Acórdão 456/93
Processo 422/93
(plenário)
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I
1 - O Presidente da República requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 278.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade do artigo 1.º, n.os 1, 2 e 3, alínea a), e do artigo 3.º, n.os 1 e 2, do decreto 126/VI da Assembleia da República, aprovado com a expressa invocação dos artigos 164.º, alínea d), 168.º, n.º 1, alíneas b), c), d) e q), e 169.º, n.º 2, da CRP, subordinado à epígrafe «Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira».
O documento deu entrada nos serviços da Presidência da República em 19 de Julho de 1993 e o requerimento data do dia 23 seguinte, pelo que o pedido se mostra tempestivo.
2 - Fundamenta o pedido nos seguintes termos:
1 - O artigo 1.º, n.os 1, 2 e 3, alínea a), do decreto em apreço, confere directamente à Polícia Judiciária competência para, por iniciativa própria, realizar «acções de prevenção» relativas a determinados tipos de crimes, compreendendo, entre outros, «a recolha de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal».
2 - Da conjugação destas normas com o disposto no artigo 3.º, n.os 1 e 2, do mesmo decreto poderá resultar que, sob a designação eufemística de «acções de prevenção», se esteja a conferir à Polícia Judiciária competência legal originária para, com total autonomia, realizar actividades de investigação visando o apuramento da eventual prática de crimes das espécies enunciadas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 1.º e determinar os seus agentes e a respectiva responsabilidade, reconduzindo-se, assim, a «recolha de informação» a uma «descoberta e recolha de provas», que poderá incidir mesmo sobre suspeitos bem determinados e desencadear, a qualquer momento, uma vez recolhidos elementos que confirmem a suspeita de crime, a instauração de um processo criminal.
3 - Assim sendo, e na medida em que as chamadas «acções de prevenção» se possam reconduzir a uma actividade policial materialmente processual de natureza investigatória e até, em situações limite, de natureza instrutória, não sujeita à direcção e à dependência funcional das autoridades judiciárias competentes, coloca-se a dúvida de saber da conformidade constitucional das normas constantes dos artigos 1.º, n.os 1, 2 e 3, alínea a), e 3.º, n.os 1 e 2, do decreto em apreciação face ao disposto nos artigos 32.º, n.os 1 e 4, 221.º, n.º 1, e 272.º, n.º 3, da Constituição.
3 - Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei 28/82, o Presidente da Assembleia da República respondeu em momento oportuno, oferecendo o merecimento dos autos.
4 - Cumpre, por conseguinte, apreciar, em sede de fiscalização preventiva, a adequação constitucional dos mencionados artigos 1.º, n.os 1, 2 e 3, alínea a), e 3.º, n.os 1 e 2, do decreto 126/VI da Assembleia da República.
II
1 - O texto apresentado pelo Presidente da Assembleia da República ao Presidente da República, para efeitos de eventual promulgação, entronca directamente na proposta de lei 60/VI, que se encontra publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 35, de 22 de Maio de 1993.
Discutido na generalidade na sessão plenária de 3 de Junho último (citado Diário, 1.ª série, n.º 79, de 4 desse mês), foi o mesmo votado, na generalidade, na sessão do dia 8 (cf. o n.º 81 da 1.ª série, de 9 de Junho, do mesmo jornal oficial), após o que, aprovados todos os artigos, na especialidade, na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e rejeitados dois requerimentos de avocação de artigos pelo Plenário, se procedeu à votação global final do texto elaborado pela Comissão, o que ocorreu na reunião plenária de 2 de Julho, colhendo os votos favoráveis do PSD e os votos contra do PS, do PCP, do CDS-PP, de Os Verdes e do deputado independente Mário Tomé, consoante se apura do citado Diário, 1.ª série, n.º 92, de 3 de Julho último.
O relatório e parecer da referida Comissão encontram-se, por sua vez, publicados na 2.ª série-A, n.º 38, do Diário da Assembleia da República, de 5 de Junho de 1993.
2 - Dispõem os preceitos em análise:
Artigo 1.º
Acções de prevenção
1 - Compete ao Ministério Público e à Polícia Judiciária, através da Direcção Central para o Combate à Corrupção, Fraudes e Infracções Económicas e Financeiras, realizar, sem prejuízo da competência de outras autoridades, acções de prevenção relativas aos seguintes crimes:
a) Corrupção, peculato e participação económica em negócio;
b) Administração danosa em unidade económica do sector público;
c) Fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;
d) Infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com recurso à tecnologia informática;
e) Infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional.
2 - A Polícia Judiciária realiza as acções previstas no número anterior por iniciativa própria ou do Ministério Público.
3 - As acções de prevenção previstas no n.º 1 compreendem, nomeadamente:
a) A recolha de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal;
...
Artigo 3.º
Procedimento criminal
1 - Logo que, no decurso das acções descritas no artigo 1.º, sejam recolhidos elementos que confirmem a suspeita de crime, é instaurado o respectivo procedimento criminal.
2 - Com vista à instauração do respectivo procedimento criminal, logo que, nos mesmos termos, sejam recolhidos, pela Polícia judiciária, elementos que confirmem a suspeita de crime, será feita a comunicção e a denúncia ao Ministério Público.
3 - Para a entidade requerente, as normas transcritas, conjugadamente, suscitam dúvidas quanto à sua conformidade constitucional, tendo presente, para o efeito, o disposto nos artigos 32.º, n.os 1 e 4, 221.º, n.º 1, e 272.º, n.º 3, da CRP.
Convirá transcrevê-los:
Artigo 32.º
Garantias de processo criminal
1 - O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa.
...
4 - Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais.
...
Artigo 221.º
Funções e estatuto
1 - Ao Ministério Público compete representar o Estado, exercer a acção penal, defender a legalidade democrática e os interesses que a lei determinar.
...
Artigo 272.º
Polícia
...
3 - A prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
...
4 - Consigne-se, desde já, não se encontrar o Tribunal, nos limites do pedido, sujeito à fundamentação invocada, de acordo com o disposto no artigo 51.º, n.º 5, da Lei 28/82, apreciando com larga elasticidade, como escreve Gomes Canotilho, a relação de conformidade ou desconformidade das normas impugnadas com o parâmetro normativo-constitucional (Direito Constitucional, 5.ª ed. Coimbra, 1991, p. 1047).
III
1 - Na linha do Programa do XII Governo Constitucional, a terceira das Grandes Opções do Plano para 1993, aprovadas pela Lei 30-B/92, de 28 de Dezembro, foi concebida com vista a assegurar a coesão social e o bem-estar dos Portugueses.
No que propriamente à política da justiça respeita, previu-se uma actuação promotora do «empenhamento permanente nas acções de prevenção e repressão da criminalidade, elegendo-se como áreas de intervenção preferenciais as do combate à criminalidade violenta e organizada, o tráfico de estupefacientes, a corrupção e as fraudes antieconómicas» (cf. o anexo à citada lei).
Para lhe dar concretização, apresentou o Governo à Assembleia da República, num primeiro momento, e de harmonia com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 200.º da CRP, uma proposta de lei destinada a ser-lhe credenciada iniciativa legislativa relativa ao combate à corrupção e à criminalidade económica, financeira e fiscal (cf. o artigo 1.º do texto, que viria a constituir a proposta de lei 48/VI, e se encontra publicado no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 22, de 27 de Fevereiro de 1993.)
Sublinhou-se, então, na respectiva exposição de motivos, a necessidade de promover as medidas e potenciar os instrumentos susceptíveis de garantirem maior eficácia na prevenção e na repressão de tipos de criminalidade subtraída, pela sua natureza específica, ao figurino convencional, a implicar não só a conveniência em se adoptarem actuações mais adequadas como, igualmente, melhor articulação por banda dos organismos vocacionados para essas tarefas.
O Ministro da Justiça, ao intervir no Parlamento para a apresentação do texto e a sua justificação, salientou, além do mais, o desvalor ético especialmente censurável que a criminalidade na área económica encerra, «seja pela qualidade do agente, seja pelo seu estatuto pessoal e social, seja ainda pelos propósitos que conduzem à prática do crime», do mesmo passo acentuando a dificuldade de levar a bom termo um verdadeiro combate à corrupção.
Na discussão então travada, o deputado Costa Andrade (PSD) destacou, nomeadamente, o recorte próprio da chamada criminalidade do colarinho branco (white collar crime), onde inexiste uma conflitualidade exposta entre agente do crime e vítima, é extremamente reduzida a visibilidade das condutas e, muitas vezes, as próprias partes estabelecem relações de cumplicidade e de solidariedade contra a devassa e a intromissão das instâncias formais de controlo, a começar pelas polícias.
Para este orador, as medidas de prevenção pretendidas para a Polícia Judiciária exercer as suas atribuições e competências mais cabalmente, se bem que subtraídas ao vínculo de dependência funcional que a liga ao Ministério Público, não padeceriam de vício de inconstitucionalidade, não ultrapassado que fosse o paradigma da proporcionalidade em que a lei fundamental «aposta manifestamente» (consulte-se, para estas passagens, o Diário citado, 1.ª série, n.º 49, de 18 de Março de 1993, pp. 1740 e seguintes, 1745 e seguintes e 1749).
Votada, na generalidade, esta proposta, com os votos favoráveis do PSD e a abstenção dos restantes grupos parlamentares (Diário citado, 1.ª série, n.º 50, de 19 imediato, p. 1784), seguiu-se, no entanto, nova iniciativa do Governo - a proposta de lei 60/VI, já referenciada, origem do texto ora em exame.
A nova proposta de lei, na exposição de motivos, de igual modo faz eco da preocupação governamental e descreve esquematicamente as grandes linhas estruturais das alterações pretendidas, no quadro de uma ampliação da competência da Polícia Judiciária para a investigação exclusiva e da concretização de uma acrescida importância da função preventiva.
Intervindo de novo na Assembleia da República, o Ministro da Justiça concedeu particular ênfase à opção feita em matéria de prevenção, a seu ver imprescindível em qualquer polícia de investigação criminal, nem por isso arredando os pressupostos em que o diploma se pretende basear, quais sejam os fundamentos do Estado de direito e do regime democrático.
No quadro processual penal vigente, observa, a Polícia Judiciária investiga, o Ministério Público dirige a investigação, o juiz controla a legalidade, dependendo a primeira do Executivo apenas organicamente, e, funcionalmente, do Ministério Público e do juiz de instrução criminal (citado Diário, 1.ª série, n.º 79, de 4 de Junho de 1993, pp. 2507 e seguintes.)
2 - Não está em causa a iniciativa da adopção de medidas de combate a formas evoluídas de criminalidade nem se duvida ou questiona a importância dos meios humanos e técnicos para a obtenção de resultados concretos e eficientes. A sua oportunidade decorre, naturalmente, quer da sofisticação de actividades delituosas complexas, muitas vezes organizadas a nível internacional, quer do «carácter velado e indirecto» que por via de regra o processo conducente à corrupção reveste (cf. António Manuel de Almeida Costa, «Sobre o crime de corrupção», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, Coimbra, 1984, pp. 55 e seguintes, máxime p. 175).
Assim considerando, há que ter presente constituir a prevenção uma das atribuições da Polícia Judiciária, em razão da qual não lhe falta competência em matéria de prevenção criminal.
Órgão de polícia criminal auxiliar da administração da justiça, organizado hierarquicamente na dependência do Ministro da Justiça e fiscalizado pelo Ministério Público, a Polícia Judiciária tem a prevenção e a investigação criminal como suas atribuições (cf. o artigo 1.º, n.os 1 e 2, da chamada «Lei Orgânica», o Decreto-Lei 295-A/90, de 21 de Setembro).
A prevenção dos crimes constitui, aliás, uma das competências constitucionalmente reconhecidas às polícias, em geral, se bem que só possa fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (CRP, artigo 272.º, n.º 3).
Com efeito, a generalidade dos organismos com funções de investigação criminal, entendida esta como a actividade de recolher provas conducente ao exercício da acção penal, desenvolvida na fase do inquérito (ou da instrução), detêm, igualmente, funções de prevenção quanto às infracções relativas às respectivas áreas de competência, o que, por vezes, susceptibiliza dificuldades de diferenciação, tão mais delicadas quanto é certo que as regras a observar consoante se actua no domínio da prevenção ou no da investigação não são - ou podem não ser - as mesmas.
Ora, em matéria de prevenção criminal, diz-nos o artigo 2.º daquele decreto-lei competir à Polícia Judiciária, designadamente, o desempenho de um certo elenco de actuações que, numa vertente, se traduzem em acções de vigilância e fiscalização e, numa outra, se dirigem à sensibilização das potenciais vítimas, informando-as e exortando-as à tomada de medidas autoprotectoras.
Com efeito, preceitua-se no n.º 1 daquele artigo 2.º:
1 - Em matéria de prevenção criminal compete, designadamente, à Polícia Judiciária:
a) Vigiar e fiscalizar os estabelecimentos e locais pertencentes ao sector público, privado ou cooperativo em que se proceda a transacções de penhores, de adelo, ferro-velho, antiguidades e móveis usados, de compra e venda de livros usados, de ourivesaria e oficina de ourivesaria relativamente a objectos usados, de aluguer, compra e venda de veículos e seus acessórios e as garagens, oficinas e outros locais de recolha ou reparação de veículos;
b) Vigiar e fiscalizar hotéis, casas de pernoita, restaurantes, cafés, bares, tabernas, locais onde se suspeite da prática de prostituição e outros semelhantes;
c) Vigiar e fiscalizar locais de embarque de pessoas ou de mercadorias, fronteiras, meios de transporte, locais públicos onde se efectuem operações comerciais, de bolsa ou bancárias, estabelecimentos de venda de valores selados, casas ou recintos de reunião, de espectáculos ou de diversões, casinos e salas de jogo, parques de campismo e quaisquer locais que possam favorecer a delinquência;
d) Realizar acções destinadas a limitar o número de vítimas da prática de crimes, motivando os cidadãos a adoptarem precauções ou a reduzir os actos e as situações que facilitem ou precipitem a ocorrência de condutas criminosas.
Assim, compulsando a «Lei Orgânica», conclui-se que à Polícia Judiciária compete exercer prevenção criminal de modo a impedir o aparecimento de condutas delituosas ou a sua continuação, reduzir os factores sócio-económicos gerais e as circunstâncias criminógenas e obviar a que as potenciais vítimas se coloquem em situações ou assumam condutas negligentes geradoras de delitos (cf. M. A. Ferreira Antunes, «A Polícia Judiciária e o Ministério Público», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 323, p. 72).
A passagem transcrita terá o mérito de caracterizar as funções de prevenção de uma polícia judiciária, diferenciando-as das de investigação criminal, com o alcance anteriormente apontado, sendo certo que várias são as formas de prevenção, geral ou específica, passíveis de adução (entre nós mantêm interesse as considerações feitas a este propósito por Marcello Caetano, no seu Manual de Direito Administrativo, Coimbra, 9.ª ed., II vol., pp. 1145 e seguintes), não tendo que situar-se, necessariamente, a montante de qualquer actividade delituosa, uma vez que a prevenção é também equacionável quer extra delictum quer post delictum, entendida como instrumento dissuasor de futuros factos criminosos (prevenção geral, agindo sobre a generalidade das pessoas) ou como meio de reeducação ou intimidativo, desviante da prática criminosa (prevenção especial, que pode ser pessoalmente endereçada).
Os meios de a levar a efeito são, por seu turno, variados, mas, seja qual for o campo de actuação policial, convirá ter presente, como já acentuava Marcello Caetano, em diferente contexto político-constitucional, sempre haverão de respeitar «a vida íntima e o domicílio dos cidadãos» (ob. cit., p. 1156), espaço mínimo já então tutelado.
Genericamente, diz-nos o Decreto-Lei 295-A/90 competir ao Departamento Central de Registo de Informações e Prevenção Criminal «a realização de acções de prevenção criminal e o tratamento, registo e difusão, à escala nacional, das informações relativas àquela prevenção e à investigação criminal» (artigo 32.º).
Compreende este Departamento vários serviços, tais como o registo de tratamento de informação criminal, o registo policial, a fiscalização, a identificação judiciária, as secções de investigação e prevenção criminal, o Gabinete Técnico de Prevenção e o Gabinete Fotográfico (artigo 31.º), sendo patente, em todos eles, a vertente preventiva, como mais marcantemente resulta do elenco de atribuições do registo e tratamento da informação criminal (artigo 33.º), das atribuições de fiscalização (artigo 34.º), das competências das secções de investigação e prevenção (artigo 37.º), das que ao Gabinete Técnico de Prevenção pertencem (artigo 38.º).
Não é possível, na verdade, uma actuação eficiente de polícia judiciária que não se preocupe com a vertente pré-delituosa, definindo áreas de actuação, despistando comportamentos e fiscalizando actividades.
Se a conclusão se afigura apodíctica e se, obviamente, não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre uma opção de política legislativa que visa melhorar os poderes preventivos de polícia judiciária, já o mesmo se não passa quando se põe em causa a integral adequação da iniciativa à lei fundamental.
É sobre este concreto ponto que nos deteremos.
Desde já, no entanto - e no que poderíamos qualificar de aproximação à sensibilidade jurídico-constitucional do intérprete -, retenha-se o que, anteriormente ao actual Código de Processo Penal, se escreveu quanto à destrinça entre funções de recolha e tratamento de informações, actividades de fiscalização inseridas na função preventiva e tarefas de investigação criminal destinadas a possibilitar a repressão de infracções:
A identificação dos autores das infracções e a preparação do processo para o julgamento decorrem, geralmente, por três etapas.
A primeira consiste na fase de informação, ou seja, a recolha informal de elementos quer sobre uma infracção concreta já praticada quer por razões de ordem preventiva. Só é aceitável se não invadir a esfera dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
A segunda fase, a de investigação, tem lugar já após instauração de um processo, normalmente o inquérito preliminar, sem formalidades particulares, salvo quanto a diligências que tocam na aludida esfera de direitos, liberdades e garantias.
A terceira fase, a de instrução, é de natureza formal, isto é, as diligências devem obedecer a um ritual próprio, estabelecido nas normas de processo penal e decorre perante a autoridade judicial.
O texto transcrito (A. G. Lourenço Martins, Droga - Prevenção e Tratamento, Combate ao Tráfico, Coimbra 1984, pp. 144 e 145) terá o mérito de não só sintetizar claramente as três fases que uma recolha de prova, em sentido lato entendida, experimenta, como o de, desde já, acentuar uma tónica que se projecta nos domínios da defesa dos direitos fundamentais.
A que poderemos acrescentar este outro tópico: as funções de recolha e tratamento de informações, as de actividade de vigilância e fiscalização a levar a cabo pelas várias entidades competentes nessa área, exactamente porque preventivas e dissuasoras, estão direccionadas para a generalidade das pessoas e dos locais sobre que incidem ou são de matriz específica desmotivadora, mas não se orientam para uma actividade investigatória de crimes praticados.
IV
1 - Permite o documento registado como decreto 126/VI, no n.º 1 do seu artigo 1.º, que a Polícia Judiciária leve a efeito - por iniciativa própria ou do Ministério Público, de acordo com o n.º 2 - «acções de prevenção» relativamente a crimes que de imediato cataloga, cuja investigação se lhe presume deferida, em regime de competência exclusiva.
Descrevem-se nas três alíneas do seu n.º 3, e a título exemplificativo, vários tipos dessas acções, destacando-se, inclusivamente, na alínea b), o conjunto de medidas investigatórias de natureza administrativa que a extinta Alta Autoridade contra a Corrupção podia adoptar (cf. o artigo 6.º, n.º 2, da Lei 45/86, de 1 de Outubro).
Mas o juízo de constitucionalidade há-de recair, por imperativo do pedido, apenas sobre a competência da Polícia Judiciária - e não já do Ministério Público -, para actuar, por sua iniciativa, nos moldes previstos na alínea a) do mesmo normativo: recolha de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal.
Diga-se, desde já, que o sentido do discurso não se revela de «acesso imediato» e exige um certo esforço interpretativo, que passa pela sua «desmontagem» e concomitante articulação com as normas próximas, do mesmo texto e da «Lei Orgânica» da Polícia Judiciária.
Assim sendo, retira-se:
A Polícia Judiciária tem competência exclusiva para a investigação, que se presume deferida, dos crimes elencados no n.º 1 do artigo 1.º, a cargo da Direcção Central para o Combate à Corrupção, Fraudes e Investigações Económicas e Financeiras, a nível de todo o território nacional (cf. artigo 10.º do decreto, que dá nova redacção aos artigos 4.º, 18.º e 30.º do Decreto-Lei 295-A/90).
A par dessa competência, a Polícia Judiciária é igualmente competente para acções de prevenção, a realizar por iniciativa própria ou do Ministério Público (artigo 1.º, n.os 1 e 2).
No âmbito desta última competência, pode, nomeadamente, recolher informação relativamente a notícias de factos, nos termos já transcritos da alínea a) do n.º 1 do artigo 1.º
Logo que, no desempenho dessa tarefa, obtenha elementos confirmativos de suspeita de crime, comunicará e denunciará os respectivos resultados ao Ministério Público, para efeitos de instauração de procedimento criminal (artigo 3.º).
Os procedimentos adoptados serão sempre documentados (n.º 1 do artigo 2.º), cumprindo ao director-geral da Polícia Judiciária informar mensalmente o Procurador-Geral da República dos procedimentos iniciados neste âmbito preventivo, «para análise e acompanhamento».
Numa diferente perspectiva, verifica-se que a iniciativa da Polícia Judiciária é despoletada por notícia (verdadeira ou falsa) de um facto (ocorrido ou não).
Recebida a notícia sobre a eventual ocorrência do facto - em si mesmo por certo que não inócuo ou neutro, só por si podendo constituir ilícito criminal ou de qualquer modo conexionar-se com acto dessa natureza -, a Polícia Judiciária procede a uma primeira valoração: desencadeará (ou não) o procedimento, no sentido de fundamentar as suspeitas ocasionadas pela notícia que lhe chega ao conhecimento (e é perfeitamente representável que se abstenha de tomar qualquer medida, bastando, por exemplo, o absurdo ou a impossibilidade física da ocorrência).
Iniciada a recolha de informação, a Polícia Judiciária procederá, inevitavelmente, a um segundo momento de valoração, quando ajuíze da suficiência das suspeitas, concluindo pela susceptibilidade das mesmas para legitimar a instauração do procedimento criminal - isto é, emitindo um juízo sobre o fumus commissi delicti.
Durante esse período de tempo - de duração indeterminada - a Polícia Judiciária encontra-se desvinculada da sua dependência funcional, uma vez que actua extraprocessualmente [em sistema de pré-inquérito ou de prática de actos de investigação criminal à revelia da direcção do Ministério Público, para empregar a qualificação utilizada na Assembleia da República pelo deputado Guilherme Silva (Diário citado, 1.ª série, n.º 79, de 4 de Junho de 1993, p. 2523)].
2 - A análise do diploma, sumariamente descrito na parte relevante, permite a seguinte esquematização:
a) À Polícia Judiciária é atribuída competência para, relativamente aos tipos legais de crime enunciados no n.º 1 do artigo 1.º, realizar, por iniciativa própria (n.º 2 do mesmo artigo), procedimentos denominados «acções de prevenção»;
b) Nesses procedimentos, a Polícia Judiciária recolhe informação, documentando as respectivas operações em suporte material próprio, nele constando igualmente toda a actividade que, porventura, desenvolva ao abrigo da alínea b) do n.º 3 do artigo 1.º: solicitação de inquéritos, sindicâncias, inspecções e outras diligências que se revelem necessárias e adequadas à averiguação da conformidade de determinados actos ou procedimentos administrativos, no âmbito das relações entre a Administração Pública e as entidades privadas (cf. o n.º 1 do artigo 2.º);
c) A recolha de informação pode prolongar-se por tempo indeterminado, dependendo da valoração feita pela própria Polícia Judiciária sobre a suficiência das suspeitas, independentemente da informação mensal, para análise e acompanhamento, ao Procurador-Geral da República (n.º 2 do artigo 2.º);
d) Os procedimentos assim instaurados, sempre que, por idêntico critério, não obtenham juízo de suficiência susceptível de legitimar a instauração do procedimento criminal, poderão ficar em aberto - ou a aguardar novos elementos - no seio da Polícia Judiciária;
e) A actuação desta polícia, neste domínio, é gerada pela notícia da ocorrência de um facto, eventualmente delituoso, podendo ser subjectivamente direccionada;
f) Semelhante actuação ocorre à revelia de controlo efectivo, directo e imediato do Ministério Público e determina-se por critérios adoptados pela própria Polícia.
Ou seja, as «acções de prevenção» previstas no n.º 1 do artigo 1.º, ao compreenderem, nomeadamente, a recolha de informação a que alude a alínea a) do n.º 2 desse preceito - além do mais que consta da alínea b), mas que não está em causa -, são qualitativamente diferenciadas das medidas de vigilância e fiscalização englobadas na competência da Polícia Judiciária em matéria de prevenção criminal constante do artigo 2.º da sua «Lei Orgânica».
3 - É certo que nesta fase meramente administrativa, o director-geral da Polícia Judiciária deve informar mensalmente o Procurador-Geral da República dos procedimentos iniciados, para que este os analise e acompanhe.
Entendeu o deputado Guilherme Silva, no Parlamento (ibidem), estarem assim salvaguardados os direitos fundamentais, pois não só a Polícia Judiciária é obrigada a comunicar prontamente ao Ministério Público sempre que «instaura procedimento criminal» como se documentam as acções de prevenção e se remetem «estas» ao Procurador-Geral da República para os fins acima descritos.
Convém colocar os dados da questão no seu devido lugar.
Na verdade, importa salientar que as alterações à Lei Orgânica do Ministério Público (LOMP) - Lei 47/86, de 15 de Outubro -, introduzidas pela Lei 3/92, de 20 de Agosto, modificaram significativamente o relacionamento institucional das duas entidades.
Assim, se ao Ministério Público competia especialmente «promover e coordenar acções de prevenção da criminalidade» e «fiscalizar os órgãos de polícia criminal [artigo 3.º, n.º 1, alíneas g) e l), respectivamente], com a Lei 23/92 passou a ter competência para «promover e cooperar em acções de prevenção criminal» e para «fiscalizar a actividade processual dos órgãos de polícia criminal» (itálicos nossos).
Se, nos termos do artigo 8.º, alínea i), competia à Procuradoria-Geral da República «fiscalizar superiormente o exercício das funções dos órgãos de polícia criminal», com a alteração de 1992 passou a fiscalizar superiormente a actividade processual dos órgãos de polícia criminal [agora, como alínea h)] (itálicos nossos).
Se, finalmente, competia ao Procurador-Geral da República, como presidente daquele órgão, «fiscalizar superiormente o exercício das funções dos órgãos de polícia criminal» [artigo 10.º, n.º 2, alínea f)], passou, correspondentemente, a «fiscalizar superiormente a actividade processual dos órgãos de polícia criminal» (itálicos nossos).
Como é evidente, cooperar onde anteriormente se coordenava não é modificação semântica ou axiologicamente gratuita.
Por seu turno, a fiscalização circunscrita à «actividade processual» dos órgãos de polícia criminal torna questionável - no mínimo -, a forma de intervenção do Procurador-Geral da República nas acções preventivas da Polícia Judiciária não ordenadas pelo Ministério Público. Assim, se pode dizer-se depender de um sistema organizatório interno o modo de acesso do Procurador-Geral da República aos «procedimentos preventivos» (contrariamente ao que se deixa entender na discussão parlamentar, não está prevista a remessa destes àquela entidade, tão-só se lhe dando conhecimento mensal), já o mesmo se não dirá quando o Ministério Público entende não se justificar o prosseguimento dos autos e ordenar, em consequência, o arquivamento do inquérito por si instaurado após a comunicação da Polícia Judiciária. Na oportunidade, interrogava(-se) com pertinência a deputada Odete Santos: que destino será dado à documentação recolhida nesta fase do pré-inquérito, quando não se siga a instrução do processo? (Diário citado, p. 1752).
4 - No sistema do Código de Processo Penal, em regra, a notitia criminis desencadeia o inquérito sob a direcção do Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal, destinado a investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão e sobre a acusação (cf. artigos 56.º e 262.º e seguintes do Código).
Aos órgãos de polícia criminal (na terminologia desse diploma) compete proceder por sua própria iniciativa às medidas cautelares e de polícia (artigos 55.º e 248.º e seguintes), justificadas por evidentes razões de urgência ou da natureza perecível de certos meios de prova: exame ao local, recolha de vestígios do crime, identificação de suspeitos e testemunhas, de um modo geral operações destinadas a descobrir e manter os vestígios e a apreender os objectos susceptíveis de servirem de prova, sem prejuízo de notícia imediata à competente autoridade judiciária.
Actos não processuais, uma vez que praticados fora do processo, sem a direcção das entidades competentes para o inquérito ou para a instrução (neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 1993, p. 202), ou actos processuais na medida em que exercidos no uso de uma competência própria, não delegada (como parece entender Jorge Figueiredo Dias, «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Lisboa, 1992, p. 12), interessa neste momento apontar que a legalização destes meios de actuação, que se encontravam numa zona de semiclandestinidade, terá sido fruto de uma «ideia de concordância prática reguladora das finalidades em conflito nos concretos problemas de processo penal», salvaguardando-se, do mesmo passo, sem absolutizações excludentes, não só a finalidade de realização da justiça e descoberta da verdade material, mas também a protecção dos direitos fundamentais das pessoas (v., neste sentido, Anabela Miranda Rodrigues, «O inquérito no novo Código de Processo Penal», in Jornadas ..., cits., p. 71).
V
1 - Numa óptica jurídico-constitucional, cite-se que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 7/87 (publicado no Diário da República, 1.ª série, de 9 de Fevereiro de 1987), ao pronunciar-se, em sede de fiscalização preventiva de constitucionalidade, sobre o texto que viria a converter-se, em grande parte, no Código de Processo Penal de 1987, discutiu a conformidade constitucional da direcção pelo Ministério Público do então chamado inquérito preliminar, decidindo-se maioritariamente não haver obstáculo constitucional à admissibilidade dessa fase, desde que respeitados os valores justificativos da intervenção do juiz, «para salvaguardar a liberdade e a segurança dos cidadãos no decurso do processo crime e para garantir que a prova canalizada para o processo foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais».
Não se logrou consenso - face à tese que defende a reserva do juiz extensível a toda a instrução -, a questão foi posterior e pontualmente reequacionada (cf., v. g., o Acórdão deste Tribunal n.º 23/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 4 de Julho de 1990) e continuará em aberto porque a matéria a decidir não impõe que se retome essa questão.
De qualquer modo, para quem entenda que a Constituição da República de 1976 consagrou a plena jurisdicionalidade da actividade conducente à averiguação da existência das infracções, impondo que a instrução seja da competência de um juiz e autorizando apenas que este possa delegar a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais, uma actuação da Polícia Judiciária nos moldes previstos na alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º sindicado é susceptível de colidir com a norma do artigo 32.º da CRP, relativo às garantias de defesa do processo criminal.
Num outro plano, para os que aceitam a intervenção do Ministério Público na condução das diligências empreendidas no decurso do inquérito - e, neste sentido, o Acórdão 7/87 encontra precedentes no Acórdão 6 da Comissão Constitucional e também nos n.os 39 e 49 da mesma Comissão (publicados no apêndice ao Diário da República, de 6 de Junho de 1977, pp. 5 e seguintes, e de 30 de Dezembro do mesmo ano, pp. 66 e seguintes e 97 e seguintes, respectivamente) - aquela actuação proporciona, hipoteticamente, o esvaziamento das funções do Ministério Público e correlativa violação da norma do artigo 221.º, n.º 1, da CRP.
Como quer que seja, uma outra perspectiva jurídico-constitucional parece adequada - e dela passaremos a cuidar.
2 - Na área em que nos movimentamos, não pode o intérprete alhear-se de dois tópicos fundamentais que assentam na salvaguarda dos direitos fundamentais, por um lado, e no seu eventual sacrifício, por outro lado.
O processo penal não tem apenas natureza formal e técnica, mas alto significado ético e político, pois nele se debate a correlação entre o interesse do Estado na perseguição dos criminosos para a defesa da sociedade e o interesse da pessoa na defesa da sua liberdade, honra e património, diz-nos Germano Marques da Silva (ob. cit., p. 15). E o eventual sacrifício dos direitos fundamentais da pessoa, «em nome da prevenção e repressão das manifestações mais drásticas e intoleráveis da criminalidade» (Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra, 1992, p. 28), há-de ser analisado à luz do princípio da ponderação de interesses, o que constitucionalmente se articula com o disposto no n.º 2, in fine, do artigo 18.º da CRP, o princípio constitucional da proporcionalidade, e, no concernente às polícias e suas actividades de prevenção, com a norma do artigo 272.º, n.º 3 da CRP.
Ora, como já se observou, a elevação à dignidade de princípios de valores como os da presunção de inocência, de proibição de determinadas provas, da assistência de defensor do carácter excepcional e subsidiário da detenção e da prisão preventiva motivou o recuo para as fases preliminares do processo do conjunto de garantias destinadas a assegurar os direitos dos cidadãos sem comprometer a pretensão punitiva do Estado, tanto mais que é actualmente mais clara a consciência de que, estando nas mãos da polícia uma grande parte das tarefas do Estado tendentes a combater a criminalidade, aí convivem também alguns dos aspectos mais delicados da relação que, neste domínio, se estabelece entre o poder e os indivíduos (cf. Cunha Rodrigues, «Ministério Público», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. V, Lisboa, 1993, p. 565).
A harmonização da actuação policial com a estrita observância da lei pode alcançar-se num sistema como o actual, no dizer do mesmo autor, operando a três níveis, como estatutos e tensões profissionais diferentes mas complementares:
O policial, em que o Governo pode introduzir variáveis técnicas e estratégicas, o do Ministério Público, dominado por valores de isenção e de objectividade e protegido pela autonomia face ao poder político e o do juiz, garantido pelo estatuto da independência. [«Direito processual penal - Tendências de reforma na Europa continental - o caso português», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXIV, 1988, p. 51.]
3 - Flui das considerações expostas a necessidade de diferenciar com nitidez os instrumentos de diagnóstico dos de intervenção.
As «acções de prevenção» da Polícia Judiciária, por sua iniciativa, são procedimentos administrativos em que, não obstante se dever presumir o contrário (a Administração deve reger-se subordinadamente à lei, de acordo com o artigo 266.º, n.º 1 da CRP), pode hipotizar-se reforço da dimensão discricionária, distanciando-se tendencial e, porventura, progressivamente do «governo da lei», dos esquemas e princípios do Estado de direito.
Bobbio observou que, em figurino semelhante, os titulares do poder passam a exercitá-lo cada vez menos com base nas normas gerais e abstractas e mais através de critérios ditados por oportunidade, ou segundo as regras da experiência, as necessidades e as conveniências (citado por Sérgio Fois, «La crisi delle istituzioni», in Diritto e società, n.º 1, de 1992, pp. 12 e 13).
Esta margem de discricionariedade - que como é evidente, se recorta abstractamente - não é estranha a qualquer tipo de polícia e sente-se, de modo particular, no domínio da prevenção. Nesta peculiar área, e para seguir Sérvulo Correia, «a pluralidade ilimitada de circunstâncias em que perigos para os interesses públicos exigem acções preventivas por parte da Administração, não se compadece com a exigência de uma tipificação normativa de todas as possíveis condutas administrativas» (Noções de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1982, p. 247).
Se é indiscutível a marcante dimensão técnica das acções preventivas - e o respeito pelas leges artis, inclusivamente quando já desempenhadas sob fiscalização dos magistrados, legitima que se lhes confie o trabalho investigatório -, fere a atenção que, nos procedimentos efectuados à revelia dessa fiscalização, a entidade policial prossiga a sua actividade ajuizando, sucessivamente, da idoneidade da notícia recebida e da suficiência ou insuficiência dos elementos registados para, com base neles, se ponderar da oportunidade de comunicação ao Ministério Público.
É, de facto, a autoridade policial quem qualifica a notícia do crime e quem qualifica a suficiência dos indícios quando, em princípio, deveria limitar-se ao factual.
Por isso, já se escreveu dever a informação policial conter factos e não depender de juízos valorativos da conduta dos cidadãos (cf. Gian Domenico Pisapia, Lineamenti del nuovo processo penale, 2.ª ed., Padova, 1989, p. 23).
4 - O Código de Processo Penal normativizou a matéria respeitante à prova em termos genéricos (livro III, artigos 124.º a 190.º) de forma específica, em atenção às diversas fases processuais em que se opera a recolha e valoração da prova (artigos 249.º, 251.º e 252.º no inquérito, 301.º e 302.º, n.º 2, na instrução e 340.º e seguintes na audiência de julgamento).
Pretende-se agora - problema que radica na esfera de política legislativa - abandonar o paradigma legislativo codificado - invertido em regime supletivo, por obra do artigo 14.º do decreto - em nome de uma axiologia de combate a formas de criminalidade com elevados índices de sofisticação e organização ou de críptica insinuação.
Pergunta-se se a adopção da medida é justificada, não obstante possível restrição do núcleo dos direitos, liberdades e garantias.
4.1 - Desde logo, a actuação prevista no artigo 1.º para a iniciativa autónoma da Polícia Judiciária - já se consignou que, por imperativos de obediência ao âmbito do pedido, apenas há que conhecer da competência da Polícia Judiciária neste tipo de acção preventiva (n.º IV-1) -, ou, mais propriamente, na alínea a) do seu n.º 3, modela-se por uma abertura de conceitos e uma indeterminabilidade de meios, semanticamente maleáveis os primeiros, suficientemente indeterminados os segundos, aporéticos uns e outros (para o operador) se se atender ao «peso privilegiado das singularidades incomunicáveis do caso concreto», para utilizar formulação de Costa Andrade, ao dissertar em área próxima, sobre o direito das proibições de prova (cf. «Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano I, n.º 3, p. 377).
Na verdade, que se deve entender por notícias de factos?
Se é certo que a actividade processual penal começa precisamente com a notícia da existência de uma infracção criminal, a actuação tendente a concretizá-la insere-se já no domínio do processo penal, deverá de imediato ser objecto de inquérito com vista a uma investigação sobre a eventual existência de crime e do respectivo nexo causal de imputação a alguém determinado.
A notícia de uma infracção criminal é susceptível de derivar do conhecimento directo - notoriedade, rumor público, informação confidencial, declaração - pelas autoridades judiciárias ou pelos órgãos de polícia criminal ou de denúncia dirigida a qualquer dessas entidades (cf. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1.º vol., Lisboa, 1986, p. 88).
Nos termos da lei, a actividade investigatória implica que se abra inquérito (n.º 2 do artigo 262.º do Código de Processo Penal), sob a direcção do Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (n.º 1 do artigo 263.º).
O exercício da acção penal é ao Ministério Público que compete constitucionalmente (artigo 221.º, n.º 1, da CRP) e o respectivo processo far-se-á rodear das garantias consignadas no artigo 32.º da lei fundamental, normas que, neste caso, estariam gravemente afectadas: esvaziado significativamente o conteúdo da primeira, ignoradas, pura e simplesmente, as garantias impostas pela segunda.
Admite-se, no entanto, que no domínio de prevenção técnica, neste específico terreno criminológico de complexas condutas pouco visíveis, se queira ir mais longe, permitindo-se colheita de informação antes mesmo de surgir o já aludido fumus commissi delicti.
Caberia, então, perguntar o que se deve entender por recolha de informação e até onde pode esta prosseguir.
Não se pretende, obviamente, uma recolha de informação que se esgote na fiscalização do estabelecimento do adelo ou na vigilância da certa sala de jogo. Permitindo a «Lei Orgânica» da Polícia Judiciária [artigo 33.º, n.º 1, alínea e)] a organização do ficheiro fotográfico de um delinquente - o que constitui tratamento preventivo de informação criminal -, que separador ideal impede a organização do ficheiro fotográfico de um dado cidadão, englobado por uma «notícia» no rol dos eventuais suspeitos? Se a vigilância através de aparelhos de captação de imagens constitui técnica elementar de qualquer medida de protecção pessoal, que impedirá a sua utilização para fins de «recolha de informação»? E quanto à vigilância pessoal direccionada? Que gradação qualitativa existe entre qualquer uma destas medidas e o regime de escutas telefónicas, sujeito a um regime legal de controlo judicial?
No âmbito das infracções antieconómicas, por exemplo, a gama técnica de recolha de provas e a especialização dos respectivos meios, pluridisciplinares, poderão enriquecer qualquer dossier aberto ao abrigo da alínea em causa (leia-se o trabalho de Ferreira Antunes, «Polícia criminal e criminalidade económica - Subsídios para uma perspectiva sistemática», in Polícia e Justiça, n.º 5, Outubro de 1990, pp. 65 e seguintes).
Na verdade, a atipicidade da actividade administrativa da prevenção desliza, naturalmente, para o discricionário e só remotamente se poderá objectar com a obrigatoriedade da documentação das operações efectuadas - que a lei vigente já prevê, se bem que não obrigatoriamente: n.º 8 do artigo 2.º e (ou) a análise e o acompanhamento do Procurador-Geral da República.
Pensa-se que este seria um bom argumento, a merecer maior ponderação, se a Lei 23/92 não tivesse suprimido os poderes de coordenação que ao Ministério Público e à Procuradoria-Geral da República competiam, nem circunscrito o poder fiscalizador do Procurador-Geral da República à actividade processual dos órgãos de polícia criminal.
No regime proposto, a iniciativa policial decorrerá na total ausência de instrumentos defensivos que comportem um mínimo de dialéctica processual e se, ao fim de 30 dias, é dado conhecimento do procedimento ao Procurador-Geral da República (e conviria saber como), tendencialmente a recolha de informação, nessa situação de revelia, pode prolongar-se indeterminadamente, como já se salientou.
De um modo geral, pode afirmar-se que toda esta actividade pré-processual decorrerá na total ausência de instrumentos defensivos contendo um mínimo de dialéctica processual (cf., a este respeito, Nicola Coco, «L'opera di prevenzione delle forze di polizia», in Tratatto di criminologia, medicina criminologica e psichiatria forense, dirigido por Franco Ferracuti, vol. 5 - Teorie criminogenetiche, prevenzione, ruolo delle istituzioni, Milano, 1987, p. 212).
4.2 - Equaciona-se, assim, um problema de ponderação meio-fim.
O critério da «concordância prática», como método a utilizar preferencialmente na harmonização de interesses antagónicos, restritivos de direitos, pode ser utilizado no caso das medidas cautelares e de polícia expressamente previstas no Código de Processo Penal (cf. n.º IV-4), uma vez que estas, desencadeadas na sequência da notícia de um crime e da necessidade de acautelar meios de prova, dirigem-se a alguém, mas são a curto prazo submetidas ao controlo da autoridade judiciária competente, em termos de não se pôr em causa o conteúdo essencial da esfera jurídica do suspeito.
Aí, a concordância prática dos interesses em conflito executa-se através de um critério de proporcionalidade assente na distribuição dos custos do conflito (cf. J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 223; Gomes Canotilho, ob. cit., pp. 629 e 659 e seguintes).
Nestes casos, o princípio da proporcionalidade, no sentido lato, será respeitado por razões não muito afastadas das que ditaram a solução do Acórdão deste Tribunal n.º 325/86, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 19 de Março de 1987 (e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8.º vol., pp. 473 e seguintes), sobre o processo de extradição, estribado na urgência deste processo específico e da sua aceleração, imposta por lei.
No diploma em apreciação, pretende-se estabelecer um programa de política criminal legislativa que, em sede preventiva, deve ser ponderado na perspectiva do eventual sacrifício do núcleo essencial de direitos fundamentais, não sendo admissível que o juízo de relação apropriada («angemessenem Verhältnis») entre o objectivo de prevenção criminal e o direito «tocado» se avalie casuisticamente, exposto às singularidades do caso concreto, sob pena de se desgraduar o princípio em mero teste, transferindo-se para os tribunais a tarefa de, caso a caso, emitirem juízos de valor sobre o grau de colisão dos interesses gerais e dos interesses individuais (cf., a propósito, Ernesto Pedraz Pedralva, Constitución Jurisdicción y Processo, Madrid, 1990, pp. 290 e seguintes).
Em Estado de direito democrático, como o nosso, o programa político-criminal deve ser ponderado de modo a garantir o conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
A proibição de restrição desse núcleo deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade, hoje não limitado a máxima constitucional, mas admitido como princípio normativo concreto da ordem constitucional portuguesa. O artigo 18.º, n.º 2, da CRP só permite a restrição dos direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos; por sua vez, o artigo 272.º da CRP, no seu n.º 3, decreta que a prevenção dos crimes só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. E esta é uma norma - que se entende aplicável às polícias judiciárias (cf. Cunha Rodrigues, «Ministério Público», cit., p. 564 e local aí referido) - que, para Gomes Canotilho e Vital Moreira, abrange, tipicamente, as funções de vigilância e prevenção criminal (em sentido estrito), que se limitarão às medidas de protecção das pessoas e bens, vigilância de indivíduos e locais suspeitos, «mas não podem ser medidas de limitação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos» (cf. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp. 956 e 957).
Este n.º 3 há-se conjugar-se com o n.º 1 da mesma norma, onde se estabelece que as medidas de polícia não devem ser utilizadas para além do estritamente necessário.
Na perspectiva da proporcionalidade e vertentes que a compõem, significa o exposto que a actuação policial opera através de um «uso moderado do poder», desistindo-se do fim proposto sempre que as vantagens não compensem o «custo excessivo dos meios». É uma dimensão que, para Gomes Canotilho (ob. cit., p. 999), está claramente implícita no n.º 2 do artigo 18.º, encontrando-se no próprio artigo 272.º quando, no seu n.º 2, se dispõem não deverem as medidas de polícia ser utilizadas para além do estritamente necessário [assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição, cit., p. 956; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, IV, Lisboa, 1988, pp. 274 e seguintes, 306 e seguintes e 321; Barbosa de Melo, Direito Administrativo, II («A protecção jurisdicional dos cidadãos perante a Administração Pública»), sumários das lições proferidas na Faculdade de Direito de Coimbra, no ano lectivo de 1986-1987, Coimbra, 1987, p. 84.]
4.3 - Entende-se que as «acções de prevenção» previstas no artigo 1.º do decreto, tal como articuladas, estão com a exemplificação constante do seu n.º 3 e, particularmente, com a respectiva alínea a), desequilibram desrazoavelmente a ponderação meio-fim ínsita na vertente apontada do princípio da proporcionalidade e susceptibilizam, no modo como estão concebidas, desproporcionadamente, a violação do núcleo essencial do direito fundamental que é o da reserva da intimidade da vida privada, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, excessivamente exposto na sua esfera pessoal íntima (Intimsphäre), por tempo indeterminado e à revelia de qualquer controlo judiciário ou jurisdicional.
5 - Em face desta conclusão, torna-se desnecessário apreciar com autonomia quer o n.º 1 do artigo 1.º, quer o artigo 3.º, n.os 1 e 2, do mesmo texto, cuja conformidade constitucional foi igualmente equacionada pelo Presidente da República, dada a sua natureza meramente tributária em relação ao artigo 1.º, n.os 1 e 3, alínea a).
VI
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide:
Pronunciar-se pela inconstitucionalidade das disposições conjugadas dos artigo 1.º, n.os 2 - na parte relativa à iniciativa própria da Polícia Judiciária - e 3, alínea a), e 3.º, n.os 1 e 2, todos com referência ao n.º 1 do artigo 1.º do decreto 126/VI da Assembleia da República, relativo a «Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira», por violação do disposto, conjugadamente, no artigo 26.º, n.º 1, e do princípio da proporcionalidade da lei, decorrente das disposições dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, e 272.º, n.º 3, todos da Constituição da República.
Lisboa, 12 de Agosto de 1993. - Alberto Tavares da Costa - Armindo Ribeiro Mendes - Luís Nunes de Almeida - Antero Alves Monteiro Dinis (com a seguinte declaração: pronunciei-me ainda pela inconstitucionalidade das mesmas normas por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, em conformidade com o sentido da declaração de voto de vencido que apresentei no Acórdão 7/87) - Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto junta) - Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração que junto) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, pelo essencial das razões constantes das declarações de voto dos Exmos. Conselheiros Vítor Nunes de Almeida e Assunção Esteves).
Declaração de voto
Não subscrevi a tese do acórdão, de inconstitucionalidade das normas dos artigos 1.º, n.os 2 e 3, alínea a), e 3.º, n.os 1 e 2, com referência ao artigo 1.º, n.º 1, do decreto 126/VI, da Assembleia da República. Com os seguintes fundamentos:
O domínio da prevenção pode incluir acções da Polícia Judiciária de «recolha de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal». Essas acções estão vinculadas ao princípio da necessidade e aos direitos, liberdades e garantias (cf. CRP, artigos 18.º, n.º 1, e 272.º, n.os 2 e 3); desenvolvem-se fora da acção penal, não convocando, por isso, a norma do artigo 221.º da Constituição, e participam de um sistema que conta com a comunicação mensal ao Procurador-Geral da República dos procedimentos iniciados (cf. artigo 2.º, n.º 2, do decreto) e com a comunicação imediata ao Ministério Público dos elementos que confirmem a suspeita de crime (cf. artigo 3.º, n.º 2, do decreto).
Neste quadro de vinculações, a opção legislativa que ali se contém deixa intocadas as garantias constitucionais do cidadão. - Maria da Assunção Esteves.
Declaração de voto
1 - Votei vencido quanto à decisão tomada no presente acórdão no sentido de declarar a inconstitucionalidade da norma conjugada do artigo 1.º, n.os 2 - na parte relativa à iniciativa própria da Polícia Judiciária - e 3, alínea a), e do artigo 3.º, n.os 1 e 2, todos com referência ao n.º 1 do artigo 1.º do decreto 126/VI, da Assembleia da República, sobre «Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira».
Na decisão em causa, o que veio a ser inconstitucionalizado foi a norma extraída das referidas disposições legais e que atribuía à Polícia Judiciária a competência para, por sua iniciativa própria, desencadear acções de prevenção respeitantes aos crimes especificamente referidos nas cinco alíneas do n.º 1 do artigo 1.º, acções estas destinadas à «recolha de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal».
Simultânea e consequencialmente, inconstitucionalizou-se também a norma que impunha que fosse feita a necessária comunicação ao Ministério Público para efeitos de instauração do respectivo procedimento criminal, «logo que fossem recolhidos elementos no decurso de tais acções de prevenção que confirmassem a suspeita de crime [...]».
As razões pelas quais não subscrevi a posição maioritária, e que passarei a expor sucintamente, centram-se essencialmente no tratamento dado no acórdão ao tipo de actividade que a norma se destinava a regular e na utilização do princípio da proporcionalidade como fundamento último da decisão de inconstitucionalidade.
Importa, aliás e desde já, salientar que, se se percorrer toda a Constituição da República, não se encontra nela nenhum preceito que proíba a realização da actividade de recolha de informação a que se refere a norma em causa, desde que a mesma se mantenha dentro dos limites que o próprio diploma define. Acresce ainda que só pode falar-se em violação do princípio da reserva de intimidade no caso de a recolha de informação ter em vista um ou vários destinatários concretizados e individualizados, o que pode com efeito não acontecer, uma vez que tais informações se têm de destinar à fundamentação de uma participação ao Ministério Público, parecendo-me manifesto que o limite material para tal actividade deve ser a identificação de um ou mais de um suspeito, momento em que deve funcionar a norma do artigo 3.º do decreto, que impõe a imediata participação dos factos ao Ministério Público, para efeitos de instauração do procedimento criminal.
Um último aspecto importa salientar: o recurso ao princípio da proporcionalidade para fundamentar a declaração de inconstitucionalidade da norma em causa parece-me manifestamente excessivo. Com efeito, o diploma aprovado na Assembleia da República rodeou a realização da actividade de prevenção em causa das precauções garantísticas suficientes para impedir quaisquer eventuais excessos decorrentes de práticas menos correctas da Polícia Judiciária.
Desde logo, e como já se referiu, o diploma impôs a imediata comunicação ao Ministério Público de todos os elementos recolhidos, uma vez confirmada a suspeita de crime.
Por outro lado, o diploma impõe a documentação de todos os procedimentos que a Polícia resolver adoptar no âmbito destas actividades de prevenção e, para efeitos de «análise e acompanhamento» dos procedimentos iniciados, impôs-se a obrigatoriedade de comunicação mensal do referido facto ao órgão máximo do Ministério Público - o Procurador-Geral da República -, ou seja, em princípio, a comunicação deverá ocorrer dentro do prazo de 30 dias após ser iniciado qualquer procedimento do tipo dos abrangidos dentro desta actividade de prevenção. Não serão tais mecanismos de controlo suficientes para afastar qualquer juízo de desproporcionalidade na actuação da norma questionada?
A resposta em meu entender não pode deixar de ser afirmativa.
2 - Vejamos, porém, mais detidamente o acórdão e as razões do meu afastamento quanto à respectiva fundamentação e decisão final.
Numa apreciação geral, não pode deixar de impressionar negativamente que, relativamente a uma Constituição como a nossa, certamente aquela que, de entre as dos países que culturalmente nos são mais próximos, mais desenvolvidamente trata os direitos e garantias do arguido em processo penal, aliás por razões históricas bem conhecidas, se tivesse ido lançar mão do princípio ou critério da proporcionalidade, frágil por si próprio, por se ancorar em padrões não fixos de apreciação, sempre permeáveis a uma dose não despicienda de subjectivismo do intérprete.
Não pode, com efeito, deixar de se notar a fragilidade da argumentação desenvolvida para se atingir a pronúncia pela inconstitucionalidade das normas sub judicio, na medida em que não me parecem poder as normas em causa ser acusadas de «desadequadas» para a realização dos fins visados pelo diploma, nem que elas não sejam «desnecessárias», uma vez que não devem ser feitas participações criminais sem um mínimo de uma base factual e, por último, nada na norma questionada, tal como consta do diploma em apreço, permite concluir por um «excesso» relativamente às finalidades visadas, considerações estas que me levaram a não acompanhar a maioria na posição que fez vencimento.
3 - Entendeu-se no acórdão que «as acções de prevenção previstas no artigo 1.º do decreto, tal como articuladas estão com a exemplificação constante do seu n.º 3 e, particularmente, com a respectiva alínea a), desequilibram desrazoavelmente a ponderação meio-fim ínsita na vertente apontada do princípio da proporcionalidade e susceptibilizam, no modo como estão concebidas, desproporcionadamente, a violação do núcleo essencial do direito fundamental que é o da reserva da intimidade da vida privada, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, excessivamente exposto na sua esfera pessoal íntima (Intimsphäre), por tempo indeterminado e à revelia de qualquer controlo judiciário ou jurisdicional».
Discordo deste entendimento sobretudo porque dou às normas em causa uma diferente interpretação.
Há desde já um ponto que pretendo deixar bem claro: qualquer das acções a desenvolver pela Polícia Judiciária que interfira, no sentido de comprimir e ou devassar, com direitos liberdades e garantias dos cidadãos não pode ter lugar fora de um processo criminal devidamente formalizado. Esse é um limite cuja ultrapassagem configura uma imediata inconstitucionalidade, por violação da parte final do n.º 3 do artigo 272.º da Constituição, e que só pode ser admitido se o legislador previr que, entretanto e em consequência, se desencadeie uma actuação de «polícia judiciária» no sentido rigoroso do conceito, quer dizer, conduzida e tutelada jurisdicional ou, pelo menos, judicialmente, como é o caso expresso das medidas cautelares a que se referem os artigos 248.º a 253.º do Código de Proceso Penal.
A concordância entre os valores constitucionais da perseguição e punição dos crimes e os direitos fundamentais, a que se alude várias vezes no acórdão, é feita precisamente nesta sede. Ao legislador não é permitido ir além.
Só que este, no presente caso, não o fez, nem nada consente, a partir do conteúdo das normas que consagrou, pensar ou presumir que o terá pretendido fazer.
4 - É bom termos presente que a alínea a) do n.º 3 do artigo em análise nada mais diz que as acções de prevenção a desencadear nestes domínios compreendem, nomeadamente, «a recolha de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal».
Esta norma deve ser lida mais no seu conteúdo declarativo, propriamente proclamatório e com intuitos intimidatórios e preventivos, do que num contexto inovador, que tenha em vista o alargamento dos poderes da Polícia Judiciária. Designadamente, não pode, a não ser com algum grau de arbitrariedade, ser lida desligadamente do que se dispõe no Código de Processo Penal, designadamente nos seus artigos 55.º, n.º 2, e 248.º, impondo este último preceito a comunicação ao Ministério Público da notícia do crime «no mais curto prazo», o qual não é certamente de 30 dias.
A afirmação de que a informação policial deve conter factos e não depender de juízos valorativos da conduta dos cidadãos é certamente louvável no plano dos princípios, mas, perdoe-se-nos a expressão, não passa de wishfull thinking desmentido pela prática a todo o momento e desprovido de fundamento teórico-científico. Não há factos juridicamente neutros: a qualificação de um facto como juridicamente irrelevante pressupõe um prévio juízo valorativo de natureza jurídica. Toda e qualquer denúncia ou conhecimento de um crime não se baseia em dados exclusivamente empíricos.
5 - Assim sendo, vem ao caso referir dois pontos importantes do meu ponto de vista.
Em primeiro lugar, não há que partir de um juízo de suspeição em face do legislador. Este conhece o sistema jurídico em que vive. Pode, é certo, legislar melhor ou pior, conforme parece ter sido o caso. Mas não cabe à jurisdição constitucional expurgar o ordenamento do mau direito. Cabe-lhe, tão-só, expurgá-lo do direito contrário à Constituição. A severidade do juízo contido na posição maioritária, analisada em termos materiais, que são aqueles que vão à essência das coisas, levaria a condenar qualquer investigação de tipo jornalístico, a condenar a colheita de informações para esse efeito, na maior parte dos casos dispersas e desarticuladas, mas já do conhecimento público, necessariamente prévia à publicação de uma qualquer notícia. Também aí procede previamente o jornalista, em defesa ou salvaguarda da sua própria responsabilidade, «à recolha de informação relativamente a notícias de factos» que lhe vão permitir a exposição na praça pública de determinados eventos. E é sabido como a respectiva publicitação, sobretudo nesta área da corrupção, produz efeitos por vezes bem mais pesados e danosos, alguns mesmo irreparáveis quando infundados, do que a própria instauração de um procedimento criminal.
6 - Vem então a propósito perguntar pelo sentido das normas questionadas. O tema leva-nos a uma brevíssima incursão pela averiguação da razão de ser da constitucionalização de normas sobre o processo criminal que procuraremos reduzir ao mínimo necessário para tornar mais claro o nosso entendimento.
É sabido que os direitos, liberdades e garantias se caracterizam estruturalmente por exigirem do Estado uma atitude de abstenção que exprime o respeito, por parte do poder público, pela autonomia da pessoa. Daqui decorre, porém e necessariamente, uma pretensão do cidadão a uma prestação positiva do Estado que tem por objecto a fruição pelo próprio, de forma imperturbada, dos seus direitos e garantias. Radica aqui a fundamentação da actividade de polícia, modernamente entendida, bem como a fundamentação das acções que os serviços do Estado também levam a cabo com vista à punição daqueles que lesem bens criminalmente protegidos. A razão de ser de todas as cautelas constitucionais a respeito do processo criminal visa a disciplina deste dever estadual de prestação positiva, na medida precisamente em que este, por força da desproporção dos meios que tem ao seu dispor, ameaça de violação a esfera pessoal daquele sobre o qual for desencadeada a actividade de investigação, podendo não o respeitar como pessoa e reduzi-lo a mero instrumento para a consecução de um fim que se pretende atingir.
É por essa razão que não pode ser gratuita a decisão de desencadear um processo criminal, entendido como abertura de uma fase de investigação em que os meios ao dispor do poder repressivo do Estado passam a estar legitimados para agir direccionadamente sobre um concreto e preciso facto e sobre as pessoas que meramente se supõe terem praticado determinados actos. Em sede de investigação, o apuramento dos actos praticados dirigido à formação de juízos de maior ou menor culpabilidade, envolve necessariamente preterição de direitos, liberdades e garantias, ainda que sem a ablação do respectivo conteúdo essencial. A ameaça que impende sobre os destinatários da actividade de investigação, o perigo real de vir a ser responsabilizado o inocente, exigem a estrutura acusatória e a natureza contraditória do processo, com o reconhecimento ao arguido de adequados meios de defesa.
7 - Ora, os valores que acabam de ser referidos não são postos em causa pela alínea a) da norma que foi considerada inconstitucional.
Com a ressalva, que é também afirmação de princípio, que nos parece não ser legítimo presumir ou sequer admitir ter sido ignorada pelo legislador, de que a violação de direitos, liberdades ou garantias impõe, para ser consentida, a abertura de um processo formal, é então de perguntar a que vem a norma desta alínea a) do n.º 3 do artigo 1.º
Na minha perspectiva, a resposta é simples.
Desde logo, e em primeiro lugar, não nos é lícito ignorar que o artigo 3.º do decreto aprovado pela Assembleia da República impõe no seu n.º 2 que será feita a comunicação e a denúncia ao Ministério Público dos elementos recolhidos pela Polícia Judiciária logo que confirmem a «suspeita» de crime, isto pressupondo que, entretanto, a mesma Polícia tomou determinadas medidas por iniciativa própria (dentro dos limites que deixámos assinalados.)
Assim, não estando em causa no presente processo as acções da Polícia Judiciária realizadas por iniciativa do Ministério Público (as quais, todavia - importa salientar -, se se mantiverem no diploma tal como previstas na versão em apreço, não podem deixar de estar afectadas de idêntico vício de inconstitucionalidade, porquanto elas valem as mesmas razões que são apontadas no acórdão para fundamentar a presente declaração de inconstitucionalidade), a informação mensal prestada ao Procurador-Geral da República dirige-se apenas àquelas iniciativas que não lograram converter-se em comunicação da notícia do crime, com vista a controlar e apurar da justeza dos juízos feitos pela Polícia sobre os elementos recolhidos, e sem prejudicar que, em resultado dessa comunicação, se o entender necessário, o próprio Procurador-Geral determine a realização de diligências complementares.
Não está em causa, de forma nenhuma, uma diminuição das garantias dos particulares. Apenas de alguma forma se pretende submeter a um controlo mais apertado a actividade da Polícia no sentido de prevenir omissões ou desatenções quanto a factos merecedores de maior ponderação e em que podem estar envolvidos dados indicadores de práticas criminalmente censuráveis.
8 - A censura decorrente do juízo de inconstitucionalidade proferido no acórdão é tanto mais estranha quanto é certo que não se faz no acórdão uma clara separação de tratamento entre o que seja a instrução criminal e o que seja a prevenção, uma vez que esta actividade foi apenas delimitada através da exclusiva consideração das acções que já hoje a Polícia Judiciária pode desenvolver, como se não fosse legítimo ao legislador alargar tais actividades, desde que no respectivo desenvolvimento se respeitassem os parâmetros constitucionais previstos no artigo 272.º da Constituição.
Acresce que, em meu entender, a partir de certo momento o acórdão passa a tratar a actividade prevista na alínea a) da norma em causa, de recolha de informação para fundamentar uma participação, como se de verdadeira e própria actividade investigatória se tratasse, o que haverá de levar à sua inconstitucionalização por não decorrer dentro do âmbito de um processo formal criminal.
Com efeito, o conteúdo essencial da instrução (entendido o termo no seu significado amplo) consiste na actividade de investigação dos indícios dos factos infraccionais (crimes) e, bem assim, na recolha das respectivas provas, na sua análise e utilização com vista a fundamentar a acusação, numa primeira fase, e, depois, na demonstração dos factos acusados, por forma a possibilitar levar a causa a julgamento.
Destina-se, por isso, a instrução à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, por forma a permitir uma decisão de submissão do conflito ao julgamento. A lei processual penal consagra ainda a figura do «inquérito», que engloba um conjunto de diligências destinadas a investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a respectiva responsabilidade, descobrir e recolher as provas que sirvam para fundamentar a acusação.
Constitucionalmente, a polícia tem por função defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos. Estas funções serão cumpridas através das medidas e de actos de polícia, não permitindo a lei fundamental que a respectiva utilização exceda o estritamente necessário para a cabal realização de tais funções.
A prevenção dos crimes através da vigilância policial é realizada recolhendo informações destinadas a habilitar a polícia a prevenir infracções e a adoptar as necessárias providências para evitar que se produzam aquelas infracções ou crimes e para identificar os responsáveis pela sua prática. A função de prevenção criminal, em sentido estrito, traduz-se na adopção de medidas adequadas para certas infracções de natureza criminal e, em ambas as hipóteses, a actividade de polícia não pode deixar de respeitar os princípios da legalidade e da tipicidade das medidas e da proibição do excesso, não podendo recorrer a procedimentos limitativos da liberdade e da segurança dos cidadãos.
Também esta actividade de prevenção de crimes deve desenvolver-se - como se referiu já - com observância das regras gerais sobre a polícia, designadamente dos princípios constitucionais atrás referidos, sendo actuada apenas quando for necessário defender a legalidade democrática, a segurança interna e os direitos fundamentais dos cidadãos, pelo que o uso de armas deve ser regulado em termos muito apertados, sujeitando-se a actividade policial ao princípio da responsabilidade do Estado.
A norma questionada atribuiu à Polícia Judiciária, no âmbito da sua actividade de prevenção criminal, a possibilidade de, por iniciativa própria, proceder à recolha de informação relativamente a notícias de factos que permitam fundamentar suspeitas susceptíveis de legitimarem a instauração de procedimento criminal.
Ora, esta recolha de informação é uma típica actividade de prevenção policial e que, relativamente aos crimes a que o diploma em apreço respeita, se torna absolutamente indispensável para permitir criar as bases, minimamente seguras, de uma notitia criminis, conhecidos como são ténues os primeiros indícios de uma actividade criminosa como a que usualmente integra os crimes em questão.
Isto é, a actividade que vem questionada como podendo afectar os princípios constitucionais inicialmente referidos não parece poder integrar-se no âmbito da actividade instrutória/investigatória da Polícia Judiciária, uma vez que é anterior à própria notitia criminis e destina-se a recolher toda a informação possível à elaboração de tal notícia, nada tendo a ver sequer com a eventual identificação de possíveis suspeitos ou com a sua eventual responsabilidade ou mesmo com a recolha de elementos probatórios.
Entendo, aliás, que, uma vez identificado um ou vários dos eventuais suspeitos ou mesmo que, não se tendo chegado a qualquer identificação ou concretização pessoal, se alcance uma segurança bastante quanto à realização de uma actividade que possa ter-se como a prática de um crime, deve, de imediato, funcionar a norma que impõe a comunicação e denúncia ao Ministério Público.
9 - Sintetizando, sublinhamos ser nossa convicção que o legislador não mais pretendeu do que submeter as acções desenvolvidas pela Polícia Judiciária no âmbito discricionário e mais aberto da prevenção geral, acções essas cuja legitimidade ninguém porá em dúvida porque, por natureza e definição, não põem em causa direitos, liberdades e garantias, a um controlo e acompanhamento mais próximos, com vista ao reforço da repressão dos crimes de corrupção. É uma opção de política legislativa da qual não vemos que venha algum mal ao mundo e que não justifica a censura de inconstitucionalidade em que incorreu.
Por todas estas razões, não acompanho a posição maioritária do Tribunal e concluiria pela não inconstitucionalidade da norma em causa.
Lisboa, 12 de Agosto de 1993. - Vítor Nunes de Almeida.