação administrativa, por amostragem, da autenticidade da identificação dos subscritores da iniciativa popular».

Num referendo nacional, está-se perante um universo de, pelo menos, 60 000 cidadãos eleitores (artigo 16.º da LORR), abrindo-se a porta a um controlo por amostragem, tendo esta de ser significativa, sob pena de não se cumprir a finalidade prosseguida. Os resultados deste controlo permitirão à Assembleia avaliar da fiabilidade ou não da verificação desse pressuposto. Em termos de referendo local, a mesma faculdade é reconhecida à assembleia deliberativa, mas nada obsta - antes pelo contrário (nesta hipótese, atendendo ao número mais restrito de cidadãos eleitores) - a que se proceda ao controlo total das assinaturas (o que, aliás, foi feito em relação àquelas que acompanharam a iniciativa, mas já não para as assinaturas posteriormente enviadas).

É importante assinalar que no caso do referendo local há um controlo adicional específico, resultante da necessidade de a iniciativa ser subscrita não apenas por eleitores recenseados, mas de eleitores recenseados num determinado município ou freguesia.

Por último, no tocante ao momento relevante para aferir do preenchimento dos requisitos da iniciativa referendária popular, é certo que a letra da lei aponta para o momento da proposta da iniciativa à assembleia deliberativa (cf. o artigo 13.º, n.º 1, do RJRL, segundo o qual a iniciativa é proposta à assembleia deliberativa por um mínimo de 5000 ou 8 % dos cidadãos eleitores recenseados na respetiva área, consoante o que for menor). No entanto, numa interpretação necessariamente orientada por uma ideia de praticabilidade, sustenta-se que o momento relevante para aferir do preenchimento dos requisitos será o do controlo das assinaturas pela assembleia deliberativa.

No caso, a iniciativa popular de referendo local foi proposta à Assembleia Municipal de Lisboa em 08/11/2024 e admitida por despacho proferido em 13/11/2024. Na sequência de deliberação tomada em sessão extraordinária de 19/11/2024, a Assembleia Municipal de Lisboa, por ofício de 22/11/2024, solicitou a verificação administrativa, por amostragem, da autenticidade das assinaturas e da identificação dos subscritores da iniciativa, nos termos do disposto no artigo 15.º, n.º 1, do RJRL. Em 04/12/2024 - ou seja, um dia após a tomada de deliberação da realização do referendo local - a Assembleia Municipal de Lisboa foi informada pelo Ministério da Administração Interna de que, analisada a totalidade das assinaturas dos subscritores da iniciativa (6528), se apurou que, à data de 27/11/2024, 240 estavam duplicadas, 12 pertenciam a cidadãos falecidos, 843 correspondiam a eleitores não recenseados na área do município de Lisboa e relativamente a 570 não foi possível identificar os signatários.

Desde logo, reitera-se que, pelas razões acima assinaladas, nada obsta - antes pelo contrário - a que se proceda ao controlo total das assinaturas.

Desse controlo resultou que, à data de 27/11/2024, não se mostravam preenchidos os requisitos da iniciativa referendária popular no tocante aos subscritores necessários, na medida em que das 6528 assinaturas juntas com a iniciativa apenas 4863 pertenciam comprovadamente a cidadãos eleitores recenseados no município de Lisboa.

No dia 06/12/2024 - três dias depois da tomada de deliberação da realização do referendo local - a Assembleia Municipal de Lisboa recebeu da comissão executiva do referendo um requerimento visando a «junção da subscrição da iniciativa popular já apresentada por mais seiscentos e doze cidadãos eleitores recenseados no Município de Lisboa». Estas novas assinaturas não foram, porém, verificadas.

Entende-se que, na ausência de um procedimento de certificação prévio, é admissível a junção de outras assinaturas, tendo presente a relevância da dimensão cívica e as dificuldades deste processo, bem como a importância da democracia participativa em termos da Constituição da República Portuguesa. Contudo, deveriam ser verificadas, tanto mais que, em abstrato, não se pode descartar, à semelhança do que aconteceu com o primeiro lote de assinaturas, a existência de irregularidades, designadamente quanto à duplicação de assinaturas. Assim, antes de suprido o vício pela apresentação de novas assinaturas e do seu controlo, não estaria a Assembleia Municipal de Lisboa autorizada a proceder à conversão da iniciativa popular em deliberação.

Em suma, quer à data do controlo pela assembleia municipal quer, por maioria de razão, à data da deliberação de realização do referendo local, não estava preenchido um dos requisitos fundamentais da iniciativa popular referendária - a subscrição da proposta por 5000 eleitores recenseados no município de Lisboa.

5.2 - Nos termos do disposto no artigo 16.º do RJRL, a iniciativa popular deve mencionar, na parte inicial, a identificação dos mandatários (designados pelos subscritores), em número não inferior a 15 (n.º 1), os quais, por sua vez, designam entre si uma comissão executiva e o respetivo presidente, para os efeitos de responsabilidade e representação previstos na lei (n.º 2).

A figura dos mandatários é extremamente relevante, sobretudo porque lhes cabe designar a comissão executiva, enquanto representante dos subscritores. É à comissão executiva que compete, em caso de decisão negativa do Tribunal Constitucional, apresentar uma proposta de reformulação da deliberação (cf. o artigo 27.º, n.º 3, do RJRL).

Nos termos dos artigos 15.º e 16.º do RJRL, a lei impõe como requisitos de forma e de representação da iniciativa popular a indicação do nome, número do bilhete de identidade (no caso dos cidadãos portugueses, para a grande maioria o bilhete de identidade deu lugar ao cartão de cidadão na sequência da Lei 7/2007, de 5 de fevereiro; quanto a estrangeiros com direito de participação, a indicação refere-se, em regra, ao título de residência) e assinaturas conforme ao bilhete de identidade dos eleitores (sobre este ponto, cf., quanto à constituição de grupo de cidadãos eleitores, o Acórdão 608/98, que entendeu poder «valer como assinatura aquilo que for designado como nome completo», por não haver «uma forma legal de indicação do nome completo e da assinatura, podendo as mesmas ser coincidentes ou autónomas, conforme os casos») e, na parte inicial, a identificação dos mandatários (que não podem ser menos de 15). Sucede que, como vimos, os mandatários propostos devem ser do conhecimento dos subscritores da iniciativa, que os aceitam pelo ato de assinatura das folhas. Quer isto dizer que a manifestação de vontade dos subscritores comporta uma dimensão não só objetiva, no sentido de adesão ao projeto em torno de uma pergunta ou um conjunto de perguntas, mas também subjetiva, expressa pela aceitação de determinadas pessoas como mandatários (que, depois, legitimamente, designam entre si uma comissão executiva e o respetivo presidente). Para que haja uma verdadeira escolha - e não uma mera autoindicação - é necessário que os subscritores, no momento em que assinam, saibam quem são os mandatários.

Resta determinar o modo como esse conhecimento deve ser assegurado, designadamente no plano formal.

No domínio do referendo nacional - cujo regime inspirou as regras do referendo local -, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) deliberou sobre as formalidades essenciais para a constituição de um grupo de cidadãos eleitores para intervir na campanha para o referendo no que respeita à designação dos mandatários, distinguindo-as da sua constituição para efeitos de iniciativa popular do referendo. A deliberação foi tomada em sessão de 17/09/1998. Consta da ata o seguinte (Dez anos de deliberações da CNE - 1989/1998, Lisboa, Comissão Nacional de Eleições, 1999, pp. 732-733):

«[...] Analisada a lei, nomeadamente o do direito da União Europeia e os artigos 41.º, 17.º e 19.º, e sendo opinião partilhada pela maioria dos membros de que haveria que distinguir o grau de exigência das formalidades de constituição de um Grupo de Cidadãos Eleitores para efeitos de convocação do referendo e da sua constituição, simplesmente para intervir na campanha, o Senhor Presidente colocou à votação o seguinte projecto de deliberação:

Projecto de deliberação:

“Nos termos dos artigos 17.º, 19.º e 41.º da Lei 15-A/98, de 3 de abril, a lei apenas impõe como requisitos para a inscrição de um Grupo de Cidadãos Eleitores a indicação do nome completo, número do Bilhete de Identidade e assinaturas (o n.º 1 do artigo 17.º refere que são signatários) de, e pelo menos, 5000 eleitores e na parte inicial a identificação de, pelo menos, 25 mandatários. A recolha desses elementos pode ser feita em folhas separadas, mas terá que satisfazer aqueles requisitos. Porém, a existência dessas folhas separadas é suscetível de criar a dúvida, se todas elas não contiverem a identificação dos mandatários, da conformação dos signatários com a vontade dos mandatários para o ato referendário. Em extremo rigor, pode dizer-se que apenas as identificações, na parte inicial, desses mandatários, obviariam a essas dúvidas. No entanto, é entendimento desta Comissão Nacional de Eleições que esse perigo fica salvaguardado desde que cada folha seja encimada por uma referência que mostre claramente que a vontade de cada subscritor foi a de aderir a esse Grupo com determinada posição e representada por aqueles mandatários. Nomeadamente, isso pode ser satisfeito com a indicação de que os mandatários atuam na defesa de uma posição expressa numa denominação, pela qual o Grupo é conhecido, e que cada folha separada esteja encimada com essa mesma denominação”».

Em declaração de voto aposta à deliberação, Jorge Miguéis (Dez anos de deliberações da CNE - 1989/1998, pp. 733-734, p. 734) começa por sublinhar que se deve «estabelecer uma distinção qualitativa e de exigência entre formalidades essenciais para a constituição de um grupo de cidadãos eleitores para efeitos de convocação do referendo e a sua constituição “simplesmente” para intervir na campanha respectiva». Refere depois o seguinte:

«[...] havendo, na primeira situação, que fazer intervir a Assembleia da República - por excelência o órgão de soberania detentor do poder legislativo - como intermediadora da iniciativa popular do referendo há, aí, que ser especialmente rigoroso e exigente no âmbito formal. Muito embora a lei no artigo 41.º, n.º 3 - repare-se que as citadas formalidades se inserem no capítulo da iniciativa popular da convocação do referendo (artigos 16.º e segs. da Lei 15-A/98) - refira que a forma exigida para a constituição de grupos de cidadãos para intervir na campanha é idêntica à da iniciativa popular de convocação, afigura-se-me que o grau de exigência formal não deve, nesse caso, ser tão acentuado, atenta a clara diferença substantiva e qualitativa da iniciativa dos cidadãos».

Faz-se notar que o artigo 19.º da LORR se manteve inalterado.

Em 2006, a CNE retomou a questão da indicação dos mandatários do grupo de cidadãos eleitores. Assim,

«[...] manteve-se a não obrigatoriedade de que todas as páginas mencionem os mandatários designados, sendo bastante que cada página que contenha assinaturas tenha a denominação pela qual é conhecido o grupo de cidadãos eleitores, caso exista, a indicação do referendo nacional a que respeita, e o nome e número do bilhete de identidade de, pelo menos, um dos mandatários (Cfr. acta 35, de 14 de Novembro de 2006)» [Maria de Fátima Abrantes Mendes, Lei Orgânica do Regime do Referendo (Lei 15-A/98, de 3 de Abril), Lisboa, 2006, p. 41].

As considerações precedentes permitem concluir que, embora o grau de exigência formal possa ser menor no caso de constituição de grupos de cidadãos para intervir na campanha do referendo, o mesmo não vale para a constituição de um grupo de cidadãos eleitores para efeitos de iniciativa referendária, em que não será suficiente a «indicação de que os mandatários atuam na defesa de uma posição expressa numa denominação, pela qual o Grupo é conhecido, e que cada folha separada esteja encimada com essa mesma denominação». É verdade que uma assembleia municipal não é um órgão de soberania, ao contrário da Assembleia da República. Contudo, não só essa exigência decorre da lei, que não ignora a importância da referida dimensão subjetiva, como releva a intervenção privilegiada da comissão executiva em caso de decisão negativa do Tribunal Constitucional, competindo-lhe, nos termos do artigo 27.º, n.º 3, do RJRL, apresentar uma proposta de reformulação da deliberação no prazo de cinco dias.

Ora, no caso em apreço, não consta das folhas de assinaturas qualquer referência à identificação dos mandatários, pelo que não é possível determinar que a vontade de cada subscritor foi a de ser representado pelos mandatários indicados na iniciativa referendária.

5.3 - Por último, há que atentar no disposto no artigo 24.º, n.º 2, do RJRL, segundo o qual, no caso de a competência relativa à questão submetida a referendo não pertencer à assembleia municipal ou à assembleia de freguesia e a iniciativa não tiver partido do órgão autárquico titular da competência, a deliberação sobre a realização do referendo necessita de parecer deste último.

Nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 128/2014, de 29 de agosto, que aprovou o Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimentos de Alojamento Local (RJEEAL), compete ao presidente da câmara municipal determinar o cancelamento do registo do estabelecimento do alojamento local nas condições previstas na lei.

A primeira pergunta do referendo diz respeito, precisamente, ao cancelamento dos registos, ato que, de acordo com aquele preceito legal, é da competência do presidente da câmara municipal (sem prejuízo das considerações que adiante se expenderão acerca dos contornos do exercício dessa competência).

No caso, a assembleia municipal não solicitou ao presidente da câmara municipal o parecer a que alude o artigo 24.º, n.º 2, do RJRL, pelo que foi também inobservada esta formalidade.

Só por si, estes vícios obstariam ao sucesso da iniciativa, mas, ainda assim, proceder-se-á a uma análise no que toca ao plano substantivo.

6 - Passemos, pois, à consideração da matéria do referendo.

6.1 - O artigo 3.º, n.º 1, do RJRL dispõe que «[o] referendo local só pode ter por objeto questões de relevante interesse local que devam ser decididas pelos órgãos autárquicos municipais ou de freguesia e que se integrem nas suas competências, quer exclusivas quer partilhadas com o Estado ou com as Regiões Autónomas».

No caso, o referendo versa, indubitavelmente, sobre questões de relevante interesse (também local), verificando-se este limite material positivo [sobre a distinção entre limites materiais positivos e negativos, vd. Maria Benedita Urbano, “Os limites materiais à (ir)realização do referendo de âmbito nacional. Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 704/04”, Jurisprudência Constitucional (2004/4), pp. 22-29, pp. 22-23]. Apresentando-se como um «referendo pela habitação», as perguntas têm como objeto o alojamento local, revelando uma unidade temática (princípio da unicidade da matéria - artigo 6.º, n.º 1, do RJRL). E, ao contrário do que acontecia aquando da introdução da figura das consultas locais por via da primeira revisão constitucional (1982), o referendo neste nível deixou de estar limitado a «matérias incluídas na [...] competência exclusiva» dos órgãos das autarquias locais, opção que então circunscrevia muito o seu alcance (sobre o alargamento do seu âmbito a matérias que não as de competência exclusiva, dando conta da discussão parlamentar em sede de revisão constitucional, em 1997, vd. António Filipe, O referendo na experiência constitucional portuguesa, pp. 344-345). A lei fundamental passou a falar de «matérias incluídas nas competências dos [...] órgãos [das autarquias locais]» (artigo 240.º, n.º 1, da Constituição). Em termos gerais, quanto às atribuições e competências, o diploma principal é a Lei 75/2013 (Regime jurídico das autarquias locais - RJAL, de 12 de setembro), assinalando-se, em matéria de atribuições municipais, o artigo 23.º, n.º 2, nomeadamente, no que ora nos importa, as alíneas i) (habitação) e n) (ordenamento do território e urbanismo). No artigo 25.º, n.º 1, alínea r), do RJAL, dispõe-se que é competência da Assembleia Municipal «[a]provar as normas, delimitações, medidas e outros atos previstos nos regimes do ordenamento do território e do urbanismo», que tem, aliás, poder regulamentar («g) [a]provar as posturas e os regulamentos com eficácia externa do município»), cabendo-lhe ainda «h) [a]provar os planos e demais instrumentos estratégicos necessários à prossecução das atribuições do município».

Aliás, é a própria Constituição que, no artigo 65.º (Habitação e urbanismo), n.os 2 e 4, realça que se está perante «áreas confluentes» de interesses, no caso estaduais e municipais (José de Melo Alexandrino, “Direito das autarquias locais: introdução, princípios e regime comum”, in Tratado de direito administrativo especial, vol. IV, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 11-299, p. 128).

Ainda em termos gerais, logo no Acórdão 492/93 lê-se:

«[...] este domínio da promoção habitacional, do ordenamento do território, urbanismo e gestão do ambiente é mesmo um domínio aberto à intervenção concorrente das autarquias e do Estado. [...]

Esta interação de competências do Estado e das autarquias em matéria de urbanismo está, assim, presente em muitos lugares do ordenamento jurídico».

Neste contexto, não se olvide a existência de um princípio da garantia da autonomia local (artigos 6.º, n.º 1, e 288.º, alínea n), da Constituição), com dimensões quer de autonomia normativa (artigo 241.º da Constituição) quer de garantia institucional (cf. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, p. 253), num quadro em que se conjugam «princípios da unidade e subsidiariedade do Estado, da descentralização, da autonomia local e da solidariedade interlocal» (artigo 3.º, n.º 2, do RJRL).

Por sua vez, o artigo 4.º do RJRL considera as matérias excluídas do referendo local. Assim:

«1 - São expressamente excluídas do âmbito do referendo local: a) As matérias integradas na esfera de competência legislativa reservada aos órgãos de soberania; b) As matérias reguladas por ato legislativo ou por ato regulamentar estadual que vincule as autarquias locais [...]».

Matéria não é aqui mero sinónimo de campo temático (habitação, por exemplo), mais ou menos amplo. No plano jurídico, a matéria (que pode ser objeto de normação legislativa e administrativa) também não pode abstrair do seu desenho em termos de competências (nomeadamente, da existência de zonas reservadas à função legislativa), incluindo níveis e extensão da disciplina normativa.

Por outras palavras: é possível um procedimento referendário no campo da habitação, desde que não se procure estabelecer normação regulamentar que afaste soluções consagradas imperativamente em atos legislativos (também em atos regulamentares estaduais que vinculem as autarquias locais) ou que, na sua ausência, ainda assim tenham de revestir essas formas.

É em nome do direito à habitação, consagrado constitucionalmente no artigo 65.º da Constituição, que os residentes que subscrevem a iniciativa de referendo pretendem que, por via regulamentar, se proíbam os «alojamentos locais em imóveis destinados a habitação», incluindo por meio do «cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação».

A questão jurídica põe-se no quadro de uma verdadeira «administração da escassez». Com efeito, é a falta dramática de espaços para habitação que expressa a dimensão da realidade. Em termos públicos, há que considerar a «criação de espaço habitacional» (Schaffung von Wohnraum), a «conservação e a garantia do espaço habitacional» (Erhaltung und Sicherung von Wohnraum) e a «acessibilidade económica do espaço habitacional» (Bezahlbarkeit von Wohnraum; literalmente, a «pagabilidade»): cf. Pia Lange, Staatliche Wohnraumvorsorge, Tübingen, Mohr Siebeck, 2023. A primeira - «criação de espaço habitacional» - passa por medidas como a subvenção em sede de construção para esse fim, tributárias (benefícios fiscais, por exemplo) e políticas públicas de construção (em Portugal, nos planos nacional, regional e local). A última - «acessibilidade económica do espaço habitacional» - assenta em políticas como a limitação dos preços das rendas (uma política recorrente na história, que, no limite, passou pelo seu congelamento) ou apoios ao pagamento de rendas, por exemplo.

No caso, discute-se a possibilidade de alojamento local em imóveis destinados a habitação, movendo-nos, pois, no segundo plano, de conservação, mas também de obtenção de espaços, por via de «reafetação» de edifícios e frações (em termos de propriedade horizontal) cujo uso urbanístico genérico [sobre a figura, partindo do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), cf. Fernanda Paula Oliveira/Sandra Passinhas/Dulce Lopes, Alojamento local e uso de fração autónoma, Coimbra, Almedina, 2017, p. 19] é a habitação. Não se trata de uma multiplicação do espaço construído, mas da sua utilização para fins de habitação da população residente.

Está-se, pois, no âmbito de um direito de controlo da habitação (Wohnungsaufsichtsrecht: cf. Pia Lange, Staatliche Wohnraumvorsorge, p. 377), a pressupor um campo de opções político-legislativas que varia de país para país, havendo soluções mais restritivas do que a nacional. Na Alemanha, veja-se, por exemplo, a Berliner Gesetzes über das Verbot der Zweckentfremdung von Wohnraum (Zweckentfremdungsverbot-Gesetz - ZwVbG), de 29 de novembro de 2013 [com alterações; disponível em https://gesetze.berlin.de/bsbe/document/jlr-WoZwEntfrGBErahmen; sobre ela, na doutrina, nomeadamente com uma desenvolvida análise jusfundamental, vd. Helge Sodan, Verfassungs- und andere Rechtsprobleme von Berliner Regelungen über das Verbot der Zweckentfremdung von Wohnraum, Berlin, Duncker und Humblot, 2015; tendo já presente as alterações de 2018, vd. Matthias Rossi, “Verfassungsrechtliche Anmerkungen zum Berliner Zweckentfremdungsrecht”, Landes- und Kommunalverwaltung - LKV (2019), pp. 337-344; no plano da jurisprudência constitucional, vd. a decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão - BVerfG (3. Kammer des Ersten Senats), Beschl. v. 29.4.2022 - 1 BvL 2/17, 1 BvL 3/17, 1 BvL 4/17, 1 BvL 5/17, 1 BvL 6/17].

Na verdade, um percurso comparado revela a existência de quadros legislativos específicos [na doutrina nacional, considerando em especial a realidade de Espanha (tendo presente o panorama das comunidades autónomas), de Itália, dos Estados Unidos da América e o direito da União Europeia, vd. Pedro Sacchetti de Teixeira de Sousa, Restrições de direito público e de direito privado à exploração de estabelecimentos de alojamento local: o regime jurídico português e a experiência de direito comparado, Coimbra, Almedina, 2020, esp. pp. 29-42] que procuram responder aos desafios de um alojamento local que, num tempo de uma nova digitalização, passa também pela economia de plataformas [com implicações também no plano normativo do direito da União Europeia, vd. especificamente o Regulamento (UE) 2024/1028 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de abril de 2024, sobre a recolha e a partilha de dados relativos aos serviços de arrendamento para alojamento de curta duração e que altera o Regulamento (UE) 2018/1724].

Entre nós, o direito à habitação inscreve-se nos direitos fundamentais sociais, assumindo uma enorme relevância, sem prejuízo da reserva parlamentar neste domínio se limitar ao «regime geral do arrendamento [...] urbano» (artigo 165.º, n.º 1, alínea h), da Constituição) e às «bases do ordenamento do território e do urbanismo» (artigo 165.º, n.º 1, alínea z), da Constituição). Na verdade, no âmbito dos direitos fundamentais sociais, a regra é a de que caem no campo de competência concorrente entre a Assembleia da República e o Governo (artigo 198.º, n.º 1, alínea a), da Constituição), podendo ambos legislar a igual título (sobre este ponto, vd., contudo, criticamente, Jorge Reis Novais, Manual de direitos fundamentais, Lisboa, AAFDL Editora, 2024, pp. 465-469) e podendo a lei conceder, para além do domínio que se lhe encontra constitucionalmente reservado, uma margem maior ou menor de concretização ao poder regulamentar (sobre o assunto, vd. os Acórdãos n.os 474/2021, 390/2022 e 197/2023). No entanto, nalguns pontos estamos perante ingerências em direitos, liberdades e garantias ou direitos fundamentais de natureza análoga (artigo 17.º da Constituição). Por exemplo, medidas como a previsão das áreas de contenção, introduzidas por ato legislativo da Assembleia da República (Lei 62/2018, de 22 de agosto), tocam no direito à liberdade de iniciativa económica privada (artigo 61.º, n.º 1, da Constituição), no direito à propriedade privada (artigo 62.º da Constituição) e ainda na liberdade de exercício de profissão (artigo 47.º, n.º 1). Há aqui um campo de ponderação entre o direito à habitação e as referidas posições jusfundamentais que pressupõe uma intervenção do legislador parlamentar ou, pelo menos, uma autorização por este concedida.

6.2 - No campo do alojamento local, também em Portugal foi o legislador que, no âmbito de uma ponderação de direitos e bens constitucionalmente protegidos (tendo presentes, nomeadamente, os direitos fundamentais referidos), estabeleceu disciplina normativa, remetendo, em parte, para o exercício do poder regulamentar municipal, mas vinculando-o também.

Com efeito, os órgãos autárquicos municipais têm competência, mas, como se verá, limitada, devendo o regulamento respeitar o quadro legal, nomeadamente o RJEEAL. Este diploma refere a possibilidade de um regulamento específico, em diferentes preceitos. Aliás, à semelhança do que acontece com outros municípios, em Lisboa há um Regulamento Municipal do Alojamento Local (RMAL).

Assim, logo no artigo 4.º do RJEEAL, que, na sua epígrafe, integra a expressão «aprovação de regulamento», dispõe-se o seguinte: a) «Os municípios podem aprovar um regulamento administrativo tendo por objeto a atividade do alojamento local no respetivo território» (n.º 5); b)

«Nos municípios com mais de 1000 estabelecimentos de alojamento local registados, a assembleia municipal deve deliberar expressamente, no prazo máximo de 12 meses contados da data em que o município atinja os 1000 registos, se exerce o poder regulamentar previsto no número anterior» (agora o n.º 6, na sequência da Retificação n.º 39/2024/1, de 10 de dezembro, do Decreto-Lei 76/2024, de 23 de outubro) [nos municípios onde já se verifique a existência de mais de 1000 estabelecimentos de alojamento local registados, à data da entrada em vigor do Decreto-Lei 76/2024, de 23 de outubro, as respetivas assembleias municipais têm um máximo de 12 meses para deliberar sobre a elaboração (ou não) de um regulamento relativo ao alojamento local, como decorre do artigo 4.º (Disposições transitórias) do referido diploma, na redação resultante da mencionada Retificação]; c) Prevê-se a possibilidade de designação de um «provedor do alojamento local» (n.º 7).

Existe, assim, campo para o exercício de competências regulamentares municipais, com a consequente possibilidade de haver lugar a referendo local, desde que não sejam violadas competências de outros órgãos, nomeadamente da Assembleia da República e do Governo.

Tendo presente a existência de um quadro legislativo, nuclearmente assente no RJEEAL, impõe-se primeiro conhecê-lo e avaliar as possibilidades de intervenção regulamentar permitidas para se aferir depois em que medida as alterações normativas pretendidas em sede de RMAL, a que se dirige a iniciativa referendária, respeitam (ou não) os limites estabelecidos no n.º 1 do artigo 4.º do RJRL, especialmente a alínea b) («matérias reguladas por ato legislativo ou por ato regulamentar estadual que vincule as autarquias locais»).

O quadro legislativo vigente corresponde a um modelo intermédio entre a proibição (quase) total do alojamento local em edifícios ou frações cuja utilização urbanística genérica é a habitação e a admissibilidade (praticamente) sem reservas de alojamento local neles. No entanto, ainda aqui importa proceder a precisões, pois pode haver, neste campo intermédio, modelos mais favoráveis ou menos, como, aliás, ilustram as próprias alterações ao RJEEAL [compare-se o diploma mais recente - Decreto-Lei 76/2024, de 23 de outubro - com as alterações da Lei 56/2023, de 6 de outubro: para uma análise da Proposta de Lei 64/XXIII/2023, de 3 de março, que está na base da Lei 56/2023, vd., criticamente, José Luís Bonifácio Ramos, “Programa Mais Habitação: o alojamento local”, Revista de Direito Civil, VIII (2023/2), pp. 201-214].

Em termos de alojamento local, podemos pensar, do ponto de vista urbanístico, em moradia («edifício autónomo de caráter unifamiliar») e fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano suscetível de utilização independente. Quanto às modalidades (artigo 3.º do RJEEAL), recortam-se quatro: moradia, apartamento, estabelecimentos de hospedagem (incluindo os hostels) e quartos.

A análise centra-se nas situações em que o imóvel tem como utilização urbanística genérica a habitação. No entanto, registe-se que se assinala na doutrina (de forma não unânime) a possibilidade (ainda que com limites) de a atividade de alojamento local (exceção feita à modalidade quartos) se poder efetivar em edifícios ou frações destinados a outros fins (vd., por todos, Fernanda Paula Oliveira/Dulce Lopes, Alojamento local: regime jurídico comentado e guião prático, p. 67). Exige-se que haja «autorização de utilização ou título de autorização válido do imóvel» (artigo 6.º, n.º 1, do RJEEAL), tendo o Decreto-Lei 128/2014, de 29 de agosto, na versão resultante das alterações de 2024, passado a remeter para o regulamento municipal a definição de «utilizações válidas» (artigo 6.º-B, n.º 1).

A zona mais controvertida em termos de alojamento local tem sido o seu exercício em frações autónomas em regime de propriedade horizontal. É que, nesses casos, ao motivo-diretor da iniciativa - alargamento da oferta em termos habitacionais - acrescem os interesses dos restantes condóminos, que podem ser afetados (sobre a questão, vd. a síntese de Rui Pinto Duarte, Curso de direitos reais, 4.ª ed., Parede, Principia, 2020, pp. 165-166). Este último aspeto está na origem de litigiosidade em sede judicial, com diferentes decisões proferidas, com destaque para o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 4/2022, do Supremo Tribunal de Justiça, prolatado ainda antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 76/2024, de 23 de outubro, e amplamente discutido na doutrina (para as pertinentes indicações, vd. José Engrácia Antunes, Direito do consumo, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2024, pp. 507-508, n. 1228).

O alojamento local em frações fica excluído, desde logo se tal constar do título constitutivo da propriedade horizontal ou de regulamento de condomínio que seja parte integrante dele (artigo 6.º-B, n.º 4, do RJEEAL). Para além disso, e limitando-nos ao regime atualmente vigente, resolveu-se, por via legislativa, a questão de saber se haveria violação do artigo 1422.º, n.º 2, alínea c), do Código Civil. Na verdade, este preceito proíbe a afetação de uma fração autónoma a fim distinto daquele a que está destinada. O legislador veio, no Decreto-Lei 76/2024, de 23 de outubro, estabelecer expressamente que «a instalação e exploração de estabelecimentos de alojamento local em fração autónoma não constitui uso diverso do fim a que é destinada, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 1422.º do Código Civil [...]» (artigo 6.º-B, n.º 4, do RJEEAL).

No entanto, reconhece-se à assembleia de condóminos (artigo 6.º-B, n.º 4, do RJEEAL), que, em sede de regulamento do condomínio (a criar ou a modificar), proíba o exercício de atividade de alojamento local, desde que para tal concorra uma maioria qualificada («maioria representativa de dois terços da permilagem do prédio e produz[indo] efeitos para futuro, aplicando-se apenas aos pedidos de registo de alojamento local submetidos em data posterior à deliberação» - artigo 6.º-B, n.º 5, do RJEEAL).

Ainda em relação à articulação entre alojamento local e propriedade horizontal, refira-se que na malha de preceitos pertinentes se contam, entre outros: a) a necessidade de autorização dos condóminos em caso de «instalação e exploração de “hostels” em edifícios em propriedade horizontal nos prédios em que coexista habitação» (artigo 4.º, n.º 4 do RJEEAL), devendo a ata comprovativa acompanhar a comunicação prévia ao Presidente da Câmara Municipal (artigo 6.º, n.º 2, alínea f) do RJEEAL); b) a possibilidade de cancelamento do registo pelo Presidente da Câmara, caso a atividade de alojamento local possa ser exercida numa fração autónoma de edifício, ou em parte de prédio suscetível de utilização independente, se a assembleia de condóminos se opuser à prossecução dessa atividade, por meio de «deliberação fundamentada aprovada por mais de metade da permilagem do edifício, com fundamento na prática reiterada e comprovada de atos que perturbem a normal utilização do prédio, bem como de atos que causem incómodo e afetem o descanso dos condóminos» (artigo 9.º, n.os 2 e 4, do RJEEAL), prevendo-se um procedimento que pode conduzir a um acordo entre os intervenientes (artigo 9.º, n.os 12 e 13, do RJEEAL); c) a inserção no livro de informações do estabelecimento, no caso de edifícios de habitação coletiva, das «práticas e regras do condomínio que sejam relevantes para o alojamento e para a utilização das partes comuns» (artigo 12.º, n.º 8, do RJEEAL); e d) a possibilidade de ser estabelecida uma contribuição adicional para o condomínio face «às despesas decorrentes da utilização acrescida das partes comuns, com um limite de 30 % do valor anual da quota respetiva» (artigo 20.º-A do RJEEAL).

Na avaliação das possibilidades conferidas pelo legislador ao poder local em termos de regulação, deparamo-nos com a remissão para o regulamento no que toca à determinação de «utilizações válidas» - artigo 6.º-B, n.º 1, do RJEEAL. Neste preceito, refere-se o artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma, segundo o qual a comunicação prévia com prazo (sobre esta, vd. Fernanda Paula Oliveira/Dulce Lopes, Alojamento local: regime jurídico comentado e guião prático, pp. 46-48; também, em anotação ao artigo 134.º do Código de Procedimento Administrativo, Luís S. Cabral de Moncada, Código de Procedimento Administrativo Anotado, 4.ª ed., Lisboa, Quid Juris, 2022, pp. 468-472) tendo em vista o registo deve conter informação relativa à «autorização de utilização ou título de utilização válido do imóvel» (artigo 6.º, n.º 1, alínea a), do RJEEAL). Neste controlo, ter-se-á de proceder, desde logo, a uma dupla análise: a) aferir, em abstrato, da adequação de um certo edifício ou fração, em função da autorização da utilização ou do título válido do imóvel; b) verificar se, em concreto, será admissível o exercício de atividade numa certa área (cf. Fernanda Paula Oliveira/Dulce Lopes, Alojamento local: regime jurídico comentado e guião prático, pp. 53-54). Como se concretizará, o legislador permitiu ao poder normativo municipal a possibilidade de estabelecer zonas de contenção, com impacto em relação a novos registos, o que exige um outro passo em sede de controlo.

Quanto à definição das utilizações válidas, a remissão para o regulamento não se traduz num cheque em branco do legislador. Tal não se verifica, desde logo, dado que há uma zona que se inscreve em sede de competência parlamentar reservada. Trata-se de um campo marcado, como se referiu, por um juízo político-legislativo, num processo de concordância prática entre direitos e bens constitucionalmente protegidos, decidida a montante. Aliás, basta que o legislador tenha disciplinado a matéria para, no quadro do princípio da legalidade administrativa, também os órgãos das autarquias locais estarem vinculados. Em sede de referendo, isso projeta-se, como se viu, na exigência da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do RJRL, ao subtrair à consulta «[a]s matérias reguladas por ato legislativo ou por ato regulamentar estadual que vincule as autarquias locais».

No caso, concorde-se ou discorde-se das soluções que resultaram de decisão político-legislativa, parlamentar ou governamental, há uma disciplina normativa que estabelece um conjunto de exigências que não podem deixar de ser respeitadas pelo poder regulamentar.

Aliás, o n.º 2 do artigo 6.º-B do RJEEAL indicia o sentido da remissão regulamentar, ao dispor que, na ausência de previsão das utilizações válidas em sede de normação administrativa, se admitem as utilizações estabelecidas pela câmara municipal competente que sejam «compatíveis com o exercício da atividade de alojamento local, nomeadamente os usos autorizados pelo Decreto-Lei 555/99, de 16 de dezembro, na sua redação atual, ou outros usos que o município venha a considerar como conciliáveis com o exercício dessa atividade».

O Decreto-Lei 555/99, de 16 de dezembro, estabelece o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE). Aí se diz, no artigo 62.º-B, que a comunicação prévia com prazo visa: «a) Demonstrar e declarar a conformidade da utilização prevista com as normas legais e regulamentares que fixam os usos e utilizações admissíveis; e b) demonstrar e declarar a idoneidade do edifício ou sua fração autónoma para o fim pretendido, podendo contemplar utilizações mistas».

Estas utilizações urbanísticas são genéricas (habitação, comércio, serviços ou indústria, por exemplo), podendo, como decorre do RJUE, existir utilizações mistas. E não se confundem com as atividades económicas (comércio a retalho, hotel, restauração e bebidas ou alojamento local, por exemplo). Um determinado estabelecimento apenas se pode instalar num edifício ou fração autónoma cuja utilização permita a respetiva atividade - cf. Fernanda Paula Oliveira/Sandra Passinhas/Dulce Lopes, Alojamento local e uso de fração autónoma, pp. 19 e 22-23. As mesmas autoras salientam que é cada vez mais frequente «um mesmo estabelecimento compreender duas ou mais atividades económicas, sendo uma principal e as outras complementares» (p. 26; itálico no original).

Em sede de utilizações válidas e compatíveis com alojamento local, o legislador parte de uma compatibilidade da utilização habitação com a atividade económica alojamento local. Além disso, a remissão para o regulamento municipal vai acompanhada de densificação legislativa, nos termos que se seguem.

No caso dos quartos, a única utilização admissível é habitacional, não podendo, por via regulamentar, alargar-se a usos não habitacionais (alínea a) do n.º 3 do artigo 6.º-B do RJEEAL). Na verdade, tal decorre do facto de se exigir que esta modalidade de alojamento local ocorra na residência do locador (Fernanda Paula Oliveira/Dulce Lopes, Alojamento local: regime jurídico comentado e guião prático, p. 66) e está agora expressamente prevista na lei, como se referiu.

Já quanto à moradia e ao apartamento enquanto modalidades de alojamento local, o RJEEAL (alínea b) do n.º 2 do artigo 6.º-B) estabelece que terá de se verificar o «cumprimento dos requisitos estabelecidos no presente decreto-lei», para as «disposições regulamentares» poderem prever uso não habitacional, abrindo-se a uma utilização mista.

Na modalidade estabelecimentos de hospedagem, admite-se explicitamente, a nível municipal, a possibilidade de previsão de outras utilizações não habitacionais, considerando a diferença de modalidade e da capacidade do estabelecimento, remetendo expressamente para o artigo 15.º do diploma (alínea c) do n.º 3 do artigo 6.º-B do RJEEAL).

Não se trata, pois, de proibir a atividade de alojamento local nos imóveis destinados à habitação - o que, nos termos propostos, não é possível à face da lei -, mas de caber ao poder regulamentar municipal admitir, ou não, a possibilidade de permitir, nesses estabelecimentos, a instalação, a título complementar, de «estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços, incluindo os de restauração e de bebidas, sem prejuízo do cumprimento dos requisitos específicos previstos na lei» (artigo 15.º do RJEEAL).

Embora o RJEEAL diga que «podem ser instalados, complementarmente, estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços», importa distinguir entre serviços complementares (stricto sensu) e serviços adicionais (cf. Fernanda Paula Oliveira/Dulce Lopes, Alojamento local: regime jurídico comentado e guião prático, pp. 34 e 121). Os serviços complementares em sentido estrito são os referidos no artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do RJEEAL, acrescendo à dormida, sendo o exemplo paradigmático a limpeza. Já os serviços adicionais, como é o caso da restauração e bebidas, não revelam esse nexo direto com o alojamento local.

Resumindo: a remissão para regulamento municipal relativa a «utilizações válidas e compatíveis com alojamento local» não concede aos municípios competência para proibir, nos termos pretendidos, «alojamentos locais em imóveis destinados a habitação». Na verdade, no regulamento, quanto a este ponto, podem resolver-se duas coisas:

a) Permitir ou proibir que imóveis cuja utilização urbanística genérica não seja a habitação, mas, por exemplo, serviços, possam, ainda assim, ser afetos a atividades de alojamento local;

b) Permitir (o que não pode valer para a modalidade quartos) ou proibir a prossecução de utilizações não habitacionais, nomeadamente a oferta de serviços adicionais nos moldes já referidos.

O caminho da restrição do alojamento local passa significativamente pelas zonas de contenção, que foram previstas, como se viu, em 2018, por via de lei.

O artigo 15.º-A do RJEEAL versa sobre áreas de contenção e de crescimento sustentável, instrumento nuclear para a limitação dos estabelecimentos de alojamento local. A existência das referidas áreas depende de previsão expressa «no regulamento previsto no n.º 5 do artigo 4.º» (n.º 1), podendo, pela mesma via, proceder-se à imposição de «limites relativos ao número de novos registos de alojamento local permitido para cada uma dessas áreas, em função de fatores como a pressão habitacional e ambiental nelas verificado» (n.º 2).

O artigo 15.º-B do RJEEAL concretiza o regime das áreas de contenção, tipificando as hipóteses em que, por via regulamentar, tendo presente a necessidade de adequação às diferentes realidades, se admite a proibição de autorização de novos alojamentos, mas também a sua autorização excecional. Além de permitir, no n.º 2, num registo temporalmente limitado (máximo de um ano), a suspensão de «autorização de novos registos em áreas especificamente delimitadas até à entrada em vigor do referido regulamento» (tendo em vista garantir a sua eficácia), abre a possibilidade de incorporação no regulamento de um conjunto de conteúdos, nomeadamente relevantes em termos de limitações.

O artigo 15.º-C do RJEEAL define o regime das áreas de crescimento sustentável, determinando, no n.º 2, que os municípios podem estabelecer no regulamento requisitos adicionais para a instalação de novos estabelecimentos de alojamento local em áreas de crescimento sustentável; no n.º 3, abre-se a porta a exceções às limitações previstas regulamentarmente para estas áreas.

Sublinha-se que, mesmo nestas áreas de contenção e de crescimento sustentável, não há uma proibição total de novos registos de estabelecimentos de alojamento local em imóveis destinados a habitação, como pretendem os proponentes da iniciativa, aspeto que reveste especial importância na avaliação relativa às perguntas feitas em ordem a uma alteração neste domínio. Na concretização regulamentar mais restritiva das áreas de contenção, o que pode acontecer é que enquanto se verificarem os pressupostos limitativos legalmente admissíveis (cf. artigo 15.º-B, n.º 1, alíneas a) e b), do RJEEAL), isto é, temporariamente, não sejam autorizados novos registos. E, em relação a registos existentes, o seu cancelamento está sujeito ao princípio da tipicidade, sendo os fundamentos elencados no artigo 9.º do RJEEAL.

Pode, por fim, concluir-se que a atividade de alojamento local está sujeita a dois tipos de limitações: decorrentes da autonomia privada (v.g., restrições previstas no título constitutivo da propriedade horizontal ou no regulamento de condomínio que dele seja parte integrante) ou do interesse público, nomeadamente com vista à realização do direito à habitação (criação de áreas de contenção, por exemplo).

6.3 - Esboçado o regime geral que limita a atividade regulamentar nesta matéria e recordando o artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do RJRL, considerem-se agora as perguntas que integram a proposta de referendo. Assim:

1 - Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local no sentido de a Câmara Municipal de Lisboa, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação?

2 - Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imóveis destinados a habitação?

Na sua fundamentação, refere-se o RMAL, mais especificamente o artigo 10.º, cujo n.º 2 dispõe o seguinte: «[a] autorização de utilização adequada a que se refere o n.º 1 do artigo 6.º do RJEEAL é, para efeitos do presente Regulamento, a autorização de utilização para habitação».

Tendo já exposto as linhas de força do parâmetro normativo que vincula o poder regulamentar e que, consequentemente, não pode deixar de ser observado em termos de perguntas do referendo, procede-se a uma análise sistemática para aferir da legalidade da proposta de referendo sub iudice. Os autores da iniciativa assumem expressamente pretender impedir que, em qualquer parte do município de Lisboa, imóveis destinados à habitação possam ser utilizados para o exercício de atividades de alojamento local. E não é uma medida aplicável apenas para o futuro, pois também se visa modificar o RMAL no sentido de se proceder ao «cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação» (primeira pergunta). Não se trataria de uma proibição total do exercício da atividade de alojamento local, mas esta ficaria confinada a imóveis com outras utilizações urbanísticas [para uma precisão conceitual, cf. Fernanda Paula Oliveira, “1.1. Alojamento local: uma realidade entre várias regulamentações jurídicas (Reflexões a propósito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2022)”, O Municipal - Caderno Jurídico, n.º 1, (2023), pp. 4-16, p. 9] que não a habitação (serviços, por exemplo) - nas palavras da comissão executiva da iniciativa, «o RMAL poderá vir a definir que uso deverá ser compatível com o alojamento local - poderá ser serviços ou comércio [...] não [...] o habitacional» (cf. p. 12 do relatório da “Comissão Eventual para a apreciação da Iniciativa Popular de Referendo Local sobre o Alojamento Local”).

Desde logo, decorre do artigo 266.º, n.º 2, da Constituição que se está perante uma violação do princípio da legalidade da Administração (entendido como princípio da juridicidade - cf., por todos, José Carlos Vieira de Andrade, “O ordenamento jurídico administrativo português”, in Contencioso administrativo: Breve Curso constituído por lições proferidas na Universidade do Minho por iniciativa da Associação Jurídica de Braga, Braga, Livraria Cruz, 1986, pp. 33-70, pp. 37-41), nas vestes de subprincípio da primazia ou prevalência da lei. Com efeito, a admitirem-se as alterações ao Regulamento a que se pretende abrir caminho por via de procedimento referendário local, estaríamos perante um regulamento ilegal. Isto sem prejuízo de se poder discutir a própria desconformidade em termos constitucionais, incluindo de um ponto de vista material ou substantivo, da solução de exclusão total de alojamento local em imóveis destinados a habitação, tópico sobre o qual, por desnecessário neste contexto, não se versará.

Com esta extensão, as perguntas são inequivocamente desconformes com o quadro legal. O regulamento não pode prever essa solução de interdição nem por via da definição de «utilização válida» do imóvel nem pelo estabelecimento de zonas de contenção e de crescimento sustentável.

No primeiro caso - «utilizações válidas» -, pois a concretização legislativa afasta que, por via infralegal, se ponha em causa a lei. Recorda-se, por exemplo, que, quanto ao alojamento local na modalidade quartos, é o próprio legislador que só admite o uso habitacional, não podendo o poder regulamentar municipal afastá-lo.

Como se disse, o instrumento por excelência para limitar significativamente o alojamento local passa pelo estabelecimento de zonas de contenção e de crescimento sustentável. Mas ainda aqui reitera-se que, mesmo nas próprias zonas de contenção, o legislador permite apenas a limitação do «número de novos registos de alojamento local permitido» (artigo 15.º-A, n.º 2, RJEEAL), não a sua total eliminação. Aliás, o n.º 1 do artigo 15.º-B, recentemente aditado ao RJEEAL, tipifica o regime das áreas de contenção. Quanto às áreas de crescimento sustentável, por maioria de razão, não há uma proibição total de novos estabelecimentos de alojamento local, admitindo-se, no entanto, a previsão de requisitos adicionais (artigo 15.º-C, n.º 2, do RJEEAL).

Em nenhum caso se admite o cancelamento de todos os registos relativos a alojamento local em imóveis destinados a habitação. Na verdade, deixando de lado o prazo máximo de 180 dias (período temporal, aliás, suscetível de gerar problemas em sede de proteção de confiança, mas que se torna dispensável examinar hic et nunc), o regulamento não pode estabelecer novas condições de cancelamento do registo, que não as previstas na lei (artigo 9.º, desde logo, o n.º 1 do RJEEAL).

Neste ponto, o recente diploma reforçou a posição das pessoas, singulares ou coletivas, que se dedicam à atividade de prestação de serviços de alojamento. Na verdade, com a Lei 56/2023, de 6 de outubro, tinha sido introduzido o artigo 6.º-A, que estabelecia a renovação do registo de estabelecimento de alojamento local, nos seguintes termos:

«1 - O registo de estabelecimento de alojamento local tem a duração de cinco anos, renovável por iguais períodos.

2 - A primeira renovação é contada a partir da data de emissão do título de abertura ao público.

3 - As renovações do registo carecem de deliberação expressa da câmara municipal territorialmente competente, com faculdade de delegação e subdelegação, no prazo definido em regulamento municipal, podendo opor-se, com base nos requisitos de funcionamento dos estabelecimentos ou, quando aplicável, com o previsto na respetiva Carta Municipal de Habitação».

O Decreto-Lei 76/2024, de 23 de outubro, veio, pelo seu artigo 5.º, revogar esse preceito (6.º-A), robustecendo legalmente a posição que se pretende suprimir, por via de alteração regulamentar, na sequência de uma eventual vitória do “Sim” à primeira pergunta. Na mesma linha de reforço da posição da atividade de alojamento local, refiram-se: o fim da suspensão da emissão de novos registos relativos à referida atividade em apartamentos e estabelecimentos de hospedagem integrados numa fração autónoma de edifício; a eliminação da obrigatoriedade de reavaliação dos registos de alojamento local em 2030 e da caducidade dos registos inativos (previstos, respetivamente, nos artigos 19.º, 20.º e 21.º da Lei 56/2023, de 6 de outubro, os quais foram revogados pelo referido Decreto-Lei 76/2024).

A iniciativa referendária pretende que seja alterado o Regulamento Municipal de Alojamento Local de modo a, na prática, daí retirar um efeito quase plenamente derrogatório do RJEEAL. Com efeito, impedindo - como acima se dizia e é expressamente assumido pelos autores da iniciativa - que, em qualquer parte do município, imóveis destinados à habitação pudessem ser utilizados para o exercício de atividades de alojamento local, isso teria por consequência que o RJEEAL, na sua atual redação, e considerando a expressão quantitativa dos imóveis destinados a habitação, seria praticamente inaplicável no concelho de Lisboa.

Perante uma tentativa referendária que pretende proibir a atividade de alojamento local, sublinha-se que, como decorre do quadro legislativo esboçado, não foi esse o caminho abraçado, ainda que se tenham aberto vias de restrição, mais ou menos significativas, desde 2018, com a criação das áreas de contenção, a que se somaram as áreas de crescimento sustentável.

É neste quadro legislativo que se pretende, por via de regulamento municipal, introduzir soluções que são desconformes com uma normatividade que vincula as autarquias locais, em clara violação do artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do RJRL, que exclui do âmbito do referendo as «matérias reguladas por ato legislativo ou por ato regulamentar estadual que vincule as autarquias locais».

Trata-se de um vício insanável da deliberação de referendo, o que impede definitivamente a sua realização, tornando-se desnecessário proceder à apreciação de outras questões.

III. Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) não dar por verificada a legalidade do referendo local, por iniciativa popular, cuja realização foi deliberada pela Assembleia Municipal de Lisboa, na sua sessão de 3 de dezembro de 2024; e

b) determinar a notificação da Presidente da Assembleia Municipal de Lisboa, nos termos e para os efeitos previstos nos n.os 1 e 3 do artigo 27.º da Lei Orgânica 4/2000, de 24 de agosto, que aprovou o Regime Jurídico do Referendo Local.

O relator atesta o voto de conformidade da Senhora Juíza Conselheira Maria Benedita Urbano e do Senhor Juiz Conselheiro Carlos Medeiros de Carvalho, que participaram por via telemática, bem como o voto de conformidade do Senhor Juiz Conselheiro Gonçalo Almeida Ribeiro, que não assinou por não estar presente. João Carlos Loureiro

Lisboa, 3 de janeiro de 2025. - João Carlos Loureiro - José Eduardo Figueiredo Dias - Rui Guerra da Fonseca - José Teles Pereira - Dora Lucas Neto - Mariana Canotilho (com declaração) - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão (com declaração) - António José da Ascensão Ramos - José João Abrantes.

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei a decisão.

Afasto-me, porém, de toda a fundamentação constante do ponto 5. do Acórdão, por duas ordens de razões. Em primeiro lugar, porque ali se realiza um escrutínio de natureza formal, respeitante ao procedimento administrativo prévio à deliberação do órgão autárquico competente e, em particular, à iniciativa popular que a precedeu. Tal opção afasta-se da jurisprudência maioritária deste Tribunal, que não tem levado a cabo tal controlo, sendo duvidoso que este caiba ainda no âmbito das suas competências, tendo em consideração que a alínea f) do n.º 2 do artigo 223.º da Constituição lhe atribui a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade do referendo local, em si mesmo considerado. Não vejo razões para alterar, neste caso concreto, tal orientação. Em segundo lugar, porque, ainda que se admitisse o escrutínio de tais elementos formais, com a intensidade com que a presente decisão o faz, não creio que o efeito necessário das irregularidades verificadas seja a nulidade da deliberação de realização do referendo.

Subscrevo, pois, unicamente, o fundamento constante do ponto 6. para a não verificação da legalidade do referendo local em análise, fazendo, porém, notar que, não obstante a fórmula legal, que, por imperativos técnico-jurídicos o Acórdão reproduz, a “matéria” respeitante ao alojamento local não se encontra inteiramente excluída do referendo. Na verdade, do quadro normativo relevante, resulta tão somente a impossibilidade de realização de perguntas que possam conduzir a uma resposta incompatível com os aspetos previamente regulados por ato legislativo que vincule as autarquias locais, existindo ainda um espaço de discricionariedade administrativa em relação a esta temática - consubstanciado, desde logo, no poder regulamentar - no âmbito da qual é possível a consulta popular. - Mariana Canotilho.

DECLARAÇÃO DE VOTO

Não subscrevo a fundamentação do presente Acórdão. Por um lado, considero que não cabe ao Tribunal Constitucional procurar oficiosamente irregularidades do procedimento administrativo conducente à deliberação de referendo local, inviabilizando-o com esse fundamento. Por outro lado, discordo da conclusão segundo a qual o objeto deste referendo é «matéria expressamente excluída do âmbito do referendo local» (artigo 4.º, n.º 1, do RJRL).

Em meu juízo, a ilegalidade do referendo reside na formulação das perguntas, que induzem nos eleitores a ideia de que o regulamento municipal pode proibir todos os registos de alojamento local em prédios destinados a habitação, quando nem todos podem ser limitados pelo município.

1 - Este Acórdão examina o procedimento administrativo que culminou na deliberação de referendo, censurando o modo como a assembleia municipal exerceu a prerrogativa facultativa de verificação da identidade dos subscritores da iniciativa popular (i), não constarem os nomes dos mandatários nas folhas de assinaturas da iniciativa popular (ii) e não ter sido solicitado determinado parecer no seio do procedimento deliberativo (iii).

Trata-se de uma inversão na jurisprudência do Tribunal Constitucional, de que me distancio. Nos termos da alínea f) do n.º 2 do artigo 223.º da Constituição, ao Tribunal Constitucional cabe a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade do referendo local, mas não do ato administrativo que decide a sua realização. Em consequência, considero que não pode o Tribunal Constitucional declarar a ilegalidade do referendo com fundamento em vícios procedimentais da deliberação administrativa.

1.1 - A fiscalização preventiva obrigatória pelo Tribunal Constitucional pretende evitar que se realize um referendo ilegal ou inconstitucional; isto é, visa impedir que a consulta popular se preste a manipulações ou que incida sobre matéria não referendável, assim assegurando o respeito pelo princípio democrático. Em consonância, «a fiscalização preventiva de referendos deve, em princípio, limitar-se apenas ao objecto do referendo” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, 2003, p. 1048).

A deliberação de realização de um referendo local não é idêntica à resolução de convocação de um referendo nacional: não constitui um puro ato político; não tende à aprovação de um ato legislativo; nem os órgãos convocantes atuam no seio de um processo legislativo, submetido à jurisdição do Tribunal Constitucional. Diferentemente, insere-se na função administrativa: tem por fim último a aprovação de regulamento ou ato administrativo e obedece a um procedimento administrativo sujeito à jurisdição dos tribunais administrativos.

Ora, as razões da intervenção necessária do Tribunal Constitucional não se ligam ao controlo do procedimento deliberativo nem ao apuramento das consequências dos respetivos vícios, matéria que está na competência dos tribunais administrativos - v. g., quanto à legalidade da convocatória, ao quórum, aos pareceres necessários, às menções legalmente obrigatórias dos documentos ou ao modo exercício da prerrogativa facultativa de verificação administrativa das assinaturas da iniciativa popular.

A competência do Tribunal Constitucional incide, isso sim, sobre o teor da deliberação de referendo, que contém os elementos específicos deste mecanismo de democracia semidirecta: a formulação das perguntas, para que a vontade do corpo eleitoral não seja falseada; a definição do universo eleitoral; a observância dos limites temporais, materiais e circunstanciais do referendo - maxime quanto a saber se tem por objeto matéria de relevante interesse local que deva ser decidida pelos órgãos autárquicos.

1.2 - Por ser assim, ao estabelecer a fiscalização preventiva dos referendos locais, o legislador determinou que ao Tribunal Constitucional são apenas remetidos o texto da deliberação e a cópia da ata da reunião que a aprovou (acrescendo, nos casos de iniciativa popular, o texto da iniciativa), não tendo o Tribunal acesso à documentação relativa à regularidade procedimental da deliberação (artigo 28.º do RJRL). O que se compreende, já que assim se deixa ao Tribunal Constitucional a sua específica função constitucional: o controlo da constitucionalidade e legalidade do referendo e a garantia do princípio democrático.

De resto, e mesmo que coubesse ao Tribunal Constitucional escrutinar o procedimento administrativo, não creio que os vícios formais detetados pusessem em causa a existência da iniciativa referendária (ponto 5.1. da fundamentação). A transgressão das normas aplicáveis geraria, quando muito, a anulabilidade da deliberação municipal, que produz efeitos até ser anulada (n.os 1 e 2 do artigo 163.º do CPA) - sendo duvidoso que possa dela conhecer-se oficiosamente.

2 - Quanto à legalidade do referendo, discordo da conclusão de que incide sobre «matéria expressamente excluída do âmbito do referendo local» (artigo 4.º, n.º 1, alínea b), do RJRL). Em meu juízo, a matéria deste referendo pode ser objeto de referendo local, já que recai sobre questões de relevante interesse local que devem ser decididas pelos órgãos autárquicos municipais - designadamente, no regulamento municipal a que se refere o artigo 4.º do Regime Jurídico da Exploração dos Estabelecimentos de Alojamento Local (RJEEAL).

Não se está em domínio totalmente vinculado, em que não seja cometido às autarquias qualquer poder regulamentar. Uma resposta afirmativa a qualquer das questões determinaria para o município a obrigação de conceber um regime jurídico que, dentro do espaço conferido por lei, concretizasse a vontade expressa pelos eleitores - designadamente, estatuindo o estabelecimento de zonas de contenção (artigo 15.º-A do RJEEAL) e prescrevendo o cancelamento e a não autorização de novos registos de alojamentos locais em prédios «que tenham sido objeto de contrato de arrendamento urbano para habitação nos dois anos anteriores ao registo» (artigo 9.º, n.º 1, alínea f), e artigo 15.º-B, n.º 1, alínea a), ambos do RJEEAL). Todas estas opções estariam na competência regulamentar da autarquia.

Simplesmente, as perguntas aprovadas não cumprem os requisitos de objetividade, clareza e precisão (n.º 2 do artigo 7.º do RJRL), pois induzem nos eleitores a ideia de que o município pode impedir o registo de novos alojamentos locais em todos os prédios destinados a habitação e decidir o cancelamento dos registos existentes em quaisquer prédios destinados a habitação - quando tal apenas poderia ocorrer nas condições dos artigos 9.º e 15.º-B do RJEEAL.

Residindo a ilegalidade do referendo na formulação das perguntas (e não na circunstância de o seu objeto incidir sobre matéria não referendável), considero que nada obsta a que se proceda à reformulação referida no artigo 27.º do RJRL. - Afonso Patrão.

118599338

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/6049083.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1913-08-07 - Lei 88 - Ministério do Interior - Direcção Geral de Administração Política e Civil

    Regula a organização, funcionamento, atribuições e competência dos corpos administrativos.

  • Tem documento Em vigor 1915-09-18 - Lei 446 - Ministério do Interior - Direcção Geral da Administração Política e Civil

    Estabelece que determinadas disposições do Código Administrativo de 1913 só sejam aplicáveis ao caso de que trata o n.º 15.º do artigo 94.º do mesmo Código, quando as câmaras municipais votarem percentagens ou taxas superiores às lançadas no ano anterior.

  • Tem documento Em vigor 1916-06-23 - Lei 621 - Presidência do Ministério

    Altera algumas disposições do Código Administrativo.

  • Tem documento Em vigor 1982-09-30 - Lei Constitucional 1/82 - Assembleia da República

    Aprova a primeira revisão Constitucional, determinando a sua entrada em vigor no trigésimo dia posterior ao da publicação no diário da república, bem como publicação conjunta da Constituição da República Portuguesa de 2 de Abril de 1976, no seu novo texto.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1997-09-20 - Lei Constitucional 1/97 - Assembleia da República

    Aprova a quarta revisão da Constituição da República Portuguesa, de 2 de Abril de 1976, e fixa normas para aplicação no tempo de alguns dos preceitos revistos. Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1998-04-03 - Lei 15-A/98 - Assembleia da República

    Aprova a Lei Orgânica do Regime do Referendo.

  • Tem documento Em vigor 1999-12-16 - Decreto-Lei 555/99 - Ministério do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território

    Estabelece o regime jurídico da urbanização e edificação.

  • Tem documento Em vigor 2000-08-24 - Lei Orgânica 4/2000 - Assembleia da República

    Aprova o regime jurídico do referendo local.

  • Tem documento Em vigor 2007-02-05 - Lei 7/2007 - Assembleia da República

    Cria o cartão de cidadão e rege a sua emissão e utilização.

  • Tem documento Em vigor 2013-09-12 - Lei 75/2013 - Assembleia da República

    Estabelece o regime jurídico das autarquias locais, aprova o estatuto das entidades intermunicipais, estabelece o regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais e aprova o regime jurídico do associativismo autárquico.

  • Tem documento Em vigor 2014-08-29 - Decreto-Lei 128/2014 - Ministério da Economia

    Aprova o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local.

  • Tem documento Em vigor 2018-08-22 - Lei 62/2018 - Assembleia da República

    Altera o regime de autorização de exploração dos estabelecimentos de alojamento local, procedendo à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto

  • Tem documento Em vigor 2023-10-06 - Lei 56/2023 - Assembleia da República

    Aprova medidas no âmbito da habitação, procedendo a diversas alterações legislativas

  • Tem documento Em vigor 2024-10-23 - Decreto-Lei 76/2024 - Presidência do Conselho de Ministros

    Altera o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto, e revoga medidas no âmbito da habitação.

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