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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 14/2024, de 12 de Dezembro

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Sumário

«A venda de imóvel hipotecado, com arrendamento rural celebrado posteriormente à hipoteca, não faz caducar este arrendamento de harmonia com o preceituado no n.º 1 do art. 22.º do RAR, sendo inaplicável o disposto n.º 2 do art. 824.º do CC.»

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 14/2024



Proc. n.º 2560/09.1TBLLE-C.E1.S2

*

Julgamento ampliado de revista no Supremo Tribunal de Justiça:

*

Em acção executiva, sob a forma de processo comum, que E..., gmbh, moveu contra AA, foi designada a venda por abertura de propostas em carta fechada de um prédio misto e de uma fracção autónoma, tendo AA e BB (arrendatário) requerido que fosse dada sem efeito a venda aprazada em virtude de tanto o anúncio como o edital serem omissos em relação ao arrendamento e ao subarrendamento que oneravam o referido prédio misto.

O requerimento foi indeferido com os seguintes fundamentos:

“Entende o tribunal que inexiste qualquer fundamento para dar sem efeito a venda executiva no que tange a qualquer um dos bens imóveis.

Com efeito, embora o prédio misto se ache alegadamente onerado com um contrato de arrendamento que foi objeto de subarrendamento, sucede que o mencionado contrato não subsistirá à venda executiva, em virtude do mesmo ter sido celebrado em momento posterior (ou seja data de 12.10.2009) à constituição da hipoteca (registada em 25.08.2005) que igualmente onera o prédio penhorado e que foi constituída a favor do e que atualmente se encontra na titularidade do credor reclamante Bolsimo - Gestão de Activos, SA. A este propósito pode ler-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 12.12.2013, Proc. n.º 88726/05.2YYLSB.L1-2 que: I - A norma do artigo 1057.º do Código Civil não é absoluta e conhece os mesmos limites, para tutela dos credores e adquirentes - terceiros relativamente à relação locatícia - que os próprios direitos reais sofreriam em hipótese de venda executiva. II - Assim, o arrendamento de imóvel, posterior à constituição de garantia como a hipoteca do mesmo, destarte prioritária, caduca com a venda, Ex vi do artigo 824.º, n.º 2, Código Civil.

E, inexistindo qualquer ónus que deva subsistir à venda executiva, inexiste qualquer fundamento para a sua publicitação (nos mesmos termos que não foi publicitada a hipoteca que igualmente onera o bem imóvel).

Nestes termos indefiro o requerido, devendo manter-se a data já designada para a abertura de proposta.

Custas pelo incidente anómalo a cargo do executado que fixo em 1 (uma) UC - art.7.º, n.º 8 e 4 do Regulamento das Custas Judiciais”.

Inconformados, AA e BB apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por uma outra que decretasse que o arrendamento não havia caducado com a venda executiva.

Por Acórdão de 30.05.2019, os Exmos. Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora decidiram pela total improcedência do recurso e confirmaram a decisão recorrida.

Deste Acórdão vieram, de seguida, AA e BB interpor recurso de revista por via excepcional, ao abrigo do artigo 672.º do CPC, com vista a alcançar uma decisão em que seja reconhecido que o arrendamento não caducou com a venda executiva.

Formulam, a final, as seguintes conclusões:

“I

A)-O recurso deve ser admitido como revista excepcional, com subida em separado e efeito devolutivo, por se verificarem os pressupostos que depende a sua admissão como tal, por haver dupla conforme, ou seja, o acórdão recorrido confirmou sem qualquer voto de vencido a sentença da 1.ª Instância e com a mesma fundamentação jurídica, razão pela qual, os recorrentes lhes está vedado ex vi do n.º 3 do artº671 o recurso de revista normal, com a excepção do preceituado no artº672 onde se enquadra na alínea c)do n.º 1 do CPC.

B)-Através das suas alegações, deve dar-se como provado que o recorrente preencheu todos os pressupostos que a lei no artº672 faz depender a admissão desta revista excepcional.

II

O ACÓRDÃO FUNDAMENTO ESTÁ EM CONTRADIÇÃO FRONTAL COM O ACÓRDÃO RECORRIDO.

Razão pela qual deve ser admitido o recurso no Supremo Tribunal de Justiça EX vi dos preenchimento dos pressuposto do artº672 n.º 1 alínea c)em conjugação com o artº674 ambos do CPC, que fixa a competência do STJ e os fundamentos do recurso que no entender do recorrente é a violação expressa do artº1057 do Ccivil e tudo que ele representa para os cidadãos e comunidade jurídica e na certeza do direito, por erro de aplicação e interpretação deste normativo que depende da verificação de certos factos e alegações que não foram produzidas in processo e por se encontrar o acórdão recorrido em OPOSIÇÃO FRONTAL com o acórdão fundamento, tendo em vista a Uniformização da jurisprudência na aplicação do artº1057 do C.C..

Deve ser prolatado acórdão que, considere a revista excepcional procedente e REVOGUE QUER A SENTENÇA, QUER O ACORDÃO DA RELAÇÃO RECORRIDO, por total oposição com o acórdão FUNDAMENTO, DECLARANDO QUE O ARRENDAMENTO E SUBARRENDAMENTO NÃO CADUCARAM COM A VENDA EXECUTIVA ex vi do n.º 2 do artº824 do C.C., continuando o recorrente na detenção do imóvel locado”.

A E..., gmbh, apresentou, por sua vez, contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:

“I - Do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

II - O n.º 3 que “sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.” - chamada dupla conforme. (negrito nosso).

III - Existe dupla conforme quando o acórdão da Relação confirme, sem restrições, o decidido na 1.ª instância - o que aconteceu na integra -, ou seja, o acórdão recorrido confirmou, em absoluto, o despacho proferido pelo Tribunal “a quo”.

IV - Com dupla conforme - n.º 3 do artigo 671.º do CPC - não é admissível o presente recurso apresentado pelo Recorrente.

V - O n.º 1 do artigo 672.º do CPC, enumera, excecionalmente e de uma forma taxativa, os casos em que o recurso de revista é admitido.

VI - A Recorrente socorre-se da alínea c) do mesmo preceito legal para justificar a interposição do presente recurso de revista, mormente “o acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito…”.

VII - O acórdão recorrido não está em contradição com outro, ou seja, o acórdão proferido pela Relação de Évora nos presentes autos não está em contradição com o acórdão, proferido pela Relação de Lisboa nos autos n.º 1357/17.0T8LSB-C.L1-1 e aqui apresentado pelo Recorrente.

VIII - O Recorrente invoca uma pretensa contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, de que juntou cópia, sustentando que ambas as decisões estão em oposição e que resolvem a mesma questão de direito;

IX - E indigita como acórdão-fundamento o proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 30 de Abril de 2019, no âmbito do processo 1357/17.0T8LSB-C.L1-1.

X - Efectivamente, e embora em ambos os acórdãos esteja em causa apreciar a caducidade de um contrato de arrendamento, o certo é que tanto o quadro normativo como a factualidade atinente a cada um deles é completamente distinta.

XI - Conforme se colhe na matéria de facto do acórdão-fundamento indicado pelo Recorrente, a venda judicial/executiva teve lugar no âmbito de um processo de insolvência o qual é regulado por diploma próprio, só sendo aplicável o regime geral se o caso não for expressamente regulado no CIRE (cf. artigo 17.º do CIRE);

XII - O artigo 109.º do CIRE dispõe, em particular, sobre os efeitos da insolvência sobre a locação;

XIII - O acórdão-fundamento versa sobre um contrato de arrendamento de um prédio urbano para habitação.

XIV - A factualidade explanada no acórdão recorrido é absolutamente distinta.

XV - No aresto recorrido, a Relação de Évora versa sobre a caducidade de um contrato de arrendamento rural no âmbito de uma venda judicial/executiva efectivada num processo executivo.

XVI - Na fundamentação de direito apresentada pela Relação de Évora, designadamente, pelos Exmo. Senhores Desembargadores e que a aqui Recorrida adere “in totum”, que o contrato de arrendamento rural caduca com a venda executiva nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.

XVII - A alínea c) do artigo 672.º do CPC exige que se trate de acórdãos contraditórios no sentido de estarem em oposição frontal e não apenas implícita ou pressuposta e que incidam sobre a mesma questão fundamental de direito.

XVIII - Não basta que as decisões sejam análogas, tendo que se tratar da mesma questão fundamental de direito, o que só acontece quando a factualidade, perante norma aplicável, seja idêntica, por isso, só há oposição justificativa da revista excepcional quando os mesmos preceitos são interpretados e aplicados diversamente a factos idênticos - o que não é o caso.

XIX - Os factos absolutamente diferentes que levam a uma realidade totalmente distinta.

XX - Face ao exposto afirmamos que não ocorre a invocada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento que é indicado pelo recorrente, pelo que deverá o mesmo ser indeferido e por não admitido.

XXI - Considera-se douto e acertado o acórdão recorrido de fls…a que a Recorrida não pode deixar de aderir “in totum” não se vislumbrando que tal decisão padeça de falta de fundamentação ou que tenha aplicado incorrectamente a lei como pretende o Recorrente.

XXII - O recurso de revista foi interposto na sequência do acórdão proferido em 2019-05-30, a qual julgou improcedente o recurso de apelação confirmando o despacho recorrido, nomeadamente, com a caducidade do arrendamento por via da venda executiva.

XXIII - O artigo 824.º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Venda em execução”, prevê no seu n.º 1 que “A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.”;

XXIV - Acrescenta o n.º 2 que “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”.

XXV - A caducidade do arrendamento com a venda judicial tem sido objecto de controvérsia tanto na doutrina como na jurisprudência que, no entanto, mais recentemente tem vindo a pacificar-se no sentido de entender que a venda judicial de imóvel hipotecado faz caducar o arrendamento do imóvel, desde que este tenha sido celebrado após a data do registo de hipoteca, pois constitui um verdadeiro ónus em relação ao prédio.

XXVI - Determinante para o efeito é assim a data da celebração do contrato de arrendamento, com referência quer à data da constituição e registo da hipoteca, quer à data da realização da penhora;

XXVII - A questão põe-se com maior intensidade quando o contrato de arrendamento foi celebrado depois da constituição da hipoteca, verdadeiro direito real de garantia, e antes da penhora e quando tem lugar a venda do imóvel na execução - o que aconteceu nos presentes autos.

XXVIII - Para resolução da questão importa, desde já, saber quais os direitos que caducam com a venda judicial nos termos do n.º 2 do artigo 824.º do C. Civil e se o arrendamento cabe na expressão “demais direitos reais”.

XXIX - No nosso entendimento é que o arrendamento cabe na expressão “demais direitos reais”.

XXX - Apesar de se entender que o arrendamento não assume a natureza de um direito real, a tese da não caducidade não é a que melhor responde às exigências de justiça, nem aos interesses teleologicamente detetáveis no n.º 2 do artigo 824.º do C. Civil, cuja ratio é a de os bens vendidos judicialmente serem transmitidos livres de quaisquer encargos;

XXXI - A interpretação dada ao n.º 2 do citado art. 824.º, no sentido de que o mesmo abrange também o contrato de arrendamento, é a que melhor assegura um equilíbrio proporcional entre os vários interesses em jogo: o interesse do proprietário do bem hipotecado, em celebrar o contrato de arrendamento; o do arrendatário, que sabe ou pode saber pela publicidade registral que o bem objeto do arrendamento está sujeito à execução, e o do credor hipotecário, que não vê o bem hipotecado sofrer desvalorização em consequência do arrendamento.

XXXII - Com esta solução sairá, objetivamente, penalizado o arrendatário, a verdade é que, no jogo de interesses em confronto, fará menos sentido protegê-lo, em detrimento do credor hipotecário, tendo em consideração que ele não ignorava ou não devia ignorar a hipoteca que onerava o bem locado e que o credor se vê confrontado com uma desvalorização do imóvel decorrente do arrendamento, entretanto celebrado sem a sua intervenção e vontade.

XXXIII - Atendendo à ratio do n.º 2 do artigo 824.º do C. Civil, deve incluir-se, por analogia das situações, o arrendamento.

XXXIV - Com este cenário jurídico e considerando que, no caso em apreço, a hipoteca sobre o imóvel vendido no processo executivo encontra-se registada a favor da recorrida/adquirente desde 25.08.2005 e que o contrato de arrendamento invocado pelo Recorrente é posterior a esta data, não podemos deixar de considerar que o mesmo, por aplicação do citado art. 824.º, n.º 2, caducou automaticamente com a venda do imóvel arrendado no processo executivo;

XXXV - Pelo que nenhuma censurar pode merecer o douto acórdão recorrido que, por isso, será de manter, improcedendo, por isso, todas as conclusões do recurso interposto pelo Recorrente.

XXXVI - O acórdão recorrido ao decidir como decidiu, nomeadamente, considerando a improcedência do pedido efectuado pelo Recorrente, está a decidir em consonância com a lei aplicável e com a jurisprudência dominante.

XXXVII - O pedido formulado pelo Recorrente não poderia proceder, como efectivamente veio a acontecer no acórdão proferido pela Relação de Évora”.

Em 1.10.2019 foi proferido pelo Exmo. Relator do Tribunal da Relação de Évora o seguinte despacho:

“O recurso é tempestivo e foi interposto por quem tem legitimidade, sendo certo que o valor em causa não obsta ao recurso de revista excecional.

Subam, assim, os autos ao STJ para os efeitos tidos por convenientes”.

Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal, a Formação a que se refere o artigo 672.º, n.º 3, do CPC decidiu não admitir a revista excepcional.

Entendendo, porém, que os recorrentes invocavam uma contradição jurisprudencial, determinou a distribuição dos autos nos termos gerais para a apreciação da admissibilidade do recurso, ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC.

Por despacho de 5.12.2019 a Exma. Relatora admitiu a revista ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC e, nos termos do artigo 272.º, n.º 1, do CPC, suspendeu a instância até ao trânsito em julgado da decisão a proferir no Proc. 1268/16.6..., uma vez que nestes autos estava em causa a interpretação do artigo 824.º, n.º 2, do CC e a decisão da questão, não obstante suscitada no contexto do processo de insolvência, poderia, de alguma forma, revelar-se pertinente também para a decisão dos presentes autos.

Em 5.07.2021 foi proferido o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 2/2021, publicado no Diário da República n.º 151/2021, 1.ª série, de 5 de Agosto, que firmou a jurisprudência no seguinte sentido:

“A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil”.

Perante o teor desta uniformização, foi submetido, na sessão da 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2021, o projecto de decisão respeitante ao presente recurso.

Da acta desta sessão, assinada pelo Exmo. Senhor Presidente da 2.ª Secção, consta o seguinte:

“Em 27-01-2022 às 10:30, nesta cidade de... e sala de sessões do Supremo Tribunal de Justiça, em sessão presidida pelo Excelentíssimo Senhor Juiz Conselheiro Dr. Abrantes Geraldes, por videoconferência, considerando as circunstâncias decorrentes da pandemia, aqui foram apresentados, a fim de se proceder à respectiva conferência, os autos acima identificados em que são:

Recorrente: BB

Exequente: E..., gmbh e outro(s)...

No âmbito da discussão do projeto entre os Exmºs Juízes Conselheiros que integram o coletivo, entretanto alargada aos demais Exmºs Juízes Conselheiros da 2.ª Secção, verificou-se que a solução projetada, em função dos votos da Exmª Juíza Cons. Relatora e dos Exmºs Juízes Cons. Adjuntos, é suscetível de contrariar a jurisprudência que foi uniformizada pelo AUJ do STJ n.º 2/21.

Neste contexto, por consenso obtido, considerou-se ajustado que, ao abrigo do disposto no art. 686.º do CPC, os autos sejam apresentados ao Exmº Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça para eventual determinação do julgamento ampliado da revista, com intervenção do Pleno das Secções Cíveis.

Por este motivo, o processo é, entretanto, retirado da Tabela, devendo ser aberta conclusão ao Exmº Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para os fins tidos por convenientes”.

Em 14.02.2022 o Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão com o teor que se reproduz:

“Na sessão do passado dia 27.01.2022, o Ex.° Senhor Juiz Conselheiro Presidente da 2a Secção (Cível) propôs o julgamento alargado do presente recurso de revista, fazendo constar da respetiva ata o seguinte:

‘No âmbito da discussão do projeto entre os Exmºs Juízes Conselheiros que integram o coletivo, entretanto alargada aos demais Exmºs Juízes Conselheiros da 2a Secção, verificou-se que a solução projetada, em função dos votos da Exma Juíza Cons. Relatora e os Exmºs Juízes Cons. Adjuntos, é suscetível de contrariar a jurisprudência que foi uniformizada pelo AUJ do STJ n. ° 2/21.

Neste contexto, por consenso obtido, considerou-se ajustado que, ao abrigo do disposto no art. 686.º do CPC, os autos sejam apresentados ao Exmº Presidente deste Supremo Tribunal de Justiça para eventual determinação do julgamento ampliado de revista, com intervenção do Pleno das Secções Cíveis’.

Vejamos.

O artigo 686.º do CPC rege da seguinte forma:

1 - O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, determina, até à prolação do acórdão, que o julgamento do recurso se faça com intervenção do pleno das secções cíveis, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a uniformidade da jurisprudência.

2 - O julgamento alargado, previsto no número anterior, pode ser requerido por qualquer das partes e deve ser proposto pelo relator, por qualquer dos adjuntos, pelos presidentes das secções cíveis ou pelo Ministério Público.

3 - O relator, ou qualquer dos adjuntos, propõe obrigatoriamente o julgamento ampliado da revista quando verifique a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência uniformizada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

4 - A decisão referida no n.º 1 é definitiva.

A questão que se colocava na hipótese que deu origem ao AUJ 2/2021 era a de saber se a venda de um imóvel hipotecado e arrendado, por contrato de arrendamento urbano para habitação, celebrado em data posterior ao registo da hipoteca, realizada no âmbito de liquidação efetuada em processo de insolvência do locador, provocava a caducidade do arrendamento, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do Código Civil.

O acórdão uniformizador deu resposta negativa a tal questão, doutrinando:

“A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil”.

Estes autos respeitam a uma ação executiva comum, sendo neste âmbito que se coloca a questão de saber se a venda judicial faz caducar o contrato de arrendamento de imóvel, com hipoteca registada em data anterior, nos termos do artigo 824.º, n.º 2, do CC.

Embora o AUJ 2/2021 tenha sido tirado no âmbito de um processo de insolvência e a presente hipótese se coloque no âmbito de uma execução comum, o problema continua a centrar-se na interpretação do artigo 824.º, n.º 2, do CC, pois o regime legal da venda executiva é aplicável não só à execução universal (processo de insolvência) como à execução comum.

Isso mesmo se considerou no recente acórdão de 03.11.2021, proferido no processo 2418/16.8T8FNC.L1.S1, da 6a Secção, em que, de resto, vem aposto voto de vencido relativamente à tese que fez vencimento no AUJ 2/2021.

Havendo, assim, identidade entre a questão de direito discutida nestes autos e a que foi objeto do AUJ 2/2021, cuja essencialidade para a resolução do recurso de revista se apresenta como evidente, e afigurando-se necessário assegurar a uniformidade de jurisprudência sobre a interpretação do artigo 824.º, n.º 2, do CC, determino que o julgamento se faça com intervenção do Pleno das Secções Cíveis.

À Ex.ª Juíza Conselheira Relatora para cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 687.º do CPC”.

Por despacho proferido em 18.02.2022, a Exma. Relatora determinou a audição das partes, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 687.º, n.º 2, do CPC.

No exercício da faculdade que a lei lhe reconhece pronunciou-se o recorrente BB, pugnando para que o Pleno das Secções Cíveis delibere que “a venda de imóvel hipotecado, com arrendamento rural (como é o caso) celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artº20 n.º 1, do RAR, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artº824 do Código Civil (ainda quando o urbano destinado à habitação é casa da morada de família de um menor que vive com o arrendatário recorrente)”.

Por despacho de 15.03.2022, os autos foram com vista ao Ministério Público, nos termos do artigo 687.º, n.º 1, do CPC, que emitiu parecer em que conclui:

“Tudo visto e ponderado, somos de parecer que deverá julgar-se como provido este recurso de revista com julgamento ampliado, fixando-se a seguinte jurisprudência:

«A venda, em processo executivo, de imóvel hipotecado, com arrendamento rural celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário, de harmonia com o preceituado no artigo 20.º do DL n.º 204/2009, de 13 de outubro, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º, do Código Civil»

*

A questão a decidir, in casu, é a de saber se o artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil (doravante CC) determina a caducidade do arrendamento rural com a venda executiva do imóvel, considerando que o contrato de arrendamento foi celebrado depois da constituição da hipoteca incidente sobre o mesmo imóvel.

*

OS FACTOS

Os factos que vêm provados no Acórdão recorrido são os constantes do respectivo Relatório e ainda os seguintes:

“1) Sobre o prédio misto cuja venda foi anunciada incide hipoteca voluntária registada em 25.08.2005 (cf. certidão do registo predial junta aos autos cujo teor se dá aqui por reproduzido).

2) O referido prédio foi objecto de “contrato de arrendamento rural”, segundo o qual o prédio arrendado se destina “à regular exploração agrícola em qualquer modalidade e, ou, cultura que não cause danos ao solo nem ao coberto arbóreo, e com o âmbito previsto no art. 2.º da lei do arrendamento rural [...]” (cf. doc. junto aos autos cujo teor se dá aqui por reproduzido).

3) Tal contrato de arrendamento tem a data de 12.10.2009 (cf. doc. junto aos autos cujo teor se dá aqui por reproduzido).”

Por estarem provados por documentos, aditam-se, ainda, aos factos provados, os seguintes:

“4) Na qualidade de arrendatário, BB celebrou em 12.10.2009 o contrato de arrendamento rural, pelo prazo de 10 anos, com início no dia 1 de Outubro de 2009 e termo em 31 de Setembro de 2019, renovável por períodos sucessivos de três anos [...]”

5) O prédio foi objecto de penhora no âmbito do presente processo com registo na data de 11.11.2010 (cf. certidão de registo predial junta aos autos)

6) Ao abrigo da cláusula 5.ª do contrato de arrendamento rural, o arrendatário deu o prédio de subarrendamento através de um “contrato de subarrendamento rural”, que tem a data de 15.09.2009 (cf. doc. junto aos autos).”

O DIREITO

Como acima se assinalou, à questão - que se colocava no caso que deu origem ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 2/2021, publicado no Diário da República n.º 151/2021, 1.ª série, de 5 de Agosto - de saber se a venda de um imóvel hipotecado e arrendado, por contrato de arrendamento urbano para habitação, celebrado em data posterior ao registo da hipoteca, realizada no âmbito de liquidação efectuada em processo de insolvência do locador, provocava a caducidade do arrendamento, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC, o acórdão uniformizador deu a seguinte resposta:

“A venda, em sede de processo de insolvência, de imóvel hipotecado, com arrendamento celebrado subsequentemente à hipoteca, não faz caducar os direitos do locatário de harmonia com o preceituado no artigo 109.º, n.º 3 do CIRE, conjugado com o artigo 1057.º do CCivil, sendo inaplicável o disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CCivil”.

A questão que se coloca agora é a de saber se a venda executiva de um imóvel hipotecado e arrendado, por contrato de arrendamento rural, celebrado em data posterior ao registo da hipoteca, provoca a caducidade do arrendamento, também nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 824.º do CC. Ou seja: se, para tal hipótese, deve ser reafirmada ou não a tese de que o n.º 2 do artigo 824.º do CC não é aplicável ao arrendamento.

Como se recorda, no acórdão recorrido concluiu-se que a regra da transmissibilidade do n.º 1 do art. 20.º do NRAR não é aplicável no caso de venda executiva e que, sendo o contrato de locação posterior ao registo da hipoteca, o arrendamento rural deve caducar por força do regime estabelecido no n.º 2 do art. 824.º do CC.

Insurgindo-se contra essa decisão, entendem os recorrentes, diferentemente, que não é a norma do art. 824.º, n.º 2 do CC que se aplica ao caso dos autos mas sim a do art. 1057.º do CC.

Em primeiro lugar, importa verificar e confirmar a existência do alegado contrato de arrendamento rural.

Dos factos provados resulta que BB (arrendatário) “celebrou em 12.10.2009 um contrato de arrendamento, pelo prazo de 10 anos, com início no dia 1 de Outubro de 2009 e termo em 31 de Setembro de 2019, renovável por períodos sucessivos de três anos [...]”; contrato que teve por objecto um prédio misto composto de terra de cultura e casas de habitação com armazém, com área total de 6 ha e se destinou “à regular exploração agrícola em qualquer modalidade e, ou, cultura que não cause danos ao solo nem ao coberto arbóreo, e com o âmbito previsto no art. 2.º da lei do arrendamento rural [...]”.

Nos termos do art. 1066.º, n.º 1, do CC, o arrendamento conjunto de uma parte urbana e de uma parte rústica é havido por urbano quando seja essa a vontade dos contratantes, sendo que, nos termos do n.º 2 “ na dúvida atende-se sucessivamente ao fim principal do contrato e à renda que os contraentes tenham atribuído a cada uma delas”.

Assim, revertendo ao caso sub judice, atendendo ao título e ao fim declarado no contrato (que se destinou à regular exploração agrícola em qualquer modalidade e, ou, cultura que não cause danos ao solo nem ao coberto arbóreo, e com o âmbito previsto no art. 2.º da Lei do Arrendamento Rural) tudo indica que terá sido vontade dos contratantes celebrar um contrato de arrendamento rural, regulado por um regime especial face ao regime geral da locação (como resulta, aliás, do art. 1108.º do CC que exclui a aplicação das regras da subsecção VIII “Disposições especiais do arrendamento para fins não habitacionais” aos arrendamentos rústicos sujeitos a regimes especiais, como é o caso do arrendamento rural para fins agrícolas.

Assente, portanto, a existência de um contrato de arrendamento rural, importa determinar, também, que diploma especial é aplicável ao contrato - se o DL n.º 385/88, de 25.10, na versão do DL n.º 524/99, de 10/12 (RAR), se o DL n.º 294/2009, de 13.10 (NRAR) - e que normas do diploma aplicável regem no plano da caducidade de tal contrato.

Apreciando o primeiro ponto - o do regime aplicável - verifica-se que, à data da celebração do contrato de arrendamento rural dos autos (12.10.2009), regia o DL n.º 385/88, de 25.10, na versão do DL n.º 524/99, de 10/12 (RAR), diploma que, volvido pouco tempo, foi revogado pelo Novo Regime do Arrendamento Rural (NRAR), aprovado pelo DL n.º 294/2009, de 13.10, que entrou em vigor passados 90 dias.

Do NRAR passaram a constar as seguintes normas, com interesse para o caso dos autos:

Artigo 39.º

Aplicação no tempo

1 - Aos contratos de arrendamento rural, celebrados a partir da data de entrada em vigor do presente decreto-lei, aplica-se, obrigatoriamente e na íntegra, o regime nele previsto.

2 - Aos contratos de arrendamento, existentes à data da entrada em vigor do presente decreto-lei, aplica-se o regime nele prescrito, de acordo com os seguintes princípios:

a) O novo regime apenas se aplica aos contratos existentes a partir do fim do prazo do contrato, ou da sua renovação, em curso;

b) O novo regime não se aplica aos processos pendentes em juízo que, à data da sua entrada em vigor, já tenham sido objecto de decisão em 1.ª instância, ainda que não transitada em julgado, salvo quanto a normas de natureza interpretativa;

c) Até ao termo do prazo em curso dos contratos validamente celebrados ao abrigo do artigo 36.º da Lei 76/77, de 29 de Setembro, não se aplica o disposto no artigo 10.º

Artigo 41.º

Alteração dos contratos existentes

Os contratos de arrendamento rural existentes à data de entrada em vigor do presente decreto-lei devem, no momento da sua renovação, ser alterados em conformidade com o mesmo.

Artigo 42.º

Direito subsidiário

1 - Nos casos omissos, desde que não contrariem os princípios do presente decreto-lei, aplicam-se, sucessivamente, as regras respeitantes ao contrato de locação e as regras dos contratos em geral, previstas no Código Civil.

2 - Nos casos omissos no presente decreto-lei e respeitantes à parte adjectiva do mesmo aplica-se o Código de Processo Civil.

Artigo 43.º

Norma revogatória

Ressalvada a sua vigência para efeitos do disposto no artigo 41.º, são revogados:

a) O Decreto-Lei 385/88, de 25 de Outubro, alterado pelo Decreto-Lei 524/99, de 10 de Dezembro;

b) O Decreto-Lei 394/88, de 8 de Novembro.

Artigo 44.º

Entrada em vigor e produção de efeitos

1 - O presente decreto-lei entra em vigor 90 dias após a data da sua publicação.

2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 39.º, o presente decreto-lei apenas produz efeitos relativamente aos contratos de arrendamento existentes na data da sua entrada em vigor, após os mesmos serem alterados nos termos estabelecidos no artigo 41.º

Ao contrato, que já existia à data da entrada da entrada em vigor do DL n.º 294/2009, de 13.10 (em Janeiro de 2010), teria aplicação, em princípio, o novo regime, a partir do fim do prazo do mesmo contrato, ou seja, a partir de 1.10.2019 (art. 39.º, n.º 2, alínea a) dL n.º 294/2009, de 13.10).

Sucede, no entanto, que dos autos não consta que, à data da sua renovação (1.10.2019) ou depois dela, o contrato tenha sido alterado em conformidade com o DL n.º 294/2009 (art. 41.º), o que significa que, por força do art. 44.º, n.º 2 do mesmo diploma, não pode tal regime (NRAR) ser aplicado ao contrato dos autos.

Assim, não tendo lugar no caso a aplicação do art. 9.º, n.º 3, do DL 294/2009, de 13.10 (que prevê o prazo de renovação de 7 anos), o prazo de renovação do contrato continuará a ser não o de 3 anos, previsto no contrato (e que correspondia ao DL n.º 385/88, de 25.10, na sua versão original) mas o imperativo de 5 anos, que decorre do art. 5.º, n.º 3 do DL n.º 385/88, de 25.10, na redacção que lhe foi introduzida pelo DL n.º 524/99 de 10.12.

Deste modo, a renovação encontra-se em curso e termina em 30.9.2024, à qual se sucede nova renovação se o contrato não for denunciado nos termos do DL n.º 385/88, na versão do DL n.º 524/99 de 10.12.

Por outro lado, e quanto à questão da caducidade do arrendamento, que agora nos ocupa, releva não o art. 20.º do DL n.º 294/2009 mas, mais precisamente, o art. 22.º do DL n.º 385/88, na versão do DL n.º 524/99 de 10.12, do seguinte teor:

Artigo 22.º

“Caducidade do contrato”

“1 - O arrendamento não caduca por morte do senhorio nem pela transmissão do prédio.

2 - Quando cesse o direito ou findem os poderes de administração com base nos quais o contrato for celebrado, observar-se-á o disposto no n.º 2 do artigo 1051.º do Código Civil.”

Precisando, constata-se que a questão em apreço na presente revista é, pois, a de saber se o contrato de arrendamento rural (celebrado em data anterior ao registo da penhora mas em momento posterior ao registo da hipoteca) caducou por força do art. 824.º do CC com a venda executiva ou se não caducou, tendo em atenção o disposto no art. 22.º do RAR (ainda que se deva notar que a redacção do n.º 1 deste preceito é exactamente igual à do n.º 1 do art. 20.º do DL n.º 294/2009, que lhe sucedeu).

Analisando o n.º 1 do art. 22.º do RAR (“o arrendamento não caduca pela transmissão do prédio”), verifica-se, desde logo, que, em matéria de transmissão do contrato de arrendamento, o legislador do RAR reafirmou a solução do art. 1057.º do CC: “o adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo”.

A questão a decidir coloca-se, assim, em termos idênticos àqueles que eram postos em relação ao art. 1057.º do CC no AUJ n.º 2/2021: se na venda executiva o regime da referida norma era preterido pelo art. 824.º, n.º 2, do CC, segundo o qual “os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”

Ora, colocando-se a questão em termos similares, valem aqui os fundamentos daquele AUJ n.º 2/2021, publicado no Diário da República n.º 151/2021 (Série I de 05.08.2021).

Assim, quanto a saber se o arrendamento se trata de um direito real de gozo, abrangido pelo art. 824.º, n.º 2 do CC, ou de um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional excluído desta norma, o citado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência afirmou:

“O contrato de arrendamento, na sua estrutura, é um direito pessoal de gozo, de natureza obrigacional, do qual decorre para o locador a obrigação de proporcionar ao locatário o gozo de um imóvel, temporariamente, mediante uma determinada retribuição, estando o seu enquadramento legal perfeitamente definido no artigo 1022.º do CCivil, não se tratando, pois, de um direito real de gozo, encontrando-se expressamente afastado do Livro III - Direito das Coisas - sendo certo que neste específico domínio estamos adstritos ao princípio da tipicidade (artigo 1306.º do CCivil), o qual afasta, à partida, qualquer possibilidade de analogia.

Essa tipicidade concreta mostra-se abrangida pela norma do artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, a qual é clara, precisa e concisa, no que concerne aos direitos que caducam em sede de venda executiva, pois estes são apenas os reais e não também os obrigacionais, caso do arrendamento”.

Prosseguindo o referido Acórdão:

“Não obstante algumas características particulares do arrendamento, maxime, as que conferem ao locatário o poder de usar dos meios facultados ao possuidor, se for perturbado no exercício dos seus direitos, nos termos do artigo 1037.º, n.º 2 do CCivil, contra o locador ou contra aquele que dele adquira o direito por força do artigo 1057.º, o arrendamento é um direito pessoal de gozo (assim qualificado expressamente pelo artigo 1682.º, n.os 1 e 2 do CCivil), definido pelo artigo 1022.º do CCivil, como o contrato pelo qual alguém se obriga a proporcionar a outrem o gozo de uma coisa mediante uma retribuição, sendo nesta que reside a natureza creditícia da relação: é um direito creditório referente a uma coisa, não é um direito sobre a coisa; por outro lado a inerência, afloramento da sequela, não lhe confere a característica do absolutismo do direito, apanágio de um direito real, uma vez que o mesmo não corresponde a uma obrigação passiva universal, mas antes a um direito relativo ao senhorio, pois apenas a este o arrendatário poderá exigir que lhe seja assegurado o gozo da coisa locada para os fins a que a mesma se destina, bem como que proceda às reparações necessárias, nos termos dos artigos 1031.º, alínea b) e 1036.º do mesmo diploma [...]”

Como se fez notar no Acórdão recorrido [...] “a concessão do gozo significa que nada se transmite, nada se transfere, nada se aliena. O que sucede é que o locador se vincula à prestação de proporcionar esse gozo ao arrendatário, adquirindo este, em contrapartida, o direito à mesma prestação - de natureza obrigacional - e não qualquer direito sobre a coisa”.

Assim, do disposto no art. 1057.º do CC («O adquirente do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucede nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo») resulta “a garantia para o arrendatário da manutenção do seu contrato de arrendamento, pois a lei mais do que prever a transmissão para o novo proprietário do contrato de arrendamento anteriormente celebrado, impõe que nessa transmissão se mantenham intactos todos os direitos e obrigações que impendem sobre o direito transmitido.”

Esta previsão faz “ afastar, de um lado, a aplicação do normativo inserto no artigo 824.º, n.º 2 do CCivil, por no mesmo não haver qualquer referência à ocorrência da caducidade relativamente aos direitos obrigacionais e, nestes, ao arrendamento, e por outro, por nas causas de caducidade do contrato de arrendamento enunciadas no artigo 1051.º do mesmo diploma, não constar a venda, quer em acção executiva, quer em liquidação em processo insolvencial.”

“ [...] Só não seria assim, se o legislador podendo prever a hipótese da venda em execução e, concomitantemente, em liquidação insolvencial, o tivesse deixado consignado, sendo certo que o poderia ter feito, atentas as alterações legislativas entretanto ocorridas, mas não o fez (maxime aquando da inclusão no artigo 819.º do CCivil do arrendamento posterior à penhora, entre os actos inoponíveis à execução), caso tivesse tido o propósito de fazer caducar o arrendamento anterior à penhora, mas posterior à hipoteca.“

No que toca à natureza exemplificativa do art. 1051.º do CC relativamente aos casos de caducidade do contrato de arrendamento, aqui se sufraga, igualmente, o que, a este propósito, se escreveu no AUJ n.º 2/2021:

“Nem se diga, ex adverso, que se trata de uma argumentação sem qualquer expressão, uma vez que a enunciação legal embora nunca assuma um carácter taxativo, mas antes meramente exemplificativo, no caso concreto, a apontada omissão, só se poderá ter como propositada, face ao preceituado no artigo 1057.º: se o arrendamento se mantém independentemente da transmissão do direito, é óbvio que essa transmissão não o poderá fazer caducar e, daí a impossibilidade manifesta de se poder afastar a aplicação do disposto no artigo 1051.º, o qual não prevê como causa de caducidade a venda em processo executivo do imóvel arrendado, nem tão pouco na liquidação insolvencial [...].”

Argumento que sai reforçado com o consagrado pelo legislador no n.º 1 do art. 22.º do RAR, que, sem poder ignorar a controvérsia doutrinária e jurisprudencial quanto à aplicação do art. 824.º, n.º 2, do CC em relação ao arrendamento urbano, estatuiu, expressamente (e de modo mais enfático do que o art. 1057.º do CC), o seguinte: “O arrendamento não caduca por morte do senhorio nem pela transmissão do prédio”.

Neste contexto, deverá presumir-se que, quando estatuiu que o arrendamento não caduca pela transmissão do prédio, o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e incluir a venda executiva como uma forma de transmissibilidade do contrato.

O elemento sistemático da interpretação jurídica aponta, assim, para a consideração de que o direito do locatário/arrendatário é um direito obrigacional e não real e de que, por essa razão, o art. 824.º do CC não inclui o arrendamento (rural).

Para tal concorre, também, o elemento histórico.

A este propósito, observa Pinto Furtado, em Manual do Arrendamento Urbano, Volume I, 5.ª edição, Almedina, a pág. 65: “Efectivamente, o autor do projecto correspondente à disciplina da locação, no nosso Código Civil, teve o cuidado de afirmar, fundamentando a opção legal proposta, que a delimitação rigorosa do contrato de locação regulado nos arts. 1022 e ss CC, por uma parte, e do direito de uso e habitação disciplinado nos arts. 1484- 1490 CC por outra parte “um de conteúdo pessoal e o outro de conteúdo real, representou um progresso que se não deve desprezar… A subsistência do direito locativo como direito pessoal torna mais maleável o sistema, porque põe à disposição dos interessados maior variedade de instrumentos jurídicos e tanto permite o desfrute de bens doutrem sob real forma como sob forma creditória” [Inocêncio Galvão Teles, Contratos Civis (BMJ n.º 83, p. 144)]. Assim, tendo esta conclusão sido inequivocamente expressa denunciando um propósito legislativo concreto, em trabalho escrito, preparatório da publicação do Código onde foi acolhido, distribuindo a disciplina legal por distintas normas propositadamente incluídas em livros diferentes, a locação no livro destinado ao direito das obrigações (Livro II- arts 397-1250) e o direito de uso e habitação no reservado aos direitos das coisas (Livro III- arts. 1251-1275)- a tentativa de fortalecimento do direito do locatário até ao paroxismo de natureza real não poderá deixar de evidenciar uma clara violação do pensamento legislativo, cujo respeito é imposto por lei (art. 9.º do CC)”.

Os elementos sistemático e histórico da interpretação colocam, assim, em causa a ideia de que “podemos dar sem hesitação por assente que a liberalidade do art. 695.º só se explica porque se partiu do princípio da caducidade dos ónus em caso de execução” (Oliveira Ascensão, “Locação de bens dados em garantia - Natureza jurídica da locação”, “Locação de bens dados em garantia - Natureza jurídica da locação”, ROA, Ano 45, Vol. II, págs. 359-360). Não é seguro que, na formulação do art. 695.º do CC, o legislador tenha partido do princípio da caducidade do direito de arrendamento em caso de execução.

Convocam, ainda, os defensores da tese da caducidade do contrato de arrendamento ao abrigo do art. 824.º, n.º 2 do CC, o argumento racional (ratio legis) ou teleológico.

Destacam, a propósito, a ideia ou noção de “transmissão dos bens livres” que evidenciará, desde logo, o objectivo de propiciar a venda do bem pelo melhor preço, assim se assegurando o interesse do exequente (e dos credores reclamantes, se os houver) e o interesse do executado na extinção da dívida (cf. Gama Prazeres, Do concurso de credores e da verificação dos créditos nos actuais Código Civil e Código do Processo Civil, Braga, 1978, pág. 42; Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, volume II, cit., págs. 940-941).

Parte-se do princípio de que “o prédio livre tem um valor; o prédio arrendado tem um valor muito menor” ou que “economicamente, o arrendamento dos bens é sem dúvida uma oneração, é um peso ou gravame que nada distingue dos restantes que foram considerados no art. 695.º” (Oliveira Ascensão, ob. cit., págs. 345 e 361).

Não se questionando o objectivo da lei de propiciar a venda do bem pelo melhor preço, a verdade é que, tendo em atenção os elementos de interpretação atrás enunciados - o sistemático (“inserção do arrendamento no livro destinado ao direito das obrigações”) e o histórico (“trabalhos preparatórios”) - não se pode concluir, apenas com base no elemento teleológico, que o arrendamento tenha sido incluído nos direitos que caducam com a venda executiva.

Além disso, não se pode olvidar outro elemento da interpretação da lei: “as condições do tempo em que é aplicada” (art. 9.º, n.º 1 do CC).

Como se sabe, a interpretação da lei deve reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo tendo em conta não apenas a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias em que a lei foi elaborada mas também as condições específicas do tempo em que é aplicada.

Ou seja: se as circunstâncias do tempo em que a lei foi elaborada (“occasio legis”) permitem identificar o ponto de vista valorativo que presidiu à feitura da lei (a já transmissão dos bens livres de direitos de garantia e de outros direitos reais em ordem à obtenção do melhor preço de venda), ”as condições específicas do tempo em que a lei é aplicada” podem exigir a adaptação daquele juízo de valor e da norma interpretanda ao condicionalismo actual (v. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2015, de 24 de Março, Diário da República n.º 58/2015, Série I de 2015-03-24).

Há, portanto, na exegese da lei uma nota actualista que o aplicador não pode ignorar.

Ora, nesse âmbito, não se pode afirmar, em termos definitivos, que o direito pessoal de gozo (arrendamento) tem, presentemente, uma aptidão igual à dos direitos reais para comprometer a finalidade da venda pelo melhor preço. E não tem aptidão igual porque é um direito pessoal de gozo que não tem, actualmente, as características de um direito potencialmente ilimitado como um direito real de gozo.

O gravame resultante da oneração do prédio com um arrendamento não é, assim, idêntico ao de um direito real ou ao do arrendamento vinculístico pois é possível a denúncia ou oposição à renovação, embora - temos de o reconhecer - o arrendamento não deixe de constituir, em certos casos, um evidente factor de desvalorização e, nesse sentido, um verdadeiro gravame (ainda que atenuado com o pagamento da renda), não se podendo iludir, pois, nessas situações, e no caso de permanecer a oneração do arrendamento, a dificuldade de os credores poderem obter o melhor valor de venda (maior ou menor, dependendo das características do contrato).

Revertendo ao caso sub judice, verifica-se que BB (arrendatário) celebrou em 12.10.2009 um contrato de arrendamento rural, pelo prazo de 10 anos, com início no dia 1.10.2009 e termo em 30.9.2019, renovável por períodos sucessivos de três anos [...]” (cf. cláusula primeira).

Como acima se notou, apesar de o contrato de arrendamento ter sido celebrado ainda na vigência do DL n.º 385/88, e antes da entrada em vigor do DL n.º 294/2009, de 13.10, deve aplicar-se o regime anterior uma vez que o contrato não foi alterado em conformidade com o DL n.º 294/2009, designadamente em relação aos prazos.

Assim, em 30.9.2019, o contrato renovou-se por cinco anos, ou seja, até 30.9. 2024.

Ora, atendendo a que só pode denunciar o contrato com 18 meses de antecedência (art. 18.º, n.º 1, alínea b) do DL n.º 358/88 de 25.10), o novo senhorio só pode opor-se à renovação em 30.9.2029, o que representa, seguramente, um gravame não despiciendo para os interesses do exequente e dos credores reclamantes.

Porém, e por outro lado, não se pode olvidar a importância do direito de arrendamento e do interesse do arrendatário, que seriam liminarmente sacrificados com a caducidade imediata do contrato de arrendamento em consequência da venda executiva.

Com efeito, e apesar de não ter a mesma relevância social e económica do arrendamento urbano, o direito de arrendamento rural também é, social e economicamente, um direito importante.

É o que resulta, aliás, dos preâmbulos das últimas leis do arrendamento rural: com o DL n.º 358/88 de 25.10 impunha-se “estimular o arrendamento, garantindo ao proprietário a rentabilidade do investimento fundiário e assegurando ao rendeiro a estabilidade necessária ao exercício da sua actividade produtiva”; com a publicação do DL n.º 294/2009, de 13.10, actualmente em vigor, pretendeu-se “dinamizar o mercado de arrendamento da terra e facilitar a sua mobilização produtiva, com vista à promoção do aumento da dimensão física e económica das explorações agrícolas, assegurando a sua sustentabilidade económica, social e ambiental”.

É óbvio que tais objectivos não serão alcançados se o arrendatário rural (de boa fé) vir o seu contrato de arrendamento abruptamente interrompido com a caducidade decorrente da venda executiva; a solução da caducidade do arrendamento rural com a venda executiva pode colocar em risco a situação económica do arrendatário que dependerá, em regra, da actividade agrícola.

E não se diga que o arrendatário deverá proceder à indagação prévia da situação do prédio no sentido de saber se sobre o mesmo impende alguma hipoteca. Não se afigura razoável exigir tal comportamento de um terceiro - em regra, não assessorado juridicamente - que desconhecerá as implicações de uma venda executiva na subsistência ou não do arrendamento.

É verdade que podem acontecer comportamentos fraudulentos de proprietários, devedores hipotecários, que, ao arrendarem os prédios hipotecados, estarão a defraudar as expectativas do credor hipotecário em termos de satisfação do seu direito de crédito (Cláudia Madaleno, A Vulnerabilidade das Garantias Reais…, Coimbra Editora, edição de Junho de 2008, pág. 311).

Porém, a vingar a tese da não caducidade do contrato de arrendamento rural com a venda executiva, não se pode afirmar que, com a mesma, os credores hipotecários ficarão totalmente desprotegidos.

Como se refere no Acórdão do Supremo de Tribunal de Justiça de 27.3.2007, publicado na Col. Jurisp. Ano XV, Tomo I, a págs. 146 e segs. o credor hipotecário pode, para o caso de se tornar insuficiente a segurança da obrigação, exigir que o devedor a substitue ou reforce e, não o fazendo, pode exigir o imediato cumprimento da obrigação ou, tratando-se de obrigação futura, registar hipoteca nos termos do art. 701.º do CC, não sendo de afastar a possibilidade de exercer a acção pauliana contra o devedor que onerar com o prédio objecto da garantia, se se verificarem os respectivos requisitos do art. 610.º e segs. do CC.

Mas se esses instrumentos jurídicos não podem ser equiparados ao da caducidade do arrendamento, em termos de eficácia (e de brevidade) em relação aos objectivos a atingir (segurança do crédito e rapidez na sua cobrança), já o recurso preventivo da parte do credor hipotecário à convenção com o proprietário/devedor, ao abrigo da 2.ª parte do art. 695.º do CC - no sentido de ser convencionado que o crédito hipotecário se vença logo que o bem hipotecado seja onerado com o arrendamento - se revelará bem mais eficaz.

É certo que o artigo 695.º do CC faculta ao proprietário, que recorrer ao crédito hipotecário, o direito de onerar o prédio hipotecado com um arrendamento, assim o rentabilizando; e que, com a solução propugnada, ficará impedido de dar o prédio de arrendamento.

Todavia, se, por um lado, tal solução redundará na fragilização do proprietário que assim ficará privado do poder de extrair rendimentos do bem onerado com a hipoteca através do arrendamento, por outro, evitará que o arrendatário, que, em regra, desconhecerá a oneração do prédio, possa ser surpreendido com a venda executiva e a caducidade imediata do contrato de arrendamento rural e ficar, com os inerentes prejuízos resultantes da interrupção de uma actividade planeada a longo prazo, em situação económica difícil.

Não é, pois, líquido que uma interpretação teleológica actual e razoável do art. 824.º, n.º 2, do CC, deva recomendar a caducidade do arrendamento com a venda executiva.

De todo o modo, os elementos literal, sistemático e histórico já invocados arredam, desde logo, não apenas a aplicação directa ou extensiva do art. 824.º, n.º 2, do CC ao arrendamento mas, também, a ideia da existência de uma lacuna que deva ser preenchida mediante a aplicação analógica do mesmo preceito.

Com efeito, revertendo ao caso sub judice, não se pode concluir que o legislador tenha tido o propósito de incluir o arrendamento na previsão normativa do art. 824.º, n.º 2 do CC e que só não o tenha feito por mero lapso, erro de formulação da norma ou por menor atenção a um sistema que se pretendia lógico ou coerente.

Os direitos reais não têm a ver com o arrendamento, que tem natureza obrigacional, nada permitindo afirmar que o legislador tenha dito menos do que queria dizer e que, ao aludir àqueles direitos, neles quisesse englobar o arrendamento, o que só não teria feito por lapso, erro na elaboração da norma ou por desatenção (assim se “esquecendo” do contrato de arrendamento).

Como assim, não se pode falar em lacuna de regulamentação nem na denominada “lacuna teleológica”, ou seja, em lacuna “a determinar em face do escopo visado pelo legislador, ou seja, em face da ratio legis de uma norma ou da teleologia imanente a um complexo normativo” (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1.ª edição, 30.ª reimpressão, pág. 196).

Aliás, mesmo que se admitisse a existência de lacuna, cremos que, pelas razões já invocadas (atenta a ponderação feita dos interesses em presença), não procederiam, actualmente, em relação ao arrendamento de um bem hipotecado em caso de venda executiva, “as razões justificativas da regulamentação prevista no caso da lei” (art. 10.º, n.º 2 do CC), designadamente aquela (transmissão dos bens livres de direitos de garantia e de outros direitos reais em ordem à obtenção do melhor preço de venda) que esteve subjacente à elaboração da norma do n.º 2 do art. 824.º do CC.

O CASO CONCRETO

AA e BB (arrendatário) requereram que fosse dada sem efeito a venda aprazada em virtude de tanto o anúncio como o edital serem omissos em relação ao arrendamento e ao subarrendamento que oneravam o referido prédio misto.

Tal requerimento foi indeferido com o fundamento de que, não havendo qualquer ónus que devesse subsistir à venda executiva, inexistia qualquer fundamento para a sua publicitação, pelo que se devia manter a data designada para a abertura de proposta.

De tal decisão apelaram os recorrentes que pugnaram pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que decretasse que o arrendamento não caducou com a venda executiva.

Do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, que decidiu pela total improcedência do recurso e confirmou a decisão recorrida, interpuseram os recorrentes recurso de revista com vista a alcançarem uma decisão em que seja reconhecido que o arrendamento não caducou com a venda executiva.

Porém, o efeito prático-jurídico pretendido pelos recorrentes na 1.ª instância era o de que fosse dada “sem efeito a venda aprazada em virtude de tanto o anúncio como o edital serem omissos em relação ao arrendamento e ao subarrendamento que oneravam o referido prédio misto”.

Assim, apesar de se entender que não há aqui lugar à aplicação do n.º 2 do art. 824.º do CC, sempre importará colocar a questão de saber se do edital e do anúncio devia constar a referência ao arrendamento e ao subarrendamento.

O art. 817.º do CPC, alusivo à publicidade da venda mediante propostas em carta fechada, dispõe o seguinte:

“1 - Determinada a venda mediante propostas em carta fechada, o juiz designa o dia e a hora para a abertura das propostas, devendo aquela ser publicitada, pelo agente de execução, com a antecipação de 10 dias:

a) Mediante anúncio em página informática de acesso público, nos termos de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça; e

b) Mediante edital a afixar na porta dos prédios urbanos a vender.

2 - O disposto no número anterior não prejudica que, por iniciativa do agente de execução ou sugestão dos interessados na venda, sejam utilizados outros meios de divulgação.

3 - Do anúncio constam o nome do executado, a identificação do agente de execução, o dia, a hora e o local de abertura das propostas, a identificação sumária dos bens e o valor a anunciar para a venda, apurado nos termos do n.º 2 do artigo anterior;

4 - Se a sentença que se executa estiver pendente de recurso ou estiver pendente oposição à execução ou à penhora, faz-se menção do facto no edital e no anúncio”.

Em complemento, o art. 19.º da Portaria 282/2013 de 29 de Agosto, subordinado à epígrafe “Anúncio Electrónico”, na redacção que lhe foi dada pela Portaria 349/2015, de 13 de Outubro (que à data estava em vigor), dispunha:

“1 - A venda dos bens penhorados é publicitada, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 817.º do Código de Processo Civil, através de anúncio na página informática de acesso público, no endereço eletrónico http://www.citius.mj.pt.

2 - O anúncio contém:

a) A identificação do processo de execução;

b) O nome do executado;

c) A identificação do agente de execução;

d) As características do bem;

e) A modalidade da venda;

f) O valor para a venda;

g) O dia, hora e local de abertura das propostas;

h) O local e horário fixado para facultar a inspeção do bem;

i) Menção, sendo caso disso, ao facto de a sentença que serve de título executivo estar pendente de recurso ou de oposição à execução ou à penhora.

3 - O anúncio deve ainda conter quaisquer outras informações relevantes, designadamente ónus ou encargos que incidam sobre o bem, e que não caduquem com a venda, bem como, sempre que possível, fotografia que permita identificar as características exatas do bem e o seu estado de conservação.

4 - A publicação dos anúncios é efectuada de forma a que não seja possível a sua indexação a motores de busca.” (destaque nosso).

Como se sabe, a portaria, como fonte de direito inferior, deve subordinar-se à lei, fonte de direito hierarquicamente superior, o que demanda a questão de saber se o art. 19.º da Portaria 282/2013 de 29 de Agosto está ou não de harmonia com o art. 817.º do CPC.

Do art. 817.º não consta a menção expressa de quaisquer ónus no edital e no anúncio.

Porém, o art. 838.º do CPC dispõe:

“ 1. Se, depois da venda, se reconhecer a existência de algum ónus ou limitação que não fosse tomado em consideração e que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, ou de erro sobre a coisa transmitida, por falta de conformidade com o que foi anunciado, o comprador pode pedir, na execução, a anulação da venda e a indemnização a que tenha direito, sem prejuízo do disposto no artigo 906.º do Código Civil;

2. [...]

3. [...] ”

A propósito dos fundamentos de anulação da venda executiva (vícios nos pressupostos do acto), José Lebre Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, no seu Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, 3.ª edição, a pág. 821, salientam: “Trata-se de situações de erro acerca do objecto jurídico (ónus ou limitação) ou material (identidade ou qualidade da coisa transmitida divergentes, da venda [...].“

Escrevem, ainda, os mesmos Autores, a págs. 821 e 822, da mesma obra: “Constituem ónus ou limitação o direito real de gozo que não deva caducar com a venda (visto que os direitos de garantia caducam sempre), ónus como os de redução eventual de doação sujeita a colação ou de renda limitada ou económica e o direito pessoal de gozo que seja eficaz em relação ao comprador (como é o caso do direito ao arrendamento anterior à penhora ou, em nosso entender, à hipoteca)…“. E mais adiante, a pág. 822: “Para que o fundamento não se verifique o que é necessário é que, no acto da compra ou nos anúncios que a precedem, ao ónus ou limitação não tenha sido feita qualquer referência, não tendo sido dele dado conhecimento ao comprador [...].” (destaques nossos).

A propósito do anterior 890.º do CPC, com redacção quase idêntica ao actual 838.º, Rodrigues de Bastos escrevia em Notas ao Código de Processo Civil, Volume IV, 2.ª edição, a pág. 148: “[...] o termo ónus é empregado neste preceito em sentido técnico, designando em geral, encargos ou limitações do gozo do direito de propriedade. Estão, portanto, aí compreendidos os direitos reais de gozo que oneram a coisa vendida e a acompanham depois da venda mas não os direitos reais de garantia que, como sabemos, na venda forçada, são transferidos para o produto da alienação (art. 824, n.º 3 CC) …O que conta é o facto de o adquirente não poder exercer pacificamente as faculdades de domínio sobre a coisa comprada, porque um terceiro tem um direito de aproveitamento dela ou de proibição, que possa ser usado contra o comprador [...] “. (destaque nosso)

Ainda sobre a finalidade do anterior artigo 890.º sublinhava o Ac. STJ de 28.4.2009, no proc. 3827/1990.S1, em www.dgsi.pt: “ acresce que o normativo em análise [do artigo 890.º] visa além do mais salvaguardar os interesses dos adquirentes de bens em ações executivas e [...] a existência de arrendamento influencia negativamente o valor de mercado dos prédios. Tendo em conta o escopo finalístico da lei, a circunstância de ser frequente a utilização de os imóveis por via do arrendamento não exclui da sua abrangência os direitos pessoais de gozo que sobre eles incidam, a conclusão é por isso no sentido de que constitui limitação que excede os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, por exemplo, o direito pessoal de gozo sobre o prédio vendido designadamente o derivado de contrato de arrendamento que seja eficaz em relação ao comprador por força do artigo 1057 do Código Civil.” (destaques nossos).

Tendo em atenção o disposto no art. 838.º do CPC, não se afigura, pois, coerente, que, por um lado, se permita que o comprador peça a anulação da venda com fundamento na falta de informação ao comprador de um ónus que não foi tomado em consideração (e que não caduca nos termos do art. 824.º, n.º 2 do CC, como é o caso, em nosso entender, de um arrendamento posterior à hipoteca) e que, por outro lado, não se permita que essa informação relevante (ao dispor do tribunal, que a podia ter tomado em consideração) conste do anúncio (e do edital). Isto dentro de um quadro normativo em que a lei parece ter como imperativo a transmissão de uma informação minimamente transparente e esclarecedora aos interessados na venda, como resulta, também, do facto de a publicidade do anúncio e do edital não prejudicar que, por iniciativa do agente de execução ou sugestão dos interessados na venda, sejam utilizados outros meios de divulgação (art. 817.º, n.º 3 do CPC) e do facto de, no caso de a sentença que se executa estiver pendente de recurso ou estiver pendente oposição à execução ou à penhora, se fazer menção do facto no edital e no anúncio (n.º 4), exigência que, como se frisa no citado CPC anotado, volume 3.º, a pág. 778, se “articula[se] com o disposto no artigo 909-1-a (anulação da venda por procedência da oposição ou de recurso) constituindo cumprimento do dever de informar os terceiros interessados em comprar” (realce nosso).

O escopo finalístico da lei é, pois, o de transmitir aos terceiros interessados em comprar as informações que se mostrem relevantes para a formação esclarecida da sua vontade. E esse escopo só se assegurará se o comprador for informado através do anúncio da existência de um ónus tão importante como o do arrendamento. Aliás, não se compreenderia que, nos dias de hoje, essa informação não fosse prestada.

Como assim, de acordo com uma interpretação teleológica e sistemática, deve entender-se que a “identificação sumária do bem”, a que alude o n.º 3 do art. 817.º do CPC, deve ter em conta não apenas a identidade física ou material do bem mas também a existência de um ónus ou encargo relevante, que exceda os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria, como é o caso do arrendamento, que incide sobre o bem e que, como aqui se entende, não caduca com a venda. A identificação sumária não se pode confundir, pois, com uma mera identificação física do objecto da venda, devendo abranger, também, a identificação das circunstâncias limitativas do gozo, utilização ou exploração do bem (como é o caso do arrendamento e do subarrendamento), que sejam conhecidas e subsistam para além da venda executiva e sejam susceptíveis de afectar significativamente a decisão de formular proposta de compra (por existirem terceiros, no caso, o arrendatário e/ou subarrendatário, que têm o direito de aproveitamento da coisa) e a oferta do preço (pela coisa que, por onerada, ficará mais desvalorizada).

Cremos que uma interpretação em tal sentido guarda, ainda “ressonância nas palavras da lei “, ou, dito de outra forma, que a expressão “identificação sumária do bem” consente, ainda, uma interpretação ampla do n.º 3 art. 817.º do CPC nesse proposto sentido.

Deste modo, e atenta a interpretação declarativa do n.º 3 do art. 817.º do CPC que se enuncia, não se divisa qualquer conflito entre este normativo e o disposto no art. 19.º do Portaria 282/2013 de 29 de Agosto (na redacção tida em consideração e na actual, que, à excepção do n.º 1, se mantém idêntica).

Acresce que, no caso sub judice, a venda por propostas em carta fechada deve ser publicitada mediante edital (art. 817.º do CPC).

Com efeito, apesar de o arrendamento se ter destinado à exploração agrícola (e, por isso, o arrendamento é rural) e de o art. 817.º, n.º 1, al. b), do CPC determinar apenas a afixação de edital na porta dos prédios urbanos a vender, a verdade é que o prédio objecto do arrendamento é um prédio misto composto não apenas de terra de cultura mas de “casas de habitação com armazém” (o itálico é nosso). E, por isso, se justificará, também, em nosso entender, a utilização do edital.

O n.º 3 do art. 817.º do CPC não indica o conteúdo do edital.

Porém, como se observa no CPC anotado (supra citado), volume 3.º, a pág. 777, “a lacuna há-de ser preenchida aplicando, por analogia, o n.º 3, sem prejuízo de ser admissível tal remissão para o anúncio informático”.

Como assim, o edital deve conter as menções do anúncio contidas no n.º 3, com a interpretação que acima lhe foi dada, por procederem também em relação ao edital as razões justificativas aduzidas para a inclusão no anúncio da menção da existência do arrendamento.

Finalmente, uma referência ao subarrendamento.

Nos termos do art. 1089.º do CC “o subarrendamento caduca com a extinção, por qualquer causa, do contrato de arrendamento, sem prejuízo da responsabilidade do sublocador para com o sublocatário, quando o motivo da extinção lhe seja imputável”.

Verifica-se, assim, a subordinação do subarrendamento ao arrendamento, ou seja, uma dependência do contrato derivado ou subcontrato em face do contrato principal (Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil, Anotado, Volume II, 2.ª edição, pág. 529), pelo que o subarrendamento, sendo um contrato dependente em relação ao contrato principal do arrendamento, não pode subsistir sem a existência deste.

Porém, o subarrendamento representará, ainda assim, um ónus ou limitação que se revela eficaz em relação ao comprador e futuro senhorio, que não o pode fazer cessar directamente, sendo certo, ainda, que, se o senhorio se substituir ao arrendatário, nos termos do art. 1103.º do CC, sempre se terá de deparar com o subarrendatário como arrendatário directo.

Em conclusão, verifica-se que o despacho que recusou dar sem efeito a venda, com o fundamento de que do edital e do anúncio não tinha de constar a referência ao arrendamento e ao subarrendamento, infringiu não apenas o n.º 3 do art. 817.º do CPC como ainda, e no que respeita ao anúncio, o n.º 3 do art. 19.º da Portaria 282/2013 de 29 de Agosto.

A DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido e determina-se que o despacho de 1.ª instância, que indeferiu o requerido pelos recorrentes, seja substituído por outro que designe a data da abertura de propostas nos termos agora decididos.

Custas pela recorrida.

*

Fixa-se, por fim, a seguinte Uniformização de Jurisprudência:

“A venda de imóvel hipotecado, com arrendamento rural celebrado posteriormente à hipoteca, não faz caducar este arrendamento de harmonia com o preceituado no n.º 1 do art. 22.º do RAR, sendo inaplicável o disposto n.º 2 do art. 824.º do CC.”

*

Após trânsito em julgado, remeta certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República, conforme o disposto no artigo 687.º, n.º 5, do CPC.

*

Lisboa, 8 de Outubro de 2024. - António Magalhães (Relator) - Ricardo Alberto Santos Costa - Fernando Jorge Dias - Rijo Ferreira - Manuel Capelo - Jorge Manuel Arcanjo - António Isaías Pádua - Ana Maria Pereira de Moura Resende - Nuno Ataíde das Neves - Ana Paula Lobo - Manuel José Aguiar Pereira - Afonso Henrique Ferreira - Ana Paula Boularot - Maria Clara Sottomayor - Pedro de Lima Gonçalves - Graça Amaral - Maria Olinda Garcia - António Oliveira Abreu (voto vencido e acompanho à declaração de voto da Conselheira Catarina Serra) - Maria João Vaz Tomé (voto vencida e acompanho a declaração de voto da Senhora Conselheira Catarina Serra, assim como a declaração de voto da Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza apresentada no AUJ n.º 15/2021) - José Maria Ferreira Lopes (Vencido, aderindo à declaração de voto da Cons.Catarina Serra) - Tibério Nunes da Silva (Vencido, acompanhando a declaração de voto da Srª Cons. Catarina Serra) - António Barateiro Martins (vencido, nos Termos da declaração de voto da Exma Conselheira Catarina Serra) - Fernando Baptista de Oliveira (vencido) - Luís Espírito Santos (vencido pelas razões constantes do voto da Ex.ª Conselheira Dr.ª Catarina Serra) - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, pelo fundamento do voto de vencida junto pela Cons. Catarina Serra e do voto de vencida que juntei ao AUJ n.º 151/2021). Digo, AUJ n.º 15/2021 - Maria da Graça Trigo (voto vencida acompanhando a declaração de voto da Cons. Catarina Serra) - Catarina Serra - vencida nos termos da minha declaração de voto em anexo. Subscrevo ainda a declaração de voto da senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza no processo/AUJ n.º 15/2021 - João Cura Mariano (Presidente) (vencido pelas razões que constam da declaração da Senhora Conselheira Catarina Serra).

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Proc. n.º 2560/09.1TBLLE-C.E1.S2

Declaração de voto que apresento, na qualidade de 1.ª Relatora vencida, com base no texto do projecto de acórdão de revista ampliada apresentado ao Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça a 23 de Novembro de 2022

Defendi a aplicabilidade do art. 824.º, n.º 2, do CC ao arrendamento/do art. 20.º, n.º 1, do RAR ao arrendamento rural[1] e a uniformização de jurisprudência no sentido de que a venda executiva faz caducar o contrato de arrendamento[2] sobre o imóvel onerado com hipoteca anterior.

Continuo convencida de que esta é a melhor interpretação da lei, consequentemente, fico impedida de votar favoravelmente o acórdão que ora faz vencimento, pelas razões que de seguida exponho.

*

1 - Um dos argumentos mais fortes a favor da tese da aplicabilidade do art. 824.º, n.º 2, do CC ao arrendamento (tese da aplicabilidade) é o argumento teleológico.

É consensual que a teleologia da norma é a venda do bem pelo melhor preço.

Isto mesmo é reconhecido no acórdão que ora faz vencimento, quando se diz que “[n]ão se questiona[] o objectivo da lei de propiciar a venda do bem pelo melhor preço” e, principalmente, que “temos de o reconhecer- o arrendamento não deixe de constituir, em certos casos, um evidente factor de desvalorização e, nesse sentido, um verdadeiro gravame (ainda que atenuado com o pagamento da renda), não se podendo iludir, pois, nessas situações, e no caso de permanecer a oneração do arrendamento, a dificuldade de os credores poderem obter o melhor valor de venda (maior ou menor, dependendo das características do contrato)”. Acrescenta-se ainda, a propósito do caso decidendo: “o novo senhorio só pode opor-se à renovação em 31.9.2029, o que representa, seguramente, um gravame não despiciendo para os interesses do exequente e dos credores reclamantes”.

Sendo consensual que a teleologia da norma é a venda do bem pelo melhor preço, portanto, a venda do bem livre, aquilo que deve entender-se, em coerência, é que a locação está abrangida no âmbito de aplicabilidade do art. 824.º, n.º 2, do CC.

É da “natureza das coisas” e, por conseguinte, uma regra normal da experiência que o preço do imóvel tende a ser tanto mais elevado quanto mais pleno for o direito de propriedade. Ora, o arrendamento é uma oneração do prédio, logo, pesa sobre o prédio, com mais ou menos intensidade[3], não só em termos jurídicos[4] como também em termos económicos, diminuindo o seu valor de mercado e impedindo ou, pelo menos, dificultando a obtenção do melhor preço na sua venda em execução.

Do ponto de vista lógico, é, além disso, dificilmente compreensível que se determine a extinção dos direitos reais e se deixem intocados outros direitos (direitos de gozo, de natureza real ou pessoal) com igual aptidão para perturbar ou comprometer aquela teleologia.

Indo mais longe: aparece mesmo como contraditório que os direitos reais (de garantia e outros) tenham de se extinguir com a venda executiva e que o direito do locatário, que é um direito “mais fraco” (porque não real), subsista[5].

2 - Em favor da tese contrária à defendida na presente declaração de voto (tese da inaplicabilidade) costuma enunciar-se - e o acórdão que ora faz vencimento fá-lo também - o argumento do sistema jurídico, assente na leitura conjunta dos arts. 1051.º e do 1057.º do CC, que regulam, respectivamente, as causas de cessação do arrendamento e a transmissão da posição do locador.

Não obstante reconhecer-se que o elenco do art. 1051.º do CC é meramente exemplificativo[6], defende-se (parafraseando o AUJ n.º 2/2021) que a falta de referência à venda executiva é “propositada” porque “se o arrendamento se mantém independentemente da transmissão do direito, é óbvio que essa transmissão não o poderá fazer caducar”.

Com todo o respeito, não posso acompanhar o raciocínio, em que se tenta demonstrar que o arrendamento não caduca com a venda executiva com base na ideia de que o arrendamento se mantém na venda executiva - o que é, justamente, aquilo que carece de ser demonstrado.

Existe uma explicação perfeitamente razoável para a falta de referência ao arrendamento no art. 1051.º do CC: ela reflecte a consciência do legislador histórico de que, por gozarem de prevalência e de sequela, os direitos reais eram aqueles que cumpria, por excelência, fazer sucumbir na hipótese de venda executiva (para evitar que, a manter-se, diminuíssem o valor do bem). Depois, quanto ao art. 1057.º do CC, o facto de ele valer para a generalidade dos negócios translativos (a doação, a troca, a dação em cumprimento, etc.), não significa que ele valha (também) para a venda em processo executivo e em processo de insolvência; a possibilidade de um desvio pode e deve ser considerada.

Ao contrário do que se entende no acórdão, o argumento (da unidade e da coerência intrínseca) do sistema jurídico aponta para que o arrendamento seja abrangido pelo art. 824.º, n.º 2, do CC. Convoco, a este título, o art. 695.º do CC, que determina a nulidade da convenção que proíba o dono de alienar ou onerar os bens hipotecados. É visível que a norma funciona como contrapartida lógica do art. 824.º, n.º 2, do CC: é porque se assegura, no art. 824.º, n.º 2, do CC, ao credor hipotecário que aquelas onerações não afectarão o valor da hipoteca que é possível atribuir, no art. 695.º do CC, ao proprietário, apesar da hipoteca, a faculdade de onerar sucessivamente o prédio[7].

A propósito da possibilidade de desvio ao art. 1057.º do CC, acima aventada, é importante recordar a função (específica ou singular) desempenhada pela venda executiva. Ela não é uma transmissão ex voluntate, não é uma expressão de liberdade contratual ou de autonomia privada; é, sim, uma transmissão forçada, que prescinde da e se impõe à vontade do titular do direito transmitido. E isto porque a venda executiva está preordenada à realização coerciva dos direitos, portanto, à realização de interesses de natureza distinta daqueles que estão subjacentes à generalidade das transmissões (compra e venda, troca, dação em cumprimento, etc.). Enquanto nestas estão em confronto unicamente interesses privados, na transmissão ou venda executiva, além da dualidade ou pluralidade de interesses privados (consoante se trate de uma acção executiva singular ou de uma execução com concurso de credores), está presente um interesse que não se reduz à soma dos interesses de cada um dos sujeitos envolvidos mas, simultaneamente, os sintetiza e transcende - o interesse público da realização da justiça, tal como previsto no art. 817.º do CC.

Mais precisamente, a venda executiva serve o interesse do exequente e, se os houver, o interesse dos credores reclamantes (o pagamento integral da dívida exequenda e das dívidas reclamadas), o interesse do executado (a extinção total da dívida e a exoneração completa do devedor) e ainda o interesse público (a realização coerciva dos direitos). Tem, portando, uma função complexa, que é tanto mais complexa quanto mais numerosos e divergentes os interesses a satisfazer e por isso não prescinde da intervenção do órgão judicial ou de autoridade pública.

Nos casos mais simples (execução singular) estará em causa uma mera exigência de justiça comutativa, mas noutros (quando haja concurso de credores) estará mesmo em causa uma exigência de justiça distributiva. Pode implicar o sacrifício de certo(s) interesse(s) em favor de outro(s) mas o sacrifício encontrará a sua última justificação naquela exigência ou interesse de justiça, o que o torna justificado.

Por tudo isto não pode pressupor-se que o regime aplicável à locação no contexto das transmissões comuns é transponível para o quadro especial da venda executiva.

3 - No acórdão que ora faz vencimento esgrime-se ainda, em favor da tese da inaplicabilidade, um segundo argumento - o argumento da história da lei - que se ilustra com uma referência às palavras de Pinto Furtado. Em obra de 2009, este autor dá conta de que o autor do projecto correspondente à disciplina da locação no Código Civil teve o cuidado de afirmar que a delimitação rigorosa do contrato de locação (“de conteúdo pessoal”), por um lado, e do direito de uso e habitação (“de conteúdo real”), por outro, representava um “progresso que não se deve desprezar”.

A intenção será, presumivelmente, a de demonstrar que, por não ser um direito real, o arrendamento está excluído do âmbito de aplicabilidade do art. 824.º, n.º 2, do CC. Penso, porém, que a referência não é apta a produzir o efeito pretendido. É que, como a doutrina tem explicado, a qualificação do direito de arrendamento como direito obrigacional[8] não impede a aplicabilidade do art. 824.º, n.º 2, do CC[9].

Entendo que o argumento histórico nos transporta, pelo contrário, para a(s) norma(s) antecessora(s) do art. 824.º, n.º 2, do CC e para a interpretação que lhe(s) foi dada. Não sendo possível desenvolver, na presente declaração de voto, este argumento, diz-se apenas que os mais autorizados autores entendiam que a expressão “direitos reais”, usada, designadamente, no art. 907.º do CPC de 1939[10], abrangia o arrendamento e, por conseguinte, que o contrato de arrendamento caducava quando não tivesse registo anterior ao da hipoteca[11].

4 - A tese da inaplicabilidade costuma apoiar-se, por fim, na ideia que os interesses do arrendatário merecem maior protecção do que os interesses do credor hipotecário: o credor hipotecário não necessitaria de (tanta) protecção porque teria à sua disposição instrumentos que lhe permitem agir contra “incómodos” do arrendamento.

No acórdão que ora faz vencimento alude-se a dois instrumentos: o poder de exigir a substituição ou o reforço da garantia, sob pena do poder de exigir o cumprimento imediato da obrigação ou, no caso de bem futuro, de registar a hipoteca sobre outros bens (cf. art. 701.º, n.º 1, do CC), e o poder de recorrer à impugnação pauliana se se verificarem os respectivos requisitos (cf. arts. 610.º e s. do CC). Mas, como logo se reconhece no próprio acórdão, os instrumentos são muito frágeis. Em primeiro lugar, eles “não podem ser equiparados ao da caducidade do arrendamento, em termos de eficácia (e de brevidade) em relação aos objectivos a atingir (segurança do crédito e rapidez na sua cobrança)”. Em segundo lugar, quanto ao “recurso preventivo da parte do credor hipotecário à convenção com o proprietário/devedor, ao abrigo da 2.ª parte do art. 695.º do CC - no sentido de ser convencionado de que o crédito hipotecário crédito se vença logo que o bem hipotecado seja onerado com o arrendamento”, ela defrauda o disposto no art. 695.º do CC, retirando ao proprietário uma faculdade que a lei faz questão de lhe reconhecer (o direito a onerar/retirar rendimentos do imóvel hipotecado).

Em prol da maior protecção dos interesses do arrendatário, costuma também observar-se - e o acórdão que ora faz vencimento não foge à regra - que ele não tem de “proceder à indagação prévia da situação do prédio no sentido de saber se sobre o mesmo impende alguma hipoteca” porque se trata de “um terceiro -em regra, não assessorado juridicamente- que desconhecerá as implicações de uma venda executiva na subsistência ou não do arrendamento”. É razoável perguntar se esta tese está reservada aos terceiros que sejam arrendatários - e apenas aos que não sejam juristas ou assessorados por juristas - ou se é possível, como imporia o princípio da igualdade, generalizá-la a todos os sujeitos em posição equiparável. Pode um terceiro que não seja jurista nem assessorado por jurista, no confronto com o titular de um direito real, alegar eficazmente que não conhecia nem tinha o dever de conhecer o registo ou a disposição legal que lhe impunha um dever geral de respeito? Uma generalização deste tipo significaria, além do mais, “matar” a função de publicidade desempenhada pelo registo e condenar à irrelevância o art. 6.º do CC, dispondo que “[a] ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento”.

Relativamente ao específico caso decidendo (arrendamento rural), afirma-se ainda que “a solução da caducidade do arrendamento rural com a venda executiva pode colocar em risco a situação económica do arrendatário que dependerá, em regra, da actividade agrícola” e, adiante, “com os inerentes prejuízos resultantes da interrupção de uma actividade planeada a longo prazo, em situação económica difícil”. Esquece-se, no entanto, que a lei acautela ou atenua este risco: assiste ao arrendatário o direito à colheita dos frutos pendentes (cf. art. 15.º do RAR) e o direito ao reembolso das benfeitorias (cf. arts. 23.º e 24.º do RAR).

Independentemente da maior ou menor fragilidade dos argumentos em favor da prevalência dos interesses do arrendatário, faz falta dedicar alguma atenção aos interesses do credor hipotecário e de outras pessoas potencialmente afectadas. Se não se fizer isto, a solução que se atinja não pode ser ponderada, logo, não pode ser justa.

Como é sabido, a economia alimenta-se do crédito e o crédito vive da confiança, criando cadeias de sucessivas relações jurídicas. Sobrevivendo o arrendamento à venda executiva, o credor hipotecário - que não tem, saliente-se, por que ser uma instituição de crédito e pode muito bem ser um simples particular[12] - não tem segurança de que a satisfação do seu crédito não fique comprometida. A concretizar-se o risco de incumprimento, este terá um impacto negativo na situação económica e creditícia do credor hipotecário (quem não recebe dos seus devedores, não pode pagar aos seus credores). Torna-se, pois, claro que a solução não afecta apenas o credor hipotecário; afecta ainda outros sujeitos (seus credores) e, reflexamente, todo o mercado do crédito, enfraquecendo o crédito hipotecário e tornando o acesso ao crédito mais difícil (riscos superiores, exigência de garantias adicionais).

Em síntese, não se vê razão para que se valorizem as necessidades de tutela dos interesses do arrendatário com desconsideração dos interesses do credor hipotecário e dos demais interesses privados e públicos acima referidos.

Vistas as coisas pelo outro lado, a verdade é que está na disponibilidade do arrendatário prevenir ou evitar o prejuízo. O que está em causa - recorde-se - é apenas a situação em que a hipoteca é constituída antes do arrendamento. Revestindo a constituição da hipoteca necessariamente a publicidade inerente ao registo predial, o arrendatário tem sempre a possibilidade de saber que a hipoteca existe antes de decidir arrendar o imóvel. Nem é preciso dar-se ao trabalho de consultar o registo. Um arrendatário normalmente diligente perguntará, simplesmente, ao senhorio qual é a situação jurídica do prédio. A recusa desta informação ou a transmissão de informação incompleta ou inverdadeira fará o senhorio incorrer em responsabilidade civil[13].

E se, apesar de tudo, o prejuízo ocorrer, este não fica sem compensação[14]. Nos termos do n.º 3 do art. 824.º do CC[15], o arrendatário tem direito a receber a sua parte no produto da venda do imóvel depois de pagos os credores mais graduados (cf. art. 824.º, n.º 3, do CC). Não existindo remanescente, o arrendatário terá o direito a ser indemnizado pelos danos sofridos, que pode exercer nos termos gerais (acção de responsabilidade civil)[16].

É possível, pois, dizer que a aplicabilidade do art. 824.º, n.º 2, do CC ao arrendamento é, além da conclusão racional, uma solução justificada, proporcional e justa.

***

Em conclusão, continuo convencida de que os elementos histórico, sistemático e teleológico militam decisivamente no sentido da aplicabilidade do art. 824.º, n.º 2, do CC ao arrendamento[17].

Para afastar as dúvidas de constitucionalidade desta interpretação, note-se que o Acórdão do TC n.º 50/2022, de 18 de Janeiro[18] decidiu “[n]ão julgar inconstitucional a norma do artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil, interpretado no sentido de que o direito de uso e habitação de imóvel hipotecado, que corresponda a casa de morada de família, cujo registo seja posterior ao registo de hipoteca sobre o mesmo imóvel, caduca com a realização da venda executiva”.

Não obstante se refira ao direito de uso e habitação, o raciocínio é válido - por igualdade, se não por maioria de razão - no caso de se estar em causa o direito fundamental à habitação (art. 65.º da CRP) no contexto de arrendamento[19].

*

Tudo considerado, creio que o segmento uniformizador deveria ser o seguinte:

Por aplicação do artigo 824.º, n.º 2, do CC, com a venda executiva do imóvel arrendado produz-se a caducidade do arrendamento sempre que o respectivo contrato tenha sido celebrado depois da constituição da hipoteca incidente sobre o imóvel.

Catarina Serra

[1] Recorde-se que o direito subsidiário do arrendamento rural é o regime da locação (art. 42.º, n.º 1, do RAR).

[2] Embora o art. 824.º, n.º 2, do CC determine a caducidade de direitos, o que está em causa, em rigor, é a caducidade do contrato de locação/contrato de arrendamento. Por razões de comodidade expositiva, no entanto, falar-se-á na caducidade do arrendamento.

[3] Dependendo da duração do contrato, da possibilidade de resolução ou denúncia, da possibilidade de transmissão da posição de arrendatário sem necessidade de acordo do locador, do regime de actualização de rendas, etc.

[4] Manuel Henrique Mesquita (“Acórdão do Tribunal Arbitral de 31 de Março de 1993”, Revista de Legislação e Jurisprudência, 1994, n.º 3844, p. 223) define coisa onerada” como “aquela sobre que incidem, a favor de terceiros, direitos, gravames ou vínculos que a acompanham em caso de transmissão e que excedem os limites normais relativos a coisas da mesma categoria. Constitui ónus, por exemplo [...], um direito de arrendamento de que o senhorio não possa libertar-se a breve prazo [...]” (sublinhados do autor).

[5] É, aliás, contraditório que se recuse categoricamente a recondução do arrendamento aos direitos reais e, afinal, se lhe atribua uma força manifestamente superior à destes. Observa isto António Menezes Cordeiro (“Anotação ao artigo 1051.º do CC”, cit., p. 109): “não vemos como defender a natureza não-real do direito do locatário para, depois, lhe vir conceder uma oponibilidade erga omnes superior à do direito de propriedade. O Direito tem uma harmonia interna que não se compadece com paradoxos” (sublinhados do autor).

[6] O art. 1051.º do CC é homólogo ao art. 18.º do RAR.

[7] Cfr., neste sentido, entre outros José de Oliveira Ascensão, “Locação de bens dados em garantia - Natureza jurídica da locação”, Revista da Ordem dos Advogados, 1985, volume II, p. 364, e José Alberto Vieira, “Arrendamento de imóvel dado em garantia”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, volume IV, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 448-490.

[8] Questão que por não ser útil para a questão em apreço nem se discute aqui.

[9] Diz, por exemplo, António Menezes Cordeiro“ (“Anotação ao artigo 1051.º do CC”, in António Menezes Cordeiro (coord.), Leis do arrendamento urbano anotadas, Coimbra, Almedina, 2014, p. 109), “[a] discussão deve partir das valorações legais e da ponderação dos interesses em presença e não da prévia qualificação do direito do locatário como obrigacional ou como real, no que representaria uma aplicação serôdia da jurisprudência dos conceitos” (sublinhados do autor).

[10] Dispunha-se nesta norma: “Os bens são transmitidos livres dos direitos reais que não tiverem registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou hipoteca, salvos os que, tendo sido constituídos em data anterior, produzam efeito em relação a terceiros independentemente de registo [...]”. A norma manteve-se inalterada no CPC de 1961, dispondo-se no n.º 1 do artigo 907.º: “Os bens são transmitidos livres dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou hipoteca, salvos os que, tendo sido constituídos em data anterior, produzam efeito em relação a terceiros independentemente de registo”. Evidentemente, tudo mudou com o CC de 1966, que passa a regular esta matéria no actual artigo 824.º, n.º 2.

[11] Cfr., nomeadamente, José Alberto dos Reis, Processo de execução, volume 2.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, pp. 395-404, Augusto Lopes Cardoso, Manual da acção executiva, Coimbra, Almedina, 1992 (3.ª edição), pp. 581-583, e Adriano Vaz Serra, Realização coactiva da prestação (execução) (regime civil), Lisboa, 1958, p. 253.

[12] Cfr., neste sentido, Isabel Menéres Campos, “Duas questões sobre a efectividade prática da hipoteca: a caducidade do arrendamento com a venda judicial e o conflito do direito do credor hipotecário com o direito de retenção”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Manuel Henrique Mesquita, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 319.

[13] Como diz António Menezes Cordeiro (Da boa fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 549-550), “[a] culpa in contrahendo prevê deveres de esclarecimento a cargo das partes em negociação. A conclusão de um contrato na base de falsas indicações, de informação deficiente ou, até, de ameaças ilícitas, independentemente da aplicação do regime próprio dos vícios na formação da vontade, implica o dever de indemnizar, por culpa na formação dos contratos. Este dever de esclarecimento tem intensidade particular quando um contratante surja, perante outro, como carecido de protecção especial” (sublinhados do autor). Deve notar-se que o senhorio não tem só deveres de informação; tem ainda deveres de esclarecimento - o dever de, por sua iniciativa, transmitir ao arrendatário todas as informações que sejam relevantes para a celebração do contrato. Explica, a propósito, Nuno Manuel Pinto Oliveira (Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 188) que “[e]nquanto o princípio geral sobre os deveres de informação pode formular-se em termos mais amplos - só em circunstâncias excepcionais haverá razões para que uma das partes possa recusar-se a comunicar à outra elementos que lhe tenham sido solicitados -, os princípios gerais sobre os deveres de esclarecimento, esses, terão de formular-se em termos mais restritos: cada uma das partes (só) tem o dever jurídico à outra elementos não solicitados quando estes sejam essenciais a uma decisão esclarecida e a outra parte não os conheça, nem deva conhecê-los” (sublinhados do autor).

[14] Há ainda outros mecanismos de tutela dos interesses do arrendatário. Sem particularizar, enumeram-se: o direito de sub-rogação nos direitos do credor (cf. art. 592.º do CC), a proibição de exigir a desocupação do imóvel antes de seis meses ou do final do ano agrícola (cf. art. 1053.º do CC/art. 15.º do RAR), o direito de preferência na aquisição e no novo arrendamento (cf. art. 1091.º/art. 31.º do RAR).

[15] O art. 824.º, n.º 3, do CC dispõe: “Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens”. Em rigor, estes direitos não caducam, ficam, isso sim, a onerar o produto da venda, o que configura uma sub-rogação objectiva). Cfr., sobre isto, por exemplo, José Lebre de Freitas, A acção executiva depois da reforma da reforma, Coimbra, Coimbra editora, 2009, p. 338, e “Anotação ao artigo 824.º”, in Ana Prata (coord.), Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2017, p. 1036.

[16] Rui Pinto (A Ação Executiva, Lisboa, AAFDL, 2019, pp. 907-908) fala aqui em responsabilidade do devedor pela impossibilidade culposa (de proporcionar o gozo da coisa) prevista no art. 801.º do CC.

[17] Não vale a pena determo-nos no elemento literal, uma vez que ele funciona como argumento duplo, com dois significados que reciprocamente se excluem: tanto serve para dizer que o legislador não alterou o art. 824.º, n.º 2, do CC porque não quis que o arrendamento caducasse na venda executiva como serve para dizer que não o fez porque o considerava dispensável.

[18] Cfr. Acórdão do TC n.º 50/2022, de 18 de Janeiro.

[19] Note-se que, apesar de, no plano jurídico-substantivo e, em particular, para o efeito da tutela constitucional do direito à habitação, as duas situações serem globalmente idênticas, já foi decido que o segmento uniformizador do Acórdão do STJ n.º 2/2021 não é aplicável ao direito (real) de uso e habitação. Cfr. Acórdão do STJ de 21 de Junho de 2022 (Proc. 856/11.1TYVNG-U.P1.S1).

118451755

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/6000139.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-09-29 - Lei 76/77 - Assembleia da República

    Aprova a Lei do Arrendamento Rural.

  • Tem documento Em vigor 1988-10-25 - Decreto-Lei 385/88 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Estabelece o novo regime de arrendamento rural.

  • Tem documento Em vigor 1988-11-08 - Decreto-Lei 394/88 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Estabelece o regime geral do arrendamento florestal.

  • Tem documento Em vigor 1999-12-10 - Decreto-Lei 524/99 - Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

    Altera os artigos 5º e 7º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro (Lei do Arendamento Rural), nomeadamente no que respeita aos prazos de renovação dos contratos desse tipo de arrendamento e também à possibilidade de antecipação do pagamento da renda anteriormente impossibilitada legalmente e permitida agora aos jovens agricultores com um plano de exploração devidamente aprovado pelos serviços regionais do Ministério da Agricultura do Desenvolvimento Rural e das Pescas.

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