Processo 928/23
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. RELATÓRIO
1 - O MINISTÉRIO PÚBLICO requereu, em conformidade com o disposto no artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica 1/2018, de 19 de abril, doravante “LTC”), a organização de um processo, a tramitar nos termos do processo de fiscalização abstrata e sucessiva da constitucionalidade, com vista à apreciação, pelo Plenário, da constitucionalidade das normas constantes dos n.os 2 e 3 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, na parte em que determinam a incidência objetiva a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no respetivo "escalão 2".
De forma a legitimar o seu pedido, alega o requerente que tais normas foram julgadas inconstitucionais, em mais de três casos concretos, pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos Acórdãos n.os 152/2022, 754/2022, 243/2023 e 348/2023, o que permite ter por verificado o pressuposto previsto no n.º 3 do artigo 281.º da Constituição, já que todas as referidas decisões transitaram em julgado.
2 - Notificado, nos termos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, para se pronunciar sobre o pedido, o Ministro das Infraestruturas nada disse.
Em 9 de fevereiro de 2024, a Associação Portuguesa de Operadores Expresso veio juntar aos autos parecer de direito, da autoria de jurisconsulto, sustentando, em síntese, a inconstitucionalidade das normas sindicadas, com fundamento na violação da reserva de função legislativa, constante dos artigos 165.º, n.º 1, alínea i), e 266.º, n.º 2, da Constituição, em linha com a jurisprudência que serve de base ao pedido de fiscalização da constitucionalidade aqui em apreço.
3 - Discutido o memorando elaborado pelo Presidente, nos termos previstos no artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir em conformidade com o que então se estabeleceu.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A) Pressupostos de cognição
4 - O artigo 281.º, n.º 3, da Constituição estatui que o Tribunal Constitucional aprecia e declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade ou a ilegalidade de normas por ele julgadas inconstitucionais ou ilegais, em três casos concretos. O artigo 82.º da LTC, por seu turno, atribui ao Ministério Público legitimidade para requerer a apreciação abstrata da constitucionalidade ou legalidade de normas julgadas inconstitucionais ou ilegais pelo Tribunal em três casos concretos.
Não se levantam, nesta sede, quaisquer dúvidas sobre a legitimidade ativa do representante do Ministério Público. De igual modo, verifica-se que o pedido de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade formulado nos presentes autos tem por base um número superior aos três casos concretos legalmente exigidos. O requerente invoca quatro decisões proferidas em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, correspondendo a primeira ao Acórdão 152/2022, que julgou “inconstitucionais, por violação das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, as normas constantes dos n.os 2 e 3 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, na parte em que determinam a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no escalão 2’”; o sentido decisório deste aresto foi reiterado nos Acórdãos n.os 754/2022, 243/2023 e 348/2023, de igual forma invocados no pedido.
Note-se, ainda, que, sobre a mesma matéria e com decisões de idêntico teor, foram ainda exarados, posteriormente, diversos arestos, designadamente, os Acórdãos n.os 377/2023, 389/2023, 565/2023, 566/2023, 607/2023, 619/2023, 721/2023 e 913/2023. Nestes termos, é inequívoca a verificação das condições necessárias para a apreciação da citada norma em sede de fiscalização abstrata sucessiva da constitucionalidade.
B) Mérito
5 - As normas que integram o pedido constam do mencionado Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, e têm a seguinte redação:
"2 - O montante da taxa anual devida pelo exercício da atividade de prestador de serviços postais, a que alude o n.º 2 do artigo 44.º da Lei 17/2012, de 26 de abril, é calculado com base no valor dos rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de serviços postais relativa ao ano anterior àquele em que é efetuada a liquidação da taxa, de acordo com os escalões indicados na tabela seguinte:
Código da taxa | Escalões | De euros | a... euros | Taxa T (euros) |
---|---|---|---|---|
192201 | 0 | 0 | 250 000 | |
192202 | 1 | 250 001 | 1 500 000 | T1= 2.500 |
192203 | 2 | 1 500 001 | Sem limite | T2 |
Fórmula de cálculo da taxa T2 | ||
---|---|---|
Ti (Ano n) = | Taxa devida pelas entidades do escalão i (i = 0,1,2) no Ano n. | |
Ni (Ano n) = | Número de entidades do escalão i (i = 0,1,2) no Ano n. | |
Ri (Ano n-1) = | Rendimentos relevantes conexos com a atividade de prestador de serviços postais das entidades do escalão i (i = 0,1,2) relativos ao Ano n-1, a remeter ao ICP-ANACOM nos termos do artigo 3.º da presente portaria. | |
∑ Ri(Ano n-1) = | Total de rendimentos relevantes das entidades do escalão i (i = 0,1,2) relativos ao Ano n-1. | |
C (Ano n) = | Total de custos (gastos) administrativos do ICP-ANACOM, a que se refere o n.º 4 do artigo 44.º da Lei n.º 17/2012, de 26 de abril, a considerar para o Ano n, correspondente ao valor médio dos últimos 3 exercícios da componente de custos (gastos) sem provisões mais o valor médio dos últimos 5 exercícios das provisões para processos judiciais associadas ao setor postal. | |
R2(Ano n-1) = | Rendimentos relevantes de entidade do escalão 2 no Ano (N – 1). | |
t2 (Ano n) = | (C (Ano n)-T1 (Ano n)n1(Ano n))/ ∑ R2 (Ano n-1) | Percentagem contributiva (%) das empresas do escalão 2 no Ano n |
T2 (Ano n)= | t2(Ano n) X R2 (Ano n-1)-a2 | |
a2 (Ano n) | Parcela a abater no cálculo da taxa das empresas do escalão 2 a2= Í2 (Ano n) x RLI2 - T1 (Ano n) | |
RLI2 | Limite inferior do escalão de rendimentos das empresas do escalão 2 |
3 - O valor da percentagem contributiva t2, resultante da aplicação da fórmula para o escalão 2, é fixado anualmente por deliberação do conselho de administração do ICP-ANACOM, a qual é publicitada no seu sítio da Internet, após apuramento e divulgação dos custos (gastos) administrativos (C (ano n)) e do montante total de rendimentos relevantes das empresas abrangidas pelo escalão 2 (∑ R2 (ano n-1))."
Por seu turno, a redação do artigo 44.º da Lei 17/2012, que serviu de base legal ao Anexo IX da Portaria revista - e veio estabelecer o regime jurídico aplicável à prestação, em plena concorrência no território nacional, de serviços postais e internacionais com origem ou destino no território nacional, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2008/6/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de fevereiro de 2008 -, é a seguinte:
"Artigo 44.º
Taxas
1 - Estão sujeitos ao pagamento de taxa:
a) A emissão, alteração e renovação da licença;
b) A emissão da declaração comprovativa da inscrição do prestador no registo dos prestadores de serviços postais;
c) O averbamento à declaração;
d) A substituição da licença ou declaração, em caso de extravio.
2 - Todos os prestadores de serviços postais estão sujeitos ao pagamento de taxas anuais pelo exercício da atividade.
3 - Os montantes das taxas referidas nos números anteriores são fixados por portaria do membro do Governo responsável pela área das comunicações, em função dos custos associados às tarefas administrativas, técnicas e operacionais relacionadas com as atividades de regulação, supervisão e fiscalização correspondentes, constituindo receita do ICP-ANACOM.
4 - Para efeitos do número anterior, as taxas anuais previstas no n.º 2 são suportadas pelos prestadores de serviços postais tendo por base os custos decorrentes da regulação, supervisão e fiscalização das suas atividades".
As normas sobre as quais incide o presente processo já não vigoram no ordenamento jurídico. Com efeito, o artigo 4.º da Lei 18/2023, de 17 de abril - que alterou a Lei 17/2012, de 26 de abril - revogou os n.os 2 a 6 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro.
Contudo, esta circunstância não afasta, só por si, o funcionamento do mecanismo processual previsto no artigo 82.º da LTC, como aliás este Tribunal afirmou já, no Acórdão 367/2018.
6 - O juízo de inconstitucionalidade cuja generalização se visa com os presentes autos começou por ser formulado no Acórdão 152/2022, cujos fundamentos encontram, no essencial, eco na jurisprudência subsequente, que é, aliás, uniforme no sentido desse mesmo juízo.
Pronunciando-se, em primeiro lugar, sobre a natureza da chamada Taxa de Regulação Postal (“TRP”) - aqui em apreço -, afirma-se, nesse aresto o seguinte:
"Como este Tribunal tem repetidamente afirmado, a questão da natureza de um concreto tributo só pode ser esclarecida através a análise do respetivo regime jurídico, sendo para este efeito irrelevante a designação ou qualificação expressa do tributo como "taxa" ou contrapartida pela prestação de um determinado serviço (neste sentido, v. os Acórdãos n.os 365/2008, 539/2015, 848/2017, 344/2019 e 268/2021).
Ora, ao contrário do que sucede com as "taxas" a que se refere o n.º 1 do artigo 44.º da Lei 17/2012, o facto gerador da TRP não é nenhuma prestação administrativa individualizável, mas sim o conjunto de prestações associadas às atividades de regulação, supervisão e fiscalização das atividades de prestação de serviços postais. É o que resulta dos n.os 3 e 4 do artigo 44.º da lei que cria o tributo ao qual, segundo o n.º 2, estão sujeitos todos os prestadores de serviços postais que exerçam as atividades reguladas e fiscalizadas. Porém, e como adiante se verá, o n.º 2 do Anexo IX da Portaria reduz o universo de sujeitos passivos, ao isentar do pagamento do tributo todos os operadores que, no ano anterior àquele em que a TRP é devida, não demonstrem ter rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de serviços postais superiores a 250.000 € (duzentos e cinquenta mil euros).
No que respeita à incidência objetiva, os tributos a suportar por estes operadores devem, nos termos do n.º 4 do artigo 44.º da Lei 17/2012, ter por base os custos decorrentes da regulação, supervisão e fiscalização das suas atividades, incluindo-se aí os "custos associados às tarefas administrativas, técnicas e operacionais" (v. o n.º 3). O modo como é apurado o montante total de custos a considerar foi, também, objeto de desenvolvimento no Anexo IX da Portaria, constando do Preâmbulo da Portaria 296-A/2013 o seguinte esclarecimento:
"Quanto à taxa referente ao exercício da atividade de prestador de serviços postais, determina-se que o montante total de custos a considerar para apuramento desta taxa em cada ano corresponde ao respetivo valor médio nos três últimos exercícios (sem provisões para processos judiciais) adicionado do valor médio das provisões para processos judiciais no setor postal nos cinco últimos exercícios. Este método permite evitar flutuações acentuadas de taxas por via de alterações dos custos, preservando os princípios da previsibilidade e da transparência."
Segundo o n.º 3 do Anexo IX, os custos a considerar, apurados segundo este método e com base na contabilidade, são objeto de divulgação anual. O valor da taxa a suportar por cada um dos prestadores de serviços postais não é, todavia, o resultado de uma simples operação de divisão dos custos assim apurados pelo número de operadores autorizados a exercer a atividade regulada. No Anexo IX, seguindo o modelo adotado para o cálculo da taxa anual devida pelo exercício da atividade de fornecedor de redes e serviços de comunicações eletrónicas (v. o artigo 105.º, n.º 1, alínea b), da Lei 5/2004, de 10 de fevereiro, e o Anexo II da Portaria 1473-B/2008), optou-se por estabelecer uma diferenciação entre operadores em função dos "rendimentos relevantes" apresentados, além da já mencionada isenção dos prestadores de serviços com rendimentos inferiores a 250.000 €.
[...]
Assim, os prestadores de serviços do escalão 1 são chamados a pagar a taxa fixa de 2.500 € (dois mil e quinhentos euros), independentemente do concreto valor dos "rendimentos relevantes" que tenham auferido no ano anterior ou do montante global dos custos apurados pela ANACOM para o ano em que é devido o tributo, enquanto os sujeitos passivos abrangidos pelo "escalão 2" devem pagar um montante variável, igual ao produto da multiplicação do coeficiente t2 pelos rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de serviços postais apurados no período anterior àquele em que a taxa é devida, a que se subtrai a "parcela a abater". A fórmula de cálculo desse coeficiente, ou da "percentagem contributiva dos operadores do escalão 2 no ano a que se reporta o tributo", visa assegurar que, subtraindo o montante a pagar pelas entidades do escalão 1 ao valor global dos custos de regulação a cobrir em cada ano, o remanescente é prestado por cada operador do "escalão 2", em função dos rendimentos relevantes que auferiram no ano anterior, de modo a assegurar a total cobertura dos custos de regulação.
Trata-se, pois, de uma técnica de repartição: o montante global da receita a receber é, no essencial, pré-determinado em função dos custos apurados segundo a contabilidade e repartido pelos sujeitos passivos não isentos em função dos rendimentos relevantes em duas fases. Na primeira, apura-se o valor global dos tributos a pagar pelos operadores inseridos no "escalão 1"; na segunda, o remanescente da receita a receber é repartido pelos operadores inseridos no "escalão 2" segundo a percentagem contributiva apurada para esse escalão e aplicada aos rendimentos relevantes de cada operador. Mas a receita final não será tanto maior, quanto maiores forem os rendimentos relevantes recebidos pelos operadores inseridos no "escalão 2", antes resultará num valor global aproximadamente igual ao montante dos custos suportados pela ANACOM.
Por último, importa referir que, nos termos do n.º 3 do artigo 44.º da Lei 17/2012, o montante das "taxas" liquidadas e cobradas constitui receita da ANACOM".
Seguidamente, conclui-se no Acórdão citado, com clareza, que "[...] a TRP é uma verdadeira contribuição financeira, e não um imposto, de modo que normas sindicadas não se encontram sob o domínio de incidência do n.º 2 do artigo 103.º da Constituição". O Tribunal alcançou tal conclusão à luz do duplo critério (finalístico e estrutural) já adotado em jurisprudência precedente (cf., inter alia, Acórdão 268/2021), assinalando, por um lado, que, nos termos do n.º 3 do artigo 44.º da Lei 17/2012, estas taxas "[...] constituem receita da ANACOM e não é questionado pelas partes que visem compensar os custos decorrentes da regulação, supervisão e fiscalização das suas atividades [...]" e que, por outro lado, "[...] se afigura razoável fazer recair sobre o grupo de prestadores de serviços postais o ónus de suportar a TRP, uma vez que os operadores integrados nesse universo não só contribuem, com o exercício da sua atividade económica, para agravar os custos que para o Estado resultam da necessidade de intervir na regulação e supervisão do mercado, como é razoável presumir que esses operadores económicos retirarão um especial benefício, ainda que difuso, do regular exercício pela ANACOM das funções que a lei lhe comete neste âmbito".
Aspeto igualmente relevante, também assinalado no referido aresto, é o de saber se "[...] a circunstância de os vários operadores serem chamados a suportar tributos de montante diverso, em função dos rendimentos relevantes apurados, não denuncia uma quebra na relação que deve subsistir entre o tributo e o custo presumidamente provocado (ou o benefício presumidamente aproveitado) por cada sujeito passivo", o que conduziria à qualificação do tributo em causa como imposto e não já como contribuição financeira.
Respondendo à questão enunciada, entendeu-se nesse aresto, estabelecendo-se um paralelismo também com a jurisprudência precedente, sobre a "Taxa de Segurança Alimentar Mais" - veja-se, a este respeito, e por exemplo, o teor do Acórdão 539/2015 -, que "[...] o nível de rendimentos relevantes auferidos por um prestador de serviços postais pode, neste contexto, ser tomado como um critério razoável de diferenciação, uma vez que se pode supor que os operadores com maiores rendimentos, por terem um maior volume de negócios e uma posição mais saliente no mercado, geram custos de regulação e supervisão não comparáveis com aqueles que são gerados por prestadores de serviços cuja atividade tem uma expressão menor no setor". Assim, acrescenta-se, e "na medida em que tais rendimentos constituem um indício relevante da participação proporcional que cada operador deve ter na cobertura dos custos a que presumivelmente dá origem, não fica prejudicada a comutatividade característica das contribuições financeiras".
Caraterizadas desta forma as taxas em apreço, o Acórdão 152/2022 começou por clarificar o regime de reserva parlamentar aplicável às contribuições financeiras e o alcance, quanto a elas, do disposto na alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, tendo em conta a circunstância de não ter sido aprovado o regime geral das taxas e demais contribuições financeiras a que essa disposição se refere. Assim, estribando-se também já em jurisprudência anterior e, nomeadamente, nos Acórdãos n.os 268/2021, 539/2015 e 152/2013, ali se explicou o seguinte:
"Relembre-se que, na ausência do enquadramento legislativo geral a que se refere a alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º, o Tribunal tem reconhecido ao Governo a possibilidade de exercer uma competência concorrente em matéria de contribuições financeiras, mas - como se salvaguardou no Acórdão 539/2015 - "sem prejuízo da Assembleia sempre poder revogar, alterar ou suspender o respetivo diploma, no exercício dos seus poderes constitucionais". Esta salvaguarda aponta para a exigência de que os elementos essenciais das contribuições financeiras sejam definidos por ato legislativo do Parlamento ou do Governo. Com efeito, ao determinar que o regime geral das contribuições financeiras integra a reserva de competência legislativa da Assembleia da República, a Constituição atribui, pelo menos de modo implícito, natureza legislativa a toda a matéria das contribuições na ausência de um regime geral. Esta exigência de que a matéria seja regulada por ato legislativo é da maior relevância, pois não obstante o mesmo órgão - o Governo - ter simultaneamente competência legislativa e regulamentar, há diferenças significativas entre o regime constitucional dos decretos-leis e dos regulamentos, seja qual for a forma que estes revistam. Como se explica no Acórdão 474/2021, a propósito da distinção entre decretos-leis e decretos regulamentares:
“A Constituição impõe que os regulamentos independentes revistam a forma de decreto regulamentar (n.º 6 do artigo 112.º), tal se devendo ao facto, não apenas de estes serem assinados pelo Primeiro-Ministro (n.º 3 do artigo 201.º) - ao contrário das portarias ou dos despachos dos membros do Governo -, como ainda - ao contrário do que sucede também com as resoluções do Conselho de Ministros com conteúdo normativo - de carecerem da promulgação do Presidente da República (alínea b) do artigo 134.º) e implicarem recurso obrigatório do Ministério Público para o Tribunal Constitucional em caso de recusa de aplicação de norma (n.º 3 do artigo 280.º). Estes traços de regime aproximam os decretos regulamentares, em boa medida, do regime constitucional dos decretos-leis; mas há certas qualidades procedimentais, relevantes do ponto de vista da legitimidade democrática e da separação de poderes, que só estes possuem. Com efeito, ao contrário dos decretos regulamentares, os decretos-leis, mormente em matéria de competência legislativa concorrencial, devem ser aprovados em Conselho Ministros (alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º), estão sujeitos a apreciação parlamentar (artigo 169.º) e podem ser objeto de fiscalização preventiva da constitucionalidade (alínea g) do artigo 134.º)”".
Foi, pois, fundamentalmente, à luz destas considerações que as normas sindicadas foram, então, julgadas inconstitucionais por este Tribunal, conforme se explicita ainda no mencionado Acórdão 152/2022:
"Ora, as normas do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008 aqui em apreço regulamentam, é certo, a Lei 17/2012, mas em termos que, face à delimitação da incidência subjetiva e objetiva que resulta dos n.os 2 a 4 do artigo 44.º deste diploma, não podem deixar de ser considerados substancialmente inovatórios. No que respeita, em especial, à parte em que é determinada a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no "escalão 2" (única dimensão normativa que constitui o objeto do presente recurso) é a Portaria que cria escalões, que define o universo de sujeitos passivos que integram o "escalão 2" e que elege como critério determinante da repartição dos custos a compensar os rendimentos relevantes diretamente conexos com a atividade de serviços postais apurados no ano anterior àquele a que a taxa se reporta, do qual resulta a taxa concretamente aplicada aos prestadores de serviços postais enquadrados neste escalão.
Assim, forçoso é reconhecer que certos elementos da TRP, determinantes da quantificação do tributo, foram objeto de normação primária por via regulamentar, ou seja, através do exercício da função administrativa. Acontece que esses elementos integram a reserva de função legislativa, reserva essa cujo desiderato, na ausência de um regime geral das contribuições financeiras constante de lei parlamentar ou decreto-lei devidamente autorizado, é o de assegurar um certo nível de coerência, transparência, equidade e legitimidade na criação desses tributos. Claro está que, se a matéria em causa integra o domínio da competência legislativa concorrencial da Assembleia da República e do Governo, não está em causa simplesmente a violação da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, cujo alcance é o de delimitar o domínio reservado ao legislador parlamentar em matéria tributária. Em causa está antes a invasão pelo poder administrativo de um domínio que a ordem constitucional reserva ao poder legislativo, ou seja, em que esta não é indiferente a que a regulação da matéria - os elementos essenciais das contribuições financeiras - conste de decreto-lei ou de mero regulamento. O problema essencial, como é bom de ver, prende-se com a legalidade da Administração Pública, relevando do inciso inicial do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição, não na dimensão de preferência de lei - que, por ser uma questão de legalidade, em que o parâmetro imediato de controlo é a lei ordinária, extravasa os poderes de cognição da jurisdição constitucional -, mas na dimensão de reserva de lei - que, por dizer respeito a saber se as normas regulamentares invadem um domínio que a Constituição reserva ao legislador, consubstancia uma questão de constitucionalidade. Ora, as normas constantes dos n.os 2 e 3 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, ao regularem de forma inovatória elementos essenciais da taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no "escalão 2", violam essa reserva de função legislativa que se pode extrair das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º da Constituição. Essa a razão pela qual, ainda que com fundamentos distintos, cabe negar provimento ao recurso".
Em suma, em face do Acórdão 152/2022, as normas sindicadas foram julgadas inconstitucionais, com base numa argumentação assente nas seguintes premissas: (i) o tributo em causa é qualificável como contribuição financeira e não como imposto; (ii) na ausência de um regime geral relativo a esses tributos, o artigo 165.º, n.º 1, alínea i) da Constituição impõe uma reserva de função legislativa - ainda que não uma reserva de competência legislativa da Assembleia da República quanto a cada uma das contribuições financeiras criadas, e; (iii) a contribuição financeira concretamente em apreço incorreu numa violação dessa reserva de função legislativa, por se ter feito uso da via regulamentar para conformar, inovatoriamente, a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados, no “escalão 2” a que aludem as normas sindicadas. Ao proceder-se a essa conformação por via regulamentar, entendeu o Tribunal Constitucional, terem sido violados os parâmetros constitucionais resultantes das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º, ambos da Constituição.
A jurisprudência subsequente, de que acima se deu nota, não se afastou nem do juízo de inconstitucionalidade, nem, substancialmente, da respetiva fundamentação. Com efeito, nota-se, em todos os restantes Acórdãos mencionados (Acórdãos n.os 754/2022, 243/2023, 348/2023, 377/2023, 389/2023, 565/2023, 566/2023, 607/2023, 619/2023, 721/2023 e 913/2023), um entendimento essencialmente uniforme no que respeita quer à qualificação do tributo, quer ao enquadramento constitucional atinente às contribuições financeiras, quer, por fim, quanto às consequências desse quadro paramétrico para o juízo de conformidade constitucional das normas ora questionadas.
Deste modo, reiterando o sentido daquela jurisprudência, resta proceder à declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 2 e 3 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro.
III - DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos n.os 2 e 3 do Anexo IX da Portaria 1473-B/2008, de 17 de dezembro, na redação da Portaria 296-A/2013, de 2 de outubro, na parte em que determinam a incidência objetiva e a taxa a aplicar em relação aos prestadores de serviços postais enquadrados no “escalão 2”, por violação das disposições conjugadas da alínea i) do n.º 1 do artigo 165.º e do n.º 2 do artigo 266.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
Sem custas.
Lisboa, 15 de outubro de 2024. - Mariana Canotilho - Joana Fernandes Costa - Afonso Patrão - António José da Ascensão Ramos - João Carlos Loureiro - José Eduardo Figueiredo Dias - Rui Guerra da Fonseca (remetendo para a minha declaração de voto junta com o Ac. n.º 348/2023) - Maria Benedita Urbano - José Teles Pereira - Carlos Medeiros de Carvalho - Gonçalo Almeida Ribeiro - Dora Lucas Neto - José João Abrantes.
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