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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1/2023, de 1 de Fevereiro

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Sumário

«O prazo de interposição dos recursos de decisões proferidas no procedimento previsto no art. 3.º da Lei n.º 75/98 de 19-11, é de 15 dias, nos termos do art. 32.º/3 do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8-9»

Texto do documento

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2023

Sumário: «O prazo de interposição dos recursos de decisões proferidas no procedimento previsto no art. 3.º da Lei 75/98 de 19-11, é de 15 dias, nos termos do art. 32.º/3 do RGPTC, aprovado pela Lei 141/2015, de 8-9».

Processo 758/12.4TMPRT.1.P2-A.S1-A

RUJ

ACORDAM, EM PLENO DAS SEÇÕES CÍVEIS, NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

Por sentença de 09 de Maio 2012 foi homologado o acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais relativamente aos menores AA (n... de... 2006) e BB (n... de... 2010), celebrado entre os respetivos progenitores - a ora Recorrida, CC, e DD - no qual se fixou em 50 (euro) por cada menor a prestação mensal a pagar pelo progenitor a título de alimentos.

Face ao não pagamento pelo progenitor da pensão de alimentos fixada, a ora Recorrida instaurou incidente de incumprimento.

Nesse incidente veio a ser proferida decisão, em 26 de Junho 2014, que fixou em 100 (euro) por cada menor o valor da prestação mensal a pagar pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (doravante FGADM) a partir do mês subsequente ao da respetiva notificação.

O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP (doravante IGFSS) apelou dessa decisão tendo a Relação, por acórdão de 10 de Nov. 2015, resposto o montante da prestação devida pelo FGADM em 50 (euro) por cada menor.

Por despacho de 19 de Maio 2016, na sequência de alteração do montante da prestação alimentícia entretanto fixada pelo tribunal, foi determinado que o valor da prestação mensal a pagar pelo FGADM passava a ser de 100 (euro) por cada menor.

Tal decisão foi notificada ao IGFSS por ofício elaborado em 20 de Maio 2019 no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (CITIUS), vindo o IGFSS interpor, em 06 de Junho de 2019, recurso de apelação, tendo a Relação do Porto, por acórdão de 26 de Novembro de 2019, julgado, unanimemente e sem fundamentação diversa, a apelação improcedente.

Tal acórdão foi notificado ao IGFSS por ofício elaborado em 27 de Novembro 2019 no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais (CITIUS), tendo o IGFSS, em 27 de Dezembro 2019, interposto recurso de revista, nos termos dos artigos 629.º, n.º 2, alínea d) e 672.º, n.º 1, al. c), ambos do CPC.

Por despacho do Desembargador Relator de 24 de Janeiro 2020 tal recurso não foi admitido, por se entender excedido o prazo de 15 dias decorrente da aplicação ao caso das disposições do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (doravante RGPTC) e, consequentemente, ser o recurso extemporâneo.

Dessa decisão reclamou o IGFSS, nos termos do artigo 643.º do CPC, tendo essa reclamação sido desatendida por decisão singular de 27 de Junho de 2020; decisão essa que, na sequência de reclamação para a conferência, veio a ser confirmada por acórdão de 13 de Outubro de 2020 deste Supremo Tribunal de Justiça.

Tal acórdão transitou em julgado em 29 de Outubro de 2020.

Em 26 de Novembro 2020, o IGFSS interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, invocando estar tal acórdão de 13 de Outubro de 2020 em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016, proferido no processo 232/15.7T8GDM-B.P1.S1 e transitado em 11 de Jan. de 2017, concluindo, em síntese, que o prazo para a interposição de recurso das decisões relativas ao FGADM é o prazo geral de 30 dias constante do artigo 638.º do CPC e propondo o seguinte segmento uniformizador: «O prazo de interposição do recurso previsto no n.º 5 do artigo 3.º da Lei 75/98 é de 30 dias nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 638.º do CPC».

Houve contra-alegação na qual se pugnou pela improcedência do recurso.

O recurso foi liminarmente admitido, identificando-se a questão fundamental de direito objeto de contradição como «se o prazo para a interposição de recurso respeitante a decisão proferida no âmbito dos incidentes de atribuição de prestações substitutivas de alimentos a pagar pelo FGADM previstos no artigo 3.º, n.º 5, da Lei 75/98, é de 15 dias, conforme o artigo 32.º, n.º 3, RGPTC, ou de 30 dias, nos termos do artigo 638.º, n.º 1, do CPC».

O Ministério Público emitiu o seu parecer no sentido de que «o prazo de 15 dias referido no artigo 32.º, n.º 3, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei 141/2015, de 8/9, é o aplicável ao recurso interposto da decisão final proferida no procedimento de intervenção do FGADM, previsto e regulado no artigo 3,º da Lei 75/98, de 19 de novembro».

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

*

II. Fundamentação

1 - O acórdão recorrido

Estava em causa estabelecer qual o prazo para interposição de recurso de acórdão da Relação que confirmou a decisão de 1.ª instância que manteve a obrigação do pagamento pelo FGADM da prestação substitutiva dos alimentos, agora em montante mais elevado.

Analisando a natureza da prestação a cargo do FGADM, considerou-se que a mesma, não obstante ter pressupostos próprios (e diferentes) da obrigação de alimentos, se encontra umbilicalmente ligada a esta, quer por terem uma finalidade comum, quer por se encontrar numa relação de dependência quanto a ela; sendo o respetivo procedimento incidental deduzido e desenrolado no incidente de incumprimento.

Dada tal ligação, considerou-se ter-se como destituído de razoabilidade e atentatório da coerência do sistema a existência de prazos de interposição de recurso distintos: com efeito, entre a presunção de que o legislador exprimiu o seu pensamento em termos adequados e a presunção de que consagrou a solução mais acertada, haverá de dar maior ênfase à segunda, considerando o elemento teleológico (finalidade comum e a urgência que lhe está ínsita), sistemático (coerência do sistema) e histórico (inicialmente o prazo era comum, só com a reforma do regime dos recursos se tendo vindo a colocar a questão em análise) e, ainda, que a remissão resultante do artigo 3.º/5 da Lei 75/98 não é tanto para o regime geral do agravo mas antes para o regime do agravo da OTM.

E sendo possível vislumbrar uma lacuna superveniente, deve a mesma ser colmatada pelo recurso ao lugar paralelo regulado no artigo 32.º/5 do Regime Jurídico do Processo Tutelar Cível (doravante RGPTC)

Dessa forma se concluindo (por maioria), no acórdão recorrido, que o prazo para interposição do recurso de revista é de 15 dias e, consequentemente, considerando-se a interposição do recurso extemporânea.

*

2 - O acórdão fundamento

Tendo sido proferida, em autos de incumprimento das responsabilidades parentais, decisão a determinar o pagamento de prestação substitutiva dos alimentos pelo FGADM, veio o IGFSS interpor recurso de apelação dessa decisão, o qual foi liminarmente rejeitado por extemporâneo (entendendo-se ser o prazo para recorrer de 15 dias). Dessa rejeição reclamou o IGFSS nos termos do artigo 643.º do CPC, tendo essa reclamação sido indeferida quer pelo Desembargador Relator quer, na sequência da reclamação da decisão deste, pelo acórdão da Conferência (invocando para o efeito não o artigo 32.º, n.º 3, do RGPTC, mais a alínea i) do n.º 2, do artigo 644.º do CPC). Sendo deste acórdão da Conferência que foi interposto recurso de revista.

Estava em causa, nessa revista, estabelecer qual o prazo para interposição de recurso de apelação da decisão da 1.ª instância que determinava a obrigação do FGADM de proceder ao pagamento da prestação substitutiva dos alimentos.

O acórdão começa por considerar que a obrigação do FGADM, embora subsidiária, é independente e autónoma da obrigação do devedor originário, sendo estabelecida através de um procedimento próprio, embora processado nos autos do incidente de incumprimento.

Considera, depois, que está fora do âmbito do RGPTC, em particular o seu artigo 32.º, n.º 3, a regulação do procedimento especial previsto e regulado no artigo 3.º da Lei 75/98, pelo que, ainda que se considere como mais adequada a unificação dos prazos de interposição dos recursos nos dois incidentes, o certo é que o legislador não o fez (e não foi por falta de oportunidade, dadas as sucessivas alterações da referida Lei), o que afasta a possibilidade de uma aplicação extensiva ou analógica do n.º 3 do artigo 32.º do RGPTC, sob pena de invasão dos limites do legislativo.

Considera, ainda, ser de excluir a subsunção da situação na previsão da alínea i) do n.º 2 do artigo 644.º, n.º 2, do CPC, porquanto este apenas visa abranger particulares decisões interlocutórias, excecionando-as do regime do n.º 3 do mesmo artigo, restringindo-se a previsão da referida alínea i) a decisões interlocutórias que sejam excecionadas do regime daquele n.º 3 por disposição especial, pelo que, não sendo a decisão do procedimento a que se reporta o artigo 3.º da Lei 75/98 uma decisão interlocutória, mas antes uma decisão final, não se enquadra a mesma no âmbito do n.º 2 do artigo 644.º do CPC.

Dessa forma se concluindo, no acórdão fundamento recorrido, que o prazo para interposição do recurso de apelação é de 30 dias,, nos termos da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 638.º do CPC, e, consequentemente, considerando-se o recurso interposto em prazo.

*

3 - Da confirmação da contradição jurisprudencial

Atento o seu objeto e o disposto no art. 692.º/4 do CPC, donde se extrai que a decisão liminar de trazer o processo a julgamento para uniformização de jurisprudência não é vinculativa, importa analisar/confirmar a existência de contradição jurisprudencial.

Estabelece-se no artigo 688.º/1 do CPC, como fundamento do Recurso para Uniformização de Jurisprudência, que "as partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito".

Exige-se, assim, como pressuposto substancial de admissibilidade deste recurso, a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, sendo que a enunciada contradição dos julgados não implica que os mesmos se revelem frontalmente opostos, mas antes que as soluções aí adotadas sejam diferentes entre si, ou seja, que não sejam as mesmas, importando que as decisões, e não os respetivos fundamentos, sejam atinentes à mesma questão de direito, que haja sido objeto de tratamento e decisão, quer no Acórdão recorrido, quer no Acórdão fundamento, e que essa oposição seja afirmada e não subentendida ou puramente implícita; sendo ainda necessário que a questão de direito apreciada se revele decisiva para as soluções perfilhadas num e noutro acórdão.

É justamente o caso.

Nos dois acórdãos em confronto está em causa a mesma questão fundamental: o prazo para interposição de recurso no procedimento previsto no artigo 3.º da Lei 75/98, de 19-11.

E ocorre uma oposição direta e frontal entre os acórdãos em confronto pois que o acórdão recorrido concluiu ser de 15 dias o prazo para interposição do recurso enquanto o acórdão fundamento estabeleceu tal prazo em 30 dias.

A circunstância de o acórdão recorrido se reportar ao prazo do recurso de revista e o acórdão fundamento se reportar ao prazo do recurso de apelação não tem a virtualidade de descaracterizar a similitude factual dos casos, pois que sempre nos encontramos no âmbito da mesma questão fundamental: saber qual é o prazo para interposição de recurso no procedimento previsto no artigo 3.º da Lei 75/98, de 19-11.

E a mesma foi a base normativa em que se basearam os dois acórdãos em confronto, pois que as posições por eles adotadas resultam da interpretação que fizeram dos artigos 32.º do RGPTC e 638.º do CPC, tendo cada um deles dado prevalência a um desses normativos.

Por último, não existe jurisprudência uniformizada sobre a matéria.

Termos em que se pode concluir estarem preenchidos os requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, nada obstando ao seu conhecimento.

*

4 - Quanto à uniformização jurisprudencial, isto é, em que sentido deve ser fixada a uniformização de jurisprudência.

Como se acaba de referir, está em causa - é a questão que suscita e justifica a presente uniformização jurisprudencial - estabelecer qual é o prazo para a interposição de recursos no procedimento previsto no artigo 3.º da Lei 75/98, de 19-11, procedimento que se dirige à fixação da prestação substitutiva de alimentos (devidos a menores) a cargo do Estado e cuja inserção substantiva e processual, em traços breves, é a seguinte.

A obrigação de alimentos continua a onerar, em primeira linha, todo um conjunto de pessoas ligadas por vínculos de parentesco (cf. arts. 1879.º e 2009.º do C. Civil) - obrigações individuais/familiares a que correspondem direitos subjetivos dirigidos contra pessoas - mas concomitantemente o Estado - o moderno Estado de Direito Económico e Social, que vem progressivamente assumindo um acervo de tarefas e prestações de natureza assistencial e garantístico - passou a propiciar aos cidadãos um conjunto de direitos subjetivos públicos, na forma e segundo pressupostos previstos nas leis.

Ao lado da solidariedade familiar - baseada na afetividade e na voluntariedade e que, em caso de necessidade, se assume como obrigação jurídica, na veste de obrigação de alimentos - temos hoje o atual Estado-Providência, que procura prover ao bem-estar dos cidadãos e que o faz no exercício de uma autêntica obrigação jurídica no âmbito dos direitos sociais

Assim - afirmando a CRP, no seu art. 69.º/1, o direito subjetivo público das crianças à "proteção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral" - a Lei 75/98, de 19 de Novembro, face ao elevado número de situações de incumprimento de pensões de alimentos devidas a menores, judicialmente decretadas, veio instituir um mecanismo de garantia de alimentos, a suportar pelo Estado, sendo os seus pagamentos efetivamente assegurados pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (doravante FGADM).

Passando a coexistir a solidariedade familiar e a solidariedade estadual, pode ocorrer um problema de articulação e concatenação entre as obrigações de natureza privada e pública (para fazer face às necessidades das crianças e demais cidadãos em situação de extrema carência de recursos económicos), sendo que num caso como o dos autos - em que as prestações sociais dirigidas aos menores não decorrem dum direito subjetivo público constituído ao longo duma carreira contributiva - a solidariedade estadual tenderá a funcionar a título subsidiário, ou seja, apenas quando a solidariedade familiar não conseguir satisfazer as necessidades dos menores.

E foi exatamente isto que ficou consagrado no mecanismo de garantia de alimentos instituído pela Lei 75/98, mecanismo em que o FGADM não substitui definitivamente a obrigação legal de alimentos devida a menor, nem, embora acessória e subsidiariamente, garante um crédito emergente de uma relação familiar, antes propiciando uma prestação autónoma da segurança social, fazendo a Lei 75/98 depender este dever de prestar do Estado da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

- da existência duma sentença que fixe os alimentos devidos ao menor;

- da residência do devedor em território nacional;

- da inexistência de rendimentos líquidos do alimentado superiores ao salário mínimo nacional;

- do alimentado não beneficiar, na mesma quantidade, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre; e

- da falta de pagamento, total ou parcial, por parte do devedor, das quantias em dívida através de uma das formas previstas no art. 189.º da OTM (hoje, art. 48.º do RGPTC). (1)

Está pois bem patente, na circunstância da obrigação/prestação autónoma da segurança social ter como pressuposto a não realização coativa da prestação alimentícia (antes fixada) através das formas previstas no art. 189.º da OTM (hoje, 48.º do RGPTC), a natureza subsidiária da intervenção do FGADM (e da solidariedade estadual); assim como está bem patente ser a obrigação/prestação do FGADM uma obrigação nova relativamente à obrigação familiar de alimentos devidos ao menor, obrigação nova (prestação autónoma da segurança social), fundada na solidariedade estadual, que serve uma função de garantia daquela outra obrigação familiar de alimentos, sendo nesta função de garantia que se funda o direito de sub-rogação legal (consagrado nos art 6.º/3 do DL 75/98 e 5.º do DL 164/99), relativamente às prestações em que o FGADM for condenado a pagar ao menor.

Significando o direito de "reembolso" conferido ao FGADM que o mesmo não satisfaz uma obrigação sua, mas uma obrigação de outrem (do devedor de alimentos a menor) que ele substitui: se o FGADM fosse responsável pelas quantias devidas e não pagas pelo progenitor/familiar inadimplente, pouco sentido faria obrigar a realização de inquérito social e de outras diligências de prova respeitantes à situação de necessidade do menor (proceder a uma avaliação dos recursos económicos do requerente, do seu agregado familiar, bem com dos seus ascendentes e descendentes), devendo antes o tribunal limitar-se a constatar o incumprimento da pessoa judicialmente obrigada e o montante das quantias em dívida, não tendo de renovar a prova respeitante à situação de necessidade do menor.

Em síntese, a obrigação jurídica do Estado (assegurada pelo FGADM) está dependente da falta de cumprimento da obrigação de alimentos familiares e da manutenção de uma situação de necessidade do menor comprovada por inquérito social e pelas diligências que o tribunal entender conveniente e oportuno realizar.

Sendo a propósito desta obrigação/prestação de segurança social a cargo do FGDAM - nova e autónoma em relação à anterior obrigação/prestação do progenitor/familiar inadimplente, subsidiária desta e fundada na solidariedade estadual e não, como a anterior, na solidariedade familiar - que se coloca a divergência, de natureza processual, que suscita a presente uniformização jurisprudencial.

Efetivamente, o legislador, em vez de atribuir à Segurança Social - estando em causa uma obrigação decorrente dum direito subjetivo público - a fixação (e o seu montante) de tal obrigação/prestação social, veio, na Lei 75/78, nos seu arts. 2.º e 3.º, estabelecer que tal obrigação/prestação social é fixada (e no seu montante) pelo tribunal, devendo ser requerida "nos respetivos autos de incumprimento", querendo referir-se com tal expressão, fora de qualquer dúvida, aos autos em que, nos termos do então art. 189.º da OTM (preceito aliás referido no art 1.º da Lei 75/98), era tornada efetiva a prestação de alimentos a cargo do progenitor/familiar (da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos ao menor) e constatado o seu incumprimento.

Face à finalidade comum - assegurar a satisfação das necessidades básicas de existência do menor - da prestação de alimentos fixada ao progenitor/familiar e da prestação social a fixar ao Estado, compreende-se que, por razões de simplificação, a atribuição da fixação (e respetivo montante) de tal prestação haja sido cometido pelo legislador ao tribunal dos "autos de incumprimento": sendo um dos requisitos da prestação do Estado a falta de pagamento (por parte da pessoa judicialmente obrigada) "das quantias em dívida pelas formas previstas no art. 189.º do DL 314/79" (antiga OTM), a prova de tal requisito/incumprimento já resultaria dos próprios autos, sendo justamente no seguimento da constatação de tal incumprimento que será requerido "que o tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar"; mais, tendo que ser renovada a prova respeitante à situação de necessidade do menor, os autos a correr termos no tribunal já terão elementos de prova respeitantes aos recursos económicos do requerente, do seu agregado familiar, bem com dos seus ascendentes e descendentes (não tendo assim tais elementos que ser de novo produzidos junto do organismo da Segurança Social a que, por natureza, caberia a atribuição de tal prestação social).

Simplificação/facilitação da prova instrumentais das exigências de celeridade que a situação de incumprimento e de insatisfação das necessidades básicas do menor impõe.

Foi pois seguramente por tudo isto - por se exigir uma fixação rápida do montante que o Estado deve prestar, em substituição do devedor - que o legislador, constatado o "incumprimento" do devedor, estabeleceu que os autos prosseguiriam com a intervenção do terceiro garante (o IGFSSIP, na qualidade de gestor do FGDAM), para, logo ali, naqueles "autos de incumprimento" (da antiga OTM), o Estado ser chamado a cumprir a solidariedade estadual e a assumir a prestação correspondente à carência de alimentos do menor.

Foi pois criada - é onde se pretende chegar - uma situação processual muito específica e singular, em que o legislador da Lei 75/98, além de atribuir aos tribunais comuns competência material para atribuir/fixar uma prestação social, estabeleceu, dentro dos tribunais comuns, ser competente (para atribuir/fixar tal prestação social) o tribunal que era competente para os autos em que estava a ser efetivada/executada a prestação de alimentos, sendo que tal atribuição/fixação, segundo o legislador, deverá ser feita, após ser constatado o "incumprimento" do devedor judicialmente obrigado, em tais autos, ou seja, o legislador previu, em termos processuais, a atribuição/fixação de tal prestação social, como uma questão incidental subsequente ao "incumprimento" da pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos ao menor e, por conseguinte, previu que a atribuição/fixação de tal prestação social correria os seus termos - seria tramitada, decidida e fixada - num processo tutelar cível da antiga OTM (DL 314/78, de 27 de Outubro).

Assim, em face de tal previsão muito específica e singular por parte do legislador, quer-nos parecer, com todo o respeito por opinião diversa, que não é útil ou faz sentido refletir sobre a conceitualização, em termos processuais, da pretensão deduzida (nos termos do art. 3.º/1 da Lei 75/98) contra o Estado e, concluindo-se que se está perante uma pretensão com autonomia material (na medida em que consubstancia uma solução final e definitiva duma questão), estabelecer, a seguir, que então se estará, no referido art. 3.º/1, perante uma ação (causa/lide) e não perante um "mero" incidente processual e, a partir daí e no seguimento de tal raciocínio, dizer que o procedimento previsto no art. 3.º/1 da Lei 75/98 configura e constitui uma ação especial, regulando-se, de acordo com o art. 549.º do CPC, pelas disposições que lhes são próprias, na falta delas pelas disposições gerais e comuns (art. 1.º a 545.º do CPC) e em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras pelo que se achar estabelecido para o processo comum (art. 552.º a 702.º), pelo que, no que diz respeito à questão que constitui o objeto do presente recurso - o prazo de interposição do recurso - nada se encontrando estipulado quer nas disposições próprias do artigo 3.º da Lei 75/98 quer nas disposições gerais e comuns, haveria de recorrer-se ao estabelecido para o processo comum, ou seja, ao disposto no artigo 638.º do CPC que fixa em 30 dias o prazo de interposição do recurso.

O que manifestamente o legislador da Lei 75/98 previu, em vários aspetos, foi um procedimento "especialíssimo" - sendo ele ou não classificável, conceitualmente, como uma ação - cujos termos correm, endogenamente "enxertados", nos autos em que se procurou efetivar, sem sucesso, a prestação de alimentos (art. 189.º da OTM) e que, por isso, naquilo que não estiver previsto na regulamentação que lhe é dada pelo art. 3.º, ficará sujeito às regras processuais aplicáveis aos autos onde tal procedimento "especialíssimo" passa a correr.

Ademais, preocupado com a celeridade que a situação de incumprimento e de insatisfação das necessidades básicas do menor impõe e exige, veio o legislador estabelecer, no art. 3.º/5 da Lei 75/98, que da decisão que fixa a prestação e o seu montante "cabe recurso de agravo", no que procurou, claramente, dissipar quaisquer dúvidas que pudessem suscitar-se em relação à espécie de recurso que resultaria da aplicação das regras dos processos tutelares cíveis da antiga OTM: efetivamente, à data da entrada em vigor da Lei 75/98, não havia qualquer regra da OTM (nos artigos 146.º e ss.) aplicável ao recurso interposto da decisão que fixasse a prestação a cargo do Estado, pelo que, atento o que se dispunha no art. 161.º da OTM, eram aplicáveis as regras do CPC, o que significava que, face ao que então se dispunha nos arts. 691.º e 733.º do CPC, se poderiam suscitar dúvidas sobre a espécie de recurso e entender que caberia recurso de apelação.

E é por causa de tal art. 3.º/5 da Lei 75/98 - que visava deixar claro que se aplicava o prazo mais curto de 15 dias para alegar (à época, é sabido, havia um primeiro prazo do art. 685.º/1 do CPC para interpor recurso e, depois, recebido o recurso, um segundo prazo para alegar) - que se gera, em virtude das alterações legislativas entretanto ocorridas, a divergência interpretativa que está na génese da contradição jurisprudencial.

Efetivamente, na Reforma Processual de 2007 (DL n.º 303/2007, de 24/8) acabou-se, ao abolir o agravo, com o sistema dualista dos recursos, tendo-se disposto no seu art. 4.º:

"1 - Para efeitos do disposto em legislação avulsa, entende-se o seguinte:

a) As referências ao agravo interposto na 1.ª instância consideram-se feitas ao recurso de apelação;

b) As referências ao agravo interposto na 2.ª instância consideram-se feitas ao recurso de revista; [...]"

Pelo que, a partir de 01/01/2008, a referência ao recurso de agravo, constante do art. 3.º/5 da Lei 75/98, passou a considerar-se feita ao recurso de apelação, o mesmo sucedendo em relação a todos os recursos nos processos tutelares cíveis da antiga OTM, nada havendo então que pudesse indiciar a divergência interpretativa e a contradição jurisprudencial entretanto surgidas.

E que só surgiu quando, em 2015, pela Lei 141/2015, de 8/9, foi aprovado o Regime Geral do Processo Tutelar Cível (art. 1.º) e revogada a antiga OTM (art.6.º/a)), RGPTC que estabelece o processo tutelar cível especial de "regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas" (art.34 e segs.) e, dentro deste, o incidente de incumprimento (art.41.º), que abrange todo o tipo de incumprimento relacionado com a criança e ainda o procedimento de efetivação previsto no art.48.º , no âmbito do processo especial de alimentos devidos a menores (art. 45.º e 47.º).

Artigo 48.º do RGPTC que contém um mecanismo célere de efetivação da prestação de alimentos - ou seja, um mecanismo inteiramente idêntico ao do anterior art. 189.º OTM - sendo por isso nele (nos autos respeitantes ao art. 48.º do RGPCT) que hoje será requerida a prestação a cargo do FGADM, o mesmo é dizer, devendo a referência, que no art. 1.º da Lei 75/98 é feita ao art. 189.º da OTM, valer e ser entendida, hoje, como respeitando ao art. 48.º do RGPTC (assim como a referência aos "autos de incumprimento" constante do art. 3.º/1/a) da mesma Lei 75/98).

Por conseguinte, fechando o raciocínio, o procedimento "especialíssimo" previsto no art. 3.º da Lei 75/98 corre, atualmente, os seus termos nos autos respeitantes ao art. 48.º da RGPTC e, por isso, naquilo que não estiver previsto na regulamentação que lhe é dada pelo art. 3.º da Lei 75/98, fica sujeito às regras processuais aplicáveis aos autos onde tal procedimento "especialíssimo" corre.

E como nada está previsto, em tal art. 3.º, sobre o prazo de alegações (hoje, também de interposições) nos recursos, é a tal procedimento "especialíssimo" aplicável o art. 32.º/3 do RGPTC, segundo o qual os recursos interpostos em processos tutelares cíveis (como é o caso do processo em que tal procedimento "especialíssimo" corre os seus termos) "são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 15 dias".

Enfim, uma vez que o procedimento "especialíssimo" (previsto no art. 3.º da Lei 75/98) de natureza declarativa (de chamamento do Estado e de fixação da prestação que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar) é processado/enxertado no processo tutelar cível do art. 48.º do RGPTC, impõe-se aplicar-lhe o art. 32.º/3 do RGPTC, sendo assim de 15 dias o prazo de alegações e de resposta nos recursos interpostos.

Não faria sentido - e feriria a unidade, harmonia e coerência do sistema jurídico - que num mesmo processo (o processo tutelar cível do art. 48.º do RGPTC) pudesse haver, sem explícita determinação/previsão do legislador, recursos em que o prazo para alegar e responder fosse de 15 dias e recursos (os respeitantes à decisão que fixa o montante a prestar pelo Estado) em que o prazo para alegar e responder fosse de 30 dias (por lhes ser aplicável, não o art. 32.º/3 do RGPCT, mas sim o prazo geral/normal do art. 638.º/1 do CPC).

Sendo certo que a razão de ser para o encurtamento do prazo (de 30 dias para 15 dias) estabelecido no art. 32.º/3 do RGPTC vale identicamente para o procedimento "especialíssimo" previsto no art. 3.º da Lei 75/98: está identicamente em causa o interesse da criança e a urgência e celeridade na fixação da prestação que a solidariedade Estadual tem a obrigação de satisfazer; é, aliás, a mesma urgência e celeridade que levou o legislador a prever o rápido processo pré-executivo do art. 48.º do RGPCT (decalcado do art. 189.º da OTM), a atribuir ao tribunal (competente para o processo tutelar cível) competência para fixar a prestação social que o Estado, em substituição do devedor, deve cumprir e a prever explicitamente o prazo mais curto de alegações (então existente) no art. 3.º/5 da Lei 75/98.

E não sendo irrelevante que a divergência interpretativa e a contradição jurisprudencial só hajam surgido por causa de alterações legislativas - mais concretamente, a abolição do recurso de agravo - a que o RGPTC "reagiu", repondo um prazo mais curto para alegar e responder nos recursos interpostos nos processos tutelares cíveis, alterações legislativas que deram lugar a uma aparente desarticulação de prazos num sentido que nunca aconteceu até 2015 e que, acima de tudo, não se vislumbra - bem pelo contrário - no pensamento do legislador da Lei 75/98 (que estabeleceu para alegar e responder, no procedimento "especialíssimo" do art. 3.º, o prazo mais curto de 15 dias, assim dissipando dúvidas e que se pudesse vir a entender que da aplicação das regras dos processos tutelares cíveis resultavam 30 dias).

Isto é, quer o elemento sistemático, quer o elemento teleológico, quer o elemento histórico, apontam no referido sentido de aplicar ao procedimento "especialíssimo" (previsto no art. 3.º da Lei 75/98) o art. 32.º/3 do RGPTC, sendo assim de 15 dias o prazo de alegações e de resposta nos recursos interpostos em tal procedimento.

Com todo o respeito, não seria razoável - sendo atentatório da unidade, harmonia e coerência do sistema - a existência, sem uma explícita determinação/previsão do legislador, de prazos de interposição de recurso distintos num mesmo processo: impõe-se presumir que o legislador exprimiu o seu pensamento em termos adequados e que consagrou a solução mais acertada (cf. art. 9.º/3 do C. Civil), sendo que, como se acaba de referir, o elemento teleológico (finalidade comum e urgência comum), sistemático (coerência do sistema) e histórico (só com a reforma do regime dos recursos, como "efeito secundário", a questão - com o sentido do prazo do recurso em tal procedimento ser o dobro do prazo dos restante recursos interpostos no mesmo processo - se colocou) apontam para a aplicação do art. 32.º/3 do RGPTC.

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III - Decisão

Face ao exposto, acordam os Juízes que constituem o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Confirmar o Acórdão recorrido;

b) Estabelecer a seguinte uniformização:

«O prazo de interposição dos recursos de decisões proferidas no procedimento previsto no art. 3.º da Lei 75/98 de 19-11, é de 15 dias, nos termos do art. 32.º/3 do RGPTC, aprovado pela Lei 141/2015, de 8-9».

(1) E, hoje, após a 112/97, de 16 de setembro e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro e 164/99, de 13 de maio, de 9 de fevereir (...)">Lei 64/2012, da não verificação do requisito negativo introduzido no n.º 6 do art. 3.º do DL 164/99.

Sem custas (dada a isenção do recorrente - cf. da alínea v) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP), sem prejuízo do estipulado no n.º 7 do mesmo art. 4.º do RCP.

Notifique e oportunamente remeta certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República.

L., 23 de Novembro de 2022. - António Barateiro Martins (Relator) - Fernando Baptista de Oliveira - Luís Espírito Santo - Jorge Arcanjo - António Isaías Pádua - Nuno Ataíde das Neves - Ana Maria Resende - Manuel José Aguiar Pereira - Maria dos Prazeres Beleza - Ana Paula Boularot - Maria Clara Sottomayor - José Rainho - Pedro de Lima Gonçalves - Graça Amaral - Maria João Vaz Tomé - Nuno Manuel Pinto de Oliveira - Fernando Jorge Dias - António José Ferraz de Freitas Neto - Ana Paula Lobo (Vencida pelas razões que constam do voto anexo) - Maria da Graça Trigo (aderindo à, digo, vencida pelas razões da declaração de voto do Senhor Conselheiro João Cura Mariano) - Maria Olinda Garcia (Votei vencida nos termos da declaração junta) - Oliveira Abreu (Votei vencido e acompanho o voto de vencido do Conselheiro Cura Mariano) - António Magalhães (junto declaração) - Ricardo Alberto Santos Costa (Votei vencido) - José Maria Ferreira Lopes (Vencido) - João Cura Mariano (Vencido, conforme declaração que junto - Manuel Capelo (Votei vencido) - Tibério Nunes da Silva (Votei vencido, aderindo à declaração de voto do Cons. Cura Mariano) - Rijo Ferreira (Vencido conforme declaração de voto que junto).

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Declaração de voto

Não acompanho a decisão que logrou vencimento no recurso para uniformização de Jurisprudência - processo 758/12.4TMPRT.1.P2-A.S1-A - pelas razões constantes do voto de vencido apresentado pelo Sr.º Juiz Conselheiro Cura Mariano a que acrescento as seguintes considerações:

No Capítulo I - disposições gerais - do Título V - Dos recursos- do Livro III -Do Processo de declaração - do Código de Processo Civil sob a epígrafe - Prazos -estabelece o artigo 638.º que "O prazo para a interposição do recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação da decisão" estabelecendo-se aí concretamente várias restrições à aplicação desse prazo e regras para determinação do seu termo inicial em situações específicas.

Assim, fora dos casos em que uma lei especial determine um diferente prazo para interposição do recurso, porque a lei geral não derroga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador, artigo 7.º do código civil, está fixado por lei o prazo para interposição de todos os recursos das decisões judiciais proferidas em processo cível e passíveis de recurso.

Apenas o legislador pode estabelecer prazos especiais para interposição de recurso, quando entender que os interesses jurídicos em causa assim o exigem.

A interpretação da lei levada a cabo pelos juízes não pode criar normas que o legislador não estabeleceu, por mais correctas e necessárias que possam parecer ao poder judicial, por tal exorbitar do exercício da função jurisdicional, tal como definida no artigo 202.º em conjugação com os artigo 161.º, c) e 198.º, todos da Constituição da República Portuguesa.

Lisboa, 23 de Novembro de 2022. - Ana Paula Lobo.

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Voto de vencido

Processo 758/12.4TMPRT.1.P2-A.S1-A

Não votei o presente acórdão de uniformização de jurisprudência, pelas seguintes razões:

O art.3.º, n. 5 da Lei n.75/98 prevê a hipótese de recurso para a Relação (recurso que é de apelação, após o DL n.303/2007), no procedimento destinado à fixação da prestação de alimentos a menores de idade, a cargo do Estado (em via sucedânea), mas não prevê (nem de forma expressa, nem por remissão) qual o prazo para interpor esse recurso.

Coloca-se, assim, a questão de saber, do ponto de vista da racionalidade interpretativa, qual o comportamento exigível a quem pretenda interpor tal recurso.

- Que faça uma interpretação teleológica, sistemática e histórica para chegar à norma que lhe está circunstancialmente mais próxima, ou seja, o artigo 32.º, n.3 do RGPTC (aprovado pela Lei n.141/2015), que estabelece um prazo de 15 dias?

- Ou que se socorra da norma supletiva geral para o exercício de direitos de recurso, ou seja, o art.638.º, n.1 do CPC, que estabelece um prazo de 30 dias?

Por necessidade de garantir certeza e segurança quanto à tempestividade do exercício dos direitos, os prazos processuais devem resultar de forma absolutamente clara da letra da lei, seja por interpretação literal, seja por um inequívoco critério supletivo.

Tais prazos não devem, portanto, ficar dependentes de uma interpretação teleológica ou intra-sistemática de regras que se encontram previstas para hipóteses específicas distintas (ainda que valorativamente equiparáveis).

Deve ter-se presente que, apesar da especificidade da tramitação do procedimento previsto no art.3.º, n.1 da Lei n.75/98 ("enxertado" no procedimento onde se verifica o incumprimento da prestação de alimentos - regulado no RGPTC), ele continua a ter um estatuto normativo específico - o DL n.75/98 - que se constitui como um corpo legislativo especial face às regras gerais do CPC, e não face às regras (também especiais) do RGPTC, pelo que, por um critério de lógica interpretação sistemática, há-de ser nessas normas gerais que se encontra a pertinente norma supletiva.

Assim, no presente acórdão de uniformização de jurisprudência devia considerar-se aplicável a norma supletiva do art.638.º, n.1 do CPC (que estabelece o prazo de 30 dias), ainda que tal solução comporte alguma desarmonia legislativa face ao prazo previsto no art.32.º, n.3 para a generalidade dos processos tutelares cíveis. Porém, tal desarmonia de prazos deverá ser solucionada pelo legislador, e não por via jurisprudencial.

Lisboa, 23.11.2022. - Maria Olinda Garcia.

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Proc. n.º 758/12.4TMPRT.1.P2-A.S1-A

DECLARAÇÃO DE VOTO

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Voto vencido, de acordo com a posição que manifestei, também em voto de vencido, no acórdão recorrido, inspirada na argumentação do Ac. STJ de 14.12.2016, proc. n.º 232/15.7T8GDM-B.P1.S1, em www.dgsi.pt., com a qual continuo a concordar.

Adiro, também, às razões de índole constitucional indicadas no voto de vencido do Sr. Conselheiro Cura Mariano.

António Magalhães

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DECLARAÇÃO DE VOTO

Discordei da solução maioritária que decidiu preencher uma alegada lacuna superveniente da lei, relativa a um prazo de interposição de recurso, através de uma laboriosa e complexa operação de integração analógica, com recurso aos elementos teleológico, sistemático e histórico da lei.

A fixação legal de um prazo perentório para a interposição de recurso de uma determinada decisão impõe um ónus processual temporal à parte discordante, cujo incumprimento determina a perda de um importante direito processual - o direito ao recurso.

Os ónus processuais cuja inobservância determine a perda de direitos, em obediência ao modelo do processo justo e equitativo, devem estar claramente expressos e determinados no texto legal, não suscitando dúvidas sobre os termos como devem ser cumpridos, de forma a que a parte onerada não seja surpreendida, quer pela sua existência, quer pelo modo como os deve cumprir.

O Tribunal Constitucional tem repetidamente alertado para a necessidade deste tipo de ónus ter uma expressão clara e perfeitamente determinada na lei, devendo ser percecionados pelas partes numa interpretação de primeira aparência.

Entre muitos outros (v.g. os acórdãos n.º 678/98, 485/2000, 56/2003, 183/2006, 335/2006 e 604/2018), afirmou-se na fundamentação do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 620/2013:

A imposição de um ónus imprevisto, perante a letra de lei, e por isso de difícil cumprimento pelas partes, tendo como consequência para a sua inobservância a perda imediata e irremediável de um importante direito de defesa processual, como é o direito ao recurso, não é seguramente conforme a um fair trial.

Ora, a garantia da via judiciária estatuída no artigo 20.º, da Constituição, conferida a todos os cidadãos para tutela e defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, abrange não só a atribuição do direito de ação judicial, mas também a garantia de que o processo, uma vez iniciado, deve seguir as regras de um processo equitativo, conforme impõe o n.º 4, do referido artigo 20.º, da Constituição.

A expressão constitucional de um processo equitativo é premeditadamente aberta, estando dotada de uma força expansiva que lhe permite alcançar aqueles casos, como o presente, em que o incumprimento de um ónus imprevisível é sancionado com a perda definitiva de um importante direito processual, como é o direito ao recurso.

Sem discordar de que os referidos elementos teleológico, sistemático e histórico da lei, apontariam para uma igualação dos prazos de recurso nos processos tutelares cíveis previstos no artigo 48.º do RGPTC, a realidade legislativa é a de que não há uma previsão específica de um prazo para o recurso da decisão que, num processo de incumprimento das responsabilidades parentais, determina o pagamento de prestação substitutiva dos alimentos pelo FGADM, pelo que, face à inexistência de um prazo especialmente previsto, deve observar-se o princípio geral de que é aplicável o prazo-regra dos recursos de apelação que consta do artigo 638.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ou seja 30 dias.

Se é aconselhável que a solução sustentada neste acórdão, no futuro, venha a ser a adotada pelo legislador, prevendo expressamente esse prazo reduzido para a interposição do recurso deste tipo de decisões, a antecipação dessa solução, no quadro legal vigente, resulta na imposição de um ónus imprevisto para as partes, que constitui, pelas razões acima denunciadas, um desrespeito pelo modelo do processo justo e equitativo.

Agrava a imprevisibilidade do prazo descoberto pelo raciocínio que fundamenta a uniformização de que aqui se discorda, a circunstância decisiva de que esse prazo para interposição de recurso é substancialmente menor (metade) daquele que resultaria de uma simples aplicação do princípio segundo o qual, em matéria de prazos de recurso, na ausência de uma previsão especial, vigora o prazo-regra, pelo que a imposição inesperada daquele prazo reduzido determinará previsivelmente uma perda do direito ao recurso, como sucede no caso que origina o presente recurso de uniformização de jurisprudência.

João Cura Mariano

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Proc. 758/12.4TMPRT.1.P2-A.S1-A

Declaração de Voto

I

Fiquei vencido porquanto entendo, conforme explanei no projecto de acórdão que como primitivo relator apresentei, que a prestação a cargo do FGADM (regulada na Lei 75/98, 19NOV) não se confunde com a prestação de alimentos a cargo do devedor originário, não sendo mera dependência desta, mas antes uma prestação autónoma e diferenciada, com pressupostos próprios; trata-se de uma prestação de segurança social tendente a mitigar os efeitos do não pagamento dos alimentos devidos aos menores de mais fracos recursos económicos.

A atribuição dessa prestação constitui, assim, uma pretensão materialmente autónoma a ser apreciada e decidida através de um procedimento especialmente regulado na lei (artigo 3.º da Lei 75/98, 19NOV). Pelo que a apreciação dessa pretensão não é uma mera questão incidental, tendo antes a natureza de acção (ainda que 'enxertada' num procedimento incidental).

Trata-se, pois de uma acção especial, sendo que na falta de regulamentação específica se haverá de lançar mão das disposições gerais e comuns, conforme o estipulado no artigo seu 549.º do CPC; no caso o seu artigo 648.º

Teria uniformizado a jurisprudência no sentido de que «O prazo para a interposição de recurso na acção especial tendente ao reconhecimento do direito à prestação a cargo do FGADM e à fixação do seu montante prevista no artigo 3.º da Lei 75/98, 19NOV, é o fixado no artigo 638.º, n.º 1, do CPC».

II

Tal interpretação, ademais, afigura-se-me a mais consentânea com o respeito do princípio do processo equitativo/justo ('fair trial') consagrado no artigo 20.º da Constituição da República e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

É ponto assente que a faculdade de o legislador proceder à concreta modulação do processo não é imune aos princípios constitucionais e que os regimes adjetivos deverão mostrar-se funcionalmente adequados aos fins do processo, de modo a não traduzirem imposições sem sentido útil ou razoável, e não poderão impossibilitar ou dificultar de modo excessivo a atuação processual das partes, nem estabelecer consequências ou preclusões que sejam desproporcionadas em relação à gravidade da falta que é imputada. O Tribunal Constitucional tem dito que as normas processuais, como decorrência do princípio do processo equitativo, não podem impossibilitar ou dificultar de modo excessivo a atuação processual das partes, nem estabelecer consequências ou preclusões que sejam desproporcionadas em relação à gravidade da falta que é imputada (cf. acórdãos n.os 678/98, 485/2000, 468/2001, 122/202002, 260/2002, 65/2003, 46/2005, 183/2006, 335/2006, 620/2013, 462/2016 e 604/2018; no mesmo sentido os acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos Bellet c. França - 23805/94, Cañete de Goñi c. Espanha - 55782/20, e Dos Santos Calado e outros c. Portugal - 55997/14).

A jurisprudência do Tribunal Constitucional, na densificação do conceito de processo justo ou de processo equitativo, vem utilizando o princípio da confiança como parâmetro de organização e disciplina do processo (Acórdãos n.os 678/98, 485/2000, 183/2006, 335/2006, 56/2003).

A garantia do processo equitativo comporta uma dimensão de segurança e previsibilidade dos comportamentos processuais, tutelando adequadamente a possibilidade de conhecimento das normas com base nas quais são praticados os atos e formalidades processuais, assim como as expectativas em que as partes fazem assentar a sua estratégia processual.

Uma forma processual só é justa quando o conjunto ordenado de atos a praticar, bem como as formalidades a cumprir, tanto na propositura, como especialmente no desenvolvimento da ação, seja expresso por meio de normas cujos resultados sejam previsíveis e cuja aplicação potencie essa previsibilidade. Para que haja previsibilidade são, porém, necessárias duas condições: que o esquema processual fixado na lei seja capaz de permitir aos sujeitos do processo conhecer os poderes e deveres que conformam a relação processual; e que haja univocidade de interpretação das normas processuais. É que se os sujeitos do processo não se encontram em condições de compreender e calcular previamente as consequências das suas ações, o processo é inidóneo à realização da tutela jurídica. A idoneidade funcional do processo implica, pois, que ele seja construído em termos de possibilitar aos sujeitos processuais o conhecimento das normas com base nas quais calculam o seu modo de agir.

Numa situação como a espelhada nos autos, em que a lei não é clara quanto à determinação do prazo de recurso, dando azo a diversas interpretações e à diversidade de decisões judiciais, não se vê como fosse exigível à parte que pretende interpor recurso que lobrigue qual virá a ser o entendimento do tribunal ou o entendimento que vier ser genericamente adoptado. E que disso fique dependente a efectivação do seu direito ao recurso. Pelo contrário afigura-se-me como legítimo e adequado, em função da boa-fé e cooperação processual, que a parte, perante a indefinição legal, funde o seu comportamento processual confiando na aplicação do disposto nas regras gerais e comuns.

Essa protecção da confiança e da proporcionalidade afigura-se-me irrecusável para as situações, como a dos autos, anteriores à uniformização jurisprudencial. Dessa forma ainda que se tenha vindo, como veio, a consagrar o entendimento de que o prazo para interposição do recurso é de 15 dias, sempre haveria de ressalvar as situações anteriores em que as partes entenderam aplicável o prazo geral de 30 dias. O que significaria que, não obstante o sentido da uniformização, haveria de revogar-se o acórdão recorrido e considerado o recurso tempestivamente interposto (veja-se a esse propósito como se decidiu no AUJ 9/2009).

III

Por outro lado, ainda que se entenda que o prazo de interposição do recurso deva ser regulado pelas disposições reguladoras do processo tutelar cível, não vislumbro como delas se pode extrair que o prazo de interposição do recurso de revista (relembro que o acórdão recorrido aprecia o prazo de interposição do recurso de revista) seja de 15 dias.

Com efeito o artigo 32.º do RGPTC apenas regula os recursos das "decisões que se pronunciem [...] sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis" e não já dos recursos dos acórdãos que apreciem aqueles recursos; o que aí está regulado é apenas o recurso de apelação. Na falta de regulamentação específica do recurso de revista este será regido pelas regras do processo civil, em conformidade com o disposto no artigo 33.º do RGPTC. Donde sempre se alcançaria o prazo geral de 30 dias.

23 nov 2022. - Rijo Ferreira.

116107866

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5219790.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1992-12-31 - Decreto-Lei 298/92 - Ministério das Finanças

    Aprova o regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras.

  • Tem documento Em vigor 1995-09-11 - Decreto-Lei 229/95 - Ministério das Finanças

    PROCEDE A HARMONIZAÇÃO DAS DISPOSIÇÕES QUE REGULAMENTAM COBRANCA E O PAGAMENTO DOS REEMBOLSOS DO IVA, COM AS DO CODIGO DO PROCESSO TRIBUTÁRIO, APROVADO PELO DECRETO LEI 154/91 DE 23 DE ABRIL, E COM AS DO DEC 275-A/93 DE 9 DE AGOSTO (REGULAMENTA O REGIME DA TESOURARIA DO ESTADO). A CITADA HARMONIZAÇÃO INCIDE NOMEADAMENTE SOBRE AS DECLARAÇÕES, RESPECTIVO PREENCHIMENTO, APRESENTAÇÃO E TRAMITAÇÃO, PAGAMENTO DO IMPOSTO E SUAS FORMAS A DIRECÇÃO DE SERVIÇOS DE COBRANCA DO IMPOSTO SOBRE O VALOR ACRESCENTADO (DSCIVA (...)

  • Tem documento Em vigor 1997-09-16 - Lei 112/97 - Assembleia da República

    Estabelece o regime jurídico da concessão de garantias pessoais pelo Estado ou por outras pessoas colectivas de direito público.

  • Tem documento Em vigor 1998-11-19 - Lei 75/98 - Assembleia da República

    Garantia dos alimentos devidos a menores.

  • Tem documento Em vigor 1999-05-13 - Decreto-Lei 164/99 - Ministérios da Justiça e do Trabalho e da Solidariedade

    Regula a garantia de alimentos devidos a menores prevista na Lei 75/98, de 19 de Novembro.

  • Tem documento Em vigor 2003-11-12 - Decreto-Lei 287/2003 - Ministério das Finanças

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho, aprova o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, altera o Código do Imposto do Selo, altera o Estatuto dos Benefícios Fiscais e os Códigos do IRS e do IRC e revoga o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, o Código da Contribuição Autárquica e o Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doaçõ (...)

  • Tem documento Em vigor 2012-02-13 - Decreto-Lei 32/2012 - Ministério das Finanças

    Estabelece as normas de execução do Orçamento do Estado para 2012.

  • Tem documento Em vigor 2012-02-21 - Lei 8/2012 - Assembleia da República

    Aprova as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas.

  • Tem documento Em vigor 2012-06-21 - Decreto-Lei 127/2012 - Ministério das Finanças

    Contempla as normas legais disciplinadoras dos procedimentos necessários à aplicação da Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, aprovada pela Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, e à operacionalização da prestação de informação nela prevista.

  • Tem documento Em vigor 2012-12-20 - Lei 64/2012 - Assembleia da República

    Procede à segunda alteração à Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro (Orçamento do Estado para 2012), no âmbito da iniciativa para o reforço da estabilidade financeira, alterando ainda as Leis n.os 112/97, de 16 de setembro, e 8/2012, de 21 de fevereiro, a Lei Orgânica n.º 1/2007, de 19 de fevereiro, e os Decretos-Leis n.os 229/95, de 11 de setembro, 287/2003, de 12 de novembro, 32/2012, de 13 de fevereiro, 127/2012, de 21 de junho, 298/92, de 31 de dezembro, 164/99, de 13 de maio, e 42/2001, de 9 de fevereir (...)

  • Tem documento Em vigor 2015-09-08 - Lei 141/2015 - Assembleia da República

    Aprova o Regime Geral do Processo Tutelar Cível, e procede à primeira alteração à Lei n.º 103/2009, de 11 de setembro, que estabelece o regime jurídico do apadrinhamento civil

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