Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 9/2022, de 24 de Novembro
- Corpo emitente: Supremo Tribunal de Justiça
- Fonte: Diário da República n.º 227/2022, Série I de 2022-11-24
- Data: 2022-11-24
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Sumário
Texto do documento
Sumário: «A cláusula contratual geral inserta em contrato de seguro, mesmo facultativo, em que se define o sinistro 'Incêndio' como 'combustão acidental', não cobre, no seu âmbito e alcance, o incêndio causado dolosamente por terceiro, ainda que não seja identificado o seu autor.»
R.U.J n.º 933/15.0T8AVR.P1.S1
Autor: Bar Salinas do Mar, Unipessoal, Lda.
Réus: Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A., e Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda.
I - Relatório.
Instaurou Bar Salinas do Mar, Unipessoal, Lda., com sede em Praia da Barra, freguesia ..., ..., acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A., sendo ainda Ré nos autos a sociedade Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda.
Essencialmente alegou:
Tendo celebrado, em Janeiro de 2005, com a APA (Agência Portuguesa do Ambiente) um contrato de concessão de utilização do domínio público hídrico para implantação e exploração dum equipamento de praia, passou a ocupar uma parcela de terreno na Praia da Barra, com a área de 300 metros quadrados, onde implantou um edifício em madeira e vidro (com as respetivas infraestruturas em betão e madeira, constituído por sala, cozinha, bar, quatro casas de banho, chuveiros, sala de primeiros socorros, armazém de apoio e esplanada), destinado a apoio de praia, com a mesma denominação da A., equipando-o com todo o mobiliário e maquinaria indispensáveis a funcionar como estabelecimento comercial, cuja exploração, em 1 de Junho de 2013, cedeu, pelo período de 7 meses, à 2.ª R..
No dia 22 de Outubro de 2013, de noite, deflagrou um incêndio em tal edifício/estabelecimento, incêndio que o consumiu, assim como a todo o seu recheio, rápida e integralmente, ascendendo a reconstrução do edifício a (euro) 147.350,00 + IVA e o valor dos móveis e equipamentos a (euro) 45.956,38 + IVA.
Ocorrência esta que, segundo a A., está coberta pelos dois contratos de seguro celebrados - ambos no dia 6 de Junho de 2013, um pela A. e o outro pela 2.ª R., sendo este relativo aos bens móveis que constituíam o recheio do estabelecimento - com a R. Fidelidade, uma vez que, "[...] nos termos dos mencionados contratos, a 1.ª R. está obrigada a indemnizar a A. por todos os danos causados no equipamento de praia, no respetivo equipamento e no inventário, entre outras causas por incêndio e actos de vandalismo, [assim como] a indemnizar a A. por perdas de rendas relativas ao aludido equipamento de praia e também por interrupção da actividade, pelo prazo de 30 dias, à razão de (euro) 150 por dia".
Deverá assim a R. Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A., ser condenada a pagar-lhe os montantes necessários à reconstrução do edifício, o valor dos móveis e equipamentos que constituíam o recheio do estabelecimento; o que perdeu e irá perder de rendas; o que perdeu com a paralisação da actividade e os prejuízos resultantes da impossibilidade de poder continuar a exercer a sua actividade; e a 2.ª R., Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda., condenada a pagar-lhe o valor dos móveis e equipamentos que constituíam o recheio do estabelecimento, em virtude desta se haver obrigado, segundo o contrato de cessão de exploração celebrado entre ambas, a celebrar contrato de seguro "que cobrisse qualquer dano causado por incêndio, roubo ou acto de vandalismo".
Concluiu pedindo:
"[...] que a primeira R. (Fidelidade) seja condenada a pagar-lhe
1 - A quantia global de (euro) 262.035,82, por todos os prejuízos descritos, verificados até à data da propositura desta ação;
2 - A quantia a liquidar em execução de sentença correspondente aos danos futuros que a A. vier a sofrer com a perda de rendas correspondentes ao apoio de praia destruído ou de rendimentos resultantes da sua exploração, até integral pagamento da indemnização a que tiver direito, a qual lhe é indispensável à recuperação do mencionado apoio de praia e à retoma da sua actividade;
3 - Juros de mora à taxa legal para operações comerciais, sobre as quantias indemnizatórias que vierem a ser fixadas, desde a citação até integral pagamento
4 - Juros de mora, à mesma taxa, sobre a quantia de (euro) 204.000,00, desde 7 de Fevereiro de 2014, até à data da sua citação;
Quando assim não se entenda, o que só por hipótese se admite, deverá a segunda R. ser condenada a pagar à A.:
5 - A quantia de (euro) 56.519,44, como compensação pela perda dos móveis e equipamentos que constituíam o recheio do estabelecimento de apoio de praia a que os autos se referem em 4.º e 17.º da petição inicial;
E ainda
6 - Juros de mora à taxa legal para operações comerciais, sobre o valor da indemnização que vier a ser condenada a pagar, desde a citação para contestar esta ação, até integral pagamento. [...]"
Citadas as Rés, apenas a R. Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A., apresentou contestação.
Invocou que o contrato de seguro celebrado com a A. tinha por objecto apenas o imóvel - e não "o estabelecimento comercial, o seu recheio, equipamento e/ou mobiliário ou a atividade ali exercida" - até ao limite de capital de (euro) 170.000,00, com as franquias contratuais estabelecidas e cobrindo os riscos identificados na apólice e condições particulares, estando assim "excluído expressamente das coberturas do contrato de seguro os lucros cessantes ou perda semelhante e não se apresent[ando] abrangidos os danos emergentes ou consequentes a atuação dolosa; e que o contrato celebrado com a 2.ª R. Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda., do ramo multirriscos negócios, tinha como objeto o mobiliário do estabelecimento até ao limite de capital de (euro) 3.000,00, mercadorias até ao limite de capital de (euro) 7.500,00 e equipamentos até ao limite de capital de (euro) 17.500,00 e, ainda, a cobertura de "danos em bens do senhorio" até ao limite de capital de (euro) 1.500,00, pelo que, segundo a R. Fidelidade, deste seguro apenas esta última cobertura pode aproveitar à A., estando o restante que se peticiona excluído da sua responsabilidade.
O incêndio não ficou a dever-se a "causa eléctrica no quadro, devido a infiltrações", mas teve origem intencional/dolosa, sendo que, nas definições das condições gerais, incêndio é a 'combustão acidental', pelo que o sinistro, quanto ao contrato de seguro celebrado pela A., não se encontra "abrangido pelas coberturas da apólice em causa"; sendo que, quanto ao contrato de seguro celebrado pela 2.ª R., Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda., "atenta a cobertura de actos de vandalismo", foi o sinistro considerado coberto e "regularizados os danos verificados, por pagamento à 2.ª R., segurada nessa apólice, do valor de (euro) 27.994,84", tendo todo o mobiliário e o equipamento cuja existência foi comprovada sido contemplados nos valores indemnizatórios pagos, pelo que, "se a A. tem contas a acertar com alguém, esse alguém será apenas a 2.ª R.".
Concluiu pela total improcedência da acção e pela absolvição em relação a todos os pedidos contra si formulados.
A A. respondeu (ao abrigo do art. 3.º, n.º 4 do Código de Processo Civil), alegando que nunca afirmou que o incêndio tenha tido origem "no quadro eléctrico do edifício" e que sempre alegou "desconhecer a origem do incêndio em questão", acrescentando que a responsabilidade da seguradora só é excluída no caso de actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis, situação que não se verifica no caso dos autos e que não é alegada pela R., tendo assim o acidente que ser considerado acidental.
Quando a R. Fidelidade decidiu pagar à 2.ª R. a indemnização referida na contestação, "estava ciente que o mobiliário e equipamentos em causa pertenciam à A." e que tal contrato de seguro fora celebrado a favor da A., pelo que devia pagar tais valores/indemnizações à A..
Contudo, posteriormente, em requerimento apresentado em 3 de Novembro de 2015, veio a A. reduzir os pedidos, dizendo:
- Reconhece que o contrato de seguro por si celebrado com a R. Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A., tem como único objeto seguro o imóvel referido nos autos, até ao limite de capital de (euro) 170.000,00;
- Reconhece que o contrato de seguro celebrado entre a R. Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A., e a 2.º R. Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda., tem as coberturas referidas nos artigos 17.º e 18.º da contestação apresentada pela R. Fidelidade.
- Em função do que reduz os pedidos que formulou para o seguinte:
A) Deverá a primeira R. ser condenada a pagar à A.:
1 - A quantia de (euro) 170.000,00 m pela perda total do edifício a que os autos se referem, objecto do contrato de seguro titulado pela apólice ME...30;
2 - A quantia de (euro) 1.500,00, correspondente à perda de "bens do senhorio", com referência ao contrato de seguro titulado pela apólice ME...30;
3 - Juros de mora, à taxa legal para operações comerciais, sobre as quantias indemnizatórias que vierem a ser fixadas, desde 07-02-2014, até integral pagamento.
B) Deverá a segunda R. (Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda.)ser condenada a pagar à A.:
1 - A quantia de (euro) 56.519,44, como compensação pela perda dos móveis e equipamentos que constituíam o recheio do estabelecimento de apoio de praia a que os autos se referem, identificado em 4.º e 17.º da petição;
2 - Juros de mora, à taxa legal das operações comerciais, sobre o valor da indemnização que vier a ser condenada a pagar, desde a citação para contestar esta acção, até integral pagamento.
Cumprido o contraditório, foi admitida a referida redução do pedido.
Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença com o seguinte dispositivo:
"A) Condenar a primeira ré (Fidelidade) a pagar à autora o valor de (euro)1.500,00 (mil e quinhentos euros), deduzida do valor da franquia de (euro) 150,00, acrescido de juros de mora, calculados desde a citação, à taxa legal de 4 %, até efetivo e integral pagamento (tendo a ver com a "perda de bens do senhorio, com referência ao contrato de seguro celebrado entre a 1.ª Ré (Fidelidade) e a 2.ª Ré (Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda." que continha uma cláusula de cobertura do seguro em relação a "actos de vandalismo" - cf. ponto 26 dos "factos provados");
B) Absolver a primeira ré (Fidelidade) de todos os restantes pedidos contra si formulados.
C) Absolver a segunda ré (Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda.) dos pedidos contra si formulados.".
Inconformada com tal decisão, interpôs a A. recurso de apelação, o qual, por acórdão da Relação do Porto de 27 de Outubro de 2020, foi julgado parcialmente procedente, tendo-se "[...] alter[ado] a sentença recorrida e além da condenação da 1.ª Ré (Fidelidade), condenado a 2.ª Ré (Piadas Perfeitas Unipessoal, Lda.) a pagar à autora a quantia de (euro)56.526,34 - deduzindo-se a quantia a liquidar pela 1.ª Ré - acrescida de juros à taxa de 4 % contados desde a citação e até integral liquidação [...]."
Interpôs a A. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, a título de revista excecional, visando a revogação do acórdão da Relação e a sua substituição por decisão que condenasse a recorrida a indemnizar a Recorrente por todos os danos emergentes do incêndio a que os autos se referem.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
"1 - Dando como provado que o incêndio a que os autos se referem foi intencionalmente provocado por terceiros, o douto acórdão recorrido considera que ele não foi acidental, argumento com que absolve a Seguradora do pedido de indemnização, ao ora Recorrente, pelos prejuízos decorrentes do incêndio em questão.
Porém,
2 - Conforme decidiu o douto acórdão deste Venerando Supremo Tribunal, de 16.12.1999, em que se fundamenta a presente Revista Excecional, "O sentido relevante da expressão 'incêndio-combustão acidental', inserto nas condições gerais do contrato de seguro contra riscos de incêndio, é, do ponto de vista de um declaratário medianamente diligente, instruído e sagaz, o de incêndio para o qual o segurado não tenha contribuído, por si ou por quem seja civilmente responsável".
Aliás,
3 - No mesmo sentido se pronunciaram os acórdãos da Relação de Lisboa, de 09.11.1978 e de 02:04.2009 e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03.05.1952 e de 13.11.1970.
4 - Destes, permitimo-nos citar também o douto acórdão da Relação de Lisboa de 04.02.2009, disponível em http://dgsi.pt/jtrl.nsf, de que se junta cópia, assim sumariado:
"I - Emerge do disposto no n.º 1 do artigo 443.º do Código Comercial que no seguro de incêndio ficam a cargo do segurador os danos causados por facto não doloso do segurado ou pessoa pela qual o segurado seja responsável, bem assim os danos emergentes de sinistro causado por terceiros.
II - É casual todo o incêndio que não tenha sido causado por comportamento doloso do segurado ou pessoa pela qual o segurado seja civilmente responsável.
III - Compete à seguradora demonstrar que o incêndio não foi casual.
IV - A previsão, num contrato de seguro de incêndio, de cláusulas de exclusão da responsabilidade da seguradora, constitui implícita convenção de que cabe à seguradora, para se ver livre da responsabilidade emergente dos danos resultantes do incêndio, demonstrar que ocorreram as aludidas circunstâncias.
V - Se não se apurarem as causas do incêndio, a seguradora deve ser responsabilizada pelas respectivas consequências."
Sublinhe-se que,
5 - À data da celebração do contrato de seguro em causa nestes autos, a questão em análise era regulada pelo n.º 3 do artigo 437.º do Código Comercial - artigo com a epígrafe "Em que casos o seguro fica sem efeito" - que apenas declara o seguro sem efeito quando "o sinistro tiver sido causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável".
Por outro lado,
6 - No sentido de que a tutela dos interesses do outorgante que adere ao contrato de seguro - típico contrato de adesão em que o segurado nada contribui para o teor das respetivas cláusulas - justifica a interpretação restritiva da cláusula em apreço, sob pena de mais se agravar o desequilíbrio entre as partes - conferir Pinto Monteiro, "Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil", páginas 344 e 372.
7 - O douto acórdão recorrido viola as normas dos artigos 437.º, n.º 3, 439.º e 443.º, do Código Comercial, os artigos 10.º e 11.º, n.os 1 e2 do DL 446/85 de 27 de Outubro e os artigos 236.º, 237.º e 342.º do Código Civil.
8 - Como resulta das conclusões anteriores, o acórdão recorrido está em total contradição com o acima referido acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.1999, já transitado em julgado, no domínio dos citados artigos 437.º, n.º 3, 439.º e 443.º, do Código Comercial, 10.º e 11.º, n.os 1 e 2 do DL 446/85 de 27 de Outubro e 236.º,237.º e 342.º do Código Civil - alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.
9 - Como também já se alegou, a questão objeto dos dois referidos doutos acórdãos contraditórios vem sendo frequentemente apreciada pelos nossos Tribunais Superiores, nem sempre no mesmo sentido, tornando útil e necessário, para uma melhor aplicação do direito, que o Venerando Supremo Tribunal se pronuncie sobre tal questão - alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil. [...]"
A R. Fidelidade - Companhia de Seguros, S. A., respondeu, sustentando, em síntese, que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma processual ou substantiva, designadamente, as referidas pela A./recorrente, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
"[...]
A. Não assiste à recorrente fundamento para a presente revista excecional, já que não se verifica qualquer dos requisitos admitidos excecionalmente pelas alíneas a), b) e c), do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, o que significa, de forma muito clara e evidente, a inadmissibilidade desta iniciativa recursiva;
B. É o próprio contrato de seguro - que se encontra nos autos em anexo à petição inicial, e cuja redação, clausulado, coberturas e condições se apresentam assentes, como resulta inclusivamente de 14.º a 24.º dos Factos Provados na Sentença proferida em 1.ª Instância - que define o conceito de incêndio para efeitos do próprio contrato Sob o Capítulo I - Definições, Cláusula 1.ª Definições, Incêndio - A combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios.
C. Provado nos autos (facto provado 30) que o incêndio teve origem numa ignição induzida com utilização de produto combustível no exterior do edifício e por baixo de uma porta lateral, que potenciou a combustão na sua fase inicial, e a sua propagação generalizada ao edifício, com elevada carga térmica considerando a predominância de materiais facilmente combustíveis, como a madeira, portanto provado que o incêndio teve origem intencional, atuação dolosa;
D. Porque aquele incêndio teve origem intencional, por ignição induzida com utilização de produto combustível, não estamos perante uma combustão acidental fortuita, casual ou imprevisível, e como tal, não preenche o tipo contratual "incêndio" contratualmente definido, não estando em condições de fazer funcionar aquela cobertura contratual;
E. Resulta da própria definição contratual (e contratada) ter de tratar-se de uma "combustão acidental" o que, naturalmente, não sucede num incêndio provocado, intencional. E se não é incêndio nesse sentido só poderá estar a coberto da apólice se esta previr a cobertura de actos de vandalismo, pois será então disso que se trata.
F. O douto Acórdão recorrido não se apresenta violador de quaisquer normativos, antes se apresentando escorreito, esclarecido e imaculado na sua fundamentação e decisão, em obediência à factualidade apurada nos autos, prova produzida e mérito de qualificação jurídica, aliás à semelhança do que já sucedia com a douta Sentença proferida em 1.ª instância.
[...]"
Foi proferida decisão pela Formação (artigo 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) que admitiu a revista excepcional.
O Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão datado de 9 de Junho de 2021 - transitado em julgado em 25 de Junho de 2021 -, negou a revista, confirmando o acórdão recorrido.
Apresentou então a A. recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, invocando contradição entre a solução normativa acolhida neste Acórdão de 9 de Junho de 2021, proferido nos autos, e a solução adotada no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 2020, proferido no Processo 15.910/17.8T8PRT.P1.S1, que indica como acórdão fundamento do recurso extraordinário que interpõe (e de que juntou cópia).
Apresentou as seguintes conclusões:
23 - O douto acórdão recorrido está em flagrante contradição com o também douto acórdão deste Venerando Supremo Tribunal, de 21.05.2020, que se pronuncia sobre a mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação.
24 - Acórdão que, tendo por objeto um contrato de seguro com a mesma definição de "incêndio-combustão acidental" e com idêntica cláusula de exclusão, decidiu que:
I - A expressão "combustão acidental" ínsita na definição de incêndio constante do artigo 9.º das Cláusulas Gerais da Apólice, deve ser interpretada no sentido de o contrato de seguro cobrir o risco de incêndio que não derive, direta ou indiretamente, de ato ou omissão dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis.
II -Atendendo às regras de repartição do ónus da prova, cabe ao lesado alegar e provar a ocorrência do incêndio e os danos sofridos, como factos constitutivos do seu direito (art. 342.º, n.º 1 do CC), recaindo sobre a seguradora a prova de que o incêndio não teria tido causa acidental, ou seja, dos factos ou circunstâncias excludentes do risco, nos termos já acima referidos (art. 342.º, n.º 2, do CC)."
25 - A circunstância de o douto acórdão fundamento ter sido proferido num caso em que a origem do incêndio não foi apurada, não impede que este seja absolutamente claro e perentório, na afirmação de que a responsabilidade da Seguradora só é afastada nos casos previstos na cláusula de exclusão inserta no próprio contrato de seguro.
26 - O que não pode deixar de se entender no sentido de que caem sob a responsabilidade da Seguradora tanto os casos em que a origem do fogo se desconhece, como aqueles em que - como nos autos - se apurou que o fogo foi intencionalmente provocado por desconhecidos.
Na verdade,
27 - Não é compatível com o conteúdo do acórdão fundamento admitir que ele poderia ser diferente, no caso do incêndio a que ele se reporta ter sido intencionalmente provocado - desde que o não fosse pelo próprio segurado.
Assim,
28 - Ambos os citados acórdãos tratam a mesma questão de direito, que é a interpretação de cláusulas contratuais perfeitamente idênticas, sustentando interpretações contrárias entre si.
29 - Razão pela qual o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência deverá ser admitido.
Termos em que o presente Recurso para Uniformização de Jurisprudência deverá ser admitido e julgado procedente, revogando-se o douto acórdão proferido nestes autos e proferindo-se douto acórdão Uniformizador de Jurisprudência que, tal como o douto acórdão fundamento, considere:
"A expressão "combustão acidental" ínsita na definição de incêndio constante do artigo 9.º das Cláusulas Gerais da Apólice, deve ser interpretada no sentido de o contrato de seguro cobrir o risco de incêndio que não derive, direta ou indiretamente, de ato ou omissão dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis" e que atendendo às regras de repartição do ónus da prova, cabe ao lesado alegar e provar a ocorrência do incêndio e os danos sofridos, como factos constitutivos do seu direito (art.342.º, n.º 1 do CC), recaindo sobre a seguradora a prova de que o incêndio não teria tido causa acidental, ou seja, dos factos ou circunstâncias excludentes do risco, nos termos já acima referidos (art.342.º, n.º 2, do CC)." e, em consequência, condene a Recorrida a indemnizar a Recorrente por todos os danos que esta sofreu em resultado do incêndio a que os autos se referem, que se mostram apurados nos autos.
A 1.ª R. e recorrida respondeu, pugnando pela inadmissibilidade do presente recurso extraordinário e apresentando, também no que aqui interessa, as seguintes conclusões:
[...]
F. Não se verifica qualquer contradição entre o douto Acórdão proferido nos autos principais em 09.06.2021, e o douto Acórdão proferido por este Supremo Tribunal de 21.05.2020 invocado pela recorrente, pois que o raciocínio desenvolvido é coincidente, apenas divergindo ao nível decisório em face dos factos concretos que se discutiam (e se apresentam definitivamente julgados provados) em cada um dos processos:
- o douto Acórdão de 09.06.2021, que esta via recursiva a recorrente critica, confronta-se com factualidade provada de incêndio intencionalmente provocado, de origem e causa dolosa, criminosa, embora sem identificação de autoria;
- o douto Acórdão de 21.05.2020, indevidamente invocado pela recorrente, como visto, confronta-se com ausência de factualidade provada quanto a origem e causa de incêndio;
G. Perante uma situação de incêndio com origem em intervenção voluntária, intencional, dolosa, independentemente do apuramento da sua autoria, a interpretação do contrato de seguro no seu todo, e particularmente da definição de incêndio tal como fixada na Clausula 1.ª, Capítulo I, em especial e concretamente a expressão combustão acidental, (que delimita os limites de abrangência da cobertura de risco de incêndio no sentido de estarem cobertos os incêndios devidos a facto fortuito, casual, imprevisível), é no sentido de tal situação de incêndio causado dolosamente não se encontrar abrangido por esta cobertura de risco de incêndio, conforme já decidido não apenas no douto Acórdão em crise, mas igualmente, nomeadamente, nos Acórdãos de 05.05.2020 e 16.07.2020 deste Supremo Tribunal de Justiça;
Termos em que,
a) deve ser proferida Decisão de rejeição da iniciativa recursiva, por absoluta carência de fundamento;
b) deve, em qualquer hipótese, ser proferido douto Acórdão que, em uniformização de jurisprudência, decida que a expressão combustão acidental constante da Cláusula 1.ª do Capítulo I das Condições Gerais do contrato de seguro, que fixa contratualmente a definição de incêndio, deve ser interpretada no sentido de que o contrato de seguro cobre o risco de incêndio com origem/causa acidental, casual, fortuita, não intencional e imprevisível, não abrangendo incêndio com origem/causa em intervenção intencional voluntária, por ação humana dolosa, independentemente da sua autoria;
c) confirme integralmente o douto Acórdão de 09.06.2021 proferido por este Supremo Tribunal de Justiça nos autos principais, mantendo a total improcedência do(s) pedido(s) formulados pela recorrente [...]".
II - Fundamentação de Facto
II - A - Factos Provados
1.º Em Janeiro de 2005, a A. celebrou com a Agência Portuguesa do Ambiente um contrato denominado "Contrato de Concessão de Utilização do Domínio Público Hídrico para Implantação e Exploração de Equipamento de Praia", constante do documento de fls. 23 a 30, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
2.º De acordo com o teor das cláusulas primeira e segunda, do mencionado contrato, a aqui A. ocupou uma parcela de terreno na Praia da Barra, com a área de 300 metros quadrados, onde implantou um edifício em madeira e vidro, com as respetivas infra-estruturas em betão e madeira, constituído por sala, cozinha, bar, quatro casas de banho, chuveiros, sala de primeiros socorros, armazém de apoio e esplanada, destinado a apoio de praia com a mesma denominação da A.
3.º O mencionado edifício encontrava-se equipado com os seguintes bens (identificados no documento de fls. 36-37):
- (...)
4.º Por contrato de cessão de exploração, datado de 1 de Junho de 2013, a A. cedeu a exploração do estabelecimento à segunda ré, Piadas Perfeitas-Unipessoal Limitada, com o número de pessoa coletiva..., com sede na Rua..., Esplanada da Praia..., pelo período de sete meses, com início em 1 de Junho de 2013 e fim em 31 de Dezembro do mesmo ano, contrato reduzido a escrito e constante do documento de fls. 31 a 37, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
5.º Mediante o pagamento de uma renda no valor global de (euro) 9.000,00, acrescido de IVA, à taxa legal, a pagar nas seguintes prestações:
- (euro) 3.000,00, na data da assinatura do contrato;
- (euro) 3.000,00, em 01.08.2013;
- (euro) 1.500,00, em 08.10.2013; e
- (euro) 1.500,00, em 08.12.2013 (cláusula terceira do contrato).
6.º Nos termos das cláusulas oitava e décima quarta desse contrato, a segunda ré obrigou-se a guardar as instalações e os materiais e equipamentos que lhe foram cedidos pela A. e a, findo o contrato, entregar, à A, o apoio de praia dele objeto e todos os bens que constituíam o respetivo recheio, identificados no inventário anexo ao contrato constante de fls. 36-37, que aqui se dá por reproduzido, no estado em que os recebeu, salvas as deteriorações próprias do uso normal, obrigando-se a pagar o valor da substituição dos que se perderem ou tiverem sofrido uma deterioração anormal, no termo do contrato;
7.º Nos termos da cláusula sexta, n.º 2 do mesmo contrato, a segunda ré obrigou-se a celebrar um contrato de seguro que cobrisse qualquer dano causado por incêndio, roubo ou actos de vandalismo.
Consta da cláusula sexta, n.º 3 do mesmo contrato, ainda o seguinte: "Em relação ao seguro para as instalações será efetuado pela 2.ª outorgante, sendo que em relação ao imóvel será feito encontro de contas com a 1.ª outorgante."
8.º Da cláusula décima segunda do contrato consta que: "Na data da entrada em vigor do contrato, a 1.ª outorgante entrega à 2.ª outorgante todos os materiais e equipamentos que integram as instalações afectas à exploração e que constam do mapa anexo ao contrato e que dele faz parte integrante [...].
Quaisquer outros materiais e equipamentos que de futuro venham a ser integrados nas instalações deverão ser objeto de uma relação complementar, que fica a fazer parte integral do contrato. [...]
9.º Na noite do dia 22 de Outubro de 2013, deflagrou um incêndio no edifício da autora, incêndio que consumiu rápida e integralmente o edifício e respectivo recheio.
10.º A reconstrução do edifício tem um custo de (euro) 154.539,97 (cento e cinquenta e quatro mil, quinhentos e trinta e nove euros e noventa cêntimos).
11.º O valor dos móveis e equipamentos referidos no artigo 3.º corresponde a (euro) 56.526,34 (cinquenta e seis mil, quinhentos e vinte e seis euros e trinta e quatro cêntimos).
12.º Com a perda do equipamento de praia, objecto da mencionada cessão, a cessionária segunda ré deixou de pagar, à A. a prestação final de (euro)1.500,00.
13.º E obteve judicialmente a condenação da A. a restituir-lhe a quantia (euro)1.775,88 que já pagara, proporcional ao tempo posterior à perda do apoio de praia em questão (sentença de fls. 64 a 71).
14.º Em 6 de Junho de 2013, a autora celebrou com a ré FIDELIDADE um contrato de seguro do ramo Multirriscos Negócios, a que corresponde a apólice n.º ...30, constante de fls. 111 a 156, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
15.º O contrato de seguro, celebrado na opção "módulo base", tinha as coberturas de incêndio, queda de raio e explosão, tempestades, inundações, danos por água, furto ou roubo, queda de aeronaves, choque ou impacto de objetos sólidos, choque ou impacto de veículos terrestres ou animais, derrame acidental de óleo, derrame acidental de sistemas de proteção contra incêndio e responsabilidade civil extracontratual.
16.º Os capitais seguros e as franquias contratuais estabelecidas (da responsabilidade do segurado, autora nesta acção) tinham como único objecto seguro o imóvel, até ao limite de capital de (euro). 170.000,00 (cento e setenta mil euros).
17.º Abrangia os sinistros relacionados com as actividades mencionadas na proposta de seguro subscrita pela autora: bares, boates, discotecas, cafés-concerto, mencionado no documento de fls. 111, ponto 4.
18.º Da cláusula 3.ª das condições gerais do contrato de seguro (fls. 123) consta, para além do mais, o seguinte:
"[...]
Cláusula 3.ª - Cobertura Base
A cobertura base do contrato garante, até ao limite do capital fixado no Quadro I do Anexo às presentes Condições Gerais, ou outro que venha a ser contratado e indicado nas Condições Particulares, o pagamento de indemnizações resultantes directamente dos seguintes riscos:
1 - Incêndio, queda de raio e explosão,
2 - Tempestades,
3 - Inundações,
4 - Danos por água,
5 - Furto ou roubo,
6 - Riscos eléctricos (1.º risco)
7 - Queda de Aeronaves,
8 - Choque ou impacto de objectos sólidos,
9 - Choque ou impacto de veículos terrestres e/ou animais,
10 - Derrame acidental de Óleo,
11 - Derrame acidental de sistemas de protecção contra incêndio,
12 - Responsabilidade civil extracontratual,
13 - Assistência ao negócio. [...]"
19.º Da responsabilidade do segurado convencionou-se o pagamento de uma franquia de 10 % dos prejuízos indemnizáveis, num mínimo de (euro). 250,00 para as coberturas de queda de raio e explosão, tempestades, inundações, danos por água, furto ou roubo, e responsabilidade civil extracontratual (fls. 112).
20.º Para a cobertura contra incêndios não foi convencionado o pagamento de uma franquia (fls. 112)
21.º No Capítulo I, Cláusula 1.º - Definições, das condições gerais, consta, para além do mais o seguinte:
"[...]
Para efeitos do presente contrato entende-se por [...]
Incêndio: A combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios [...]"
22.º Consta da cláusula 6.ª das condições gerais, sob a epígrafe "Âmbito de Cobertura Base" e relativa à cobertura de incêndio, queda de raio e explosão, que: O contrato destina-se a cumprir a obrigação de segurar contra o risco de incêndio, ainda que tenha havido negligência do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável.
23.º Consta também que: o presente contrato garante igualmente os danos causados no bem seguro em consequência dos meios empregados para combater o incêndio, assim como os danos derivados do calor, fumo, vapor ou explosão em consequência do incêndio e ainda remoções ou destruições executadas por ordem da autoridade competente ou praticadas com o fim de salvamento, se o forem em razão do incêndio ou de qualquer dos factos anteriormente previstos.
24.º No que diz respeito às exclusões, constam da cláusula 5.º das condições gerais (fls. 124), de entre outras, as seguintes:
"[...] 1. Excluem-se da garantia obrigatória do seguro e bem assim de todas as outras coberturas, os danos que derivem, directa ou indirectamente de: [...]
e) Explosão, libertação de calor e irradiações provenientes de cisão de átomos ou radioactivas e ainda as decorrentes de radiações provocadas pela aceleração artificial de partículas; [...]
g) Actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis;
h) Lucros cessantes ou perda semelhante; [...]".
25.º Em 6 de Junho de 2013, a 2.ª ré celebrou com a ré FIDELIDADE um contrato de seguro do ramo Multirriscos Negócios, a que corresponde a apólice n.º ...33, constante de fls. 157 a 166 e 171 a 173, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
26.º Tal contrato de seguro, celebrado na opção "módulo base + módulo negócio + módulo estabelecimento", tinha as coberturas de incêndio, queda de raio e explosão, tempestades, inundações, danos por água, furto ou roubo, queda de aeronaves, choque ou impacto de objectos sólidos, choque ou impacto de veículos terrestres ou animais, derrame acidental de óleo, derrame acidental de sistemas de protecção contra incêndio, responsabilidade civil extracontratual, deterioração de bens refrigerados, aluimento de terras, actos de vandalismo, greves, tumultos e alterações da ordem pública, e demolição e remoção de escombros. (fls. 157-158).
27.º O contrato tinha como objectos de cobertura os seguintes;
- Mobiliário até ao limite de capital de (euro). 3.000,00;
- Mercadorias até ao limite de capital de (euro). 7.500,00;
- Equipamentos até ao limite de capital de (euro). 17.500,00; (fls. 158-159);
28.º Sob a designação "Outras Coberturas da Apólice", foi ainda subscrita e contratada a cobertura "Danos em Bens do Senhorio", até ao limite de capital de (euro). 1.500,00, mediante a franquia contratual de 5 % dos prejuízos indemnizáveis, num mínimo de (euro) 150,00 (fls. 161).
29.º Em 23 de Outubro de 2013, a autora participou à ré Companhia de Seguros Fidelidade um sinistro de incêndio, verificado em 22 de Outubro de 2013, invocando causas desconhecidas (fls. 246-247).
30.º O incêndio teve origem numa ignição induzida com utilização de produto combustível no exterior do edifício e por baixo de uma porta lateral, que potenciou a combustão na sua fase inicial, e a sua propagação generalizada ao edifício, com elevada carga térmica considerando a predominância de materiais facilmente combustíveis, como a madeira.
31.º O quadro eléctrico apresentava-se queimado do exterior para o interior, indicando não ser possível uma qualquer ocorrência de natureza eléctrica.
32.º O sentido de propagação do incêndio revelou-se contrário à localização do quadro eléctrico do edifício pelos motivos expostos no documento de fls. 183 a 189, em concreto quando refere que:
"Considerando a zona de ignição, maioritariamente, sobre o pavimento em madeira - tábua corrida - e no mosaico cerâmico no interior do espaço, para além dos degraus da referida escada, também em madeira, consequentemente, madeira que se encontraria molhada (por ter estado a chover durante o dia) e mosaico, não existindo qualquer meio adequado com capacidade de gerar calor que de alguma forma pudesse funcionar como energia de ativação ao sistema e provocar a combustão, teremos que essa energia teve de ser transportada para o local.
Assim, consubstanciando nos vestígios da combustão, nomeadamente, na total destruição do pavimento do patamar situado junto da porta, com uma forma circular e no sentido descendente, pelas marcas de carbonização a baixo nível junto das zonas de rodapé e pelos danos observados nas escadas [...], conclui-se que para ter existido ali uma combustão com aquelas características teria de se verificar o derramamento de um produto, fluído, com elevado poder calorífico e fácil volatilização que viesse a funcionar como potenciador da combustão na sua fase inicial e que viabilizasse a sua propagação.[...].
33.º Por carta de 24 de Outubro de 2013, a 2.ª ré participou à 1.ª ré Companhia de Seguros Fidelidade, um sinistro de furto na sequência de entrada forçada no estabelecimento comercial, por destruição da porta central de vidro temperado, participação constante de fls. 215, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido e que dava conta da ocorrência de um uma entrada forçada no estabelecimento comercial e furto de vários artigos;
34.º A 2.ª ré participou à primeira ré, em 28 de Outubro de 2013, a ocorrência de um incêndio que havia destruído o imóvel onde o estabelecimento laborava, e o seu recheio, participação constante de fls. 217-218 e cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido.
35.º A primeira ré procedeu a averiguações e concluiu que o incêndio ocorreu por acção dolosa.
36.º Concluída a peritagem condicional de danos, foi este sinistro considerado acoberto da apólice...33, atenta a cobertura de actos de vandalismo subscrita pela 2.ª ré aquando da celebração do contrato de seguro, e regularizados os danos verificados, por pagamento à 2.ª ré, segurada nessa apólice de seguro, do valor de (euro). 27.994,84, pago à segunda ré em 11-07-2015, conforme recibo constante de fls. 219.
37.º Tal valor foi atingido por contabilização como segue:
- Mobiliário, (euro) 3.000,00;
- Equipamento, (euro) 16.479,31;
- Mercadorias, (euro) 6.673,09;
- Interrupção da actividade, (euro) 3.150,00.
38.º Aos valores mencionados foi deduzida a franquia de (euro) 1.307,62 e obtido o valor final de (euro) 27.994,84.
39.º Por carta datada de 4 de Novembro de 2013, o gerente da autora reclamou da ré seguradora uma indemnização pela perda do recheio do Bar Salinas, em consequência do incêndio, nos termos constantes do documento de fls. 250, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, instruindo a carta com cópia do contrato de cessão de exploração e inventário anexo, celebrado com a ré Piadas Perfeitas Unipessoal Lda.
40.º Os bens móveis que integravam o recheio do estabelecimento da autora e mencionados no inventário anexo ao contrato de cessão de exploração, estavam compreendidos nos bens incluídos na indemnização paga pela primeira ré à segunda ré;
Foi admitido pelo Exmº. Sr. Juiz Conselheiro relator do acórdão recorrido o presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.
Para esse efeito, salientou-se, com impressiva clareza e acuidade, o que seguidamente, pela sua importância e relevo, se transcreve:
"(...) ambos os acórdãos apreciaram e decidiram uma mesma e idêntica questão essencial (para o resultado de cada um dos acórdãos) de direito: saber/dizer o que se deve entender/interpretar por "incêndio" para efeitos do respetivo contrato de seguro celebrado (e do risco "incêndio" coberto), tendo em vista decidir se o concreto incêndio ocorrido pode/deve ser considerado coberto pelo respetivo contrato de seguro celebrado.
O que ambos os acórdãos fizeram operando dentro do mesmíssimo quadro normativo: os incêndios ocorreram em 22/10/2013 e em 15/03/2011, ou seja, na vigência da atual LCT (DL 72/2008, de 16-04), sendo o clausulado contratual convocado - uma primeira cláusula que define incêndio como "combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios [...]"; e uma segunda cláusula que exclui a cobertura (incêndio) por "atos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis" - exatamente igual; dando-se também o caso de, identicamente em ambos os acórdãos, nada estar provado em termos de vontade real do declarante/seguradora, movendo-se toda a interpretação efetuada por ambos os acórdãos no estrito âmbito da doutrina da "impressão do declaratário" (cf. art. 236.º/1 do C. Civil).
Tendo os acórdãos chegado, como é patente do que se transcreveu, a resultados e decisões frontalmente opostas e contraditórias.
No acórdão recorrido, concluiu-se que, sendo o risco/incêndio coberto a "combustão acidental", não ficam incluídos/cobertos - pese embora o teor da "cláusula de exclusão" referida - os incêndios que se haja provado terem tido causa dolosa, independentemente da pessoa que causou o incêndio e independentemente dessa pessoa ter sido ou não identificada; acrescentando-se mesmo que "a articulação entre as duas cláusulas permite dizer que o risco de incêndio cobre todos os incêndios comprovadamente acidentais e ainda aqueles cuja causa/origem não se haja logrado determinar, porém, todos aqueles que comprovadamente foram causados dolosamente (ainda que os autores sejam desconhecidos) não se podem considerar cobertos pelo seguro celebrado"; e terminou-se - estando provada a causa dolosa do respetivo e concreto incêndio - a considerar que o risco de incêndio seguro (pelo contrato celebrado entre a A. e a R. Fidelidade) não cobre o sinistro/incêndio ocorrido no dia 11/10/2013 e, em consequência, a confirmar a improcedência determinada pelas Instâncias.
No acórdão fundamento, diversamente, concluiu-se que, "conjugando as aludidas cláusulas", a expressão "combustão acidental" significa que o contrato de seguro cobre o risco de incêndio que não derive, direta ou indiretamente, de ato ou omissão dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis, acrescentando-se mesmo que na exclusão "apenas se preveem os atos ou omissões dolosas do tomador, segurado ou pessoas por quem sejam civilmente responsáveis, o que, com suficiente segurança e certeza, permite concluir que, salvo naquelas situações, a responsabilidade assumida pela seguradora cobrirá todos os casos em que o segurado, por si ou por quem tem responsabilidade civil, não haja contribuído para o incêndio"; e, não se tendo "logr[ado] provar que o sinistro foi causado pelo segurado ou por pessoa por quem seja civilmente responsável", terminou-se a confirmar a procedência da ação (e a responsabilidade da seguradora) determinada na 2.ª Instância.
Não se ignora - a própria recorrente não o oculta e a recorrida, tendo em vista a inadmissibilidade do presente recurso de uniformização, não deixa de o mencionar - que os factos provados em ambos os acórdãos não são exatamente iguais: enquanto no acórdão recorrido se provou que o incêndio teve origem em intervenção dolosa/criminosa de terceiro não identificado, no acórdão fundamento a origem do incêndio não foi/ficou apurada.
Sucede que, para a admissibilidade dum Recurso de Uniformização de Jurisprudência, não é decisivo e relevante que haja uma completa e total identidade quanto aos factos, bastando, para não se perfilar obstáculo à admissibilidade dum tal Recurso, que "o núcleo da situação de facto, à luz da norma aplicável, seja idêntico", que "os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes num e noutro caso".
Por outras palavras, a identidade dos factos apurados não tem que ser integral, bastando que os mesmos sejam análogos e equiparáveis e que seja sobre uma comum e fulcral questão factual que incidem as respostas divergentes dos acórdãos.
O que é indiscutivelmente o caso do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, em que o núcleo, idêntico, da situação de facto se circunscreve à ocorrência, comum a ambos os litígios, dum incêndio, existindo, também em termos idênticos, um contrato de seguro cobrindo o risco de incêndio e sendo, em ambos os contratos de seguro, idênticas as cláusulas contratuais respeitantes à cobertura/risco em causa.
Como já foi referido, a única não coincidência factual entre os acórdãos reside no que num e noutro processo se demonstrou quanto à origem do respetivo incêndio: enquanto, repete-se, no acórdão fundamento se provou que o incêndio teve origem em intervenção dolosa/criminosa de terceiro não identificado, no acórdão fundamento a origem do incêndio não foi/ficou apurada.
Do que também decorre que a solução interpretativa (e o critério normativo) do acórdão fundamento - quanto ao que se deve entender/interpretar por "incêndio" para efeitos do respetivo contrato de seguro celebrado, tendo em vista decidir se o concreto incêndio ocorrido pode/deve ser considerado coberto pelo respetivo contrato de seguro celebrado - aplicada aos factos que estão provados no acórdão recorrido conduz e determina, neste, o resultado oposto.
Efetivamente, se a solução propugnada e seguida no acórdão fundamento for aplicada aos factos apreciados no acórdão recorrido, o resultado deste será a procedência da revista, com a consequente procedência da ação, uma vez que, não tendo sido feita a prova de quem causou o incêndio (embora se haja provado a sua causa/origem dolosa), não ficou feita a prova do incêndio derivar, direta ou indiretamente, de ato ou omissão dolosa do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis e, sublinha-se, só nesta hipótese, segundo o acórdão fundamento, a risco incêndio se pode dar como excluído e não coberto pelo contrato de seguro (com estas concretas cláusulas).
O que apenas corrobora a essencialidade da divergência/contradição da solução defendida no acórdão fundamento.
É certo - não se omite - que a inversa não é verdadeira, ou seja, a solução propugnada e seguida no acórdão recorrido, aplicada aos factos apreciados do acórdão fundamento, não altera o resultado deste, uma vez não foi feita (no acórdão fundamento) a prova da origem do incêndio e se estabeleceu, no acórdão recorrido, como solução e critério normativo, que "a articulação entre as duas cláusulas permite dizer que o risco de incêndio cobre todos os incêndios comprovadamente acidentais e ainda aqueles cuja causa/origem não se haja logrado determinar".
Mas, salienta-se, o que é mesmo relevante para a essencialidade da divergência/contradição é que a solução defendida no acórdão fundamento, aplicada aos factos provados do acórdão recorrido, conduza a um resultado oposto no acórdão recorrido.
O acórdão fundamento, atentos os factos nele fixados, podia, para chegar ao mesmo resultado (confirmar a procedência da ação e conceder a indemnização), ter-se limitado a fixar como solução interpretativa (e critério normativo) que todos os incêndios cuja causa/origem não se haja logrado determinar a origem ficam cobertos pelo contrato de seguro celebrado (com aquelas concretas cláusulas), porém, não foi isto que fez e foi "mais longe" na solução interpretativa (e critério normativo) fixada, estabelecendo, repete-se uma última vez, que o contrato de seguro deve ser interpretado como cobrindo todo o risco de incêndio que não derive, direta ou indiretamente, de ato ou omissão dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis, acrescentando/esclarecendo que a seguradora cobrirá todos os casos em que o segurado, por si ou por quem tem responsabilidade civil, não haja contribuído para o incêndio.
E é justamente aqui - no que o acórdão fundamento foi "mais longe" na solução interpretativa - que se situa a sede e o centro da essencialidade da divergência/contradição".
Foi aberta vista ao Ministério Público que emitiu parecer, nos termos do artigo 695.º e 687.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, concluindo nos seguintes termos:
"Num contrato de seguro, havendo uma cláusula que define incêndio como «combustão acidental» e outra cláusula que exclui do objeto do seguro os danos «que derivem, direta ou indiretamente, de [...] actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis», a impressão de um destinatário normal/médio tem de ser que o risco de incêndio contratado não cobre incêndios causados dolosamente, por quem quer que seja".
III - Admissibilidade do presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.
1 - Requisitos gerais.
Nos termos do artigo 688.º, n.º 1, do Código de Processo Civil:
"As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito".
A admissibilidade do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência depende do preenchimento dos seguintes requisitos legais:
1.º Existir contradição entre dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Justiça (o acórdão recorrido e o acórdão fundamento);
2.º Verificar-se tal oposição no âmbito do mesmo quadro legislativo aplicável à situação de facto que cada um deles apreciou;
3.º Ocorrer divergência quanto à questão fundamental de direito abordada nos dois arestos, essencial e decisiva, verificando-se antagonismo directo e insanável entre as respectivas ratio decidendi, daí resultando que aplicada ao acórdão recorrido a doutrina perfilhada no acórdão fundamento o resultado final (procedência ou improcedência da acção) seria necessariamente diverso e vantajoso para o recorrente (sendo neste contexto ignoradas, por irrelevantes, eventuais diferenças ao nível das questões de facto sobre que versaram, desde que não desvirtuem a essencialidade da oposição ou conflito no domínio da questão fulcral de direito que presidiu a ambos os acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça).
4.º Inexistir acórdão uniformizador de jurisprudência concordante com a interpretação da questão fundamental de direito perfilhada no acórdão recorrido, nos termos do n.º 3 do artigo 688.º do Código de Processo Civil.
Na situação sub judice poder-se-á suscitar ainda a pertinente questão de saber se não nos encontraremos perante simples divergências ao nível da casuística interpretação jurídica de uma cláusula contratual geral, voluntariamente firmada entre os celebrantes ao abrigo da sua liberdade de celebração e estipulação (artigo 405.º do Código Civil), que não proporcionará, no plano normativo, um efectivo e essencial conflito entre decisões jurisdicionais que têm por objecto a aplicação de uma disposição legal concreta a determinada situação de facto, o que retiraria, por si, fundamento e necessidade prática à intervenção uniformizadora avocada pelo recurso extraordinário de que a recorrente se socorreu.
Ou seja, tratar-se-ia, nessa hipótese e segundo tal perspectiva, da análise do conteúdo de um negócio de natureza privada que fora concluído entre as partes, relativamente ao qual não competiria ao Supremo Tribunal de Justiça intrometer-se e impor, por via uniformizadora, o seu sentido (interpretação do respectivo âmbito e alcance), devido à ausência de efectiva e essencial contradição ao nível da sua normatividade abstracta.
Entendemos não ser assim.
É certo que o centro da discussão doutrinária e jurisprudencial de que os autos dão notícia incide sobre a interpretação de um determinado conteúdo - o conceito de "incêndio" para efeitos de cobertura do seguro - que não se encontra expressamente vertido, em termos formais, num texto ao qual tivesse sido conferida força de lei, antes se contendo nas condições gerais e particulares da respectiva apólice.
Ou seja, a análise da situação de facto sobre a qual incidiram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça em oposição reporta-se inegavelmente ao exacto conteúdo de um negócio (contrato de seguro) pertinente ao círculo do relacionamento entre particulares.
De todo o modo, do que verdadeiramente se trata quando se questiona a admissibilidade, na situação sub judice, do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência que foi oportunamente interposto, é da acesa e generalizada discussão (com forte incidência prática) acerca do próprio regime legal respeitante ao contrato de seguro de incêndio que constituiu tradicionalmente o paradigma do contrato de seguro de danos, e que, sobre o ponto concreto ora em dissidência, fez incidir o foco da doutrina e da jurisprudência, com reflexo necessário no ordenamento e regulação dos casos da vida que se foram sucedendo e cuja resolução foi por elas decisivamente influenciada.
Não há dúvida de que, podendo (e talvez devendo) o legislador ter adoptado um conceito densificado de incêndio, para efeitos de definição do sinistro típico coberto por este tipo de seguro, expresso em letra de lei, não o fez.
Porém, o mesmo legislador optou por remeter implicitamente tal tarefa para a liberdade contratual das partes, tendo tido lugar, a este respeito, no que concerne aos seguros obrigatórios, a oportuna e pertinentes intervenção de uma entidade administrativa reguladora e supervisora da actividade seguradora - o Instituto de Seguros de Portugal, actual ASF (Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões), que fez publicar, em Jornal Oficial, em relação a seguros obrigatórios, o conceito padrão que preencheria esse elemento essencial - a figura do sinistro incêndio - integrante do regime legal deste tipo de contrato seguro e que veio a ser assumido como tal, de forma geral e absolutamente abrangente, por toda a comunidade envolvida na celebração destes negócios jurídicos.
Refira-se, a este propósito, que o Instituto de Seguros de Portugal foi criado pelo Decreto-Lei 302/82, de 30 de Julho, com a extinção do Instituto Nacional de Seguros e a Inspeção Geral de Seguros, tendo a natureza de instituto público, dotado de personalidade jurídica, com autonomia administrativa e financeira, prosseguindo como objectivo primordial o exercício da coordenação e fiscalização da actividade de seguros e de resseguros e da respectiva mediação, e sendo tutelado pelo Ministério das Finanças.
Constitui sua especial atribuição, nos termos do artigo 4.º, alínea c), do Decreto-Lei 302/82, de 30 de Julho, "estabelecer apólices uniformes e tarifas obrigatórias para determinados ramos ou modalidades de seguros".
Veio, entretanto, a ser aprovado novo "Estatuto" do Instituto de Seguros de Portugal, através do Decreto-Lei 251/97, de 26 de Setembro, a que sucedeu entretanto um novo regime introduzido pelo Decreto-Lei 289/2001, de 13 de Novembro.
Foi finalmente substituído pela ASF (Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões), através do Decreto-Lei 1/2015, de 6 de Janeiro.
(Sobre o Instituto de Seguros de Portugal e subsequentes vicissitudes quanto às vestes administrativas que passou a assumir, vide António Menezes Cordeio, in "Tratado de Direito Civil", II, Parte Geral, Almedina, Fevereiro de 2021, a páginas 313 a 325).
E assim, por efeito de iniciativa administrativa de regulamentação que foi de pleno assumida pelo ordenamento jurídico nacional, acabou completado na prática, em termos abrangentes e generalizados, o quadro legal do regime do seguro de incêndio, que veio a obter acolhimento prático em todos os seguros deste tipo, definindo o quadro integral dos direitos e deveres conferidos sinalagmaticamente à seguradora e aos segurados.
Note-se que tal regime foi adoptado, sem nenhuma divergência que se conheça, no quadro dos seguros facultativos em que foi sistemática e invariavelmente adoptada a definição uniformizadora do conceito de incêndio nos termos da norma regulamentar prevista para os seguros de natureza obrigatória, isto é:
"A combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios".
O que significa que, abrangendo todo o relacionamento jurídico entre as entidades seguradoras e os consumidores interessados na cautela e segurança concedidas pela celebração de um contrato de seguro de incêndio, este regime legal importou directamente o conceito de sinistro incêndio padronizado e uniformizado pela entidade competente, à época - o Instituto de Seguros de Portugal -, que veio a ser igualmente adoptado, tipo decalque, no esmagadora maioria (senão totalidade) dos seguros facultativos de incêndio.
(Ousamos mesmo afirmar, sem o menor risco de errar, que 99,99 % dos contratos de seguro facultativo de incêndio adoptam invariavelmente o conceito de incêndio (sinistro) que se encontra há muito padronizado para os contratos de seguro obrigatório e que corresponde ao transcrito supra).
Assim se compreende e se explica o interesse e a pertinência do conflito jurisprudencial e doutrinário sobre este tema que ora nos ocupa - saber se os actos dolosos de incêndio praticados por terceiros são ou não abrangidos pela cobertura geral do contrato de seguro (obrigatório ou facultativo) -, de cariz amplo e generalizado, que perdura há mais de vinte anos, interessando com particular acuidade a comunidade jurídica e conferindo pleno cabimento e absoluta justificação ao recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, uma vez que se trata, no fundo e na prática, da fixação e concretização do conteúdo ao próprio regime jurídico referente ao seguro de incêndio, regulamentado em conformidade com aquela que foi a vontade do legislador ordinário nesta matéria.
E será obviamente inquestionável que está em causa, independentemente da sua origem em clausulado contratualizado pelas partes, uma questão fundamental de direito (contemplada na legislação respectiva) - tal como esse requisito consta do artigo 688.º do Código de Processo Civil - que divide, em assumido e continuado conflito jurídico, a jurisprudência nacional e que importa, com toda a pertinência e actualidade, dilucidar.
Tudo se joga, no fundo e na prática, no plano da normatividade do próprio contrato de seguro de incêndio, tal como a lei o contemplou e é praticado e vivenciado na comunidade jurídica, que sempre teria de pressupor uma definição conceptual e operativa da figura de incêndio enquanto sinistro coberto pela sua previsão típica, adoptando-se nesse sentido a expressão "combustão acidental" que nunca veio, enquanto tal, a sofrer qualquer alteração nos diversos contratos de seguro celebrados (quer obrigatórios, quer facultativos).
Ou seja, quando hoje discutimos o âmbito e alcance do conceito de "combustão acidental", o que verdadeiramente questionamos é o âmbito e o alcance do próprio conteúdo do contrato de seguro de incêndio, tipicado na lei, tendo sido precisamente nesses termos que teve lugar a oposição jurisprudencial de que demos notícia, a qual, em vez de incidir, no essencial, sobre a interpretação da vontade casuísta das partes sobre um negócio composto pelas cláusulas que bem entendessem, debruçou-se directamente, enquanto questão fundamental de direito, sobre a leitura a fazer daquela mesma expressão (saber se incluía, ou não, em si os actos dolosos de terceiro), assumida e perfeitamente consolidada pela prática vigente na comunidade nacional.
O que a eleva ao plano da normatividade geral, não condicionada à apreciação individual e atomizada da interpretação da vontade das partes, no qual esta temática deverá ser devidamente aprofundada, debatida e esclarecida, através da intervenção orientadora, persuasiva e clarificadora do Supremo Tribunal de Justiça.
Pelo que se impõe, a nosso ver, a presente uniformização jurisprudencial.
(Versando, aliás, uma situação em que o próprio Supremo Tribunal de Justiça concluiu que deveria abordar e decidir, apesar de o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência assumir e deter um carácter tipicamente normativo, matéria respeitante ao conteúdo e âmbito de uma cláusula geral (in casu respeitante à figura do abuso de direito prevista no artigo 334.º do Código Civil), vide o acórdão uniformizador n.º 14/2016, de 5 de Julho de 2016 (relator Lopes do Rego), proferido no processo 752-F/1992.E1.A.S1, e publicado no Diário da República 1.ª série, n.º 208, em 28 de Outubro de 2016.
E francamente não se vê outro caso mais exposto e aberto à extrema variedade, volatilidade e multiplicidade das situações concretas e particulares da vida, a subsumir no conceito amplo previsto no artigo 334.º do Código Civil, que a actuação singular de um sujeito que, sem previsão diferenciada em tipo legal, incorre na prática de actos qualificáveis como de abuso de direito, e que foi, naquele caso concreto - ainda com alguma (vencida) resistência - uniformizado pelo Supremo Tribunal de Justiça, gerando um relevante precedente que legitima uma maior abertura e menor rigidez formal à decisiva função de uniformização da jurisprudência, a realizar pelo tribunal de cúpula de todo o sistema judicial).
2 - Da concreta oposição de julgados.
Concordando-se inteiramente com o despacho de admissão deste recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência proferido pelo Exmº. Sr. Conselheiro António Barateiro Martins, relator do acórdão recorrido, afigura-se-nos que se encontra efectivamente assegurada a respectiva admissibilidade, face ao preenchimento de todos os requisitos enunciados supra.
O que é atestado pelas seguintes razões:
1.º O acórdão recorrido, proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, em 9 de Junho de 2021, versou sobre uma situação de responsabilidade da entidade seguradora pelos danos que tiveram origem num incêndio em imóvel do segurado com base na interpretação de uma cláusula constante do contrato de seguro e perante o regime legal estabelecido pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril.
2.º O acórdão fundamento, proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, em 21 de Maio de 2020, versou sobre uma situação de responsabilidade da entidade seguradora pelos danos que tiveram origem num incêndio em imóvel do segurado com base na interpretação de uma cláusula constante do contrato de seguro e perante o regime legal estabelecido pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril.
3.º O teor dessa cláusula contratual geral, correspondente à cláusula padrão fixada pelo Instituto de Seguros de Portugal (actual Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões) para os seguros obrigatórios (e, na prática, totalmente extensiva aos seguros facultativos), de cuja interpretação dependeu decisivamente a cobertura, ou não, do sinistro pelo contrato de seguro, era exacta e literalmente o mesmo nas duas situações em confronto.
4.º No acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, em 9 de Junho de 2021, entendeu-se que a Ré seguradora não era responsável pelo pagamento dos danos provocados no imóvel, em virtude do incêndio, interpretando-se a referida cláusula contratual que define o sinistro incêndio como "combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios", no sentido de excluir do seu âmbito e alcance as situações em que o incêndio fosse dolosamente provocado por terceiro, ainda que sem demonstração da identidade do respectivo autor.
5.º Diferentemente, no acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça em 21 de Maio de 2020 entendeu-se que a Ré seguradora seria responsável pelo pagamento dos danos provocados no imóvel, em virtude dos danos provocados pelo incêndio, interpretando a referida cláusula contratual no sentido de a mesma não excluir do seu âmbito e alcance as situações em que o incêndio fosse dolosamente provocado por terceiro, ainda que sem demonstração da identificação do respectivo autor.
6.º A diferença não essencial (para estes efeitos) no núcleo factual entre os dois arestos, não afastando de modo algum o mencionado conflito na interpretação da cláusula contratual, não é, para a aferição da aplicabilidade do artigo 688.º do Código de Processo Civil, relevante ou suficiente no sentido de afastar a pretendida uniformização de julgados: no acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça em 9 de Junho de 2021 provou-se a causa dolosa do incêndio, imputável a terceiro (que não o segurado ou pessoa por quem fosse civilmente responsável); no acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça em 21 de Maio de 2020 não se provou a causa do incêndio.
(Nota-se ainda que no acórdão fundamento, proferido em 21 de Maio de 2020, no processo 15910/17.8T8PRT.P1.S1, foi afirmado a este propósito:
"(...) a expressão "combustão acidental" ínsita na definição de incêndio constante do artigo 9.º, das Condições Gerais da Apólice, só pode significar que o contrato de seguro cobre o risco de incêndio que não derive, directa ou indirectamente, de acto ou omissão dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis. Na verdade, como causa de exclusão geral da responsabilidade contratual da ré apenas se prevêem os actos ou omissões dolosas do tomador, segurado ou pessoas por quem sejam civilmente responsáveis (artigo 7.º, n.º 1, alínea e), das Condições Gerais), o que, com suficiente segurança e certeza, permite concluir que, salvo naquelas situações, a responsabilidade assumida pela seguradora cobrirá todos os casos em que o segurado, por si ou por quem tem responsabilidade civil, não haja contribuído para o incêndio", indo assim este aresto para além do que poderia ter-se limitado a afirmar face à matéria provada nesses autos e expressando, em termos abertos e inequívocos, o conflito jurisprudencial em causa, que é aliás objectivamente patente e irrecusável.
Ou seja, o que foi dito no acórdão fundamento é muito claro e não permite diferentes leituras neste ponto: o que foi verdadeiramente decisivo, no entender do Supremo Tribunal de Justiça, nessa ocasião, para negar a respectiva revista foi o facto de se concluir que, independentemente da prova quanto à causa concreta do sinistro-incêndio, o mesmo estaria sempre coberto pelo seguro, na exacta medida em que a sua exclusão apenas teria lugar se tivesse sido provocado pelo segurado ou por pessoa por quem este fosse civilmente responsável, o que logicamente significa que o incêndio dolosamente provocado por terceiro integra-se, segundo o veredicto do mesmo Supremo Tribunal, no âmago da interpretação do conceito "combustão acidental".
Para se alcançar, facilmente e com toda a segurança, esta conclusão essencial e decisiva basta ler o remate final do acórdão fundamento quando aí se afirma, sem margem para quaisquer dúvidas quanto à ratio decidendi desse aresto:
"Ora, no caso em apreço, atenta a factualidade provada, é patente que a ré (seguradora) não logrou provar que o sinistro foi causado pelo segurado ou por pessoa por quem seja civilmente responsável, pelo que - como acertadamente se decidiu no acórdão recorrido - não se vê como isentá-la da responsabilidade de indemnizar a autora pelos danos sofridos").
7.º Pelo que independentemente da referida circunstância - diferença no conjunto do núcleo factual dado como provado num e noutro processo - , o que é inegável e absolutamente fulcral para a admissibilidade deste recurso extraordinário, é que existe, quanto à questão fundamental de direito decidida a título principal nos dois acórdãos, um antagonismo normativo directo, frontal e insanável, do qual resulta que aplicando a doutrina assumida no acórdão fundamento ao acórdão recorrido, no que poderá apelidar-se, para estes efeitos, como a "prova do algodão", o resultado final seria o diametralmente oposto ao veredicto proferido: o recorrente que, no acórdão recorrido, perdeu a acção por força da interpretação perfilhada quanto à cláusula contratual que, no seu âmbito, não integrava os incêndios causados dolosamente por terceiro, forçosamente a venceria estribando-se na interpretação oposta e perfilhada no acórdão fundamento, no sentido de que a cláusula contratual só não abrangeria os incêndios causados pelo segurado ou por pessoa de quem fosse civilmente responsável, cobrindo no seu âmbito e alcance os incêndios devidos à acção voluntária e propositada de terceiro (identificado ou não).
Não se esqueça ainda que tal divergência essencial de entendimento, de cariz normativo, entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido traduz, na interpretação assumida num e noutro dos arestos, um dissídio jurídico que se prolonga no tempo (há decadas), sucessivamente propiciador de novas decisões jurisprudenciais antagónicas e inconciliáveis, que importa finalmente, e de uma vez por todas, esclarecer e uniformizar.
8.º Ou seja, o que está fundamentalmente em causa, e que aqui cumpre verdadeiramente relevar, é a existência de duas leituras hermenêuticas realizadas pelo órgão jurisdicional de última instância em relação ao mesmo segmento normativo essencial, que se encontra sujeito a um enquadramento jurídico comum e uniforme, que produziram resultados jurídicos totalmente incompatíveis e inconciliáveis, oferecendo e rejeitando ao mesmo tempo pretensões alicerçadas em idêntica estrutura e no mesmo fundamento factual e jurídico, o que acarreta e traduz inevitável pertubação e grave prejuízo para o prestígio e respeitabilidade do sistema judicial, bem como para a segurança e certeza na aplicação da lei a todos os cidadãos que devem encontrar-se, em termos da análise substantiva e julgamento final da realidade normativa em equação, num plano de absoluta e total paridade, do ponto de vista material, bem como das respostas ou soluções concretas fornecidas pelo sistema ao seu caso.
9.º Cumpre notar que o conceito de sinistro-incêndio encontra-se, na prática dos contratos de seguro de incêndio celebrados em Portugal, efectivamente padronizado, na sequência da intervenção das Normas Regulamentares emitidas pelo Instituto de Seguros de Portugal (actual ASF) e publicados em Jornal Oficial, congregando um único conceito de "incêndio" em relação a todos os contratos de seguro - o que foi livremente importado nos seguros facultativos -, que o incluem com o seu exacto e invariável teor, o que significa que a divergência jurisprudencial sobre o seu sentido corresponderá necessariamente a uma disparidade de tratamento conferido pelos tribunais a uma multiplicidade de situações com as mesmas características essenciais, gerando natural incompreensão e perturbadora incerteza para os respectivos destinatários, maxime os consumidores em geral.
10.º Não se vê assim, perante a evidenciada e manifesta divergência quanto à questão fundamental de direito que se assinala, à luz do mesmo enquadramento legislativo e que foi absolutamente decisiva para a sorte da lide (tal como exige o artigo 688.º do Código de Processo Civil), como se possa, em termos razoáveis, equitativos e conscienciosos, negar ao recorrente o seu elementar direito a ver, por via da interposição do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, reapreciados os fundamentos da acção e eventualmente alterada a decisão proferida em última instância, para além de se fazer apelo à sempre oportuna e altamente conveniente - como muito bem se compreende - uniformização da jurisprudência enquanto vocação primeira e mais nobre do Supremo Tribunal de Justiça, visando aportar segurança ao sistema e evitar litígios futuros sobre a mesma matéria (que certamente se sucederão).
Admite-se, portanto, o presente recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência.
IV - Objecto do recurso de uniformização de jurisprudência. Interpretação, através da contribuição das regras definidas no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil (teoria da impressão do destinatário), do âmbito e alcance da cláusula contratual geral inserta no contrato de seguro respeitante ao sinistro "Incêndio", definido como a "combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios". Debate sobre a inclusão ou exclusão do incêndio causado dolosamente por terceiro (ainda que não identificado) no conceito-base do contrato de seguro de incêndio. Equilíbrio das prestações entre os interesses da seguradora e do segurado. Conclusão a retirar em sede de segmento uniformizador.
A questão jurídica controvertida - que cumpre analisar no plano da sua normatividade - centra-se na definição do âmbito e alcance da cláusula contratual geral ínsita no contrato de seguro facultativo celebrado entre as partes e no qual se densificou o conceito correspondente ao sinistro "Incêndio" nos seguintes termos: para efeitos de cobertura do seguro, consiste no fenómeno descrito como "combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios".
Assim, importará concretamente saber se tal fórmula, de carácter genérico e abstracto, deverá ser interpretada no sentido de abranger não só o incêndio de origem casual ou fortuita, mesmo que com a participação negligente do segurado mas sem intervenção humana dirigida propositadamente à sua eclosão, ou, de forma mais ampla e favorável ao segurado, o incêndio dolosamente provocado por terceiro (excluindo o segurado e/ou pessoa por quem seja civilmente responsável), ainda que não seja identificada a concreta autoria do acto.
Isto em eventual consonância ou conjugação com a cláusula de exclusão de cobertura onde se prevêem os "actos ou omissões dolosas do Tomador do seguro, do Segurado, ou de pessoas por quem seja civilmente responsável", pelo facto de nenhuma outra cláusula de exclusão incluir, em termos estritamente formais e no seu efeito excludente, os actos dolosos de incêndio praticados por terceiro.
O que significa apurar, aproveitando a contribuição prestada pelo critério legal referente à impressão do destinatário (segurado), expresso no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil, se tal cláusula reclama uma interpretação mais lata (conjugada com a cláusula de exclusão de cobertura que apenas alude à responsabilidade do segurado ou de pessoa de quem seja civilmente responsável), que integre, no âmbito de cobertura do contrato de seguro, os actos dolosos praticados por terceiros causadores do sinistro incêndio, ou, pelo contrário, uma interpretação mais restrita, confinando-se nesses termos a cobertura do seguro ao incêndio de origem meramente acidental, não provocado, em qualquer circunstância, por mão humana (intencional).
Os argumentos sustentados pela recorrente reconduzem-se, no essencial, ao seguinte:
1.º É errado relacionar os termos "combustão acidental" com a combustão que não resulta de um acto voluntário de alguém, sendo que um normal declaratário, não jurista, - caracterizado como o tomador médio do seguro, sem especiais conhecimentos jurídicos, que lê as condições gerais com atenção e que razoavelmente as aprecia - entenderá a expressão com o significado de combustão imprevista ou inesperada.
2.º Pelo que se trata de saber se, do ponto de vista do segurado, a combustão era previsível ou imprevisível.
3.º Esta perspectiva harmoniza-se e articula-se com a cláusula de exclusão de cobertura do seguro de danos relativa aos que "derivem directa ou indirectamente de (...) actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado, ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis" que, sem a interpretação perfilhada pela recorrente tornar-se-ia redundante, desprovida de racionalidade e sem efeito útil.
4.º Tratando-se in casu de um contrato de adesão, sempre teria de prevalecer a interpretação do contrato mais favorável ao aderente.
Em sentido oposto, contra-argumentou a recorrida seguradora:
1.º O que está em causa não tem a ver com o desenvolvimento de um exercício teórico, abstracto e linguístico a expressão utilizada - "combustão acidental" - mas de definir a abrangência e seus limites da cláusula de cobertura de risco "Incêndio" estabelecido no contrato de seguro.
2.º É óbvia a natureza e origem imprevisível, fortuita, casual, como determinante para o preenchimento dos requisitos conceptuais daquela definição, afastando assim da cobertura do seguro o incêndio que tenha origem dolosa, intencional, criminosa.
Colocados, assim, os termos da questão jurídica a decidir, a sua análise obedecerá ao seguinte percurso:
1 - Contributo do critério interpretativo da cláusula do contrato de seguro, enquanto contrato de adesão e sujeito ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais previsto no Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro.
2 - Regime legal do contrato de seguro que tem por objecto os danos resultantes do sinistro "incêndio", tal como o conceito se encontra descrito nas condições gerais e particulares da apólice, e que constitui o acolhimento prático da padronização promovida pela entidade administrativa competente (Instituto de Seguros de Portugal, actual Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões - ASF -). Da sua aplicabilidade ao contrato de seguro facultativo. Âmbito e alcance do conceito de "combustão acidental". Cobertura, ou não, do seguro no caso de o incêndio ter sido provocado dolosamente por terceiro, ainda que não se prove a identificação do autor desse acto.
Apreciando:
1 - Contributo do critério interpretativo da cláusula do contrato de seguro, enquanto contrato de adesão e sujeito ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais previsto no Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro.
Constitui função e objectivo da interpretação do negócio jurídico evidenciar o concreto conteúdo normativo que irá reger a conduta das partes intervenientes, fixando-se o sentido do encontro vinculativo de vontades firmado entre elas.
Tal actividade não visa prosseguir, como desiderato, a mera reconstituição daquilo que terá sido a compreensão intelectual, por parte do receptor, da mensagem emitida pelo declarante individualmente considerado.
Diferentemente, há que apreender e tomar em consideração o sentido da declaração tal como a mesma é concebida na comunidade, embora se deva socorrer, para este mesmo efeito, à figura do declaratário normal.
(Sobre este ponto, vide Mota Pinto, in "Teoria Geral do Direito Civil", Coimbra Editora 2005, 4.ª edição, a página 441 a 443; Oliveira Ascensão, in "Direito Civil. Teoria Geral", Volume II, Coimbra Editora, 2003, 2.ª edição, a páginas 186 a 188).
O artigo 236.º do Código Civil fixa precisamente os respectivos princípios e os critérios interpretativos, ao determinar, no seu n.º 1, que:
"A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele".
Consagra, pois, a lei, em termos hermenêuticos, uma concepção objectivista da interpretação da declaração negocial, o que significa que importa apurar o sentido exteriorizado ou cognoscível, atestado pelos respectivos elementos objectivos, na vertente da interpretação normativa e não meramente psicológica.
Trata-se, no fundo, de apreender o elemento externo da declaração negocial, estritamente relacionado com a função do negócio em causa.
Conforme realça Henrich Ewald Horster, in "A Parte Geral do Código Civil Português", Almedina, Novembro de 2000, a página 510:
"(...) a interpretação parte, metodologicamente, de elementos objectivos para obter, através deles, como finalidade, o elemento subjectivo, na medida em que isto é possível".
Com efeito, segundo a teoria da impressão do destinatário consagrada no artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil o que interessa relevar não é a compreensão realizada pelo sujeito concreto ao qual foi dirigida a declaração, numa vertente estritamente subjectiva, mas o sentido da declaração recepcionada pelo declaratário razoável colocado na posição do real declaratário.
(Conforme refere António Menezes Cordeiro, in "Tratado do Direito Civil, II, Parte Geral", Almedina 2021, a página 729:
"E se o declaratário não observar a diligência devida, ficando aquém do "declaratário normal" previsto no artigo 236.º, n.º 1, 1.ª parte?
Estamos perante um encargo, mais do que em face de deveres directos. O declaratário-diligente vai, simplesmente e ex lege, ser tratado como "normal". O negócio será interpretado como se ele tivesse sido diligente, numa situação desvantajosa ou vantajosa, consoante os casos.").
Portanto, o que vale são os elementos que efectivamente conhecidos pelo destinatário, conjugados com os que, tratando de uma pessoa normalmente esclarecida, zelosa e sagaz, teria seguramente apreendido.
(refere Henrich Ewald Horster, in obra citada, a página 510: "A "normalidade" do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só pela capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante").
Conforme salientam Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", Volume I, Coimbra Editora, Limitada, 1987, 4.ª edição, revista e actualizada, a página 223:
"A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só pela capacidade para entender o texto e o conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante".
Claro que o legislador excepcionou a situação em que o declaratário conheça a vontade real do declarante que, nessas circunstâncias, prevalecerá nos exactos termos do n.º 2 do artigo 236.º do Código Civil.
(conforme refere, sobre esta matéria, António Menezes Cordeiro, in "Tratado de Direito Civil", II, Parte Geral, Almedina Fevereiro de 2021, a página 724:
"O contexto das cláusulas é decisivo. Nenhuma cláusula pode ser interpretada isoladamente: há que inseri-la na globalidade do negócio. Desde logo, as regras elementares da semântica a tanto conduzem. A língua portuguesa é rica em termos polissémicos, que apenas no contexto ganham o sentido que, no caso, lhes compita. De seguida, há as regras de coerência negocial a ter em conta: as cláusulas operam em conjunto, como um todo, apenas assim prosseguindo o intento das partes".)
Já no âmbito dos denominados contratos de adesão em que vigora o regime estabelecido pelo Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, os princípios a adoptar são exactamente os mesmos, mas será de ponderar, complementarmente, o princípio privativo deste tipo de negócios, segundo o qual, na dúvida quanto ao sentido da declaração negocial, deve a mesma ser interpretada "contra stipulatorem", desfavorecendo o autor das condições gerais pré-ordenadas e dirigidas a uma multiplicidade de contratos individuais e beneficiando correspectivamente o aderente - parte mais débil nesta relação - que não teve intervenção participativa na sua genérica concepção, em bloco e em massa.
É o que expressamente resulta do artigo 11.º, n.os 1 e 2, do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, encimado pela epígrafe "Cláusulas Ambíguas", segundo o qual:
"As cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição do aderente real" (n.º 1);
"Na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente" (n.º 2).
(vide, sobre esta matéria, Mota Pinto, in obra citada, a páginas 447 a 448).
Refira-se ainda, a este propósito, que o regime das cláusulas contratuais gerais é aplicável aos contratos que contenham cláusulas uniformizadas pelo Instituto Português de Seguros (actual Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões - ASF).
(Vide, sobre este ponto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 2016 (relator João Camilo), proferido no processo 852/13.4TBSTS.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt; sobre a mesma temática, vide também Arnaldo Filipe Oliveira, in "Contratos de Seguro face ao Regime das Cláusulas Contratuais Gerais", publicado in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 448, Julho de 1995, a páginas 69 a 85).
Conforme salienta Ana Prata in "Contrato de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais", Almedina, 2010, a página 304:
"Esta solução faz recair o risco da ambiguidade da cláusula sobre o respectivo predisponente, nos casos em que aquele não seja suscepível de fixação de um sentido unívoco por um aderente de comum diligência, o mesmo é dizer que faz impender sobre aquele um ónus de clareza".
De todo o modo, cumpre salientar que a prevalência e o favorecimento dos interesses do consumidor declaratário no âmbito da tarefa de interpretação do negócio jurídico nos contratos por adesão, em contraponto com os deveres de clareza e esclarecimento cabal que impendem sobre o declarante que comunica ao aderente as ditas cláusulas contratuais gerais, só relevam em caso de fundada dúvida interpretativa, devidamente justificada pela ambiguidade, ambivalência, deficiente redacção, ou obscuridade das expressões insertas no contrato de adesão que não tornam a sua leitura indubitável e unívoca.
(Conforme refere José Vasques in "Contrato de seguro", Coimbra Editora 1999, a página 354:
"Deve notar-se, no entanto, que a regra da interpretação mais favorável só se aplica na dúvida (isto é, quando, apesar de interpretada, a cláusula continua obscura ou admite mais do que um sentido), e não por forma a, sistematicamente, favorecer o segurado independentemente do resultado interpretativo resultante das regras gerais prévias").
Pelo contrário, se estivermos perante a leitura de uma cláusula que possa qualificar-se como clara, objectiva e isenta de interrogações sérias, realizada na sequência de um processo interpretativo transparente e rigoroso, usando de absoluta honestidade intelectual e que apure com total segurança o sentido exacto e correcto do conteúdo normativo contido no teor da cláusula do contrato a interpretar, na perspectiva do destinatário médio, não há motivo algum para, nessas circunstâncias, fazer funcionar o dito princípio "contra stipulatorem", que serviria nesse caso, tão somente, para penalizar de forma gratuita, excessiva, sistemática e preconceituosa, o predisponente e beneficiar, injustificada, cega e invariavelmente, o consumidor aderente.
(Sobre esta temática das denominadas "cláusulas ambíguas", vide também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 2021 (relator Henrique Araújo), proferido no processo 1479/17.7T8BJA.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt, onde se refere, citando Galvão Telles, in "Cláusulas Contratuais Gerais", página 32: "(.) não se formula neste n.º 1 (do artigo 11.º do Decreto-Lei 446/5, de 25 de Outubro) um critério específico para as cláusulas ambíguas ou duvidosas, antes se faz apelo ao critério geral do artigo 236.º, n.º 1, do Código Civil. Se mesmo assim, a dúvida persistir, prevalecerá o sentido mais favorável ao aderente"; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 2008 (relator Nuno Cameira), proferido no processo 08A053, publicado in www.dgsi.pt, onde se enfatiza que: "Tendo-se revelado possível fixar-lhe um sentido negocial unívoco, de harmonia com a impressão do destinatário e sem recorrer a elementos estranhos ao texto do contrato, fica vedado ao intérprete recorrer a este texto legal (concretamente o do artigo 11.º do Decreto-Lei 446/5, de 25 de Outubro)").
Tal como salienta António Menezes Cordeiro, in "Direito dos Seguros", Almedina 2016, 2.ª edição (revista e actualizada), a página 439:
"(...) o recurso à regra contra stipulatorum, embora útil e legítimo, tende a ser matizado. Repugna à Ciência do Direito a confecção de sub-sistemas de interpretação. Assim, só haverá ambuiguidade se as regras comuns dos artigos 236.º e seguintes do Código Civil não resolverem o problema, de modo que ela seja efectiva. Na presença de matéria clara, não há que recorrer ao artigo 11.º da LCCG".
(sobre esta temática vide outrossim o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2009 (relator Lopes do Rego), proferido no processo 2157/06.8.TVLSB.S1, publicado in www.dgsi.pt; o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Setembro de 2010 (relator Alves Velho), proferido no processo 1017/07.0TVLSB.L1.S1, publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ, Ano XVIII, Tomo III, 210, a páginas 101 a 104, e ainda o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Fevereiro de 2016 (relator Vieira e Cunha) proferido no processo 886/12.6TBFLG P1, publicado in www.dgsi.pt., onde se salienta que: "só haverá ambiguidade se as regras comuns dos artigos 236.º e seguintes do Código Civil não resolverem o problema, de modo que a referida ambuiguidade seja efectiva").
Já no que respeita concretamente às regras de interpretação do contrato de seguro, vide Moitinho de Almeida in "Contrato de Seguro - Estudos", Coimbra Editora 2009, páginas 116 a 137).
2 - Regime legal do contrato de seguro que tem por objecto os danos resultantes do sinistro "incêndio", tal como o conceito se encontra descrito nas condições gerais e particulares da apólice, e que constitui o acolhimento prático da padronização promovida pela entidade administrativa competente (Instituto de Seguros de Portugal, actual Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões - ASF -). Da sua aplicabilidade ao contrato de seguro facultativo. Âmbito e alcance do conceito de "combustão acidental". Cobertura, ou não, do seguro no caso de o incêndio ter sido provocado dolosamente por terceiro, ainda que não se prove a identificação do autor desse acto.
Conforme refere José Engrácia Antunes in "Direito dos Contratos Comerciais", Almedina 2019, a páginas 706 a 707:
"(...) o âmbito do risco coberto deve ser delimitado relativamente a cada contrato de seguro em concreto pelas próprias partes, constituindo um elemento obrigatório de qualquer apólice de seguro (artigo 37.º, n.º 2, alínea d) da LCS): tal implica, quer uma delimitação primária da respectiva "cobertura de base" - mediante a enumeração do conjunto de factos ou circunstâncias cuja ocorrência origina o dever de liquidação do sinistro por parte do segurador, realizada em função do objecto do seguro (v.g., saúde, edifício, automóvel), da causa do sinistro (v.g., morte ou doença, incêndio, acidente), do momento ou local da sua verificação (v.g., território nacional), etc, - quer uma delimitação secundária ou pela negativa das respectivas "exclusões" e "limitações" - v.g., actos dolosos do segurado, guerra, insurreição, terrorismo, greves, desastres nucleares (artigos 45.º e 46.º da LCS).".
O conceito de "risco" encontra-se, portanto, associado à (rigorosa) definição de "sinistro coberto", constituindo este o elemento nuclear e decisivo do tipo legal do contrato de seguro em causa que permitirá em cada situação determinar o âmbito e o alcance da responsabilidade da seguradora perante o segurado.
(Conforme salienta Cláudia Rosa Henriques, in "Seguro de Incêndio", artigo publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano LVIII, Janeiro/Dezembro, Ano de 2017, n.º 1-4, a página 286:
"O risco é o evento futuro e incerto, normalmente danoso, cuja verificação constitui o sinistro e dá lugar à atribuição patrimonial por parte do segurador. No seguro de incêndio, o risco que se segura é o de ocorrência de um incêndio que destrua os bens segurados, de forma a ficarem cobertos os prejuízos causados por esse incêndio. No entanto, este risco de incêndio carece de ser concretizado." - sublinhado nosso -).
No Código Comercial de 1888, o seguro de incêndio (nessa legislação designado por "fogo"), constituía a figura paradigmática entre o conjunto dos seguros de danos.
(cf. António Menezes Cordeiro, in "Direito dos Seguros", Almedina 2016, 2.ª edição (revista e actualizada), a página 821).
O respectivo regime jurídico encontrava-se previsto nos artigos 442.º a 446.º, determinando-se que:
"o seguro contra fogo compreende: (.) os danos causados pela acção do incêndio, ainda que este haja sido produzido por facto não criminoso do segurado ou de pessoas por quem seja civilmente responsável" (artigo 443.º, 1.ª).
Escreveu Cunha Gonçalves in "Comentário ao Código Comercial Português", Empresa Editora José Bastos, 1916, II Volume, a página 567:
"(...) o segurador terá que indemnizar os sinistros causados pelos terceiros pelos quais o segurado não é civilmente responsável: pois estes sinistros, em relação ao segurado, são devidos a caso fortuito, mesmo que esses terceiros tenham na cousa segurada direito em comum com o segurado. Assim, em França, já se julgou que o incêndio causado pelo marido não prejudica a parte da indemnização devida à mulher - solução que julgo admissível, somente, sendo esta casada sob o regime de separação ou dotal, e não quando o regimen é o da comunhão".
Por sua vez, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 1970, publicado in BMJ n.º 201, páginas 165 a 169, concluiu-se que "a circunstância de o incêndio haver sido provocado por terceiros, não a exonera da responsabilidade assumida pelo contrato de seguro", na medida em que: "(...) resulta do disposto no artigo 443.º, n.º 1, do Código Comercial, segundo o qual o seguro contra fogo compreende os danos causados pela acção do incêndio, ainda que este haja sido produzido por facto não criminoso do segurado ou de pessoa por quem seja civilmente responsável, de onde tem de concluir-se que, só o incêndio criminoso, provocado por qualquer das referidas pessoas, isenta a seguradora de responsabilidade, visto que aquele preceito legal, segundo Cunha Gonçalves, constitui excepção à regra geral do n.º 3 do artigo 437.º do Código Comercial, que abrange a mera culpa das ditas pessoas como causa da ineficácia do seguro".
Tal aresto afirmou a doutrina que considera "(...) ser causal, no sentido técnico-jurídico, o incêndio para que o segurado não concorreu dolosamente ou pessoa por quem ele seja civilmente responsável".
Este acórdão foi objecto de anotação concordante por parte de Vaz Serra, in "Revista de Legislação e Jurisprudência", Ano 104.º, n.º 3456, a páginas 233 a 239.
Enfatizou o autor:
"Parece até concluir-se desta disposição (o artigo 443.º, n.º 1, do Código Comercial) que só o incêndio criminoso produzido por facto do segurado ou de pessoa por que seja civilmente responsável exclui a obrigação do segurador. Afigura-se-nos que, se o dano for causado por facto doloso do segurado, não existe a obrigação do segurador, pois seria inadmissível que alguém pudesse exigir indemnização do seguro quando tiver dolosamente, intencionalmente, dado causa aos danos: assim "facto criminoso" significa acto doloso.".
(Adoptando idêntica posição face à vigência do artigo 437.º do Código Comercial, vide Antunes Varela in "Revista de Legislação e Jurisprudência", Ano 103.º, 10 de Maio de 1970, páginas 30 a 32).
Esta interpretação teve ainda em conta do disposto no artigo 439.º do Código Comercial de 1888 em que se preceituava:
"São a cargo do segurador todas as perdas e danos que sofra o objecto segurado devidos a caso fortuito ou de força maior de que tiver assumido os riscos".
No mesmo sentido, foi entendido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Novembro de 1978 (relator Alves Pinto), publicado in BMJ n.º 281, a páginas 259 a 263:
"Um declaratário razoável, considerados os termos do contrato, os interesses em jogo e a consideração de qual seja o mais razoável tratamento, deduziria que a responsabilidade assumida pela segurado cobriria todos os casos em que o segurado, por si ou por quem tenha responsabilidade civil, não haja contribuído para o sinistro.
Não é para cobrir o risco de incêndio para que tenha contribuído ou pessoas por quem seja responsável que o segurado realiza o seguro, como não é para assumir um risco dessa natureza que o segurador aceita contratar.
O sentido juridicamente relevante da expressão "incêndio causal" é, pois, do ponto de vista de um declaratário concreto, suposta pessoa razoável, o de incêndio para o qual o segurado nada tenha contribuído ou por quem seja civilmente responsável, sentido esse que tem um mínimo de correspondência no texto interpretado e que, por isso, vale também, nos termos do artigo 238.º do Código Civil".
(Considerando que "não deixa de haver cobertura pelo facto de o incêndio ser intencionalmente causado por terceiro", vide António Menezes Cordeiro, in "Direito dos Seguros", Almedina 2016, 2.ª edição revista e actualizada, a página 823; no mesmo sentido, vide Cláudia Rosa Henriques, in obra citada supra, a páginas 293 a 294, referindo a autora que:
"(...) essa é a expectativa de quem contrata o seguro de incêndio. Portanto, à partida, os danos causados por incêndio estarão cobertos se não tiverem sido causados dolosamente pelo segurado ou por pessoa por quem seja civilmente responsável").
Seguindo esta linha doutrinária e jurisprudencial foram proferidos os seguintes acórdãos que buscaram o seu respaldo na tese que se deixou referida (e que agora é sustentada pela ora recorrente como forma de obter a revogação extraordinária do acórdão recorrido, já transitado em julgado):
- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Dezembro de 1999 (relator Miranda Gusmão), proferido no processo 99B828, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de Justiça de 9 de Janeiro de 2020 (relatora Ana Azaredo Coelho), proferido no processo 3311/16, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2 de Abril de 2009 (relator Jorge Leal), proferido no processo 4283/04, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2 de Março de 2009 (relator Fernandes do Vale), proferido no processo 0858042, publicado in www.dgsi.pt;
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25 de Junho de 2013 (relatora Maria João Areias), proferido no processo 7505/11.6TBVNG.P1, publicado in www.dgsi.pt, em que se conclui ainda que ser possível à seguradora exonerar-se da sua responsabilidade se constar como causa de exclusão das condições particulares da apólice o cometimento de actos de vandalismo (onde se inclui o atear premeditado de fogo em coisa alheia);
- acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Março de 2007 (relatora Deolinda Varão), proferido no processo 063732, publicado in www.dgsi.pt;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em 21 de Maio de 2020 (relatora Maria do Rosário Morgado), que constitui o nosso acórdão fundamento.
Apreciando:
A interpretação doutrinária e jurisprudencial que se deixou referida quanto ao âmbito e alcance do denominado "sinistro incêndio", realizada a partir do Código Comercial de 1888 e que influenciou a corrente a que se fez referência (que apenas excluía da cobertura do sinistro incêndio o evento dolosamente provocado pelo segurado ou pessoas por quem fosse civilmente responsável - e não o promovido intencionalmente por terceiro), não se debruçou porém sobre todas as especificidades concretas que se prendem com a estipulação de uma cláusula contratual geral que o define como "combustão acidental com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que neste possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios", em termos da sua exacta concepção pelas autoridades administrativas competentes e subsequente padronização (prática) a todos os contratos de seguro (obrigatórios ou facultativos), e que verdadeiramente, com a profundidade necessária, não chegou a discutir nem dissecar.
(Na mesmo linha de entendimento, o artigo 437.º, 3.º, do mesmo Código Comercial de 1888, na secção destinada em geral aos "seguros contra risco", limitava-se a prever então, em termos gerais, que "O seguro fica sem efeito: (...) se o sinistro tiver sido causado pelo segurado ou por pessoa por quem ele seja civilmente responsável").
Ora, o Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril, procedeu à revogação dos artigos 425.º a 462.º do Código Comercial aprovado por Carta de Lei de 28 de Junho de 1888, estabelecendo um novo regime respeitante ao "Seguro de Incêndio" que se encontra agora contemplado nos artigos 149.º a 151.º, do diploma, definindo-o, em termos singelos, como aquele que tem por objecto a cobertura dos danos causados pela ocorrência de incêndio do bem identificado.
(Sobre a evolução histórica da regulamentação dos seguros em Portugal e os novos desígnios prosseguidos pelo regime legal do contrato de seguro actual, vide Pedro Romano Martinez, in "Novo Regime do Contrato de Seguro", publicado na revista "O Direito", Ano 140.º, I, páginas 23 a 44; Cláudia Rosa Henriques, in "Seguro de Incêndio", artigo publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano LVIII, Janeiro/Dezembro, Ano de 2017, n.º 1-4, a páginas 280 a 283).
À semelhança do que acontecia na vigência do Código Comercial de 1888, este novo diploma legal não forneceu um conceito correspondente à necessária densificação da figura do incêndio enquanto sinistro que dá lugar à cobertura do seguro, apenas tendo tido a preocupação, expressa no respectivo artigo 150.º, n.º 1, de deixar claro que "a cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados por acção do incêndio, ainda que tenha havido negligência do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável" (o que corresponde exactamente ao disposto no artigo 443.º, n.º 1, do Código Comercial de 1888).
(Sublinhando a circunstância de inexistir na lei a consagração de um conceito de seguro contra fogo ou dos riscos que ele cobre, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Setembro de 1994 (relator José dos Santos Monteiro) proferido no processo 85.415, publicado in Colectânea de Jurisprudência/acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano II, Tomo III (1994), a páginas 73 a 74, onde se transcreve a definição de Cunha Gonçalves em comentário aos artigos 442.º e 443.º do Código Comercial - in "Comentário ao Código Comercial Português", Empresa Editora José Bastos, 1916, II Volume, a página 580 -, no sentido de que "Incêndio, material e juridicamente, é a combustão com chama, e, às vezes, com fumo, produzida por qualquer causa, de coisas que não eram destinadas a ser destruídas pelo facto"
Igualmente sobre a noção de incêndio para efeitos de cobertura do contrato de seguro, face à reconhecida ausência de previsão na lei da figura, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Março de 1971 (relator J. Santos Carvalho), sumariado in www.dgs.pt, no qual se adopta o conceito, correspondente, ao seu significado usual comum, de "produção de calor, luz e chama, mais ou menos intensos, mas sempre apercebíveis pelos sentidos, directamente").
Ainda sobre as alterações estruturais introduzidas pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril, relativamente ao Código Comercial de 1888, em matéria de seguro de incêndio, vide Pedro Romano Martinez e outros in "Lei do Contrato de Seguro", Almedina 2020, 4.ª edição, a páginas 506 a 507, onde pode ler-se:
"Apesar de a norma ter por fonte o artigo 443.º do Código Comercial, não há uma total identificação, porque algumas das soluções do regime do Código Comercial estão, agora, na parte geral do seguro de danos (...) Cabe esclarecer que muitas das regras que no Código Comercial surgem a propósito do seguro contra fogo - erigido neste diploma como figura paradigmática dos seguros de danos - foram inseridas na parte geral (dos seguros). De facto, no diploma de 1888, o seguro contra o fogo vem regulado em cinco preceitos, tendo agora o mesmo regime ficado reduzido a dois preceitos a que acresce a noção. No fundo, como parte das soluções consagradas no Código Comercial em sede de seguro de incêndio (seguro contra fogo) foram incluídas na parte geral do seguro de danos, aplicáveis aos diferentes seguros de danos com regime especial, a regulamentação deste seguro pôde ser sintetizada em dois preceitos").
Consta, a este respeito, do preâmbulo do Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril:
"A regulamentação do seguro de incêndio, atenta a previsão geral do seguro de danos, fica circunscrita ao âmbito e menções especiais na apólice".
Assim, em plena conformidade com a vontade do legislador, o conceito de incêndio, absolutamente essencial porque definidor dos exactos limites da cobertura deste tipo de seguro e do perímetro jurídico de responsabilidade da entidade seguradora, será apurado por remissão para as condições gerais e particulares da apólice, tal como venham a ser propostas pela seguradora e aceites pelo segurado, no domínio da autonomia privada e da liberdade contratual que lhes assiste, encontrando-se aí a solução para a questão jurídica em debate, sendo ainda, nesse mesmo plano, normatizado pela tipificação aberta do regime legal do seguro de incêndio (a necessitar, lógica e incontornavelmente, da imprescindível concretização).
(Refere Pedro Romano Martinez, in "O Novo Regime do Contrato de Seguro", publicado na Revista "O Direito", 140.º (2008), a página 42:
"A regulamentação do seguro de incêndio, atenta a previsão geral do seguro de danos, fica circunscrita ao âmbito e menções especiais na apólice"
Aludindo igualmente ao conceito de "incêndio", sem contudo o densificar, vide o artigo 115.º da Lei de Contrato de Seguro Belga).
A este mesmo propósito, refira-se que, ao invés do que sucede com a lei portuguesa, a Lei do Contrato de Seguro Espanhola - Lei 50/1980, de 5 de Outubro - no respectivo artigo 45.º, contém avisadamente uma definição de incêndio nos seguintes termos:
"Se considera incêndio la combustión y el abrasamiento com llama, capaz de propagarse de um objecto u objectos que no estaban destinados a ser queimados en el lugar y momento em que se produce."
(traduzindo: "Considera-se incêndio a combustão e a abrasividade com chama, capaz de propagar-se a um objecto ou objectos que não se destinam a ser queimados no lugar e no momento em que se produz").
No mesmo sentido, o Código Civil Francês no seu artigo L122-1, estabelece o próprio conceito de "incêndio" que assim delimita:
"Lassureur contre l'incendie répond de tous dommages causés par conflagration, embrasement ou simple combustion. Toutefois, il ne répond pas, sauf convention contraire, de ceux occasionnés par la seule action de la chaleur ou par le contact direct et immédiat du feu ou d'une substance incandescente s'il n'y a eu ni incendie, ni commencement d'incendie susceptible de dégénérer en incendie véritable"
(traduzindo:"A seguradora é responsável por qualquer dano causado por conflagração, inflamação ou combustão simples. No entanto, não será responsável, a menos que seja acordado de outra forma, por aqueles causados pela acção do calor ou pelo contacto directo e imediato do fogo ou de uma substância incandescente se não houver fogo ou o início de um incêndio que provavelmente degenerá em incêndio real").
Cumpre salientar que, in casu, o contrato de seguro, embora revista a natureza de seguro facultativo, e à semelhança do que sucede com a generalidade dos seguros desta natureza, teve por base e seguiu neste ponto o regime constante da parte uniforme das condições gerais e das condições especiais de seguro obrigatório de incêndio, inicialmente estabelecidas na Norma 18/2000-R, de 21 de Dezembro, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 16, de 19 de Janeiro de 2001, que definiu então o seu âmbito de aplicação a "todos os seguros obrigatórios de incêndio que cubram riscos situados em Portugal" (cf. artigo 1.º do Regulamento Interno 3/2001), sofrendo depois as alterações introduzidas pela Norma 13/2005-R, de 18 de Novembro, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 234, de 7 de Dezembro de 2005, 17, respeitante basicamente ao regime jurídico do pagamento dos prémios de seguro, e tendo sido finalmente revogada pela Norma 16/2008-R, de 18 de Dezembro, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 5, de 8 de Janeiro de 2009, páginas 697-703, que auto-limitou a sua esfera de aplicação ao conjunto dos seguros obrigatórios de incêndio para as fracções autónomas e as partes comuns dos edifícios constituídos em propriedade horizontal, sem comportar todavia qualquer novidade relativamente ao conceito-base de incêndio, já anteriormente padronizado de forma típica e abrangente.
Acresce que, nos termos do artigo 45.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, respeitante ao conteúdo do contrato de seguro: "As condições especiais e particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de seguro celebrado", o que se conjuga com o disposto no artigo 11.º do Regime do Contrato de Seguro, segundo o qual "O contrato de seguro rege-se pelo princípio da liberdade contratual, tendo carácter supletivo as regras constantes do presente regime, com os limites indicados na presente secção e os decorrentes da lei geral".
O presente contrato de seguro (facultativo) acolheu, como seria de esperar, o conceito padrão que fora previsto na Norma Regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal, com base no Regulamento 3/2001, de 21 de Dezembro de 2000, publicado no Diário da República n.º 16, de 19 de Janeiro de 2001 e nos diplomas que lhe sucederam - de que se deu notícia supra -, o que significa que consagrou a definição de incêndio, para valer no relacionamento contratual entre a seguradora e o segurado, correspondente à "combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que neste possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios".
É este, portanto, o conceito base que definirá e regulará verdadeiramente o âmbito de cobertura do contrato de seguro, delimitando-o em estrita conformidade, dele devendo ser extraídas, com o rigor e cuidado necessários, as ilações correspondentes.
Prevê-se, ainda, no mesmo contrato, enquanto cláusula de exclusão de cobertura da mesma apólice - e seguindo o que a mesma Norma Regulamentar também fixou a este propósito -, que o seguro não abrangerá, nos termos da cláusula 5.ª, alínea g) do contrato em causa:
- "actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis" (alínea g) do artigo 3.º da norma padrão)".
Ora, a análise destes normativos do contrato de seguro, seguindo e importando os conceitos padrão adoptados pela entidade administrativa de regulação e supervisão competente, habilita a concluir, a nosso ver, que a única interpretação plausível da expressão "combustão acidental", na perspectiva de um declaratário médio, não jurista, mas com um grau de compreensibilidade razoável, minimamente informado, sagaz e diligente, e que atendeu efectivamente ao teor da cláusula antes da verificação do sinistro, consistirá naquilo que a mesma, vulgar e comummente, transmite e representa: o deflagrar de um foco de propagação de calor e chamas que acontece por si, fruto de inadvertida casualidade, de modo contingente, assumindo-se como um acontecimento natural e fortuito, marcado pela genuína espontaneidade que é característica daquilo que não foi provocado artificialmente por acção humana livre e esclarecida, especificamente direccionada a operar esse concreto resultado danoso.
Neste sentido, a combustão acidental que configura o conceito de incêndio para efeitos de cobertura do seguro, num exercício de delimitação negativa da figura, não será certamente aquela que foi dolosamente provocada, através de um processo intencional e programado, com origem e causa bem definida, prosseguindo o sujeito actuante (identificado ou não) a finalidade concreta que consiste em fazer com que aconteça a destruição de um bem pelo atear voluntário de um fogo.
Se um indivíduo, prosseguindo as mais díspares finalidades ou adoptando insondáveis motivações, decide motu proprio deitar fogo a uma coisa, é óbvio que nenhum observador isento que actue como intérprete desta situação, posicionando-se com objectividade e honestidade intelectual, dirá que esse bem, danificado exclusivamente por efeito da acção humana, ardeu por acaso, de forma fortuita, devido a simples e inadvertido acidente.
Dirá antes, com toda a certeza e segurança, que se tratou de um acto de destruição intencional e propositada, imputável à (eventualmente maliciosa) vontade de alguém que assim o quis, não sendo fruto do acaso, mas da preparação racional e da implementação pensada do acto que está na base dessa conduta destrutiva, podendo constituir inclusive um facto de natureza criminosa.
O consumidor médio, interessado e diligente que atenta com um mínimo de cuidado e rigor, de forma isenta e objectiva, no teor desta cláusula, sem estar subjectivamente condicionado nos seus interesses particulares pela posterior verificação do sinistro incêndio (que infelizmente terá ocorrido), entenderá, naturalmente e com facilidade, o que aí consta: que o seguro cobre os casos em que o incêndio é acidental na sua causa (podendo porventura, designadamente através de um esforço patrimonial acrescido que se disponha a fazer, cobrir igualmente os actos dolosos - maliciosos ou de vandalismo - que se concretizem em actos de fogo posto, e que implicam por si um agravamento do risco para a entidade seguradora no âmbito de cobertura da apólice).
(Sobre o conceito de actos de vandalismo para efeito da cobertura ou exclusão do contrato de seguro vide o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Maio de 2007 (relator Pedro Lima Gonçalves), proferido no processo 2146/07.8, publicado in www.dgsi.pt).
Note-se que, sobre este ponto, observa Cláudia Rosa Henriques in obra citada supra, a página 308:
"Ao contrário do que acontece entre nós, em Espanha, a Ley do Contrato de Seguro (aprovada pela Ley 50/1980, de 8 de Outubro), no seu artigo 48.º prevê expressamente a obrigação da seguradora indemnizar os danos causados pelo incêndio quando o mesmo tenha origem em caso fortuito ou malevolência de estranhos, por se entender que não depende da vontade do segurado. Entendemos que esta situação se equipara ao vandalismo, pelo que questionamos se não seria preferível uma solução idêntica".
O que parece talvez sugerir, por mera dedução lógica, que a autora se disporá a aceitar afinal que a solução de fundo adoptada pelo legislador português nesta matéria, sendo divergente da que vigora no direito espanhol, não inclui portanto na cobertura do seguro de incêndio o evento danoso que tem origem em acto malévolo - porque doloso - de um terceiro que o provocou.
A norma espanhola (artigo 48.º) é, nesse sentido, bem clara ao prever que:
"El assegurador estará obligado a indemnizar los daños producidos por el incendio cuando este se origina por caso fortuito, por malquerencia de extraños, por negligencia propria o de las personas de quienes se responda civilmente" (para excluir seguidamente a responsabilidade da seguradora em relação a actos dolosos ou com culpa grave - nova diferença em relação ao regime do direito nacional - do segurado).
Por outras palavras, o incêndio que releva para a cobertura do seguro não é todo e qualquer que venha a deflagrar, independentemente da natureza da sua causa, mas apenas o que tem origem acidental, significando esta expressão que se trata do incêndio que aconteceu fortuitamente, de modo contingente, por motivo absolutamente alheio à actuação directa e premeditada de alguém que o quis voluntariamente atear.
No mesmo sentido, e reforçando a tutela da posição do segurado, considerar-se-á como resultante de combustão acidental, para efeitos de cobertura do seguro, o deflagrar de um incêndio para o qual contribuiu, mesmo decisivamente, a negligência do segurado (ainda que grosseira), descurando deveres de cuidado a que se encontrava obrigado, desde que não tenha agido dolosamente (no sentido da sua verificação).
(Em geral sobre a cobertura do contrato de seguro quanto a actos praticados pelo segurado com negligência grosseira determinante para a verificação do sinistro, mas não com dolo na obtenção desse resultado, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2018 (relator Joaquim Piçarra), proferido no processo 4051/10.9TBPTM.E1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
Com efeito, não sendo o incêndio provocado de propósito, isto é, dolosamente, com o fito de obter essa finalidade danosa, acaba por merecer sempre o qualificativo de acidental, ainda que porventura o segurado estivesse em condições pessoais de o evitar se houvesse adoptado uma conduta muito mais previdente, zelosa e atenta, como lhe seria exigível e que descuidadamente não observou nem seguiu.
(Sobre a possibilidade de redução do montante a pagar pela entidade seguradora no caso de o segurado, ou pessoa com ele directamente relacionada, ter contribuído culposamente - de forma grave e não ligeira - para eclosão do sinistro, vide o artigo 14.º da Lei do Contrato de Seguro Suíça).
Por outro lado, o regime especial respeitante às denominadas "cláusulas ambíguas", definido no artigo 11.º do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, não servirá, naturalmente, para que o consumidor que não se preocupou com o alcance da definição do conceito do sinistro-incêndio no momento em que adere à proposta contratual, não se esforçando minimamente por o entender, ou nem querendo sequer saber disso, e que não invoca sequer (nos autos) o incumprimento dos deveres de comunicação e informação a cargo da seguradora, nos termos dos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro (como acontece na situação sub judice), possa oportunisticamente procurar, uma vez consumado o sinistro, aproveitar-se então de uma pretensa dúvida sua - que verdadeiramente nunca sentiu nem alimentou - para sustentar a sua pessoal interpretação do termo "combustão acidental" como incluindo a combustão que não foi (na sua causa) acidental, assim logrando obter, em seu favor, uma cobertura que em rigor não foi contratualizada aquando da celebração do seguro e beneficiar, gratuitamente, de uma situação de agravamento objectivo do risco com que a seguradora não podia obviamente contar.
Este resultado afectaria indiscutivelmente o equilíbrio entre as prestações sinalagmaticamente firmadas entre a seguradora e o segurado, uma vez que, no âmbito do contrato de seguro, o prémio a suportar pelo segurado fora calculado tendo por base apenas o incêndio originado por combustão acidental (acontecimento fortuito), podendo ser obviamente superior se os celebrantes, através de clausulado especial por si estipulado, quisessem ter prevenido, ainda e cumulativamente, a cobertura dos casos de fogo posto da coisa segura que viesse a ser provocado dolosamente por terceiro (evento deliberado).
Note-se que não se trata aqui de procurar tutelar fixamente, como princípio ou regra sistemática, enquanto desiderato querido pelo legislador, as expectativas do segurado à mais ampla protecção possível consagrada no âmbito do contrato de seguro de incêndio (não é essa - nem pode ser - a função do juiz na sua específica tarefa hermenêutica, de cariz técnico), mas de interpretar fielmente e com todo o rigor, à luz dos critérios definidos nos artigos 236.º a 239.º do Código Civil, o conceito de incêndio para efeitos de sinistro coberto, que resulta da sua padronização pela entidade administrativa competente e que foi importada, sem nenhuma alteração de relevo, para o conjunto dos contratos de seguro de incêndio não obrigatórios, tomando-se em especial consideração que o mesma integra unicamente os fenómenos qualificáveis como de "combustão acidental".
Em suma, o acto provocado dolosamente, isto é, de propósito, com o objectivo intencional de alcançar determinado fim, não pode, por sua própria natureza, constituir, em si, no que respeita ao resultado danoso obtido, um mero acidente tal como o conceito é entendido pelo cidadão médio, e que é, como se disse, caracterizado pela sua casualidade, impreparação ou ausência de premeditação, ou seja, pelo seu cariz fortuito, não querido nem programado.
Contrariamente ao pretendido pelo recorrente, a expressão "combustão acidental" nunca poderia significar, no contexto da sua utilização para efeitos de cobertura de um contrato de seguro, que aí se prevê uma combustão inesperada ou imprevisível mas do ponto de vista da expectativa do segurado em relação ao que poderia vir a acontecer com o seu bem (que afinal veio a ser destruído pelo incêndio).
Não é isso manifestamente que a expressão "combustão acidental" quer dizer.
(É certo que escreveu José António Veloso, in "Risco, Transferência de Risco, Transferência de Responsabilidade (na linguagem dos contratos de seguro e de supervisão de seguros)", integrado nos "Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques", Almedina 2007, a página 337:
"As condições de facto relativas ao risco de ocorrência de danos para a regulamentação jurídica dos seguros são essencialmente a possibilidade, a incerteza, a futuridade e a fortuitidade (ou independência da vontade deliberada do segurado). A combinação destas condições caracteriza o acaso ou acontecimento casual, conceito geralmente utilizado para formular o critério que delimita os riscos seguráveis e os distingue dos não seguráveis: risco segurável é o que se distingue por referência a um acontecimento casual".
Porém, como se compreende pelo contexto em que foi proferida tal afirmação, trata-se claramente de uma generalização de princípio que não abrange, no seu cariz amplo e abstracto, e dada a sua própria natureza, a situação muito concreta e específica deste tipo de evento que é constituído pelas particularidades do sinistro objecto de cobertura, o qual se encontra especialmente densificado, de forma preconcebida e intencional, como "combustão acidental", e que é, em si, muito mais exigente e restrito do que o conceito aberto, indefinido e vago de "(qualquer) acontecimento fortuito ou casual").
De resto, o que a cláusula contratual geral qualificou de acidental foi a combustão em si - a concreta causa que origina o incêndio (e mesmo a falta da prova dessa causa) -, e não, como nos parece óbvio, a posição pessoal de uma das partes no contrato - o segurado -, no sentido de não estar subjectivamente à espera de que o seu bem viesse a ser destruído pelo incêndio provocado por terceiro, de forma dolosa.
Por sua natureza, a imprevisibilidade e incerteza quanto à ocorrência de um qualquer sinistro coberto pelo contrato de seguro constitui a conditio sine qua non para a celebração deste tipo contrato e é obviamente recíproca.
Abrange e afecta da mesma forma a entidade seguradora, que calculou o risco do seguro contratualizado dentro de certos parâmetros que prefigurou, e o segurado, a quem compete atentar nas circunstâncias da cobertura que concretamente lhe foram propostas, tendo-as, após devida ponderação, aceite livre e voluntariamente.
Logo, a possível surpresa ou espanto do segurado com a inesperada verificação do incêndio em coisa sua não caracteriza nem define uma "combustão acidental", que se deve antes à sua origem fortuita, casual, inadvertida, em síntese, não provocada intencionalmente.
Qualquer sinistro previsto num contrato de seguro é, por definição, imprevisível ou inesperado para ambas as partes, nisso consistindo a própria álea do negócio.
(Sobre a caracterização do seguro enquanto contrato aleatório, vide Maria Elisabete Ramos, in "O Contrato de Seguro entre a Liberdade Contratual e o Tipo", Almedina 2021, a páginas 140 a 142, referindo que "(...) é comum a afirmação de que este contrato é aleatório porque se desconhece, à partida, qual das partes suporta o maior sacrifício patrimonial. Costuma dizer-se que é certo o pagamento do prémio por parte do tomador e meramente eventual o pagamento da indemnização do segurador. No momento da contratação, é desconhecido qual das partes sofrerá o maior sacrifício patrimonial. O que releva para a aleatoriedade é o desconhecimento de qual das duas "sairá a ganhar"; Francisco Guerra Mota, in "Contrato de Seguro Terrestre", ATHENA EDITORA, Porto, a páginas 251 a 260; José Engrácia Antunes, in "Direito dos Contratos Comerciais", Almedina 2019, a página 686.
Escreve, a este respeito, José Vasques in anotação ao artigo 44.º da "Lei do Contrato de Seguro Anotada", Almedina 2020, 4.ª edição, a página 259:
"O conceito de "risco" aparece frequentemente confundido com o de álea; em rigor, esta última indica a probabilidade de uma vantagem com a inerente probalidade de perda (e, neste sentido, o contrato de seguro é aleatório), enquanto o risco reflecte apenas o aspecto negativo desta situação de incerteza, na medida em que significa mais propriamente o perigo de um mal, ou, noutra formulação, a possibilidade de ocorrência do evento danoso - construção que se articula com a noção de sinistro enquanto verificação do evento (risco) que desencadeia o accionamento da cobertura do risco").
Ora, nem a seguradora, nem o segurado, quando acordaram na cobertura do incêndio que viesse a ser fruto de um fenómeno de "combustão acidental", estariam a pensar ou a prever a hipótese excepcional, totalmente anómala e mesmo comummente inconcebível, do fogo vir a ser provocado dolosamente por um terceiro, através de um comportamento anti-social ou de pura malvadez e que é, aliás e felizmente, raro acontecer.
Logo não faria o menor sentido, nestes termos, associar a qualificativa "acidental" à combustão para exprimir a ideia de acontecimento inesperado ou imprevisível apenas para uma das partes (o segurado), o que nada adiantaria de substantivo ou útil ao conceito.
Se assim fosse, bastaria ter-se utilizado então, de forma neutra, a expressão "combustão", sem qualquer outro qualificativo.
Igualmente a leitura objectiva da cláusula contratual geral em apreço não habilita a atribuir-lhe o significado de que seria sempre considerada como acidental a combustão que, dando origem ao incêndio, não tivesse a contribuição dolosa do segurado, tudo o resto se integrando no conceito-base, sem diferenciação ou ressalva.
De resto, quanto à ilação ou à fundamentação que se pretende apressadamente retirar da conjugação entre o conceito-base (combustão acidental) e a causa de exclusão de responsabilidade da seguradora que consiste na prática dolosa do sinistro-incêndio pelo segurado, ou por pessoa por quem seja civilmente responsável, estas não resistem manifestamente a uma análise minimamente séria, rigorosa, atenta e crítica do que está em causa.
Desde logo, o artigo 46.º do Regime do Contrato de Seguro estabelece como princípio-regra que a entidade seguradora não é obrigada a efectuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador de seguro ou pelo segurado (o que correspondia, como se sublinhou supra, à regra já consignada no artigo 437.º, 3.º, do Código Comercial de 1888).
(Sobre este ponto, vide Pedro Romano Martinez, in "O Novo Regime do Contrato de Seguro", publicado na Revista "O Direito", 140.º (2008), a página 37, onde enfatiza, a propósito do novo regime legal em discussão, que: "Preconiza-se o princípio da não cobertura de actos dolosos, admitindo convenção em contrário não ofensiva da ordem pública".
A este mesmo propósito, prevê-se no artigo 762.º do Código Civil Brasileiro, em termos genéricos, que:"Nulo será o contrato para garantia de risco proveniente de ato doloso do segurado, do beneficiário, ou de representante de um ou de outro"; no sentido da exclusão de responsabilidade da entidade de seguradora face à actuação dolosa ou fraudulenta do segurado, vide o artigo 14.º da Lei do Contrato de Seguro Suíça; o artigo L113-1, alterado pela Lei 81-5 de 7 de Janeiro de 1981, da Lei do Contrato de Seguro Francesa; o artigo 1900.º do Código Civil Italiano, no qual se prevê a irresponsabilidade da seguradora em caso de dolo ou culpa grave do segurado, salvo estipulação em contrário nesta última situação).
Aliás, o efeito de não cobertura do seguro, nessas descritas e anómalas circunstâncias, sempre se imporia, em qualquer caso, por força da observância dos mais elementares e estruturantes princípios jurídicos de natureza geral, mormente aqueles que assentam no preceituado nos artigos 570.º, n.º 1, e 334.º do Código Civil.
Ou seja, se é o próprio segurado (ou alguém por quem ele é civilmente responsável), agindo dolosamente, a produzir voluntariamente o sinistro incêndio, só usando de uma requintada, despudorada e descarada má fé, num exercício eivado de um contra-senso altamente censurável, se conceberia que o mesmo viesse depois, contraditoriamente, accionar o contrato de seguro de incêndio para ser ressarcido pela seguradora dos efeitos pretensamente prejudiciais que teriam resultado, para sua esfera patrimonial, do acontecimento que intencionalmente promovera.
Tratar-se-ia, pura e simplesmente, de uma inadmissível prática identificável como crime de burla de seguros, previsto e punido nos termos do artigo 219.º, do Código Penal (sendo aliás punível a própria tentativa, conforme dispõe o n.º 2, do mesmo preceito), daí não podendo derivar ou assentar, em circunstância alguma, qualquer direito exercível no plano jurídico pelo (e em benefício do) infractor, como nos parece lógico e evidente.
(Sobre esta matéria, vide António Menezes Cordeiro in "Direito dos Seguros", Almedina 2016, 2.ª edição, a páginas 731 a 732).
Ainda que tal (desnecessária) cláusula de exclusão de cobertura não existisse, nunca o ordenamento jurídico reconheceria ao segurado a possibilidade de acolhimento da sua pretensão perante tamanha demonstração de desfaçatez, relevadora de um comportamento enquadrável tipicamente na figura do venire contra factum proprium, com integração directa na previsão do artigo 334.º do Código Civil, respeitante ao abuso de direito.
(Conforme enfatiza Moitinho de Almeida, in "O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado", Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa 1971, a página 100: "A proibição da cobertura de eventos dolosos prende-se antes com considerações de ordem pública e de moralidade").
Neste sentido, a exclusão de cobertura do seguro relativamente a actos dolosos praticados pelo segurado, ou por pessoa por quem fosse civilmente responsável, acaba por constituir uma pura e simples redundância, fruto da circunstância de, em tempos passados, haver constado enquanto previsão de exclusão de cobertura no antigo Código Comercial de 1888 (cf. respectivo artigo 443.º, 1.º).
Refira-se ainda que, tal como bem se salientou no acórdão recorrido, a cláusula de exclusão de cobertura em causa não pode ir ao ponto de retirar utilidade normativa à própria definição do risco coberto no contrato de seguro de incêndio, referido enquanto conceito-base, e que tem por origem a combustão acidental.
A figura da cláusula de exclusão destina-se a delimitar a responsabilidade da seguradora, esclarecendo e dissipando quaisquer dúvida, quanto a vertentes não cobertas do risco e que assim pontualmente se definem e salientam.
Ora, independentemente do teor das diversas cláusulas de exclusão de cobertura, não pode olvidar-se que o risco coberto pelo contrato de seguro é, sempre e em qualquer caso, a combustão acidental que origina o incêndio, definida no conceito normativo base, assim devidamente densificado.
(Conforme pertinentemente se deixou sublinhado no acórdão recorrido e em relação a este ponto:
"(...) e é assim que as cláusulas de exclusão devem ser vistas, lidas e interpretadas pelo tomador médio, ou seja, não podem/devem extrair que todas as situações e comportamentos não incluídos nas cláusulas de exclusão ficam e estão compreendidos pela cobertura do risco em causa").
Da articulação entre a cláusula que define o risco e a que exclui os incêndios dolosamente provocados pelo segurado, ou pessoas por quem seja civilmente responsáveis, resultaria, na tese perfilhada no acórdão fundamento, o inevitável esvaziamento total do conceito de combustão acidental, que perderia assim o seu sentido útil e a sua própria racionalidade, acrescentando-se, por essa via, como risco coberto, uma situação que, por ter a ver com a prática de um acto doloso (de terceiro), significaria exactamente o oposto do que quer dizer e significar, em termos de impressão do declaratário médio, esse mesmo acontecimento.
O consumidor comum, que actue de boa fé e que tenha atendido efectivamente ao teor do contrato quando o celebrou, ao aperceber-se da exclusão do risco do seguro incêndio que se encontra prevista para o caso da combustão ser provocada pelo próprio segurado (e pelas pessoas por quem seja civilmente responsável), sendo provido de capacidade para seguir um raciocínio lógico, coerente e racional, não terá dificuldades em compreender que tal exclusão, sendo óbvia (tratando-se de pessoa honesta, não lhe passará pela cabeça accionar o seguro para ser indemnizado pelos danos do incêndio que propositadamente provocou), não altera em nada o cariz de acidental, isto é, casual ou fortuito, associado à combustão que provoca o incêndio e que é abrangida pelo seguro, concluindo facilmente que sendo afinal o incêndio doloso, por provocado intencionalmente por acção de terceiro, não poderá considerar-se incluído no conceito-base, como constitui uma comum evidência, e não logrará, por isso mesmo, obter a cobertura do seguro e a responsabilização da entidade seguradora.
O que nos permite concluir que:
- a combustão acidental que constitui conceptualmente o sinistro no contrato de seguro de incêndio é aquela que nasce espontaneamente, sem programação ou premeditação, de forma fortuita e casual, inadvertidamente, o que não sucede quando o incêndio é provocado voluntariamente, de forma dolosa, por terceiro.
- a exclusão da cobertura por actos dolosos do segurado ou das pessoas por quem seja civilmente responsável, sendo óbvia e incontornável, não consente a possibilidade de extrair dela qualquer outra ilação em termos interpretativos, em especial, por um raciocínio de pretenso e enviesado a contrario sensu, a de que o seguro passaria a partir daí a abranger a cobertura em relação aos actos dolosos de terceiro (como se unicamente se devesse excluir do seu âmbito aquela categoria de actos do próprio segurado - enquanto infractor e beneficiário dos efeitos da sua infracção -, evidentemente não cobertos).
- os direitos do segurado poderão ser, em contraponto, tutelados e assegurados pelo escrupuloso cumprimento dos deveres de comunicação e informação que incumbem à predisponente, nos termos gerais dos artigos 5.º e 6.º do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, atento o ónus de prova fixado no n.º 3 do artigo 5.º do citado diploma (sob pena da exclusão prevista no artigo 8.º, alínea a)), desde que seja devidamente invocado pelo interessado, no processo judicial respectivo, o seu incumprimento pela seguradora (o que não aconteceu in casu).
- não poderá, portanto, ser acolhida a tese de que a cobertura do incêndio abrange indiscriminadamente qualquer tipo de combustão, fortuita ou provocada, a qual, de todo o modo e mesmo assim, sempre poderia ser, na prática, facilmente contornada pela segurada através da pertinente cláusula de exclusão nesse âmbito dos actos de vandalismo (neste caso respeitantes à destruição intencional de bem alheio pelo atear voluntário de um fogo que o consuma ou danifique seriamente).
Pelo que se perfilha o entendimento do acórdão recorrido, carecendo de fundamento o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência interposta pela recorrente.
(Adoptaram esta interpretação da cláusula contratual em apreço, para além do acórdão recorrido, as seguintes decisões de instâncias superiores:
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Maio de 2020 (relatora Ana Paula Boularot), proferido no processo 7222/15.8.VIS.C1.S1, publicado in www.dgsi.pt;
- o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Junho de 2020 (relator Ricardo Costa), proferido no processo 6791/18.5.T8PRT.P1S1, publicado in www.dgsi.pt;
- o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13 de Junho de 2018 (relator Rui Moreira), proferido no processo 952/16.9.T8PVZ.P1.S1, publicado in www.dgsi.pt).
- o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15 de Setembro de 2014 (relator Eusébio de Almeida), proferido no processo 3345/11.0TJVNF.P1, publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXIX, Tomo IV (2014), a páginas 165 a 167.
- o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17 de Setembro de 2019 (relator Luís Filipe Cravo), sumariado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XLIV, Tomo IV (2019), a página 324).
Decisão:
Pelo exposto, acorda-se no Pleno das Secções Cíveis o seguinte:
a) Confirmar o acórdão recorrido, negando provimento ao recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência interposto pelo recorrente.
b) Uniformizar jurisprudência nos seguintes termos:
"A cláusula contratual geral inserta em contrato de seguro, mesmo facultativo, em que se define o sinistro "Incêndio" como "combustão acidental", não cobre, no seu âmbito e alcance, o incêndio causado dolosamente por terceiro, ainda que não seja identificado o seu autor".
Custas pelo recorrente.
Notifique e oportunamente publique-se no Diário da República, 1.ª série.
Lisboa, STJ, 19 de Outubro de 2022. - Luís Espírito Santo (Relator) - Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues - António Isaías Pádua - Ana Resende (com declaração de voto conforme apresentada pela Conselheira Maria Olinda Garcia) - Manuel José Aguiar Pereira - Afonso Henrique Cabral Ferreira - Ana Paula Boularot - Maria da Graça Trigo (com declaração de voto junta) - Pedro de Lima Gonçalves - Graça Amaral (com declaração de voto junta) - Maria Olinda Garcia (com declaração de voto) - António Magalhães - Ricardo Alberto Santos Costa - Fernando Jorge Dias - José Maria Ferreira Lopes - António Barateiro Martins - José Manuel Cabrita Vieira e Cunha - Nuno Ataíde das Neves (Vencido nos termos do voto de vencido manifestado pelo Senhor Conselheiro Oliveira Abreu) - Ana Paula Lobo (Vencida por entender inadmissível a uniformização de clausulas contratuais mesmo que gerais) - Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza (Vencida, nos termos da declaração de voto do Senhor Cons. Oliveira Abreu) - Maria Clara Sottomayor (Vencida quanto à admissibilidade nos termos da declaração de voto apresentada pelo Conselheiro Cura Mariano e vencida quanto ao mérito nos termos da declaração de voto do Conselheiro Paulo Rijo) - Maria de Fátima Morais Gomes (Vencida conforme declaração Dr. Oliveira Abreu) - Catarina Serra (Vencida quanto à admissibilidade nos termos da declaração de voto do Senhor Cons. Cura Mariano, admitida a uniformização, vencida nos termos das declarações de voto dos Senhores Cons. Rijo Ferreira e Oliveira Abreu - Oliveira Abreu (Vencido e junto voto de vencido) - Maria João Vaz Tomé (Vencida conforme declaração anexada) - Rijo Ferreira (Vencido conforme declaração que junto) - João Cura Mariano (Vencido, conforme declaração que junto) - Manuel Capelo (voto vencido nos termos do voto do Cs. O. Abreu) - Tibério Nunes da Silva (Vencido, conforme declaração do Cons. Oliveira Abreu) - Fernando Batista de Oliveira (Vencido conforme declaração do Conselheiro Exmo Senhor Rijo Ferreira).
Processo 933/15.0T8AVR.P1.S1-A
Declaração de voto
1 - Votei o acórdão, embora com reservas quanto ao fundamento de admissibilidade do recurso. Entendo que, em rigor, e pelas razões mais extensamente explanadas na declaração de voto da Senhora Conselheira Maria João Vaz Tomé, o fundamento para a admissibilidade do recurso assenta na natureza normativa da contradição de julgados na interpretação do conceito de "Incêndio" e não na contradição de julgados na interpretação das cláusulas contratuais gerais onde tal conceito normativo foi utilizado. Com a consequência de que o processo hermenêutico estará, em princípio, sujeito aos ditames do artigo 9.º do Código Civil.
2 - Ainda que com dúvidas, acompanhei a decisão de mérito por entender que, ao definir-se normativamente o conceito de "Incêndio" como sendo "a combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios", o carácter acidental do incêndio coberto pelo seguro não pode ser afastado mediante simples interpretação a contrario sensu realizada a partir de outra cláusula inserida no contrato (e igualmente de origem normativa), como sucedeu na orientação seguida no acórdão-fundamento.
Maria da Graça Trigo.
Votei favoravelmente o acórdão uniformizador ainda que com dúvidas quanto à admissibilidade do recurso, por a contradição entre acórdãos se traduzir, no caso, numa interpretação divergente de cláusula (padronizada) inserida em contratos de adesão, submetidos ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (DL n.º 446/85, de 25-10) e, nessa medida, ao critério de interpretação a que alude o artigo 236.º, do Código Civil.
Graça Amaral.
RUJ n.º 933/15.0T8AVR.P1.S1
Declaração de voto
Voto favoravelmente o presente acórdão de uniformização de jurisprudência quanto ao mérito, uma vez admitido, pela maioria deste coletivo, o seu conhecimento. Todavia, a admissibilidade deste recurso não se afigura isenta de dúvidas, dado não estar em causa uma oposição jurisprudencial quanto à aplicação de normas legais, mas sim uma interpretação divergente de cláusulas contratuais que, apesar de padronizadas (e inseridas em concretos contratos de adesão), não deixam de ser o resultado da vontade jurisgénica das partes, no âmbito (mais amplo ou mais limitado) do princípio da liberdade contratual.
Maria Olinda Garcia.
Declaração de voto processo 933/15.0T8AVR.P1.S1-A
Não acompanho a decisão que logrou vencimento, porquanto considero que a uniformização de jurisprudência prevista nos artigos 688.º e seguintes do Código de Processo Civil se destina a eliminar as contradições das decisões judiciais sobre a interpretação de normas e não de cláusulas contratuais, ainda que cláusulas contratuais gerais.
Lisboa, 19 de Outubro de 2022. - Ana Paula Lobo.
Proc. 933/15.0T8AVR.P1.S1-A
Vencida quanto à admissibilidade, nos termos da declaração de voto do Exmo. Senhor Conselheiro Cura Mariano.
Tendo sido admitida a uniformização, vencida quanto ao mérito, nos termos das declarações de voto dos Exmos. Senhores Conselheiros Rijo Ferreira e Oliveira Abreu.
Catarina Serra.
Processo 933/15.0T8AVR.P1.S1-A (Recurso para Uniformização de Jurisprudência)
Voto de vencido - Juiz Conselheiro Oliveira Abreu
1 - Voto de vencido.
2 - O centro da discussão doutrinária e jurisprudencial que impõe a presente uniformização respeita à interpretação de um determinado conteúdo - o conceito de "incêndio" para efeitos de cobertura de seguro - que não se encontra expressamente vertido, em termos formais, num texto ao qual tivesse sido conferida força de lei, antes se contendo nas condições gerais e particulares da respetiva apólice, daí que importa densificar o aludido conceito de incêndio, para efeitos de definição do sinistro coberto por este tipo de seguro, concretamente, saber se os atos dolosos de incêndio praticados por terceiros são ou não abrangidos pelo contrato de seguro, partindo do reconhecimento de que no quadro dos seguros facultativos está consolidada a definição uniformizadora do conceito de incêndio nos termos da norma regulamentar prevista para os seguros de natureza obrigatória, ou seja, "A combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios".
3 - Ora, diversamente ao sustentado no projeto de acórdão uniformizador que entende que a seguradora não é responsável pelo pagamento dos danos provocados em virtude do incêndio, interpretando a cláusula contratual que define o sinistro incêndio como "combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios", no sentido de excluir do seu âmbito e alcance as situações em que o incêndio fosse dolosamente provocado por terceiro, ainda que sem demonstração da identidade do respetivo autor, somos de opinião que a seguradora é responsável pelo pagamento dos danos provocados pelo incêndio, interpretando a cláusula contratual no sentido de a mesma não excluir do seu âmbito e alcance as situações em que o incêndio é dolosamente provocado por terceiro, ainda que sem demonstração da identificação do respetivo autor.
4 - Como sabemos, a apólice (a redigir de modo compreensível, conciso e rigoroso) deve incluir todo o conteúdo do acordado pelas partes, nomeadamente as condições gerais, especiais e particulares aplicáveis, sendo que se as respetivas cláusulas evidenciarem, nomeadamente, falta de clareza, importa que a respetiva interpretação não deixe de atender ao sentido normativo extraído da declaração negocial, decorrente do artigo 236.º n.º 1 do Código Civil, enformado pela teoria da impressão do destinatário, tendo em conta, como instrumentos interpretativos, a natureza e o objeto do seguro, o teor das suas cláusulas contratuais, o seu contexto, a sua finalidade e o seu efeito útil, sem deixar de considerar que deverá prevalecer o sentido mais favorável ao aderente/segurado.
5 - Na verdade, estando em causa a interpretação de uma cláusula contratual que integra as Condições Gerais, não pode deixar de se atender às disposições do Decreto-Lei 446/85, de 25/10 (posteriormente alterado pelos Decreto-Lei 220/95, de 31/8, Decreto-Lei 249/99 de 7/7 e Decreto-Lei 323/2001, de 17/12) que estabelece o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (LCCG), conforme decorre do artigo 3.º do Decreto-Lei 72/2008 (RJCS) que textua a aplicação ao contrato de seguro do disposto na legislação sobre, designadamente, cláusulas contratuais gerais, especiais e particulares, donde, importará considerar que "as cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam." - artigo 10.º do Decreto-Lei 446/85, de 25/10 com sucessivas alterações, conforme já adiantamos.
6 - Ademais, estabelece o artigo 11.º n.º 1 do aludido Decreto-Lei 446/85, de 25/10 com sucessivas alterações: "as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real", o que reafirma o reconhecimento adiantado de que na interpretação, nomeadamente, das condições gerais, as respetivas clausulas deverá adotar a teoria da impressão do destinatário, tendo em conta, como instrumentos interpretativos, a natureza e o objeto do seguro, o teor das suas cláusulas contratuais, o seu contexto, a sua finalidade e o seu efeito útil, sem deixar de considerar que deverá prevalecer o sentido mais favorável ao aderente/segurado.
7 - Anota-se que a regra da interpretação contra proferentem do artigo 11.º da LCCG corresponde sensivelmente ao artigo 5.º da Directiva 1993/13/CE, de 5 de abril de 1993, aplicável aos contratos de seguro.
8 - Assim, atendendo à natureza e ao objeto do seguro, ao teor das suas cláusulas contratuais, o seu contexto, a sua finalidade e o seu efeito útil, concretamente, o artigo 9.º, n.º 1, alínea a), das Condições Gerais, onde se define incêndio como: "combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios.", em complemento com o estabelecido no artigo 5.º das mesmas Condições Gerais que textua: "[...] 1. Excluem-se da garantia obrigatória do seguro e bem assim de todas as outras coberturas, os danos que derivem, direta ou indiretamente de: [...] g) Atos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis:" que, de resto, vem ao encontro do estabelecido nos artigos 150.º n.º 1 e 46.º, ambos do Decreto-Lei 72/2008 (RJCS) ao estabelecer: "A cobertura do risco de incêndio compreende os danos causados por ação do incêndio, ainda que tenha havido negligência do segurado ou de pessoa por quem este seja responsável." (artigo 150.º). "Salvo disposição legal ou regulamentar em sentido diverso, assim como convenção em contrário não ofensiva da ordem pública quando a natureza da cobertura o permita, o segurador não é obrigado a efetuar a prestação convencionada em caso de sinistro causado dolosamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado." (artigo 46.º), é seguro concluir que, no contexto do contrato, conjugando as aludidas cláusulas, a expressão "combustão acidental" ínsita na definição de incêndio constante do artigo 9.º das Condições Gerais da Apólice, só pode ser interpretada no sentido de que o contrato de seguro cobre o risco de incêndio que não derive, direta ou indiretamente, de ato ou omissão dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis.
9 - Daqui decorre entendermos que a ajustada resposta uniformizadora deveria conter uma redação que contemplasse os termos adiante sugeridos: "A cláusula contratual geral ínsita em contrato de seguro em que se define o sinistro "incêndio" como "combustão acidental", cobre, no seu âmbito e alcance, o incêndio que não derive, direta ou indiretamente, de ato ou omissão dolosas do tomador do seguro, do segurado, ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis."
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 19 de outubro de 2022. - Oliveira Abreu.
Processo 933/15.0T8AVR.P1.S1-A (Recurso para Uniformização de Jurisprudência)
Declaração de voto de vencida
Salvo o devido respeito, parece-me que do que se cura é da interpretação de normas regulamentares (in casu, de proposições jurídicas incompletas, pois trata-se de definições - "Incêndio, a combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios") emanadas pelo então Instituto de Seguros de Portugal (ISP) e não de cláusulas contratuais gerais, apesar de estas replicarem aquelas. O ISP, no âmbito dos seus poderes de supervisão, designadamente da atividade seguradora, podia emitir normas regulamentares que deviam ser acatadas pelas entidades sujeitas à sua supervisão. Os regulamentos têm, pois, natureza normativa (são dotados de generalidade e de abstração). Esta consideração conduziria, necessariamente, à aplicação dos fatores hermenêuticos previstos no art. 9.º do Cód. Civil para desvendar o sentido e alcance desses textos, e não dos critérios da interpretação da declaração negocial estabelecidos no art. 236.º do mesmo corpo de normas.
O caráter facultativo do contrato de seguro sub judice não afeta as considerações tecidas, porquanto a generalidade dos seguros desta natureza seguia, nesta matéria, o regime constante da parte uniforme das condições gerais e das condições especiais de seguro obrigatório de incêndio, inicialmente estabelecidas na Norma 18/2000-R, de 21 de dezembro, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 16, de 19 de janeiro de 2001 - emanada pelo ISP nos termos do art. 129.º, n.º 5, do DL n.º 94-B/98, de 17 de abril, e ao abrigo do art. 5.º, n.º 2, al. d), e n.º 3, do seu Estatuto, aprovado pelo DL n.º 251/97, de 26 de setembro -, que sofreu as alterações introduzidas pela Norma 13/2005-R, de 18 de novembro, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 234, de 7 de dezembro de 2005, e revogada pela Norma 16/2008-R, de 18 de dezembro, publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 5, de 8 de janeiro de 2009 - emitida pelo ISP ao abrigo do art. 129.º, n.º 5, do DL n.º 94-B/98, de 17 de abril, e dos arts. 4.º, n.º 3, e 12.º, n.º 1, al. c), do seu Estatuto, aprovado pelo DL n.º 289/2001, de 13 de novembro, mas aplicável transitoriamente nos termos do art. 6.º
Importa referir que não se verificou, durante a sucessão no tempo das diversas normas regulamentares, qualquer alteração ao conceito de incêndio e que o contrato de seguro de incêndio facultativo em apreço foi celebrado em janeiro de 2005.
No mais, adiro às declarações de voto dos Exmo.s Senhores Conselheiros Oliveira Abreu e Paulo Rijo Ferreira.
19 de outubro de 2022. - Maria João Vaz Tomé.
Declaração de Voto
RUJ 933/15.0T8AVR.P1.S1
Discordo da posição que fez vencimento aderindo à posição adoptada no acórdão fundamento.
Na determinação do sentido da declaração negocial segundo o critério estabelecido no artigo 236.º do CCiv haverá de ter em conta, o 'declaratário normal' (pessoa normalmente esclarecida, zelosa, sagaz), não abstractamente considerado, mas 'colocado na posição do real declaratário', ou seja, tendo em conta quer a sua a situação social quer o concreto contexto negocial em causa.
Afigura-se-me que o conceito de 'declaratário normal' adoptado no projecto de acórdão extravasa a situação social e o contexto negocial típicos da contratação de seguros, consubstanciando uma pessoa com bons conhecimentos sobre o contrato de seguros, com uma acurada diligência e avultada sagacidade; quando na realidade quotidiana da contratação de seguros (e que todos conhecemos por experiência própria) o segurado/tomador de seguros não tem grande literacia na matéria.
Por outro lado, na ponderação das posições da seguradora e do segurado não se pode deixar de ter em conta que (para além da obrigação de informação) impende sobre a seguradora o ónus de formular cláusulas contratuais de modo compreensível, conciso e rigoroso, não sendo exigível ao segurado que, no momento em que adere à proposta contratual uma especial diligência de, desconsiderando aquela obrigação da seguradora, vislumbrar as especiosidades decorrentes da conjugação das diversas cláusulas contratuais.
Nesse conspecto compete à seguradora formular as cláusulas contratuais no sentido deixar claramente expresso que estão excluídos do risco de incêndio os comportamentos dolosos de terceiros (e não apenas do segurado); bem como de informar o tomador do seguro da eventual possibilidade de segurar esse risco com a cobertura de actos de vandalismo.
O que nos ensina a experiência comum de vida é que quem celebra um seguro de incêndio visa acautelar a eventualidade de o bem seguro vir a sofrer dano ou a perecer em virtude da ocorrência de incêndio que se mostre imprevisto e inesperado, na medida em que não pode ser imputado, directa ou indirectamente, à sua vontade.
Nesse contexto, em meu modo de ver, da conjugação das cláusulas contratuais que definem incêndio como 'combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que neste possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios' e que excluem desse risco 'os danos que derivem, directa ou indirectamente, de actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis', resulta, para um declaratário normal (mas não já esmerado), que o contrato de seguro cobre todas as situações de risco de incêndio com exclusão daquelas que resultem, directa ou indirectamente, de actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis.
E nisso consistirá o que tais cláusulas vulgar e comummente transmitem, de acordo, aliás com o entendimento que tradicionalmente vem sendo defendido, quer na doutrina quer na jurisprudência, como o acórdão dá nota; não considerando que o actual Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL 78/2008) ou a actuação do regulador sectorial tenha trazido qualquer inovação significativa ao regime do seguro de incêndio.
Uniformizaria jurisprudência no sentido de que «um contrato de seguro de incêndio em que se define incêndio como "combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que neste possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios' e em que se exclui desse risco 'os danos que derivem, directa ou indirectamente, de actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis", sem que exista qualquer disposição adicional relacionada, deve ser interpretado, em face do disposto nos artigos 236.º do Código Civil e 10.º do Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, como abrangendo, no seu âmbito e alcance, o incêndio causado dolosamente por terceiro».
Rijo Ferreira.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 - Da impossibilidade do conhecimento do recurso
Dissenti da maioria que aprovou este acórdão, desde logo porque entendo que o recurso não deveria ter sido apreciado, uma vez que não é possível uniformizar uma interpretação de uma cláusula contratual, efetuada segundo as regras do artigo 236.º do Código Civil.
Por mais que essa cláusula se encontre padronizada e seja comum a um grande número de contratos, uma interpretação realizada com recurso ao entendimento de um declaratário normal, não deixa de ser uma leitura subjetiva, uma vez que esse declaratário-padrão tem que ser encontrado na posição em que se encontra o declaratário real, ou seja, o declaratário normal, cujo pensamento temos que prognosticar postumamente, deve ter as mesmas caraterísticas que o declaratário real.
E o perfil do declaratário normal não só varia consoante o tipo do declaratário real em causa, designadamente o seu horizonte de compreensão e conhecimento, assim como a diligência com que atua, como também é necessário ter em consideração, na determinação do sentido interpretativo, o concreto contexto em que ocorre a declaração negocial e as relações que existem entre as partes.
Daí que duas declarações contratuais, apesar de terem o mesmo texto, podem ser objeto de diferentes interpretações, uma vez que as enunciadas variantes poderão determinar o prognóstico de distintos sentidos de leitura aos olhos de um declaratário normal, colocado nas diferentes posições dos reais declaratários.
Por essa razão não é possível unificar a interpretação que deve ser feita de um determinado texto contratual.
E o facto de nos encontrarmos perante um contrato sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais não permite outra perspetiva, uma vez que o artigo 10.º do Decreto-Lei 446/85, de 25 de outubro, determina a aplicação do critério consagrado no artigo 236.º do Código Civil a este tipo de cláusulas, fazendo, aliás, notar que a interpretação dessas cláusulas deve ser efetuada dentro do contexto de cada contrato singular.
Mesmo que, por mera hipótese de raciocínio, a uniformização da interpretação de cláusulas contratuais fosse possível, não se verifica uma contradição efetiva entre os acórdãos em confronto, porque a realidade fáctica sobre a qual se pronunciaram é bem diversa.
Em primeiro lugar, o contrato de seguro celebrado entre as partes do processo onde foi proferido o acórdão fundamento abrangia expressamente atos de vandalismo, maliciosos ou de sabotagem, o que não sucede no contrato analisado pelo acórdão recorrido, o que faz toda a diferença relativamente ao âmbito da cobertura de cada um dos contratos, relativamente ao risco de incêndio provocado dolosamente por terceiros.
Em segundo lugar, enquanto no processo onde foi proferido o acórdão fundamento provou-se que ocorreu um incêndio no prédio seguro, sem que se tenha apurado a sua causa, no acórdão recorrido além de se ter provado o incêndio também se provou que este teve origem numa ignição induzida com utilização de produto combustível no exterior do edifício e por baixo de uma porta lateral, que potenciou a combustão na sua fase inicial. Daí que, em nenhum passo da fundamentação do acórdão recorrido se afirme que aquele contrato de seguro cobria os casos em que seguro foi dolosamente causado por terceiro, uma vez que essa hipótese não se havia demonstrado, apesar dessa cobertura naquele caso existir, ao prever-se o incêndio resultante da prática de atos de vandalismo, enquanto o acórdão recorrido teve que encarar a questão aqui em análise, uma vez que se provou um fogo-posto.
A utilização do conhecido teste de verificação de contradição entre decisões permite-nos, aliás, constatar que esta não existe, uma vez que se aplicarmos a tese seguida no acórdão recorrido ao caso analisado no acórdão fundamento, o desfecho seria precisamente o mesmo, porque, não só não se provou que o incêndio foi provocado dolosamente por terceiros, como, se o tivesse sido, esse risco estava coberto por constituir um ato de vandalismo.
Não há, pois, qualquer contradição entre as duas decisões, o que, mesmo na hipótese de se entender que é possível uniformizar interpretações de contratos subordinados ao regime das cláusulas contratuais gerais, não permitia o conhecimento do recurso.
2 - Da solução
Também divergi da maioria, relativamente ao sentido da uniformização.
No contrato de seguro celebrado entre as partes do processo onde foi proferido o acórdão recorrido o âmbito da cobertura do risco assumido pela Ré foi contratualmente delimitado, primeiro através de uma descrição das circunstâncias que abstratamente recortam, pela positiva, a cobertura do seguro (artigo 3.º das Condições Gerais), e depois, pela descrição das circunstâncias objetivas excludentes dessa cobertura (artigo 6.º das mesmas Condições Gerais).
Entre os riscos cobertos previu-se o de incêndio do bem seguro, definindo-se este como a combustão acidental, com desenvolvimento de chamas, estranha a uma fonte normal de fogo, ainda que nesta possa ter origem, e que se pode propagar pelos seus próprios meios [...]", e depois excluiu-se expressamente os actos ou omissões dolosas do tomador do seguro, do segurado ou de pessoas por quem sejam civilmente responsáveis, sem que tenham sido excluídos os atos ou omissões dolosas de terceiros.
Da leitura conjugada da definição dos riscos cobertos pelo seguro, pela positiva e pela negativa, para um declaratário normal, sem que este seja colocado na posição do real declaratário, uma vez que, nesta fase de apreciação do recurso, estamos a uniformizar jurisprudência e não a decidir um caso concreto, resulta que os incêndios causados dolosamente por terceiros não deixam de estar cobertos pelo seguro, uma vez que quando se excluíram os incêndios dolosamente provocados apenas se restringiu essa exclusão àqueles que foram provocados pelo próprio segurado ou por pessoas por quem este seja civilmente responsável.
O facto de, na definição pela positiva, dos riscos seguros, se adjetivar a combustão de acidental, só por si, não é insuscetível de conduzir a uma leitura diferente daquela que é induzida pelo âmbito restrito da cláusula de exclusão. O termo acidental não reúne uma capacidade de delimitação dos possíveis eventos geradores de incêndio, que permite dela excluir, aos olhos do declaratário normal, as situações em que o incêndio é provocado por ato doloso de terceiro.
Por essa razão teria uniformizado uniformizaria a jurisprudência, a entender-se, por mera hipótese de raciocínio, que essa uniformização era possível, em sentido oposto ao que foi seguido.
João Cura Mariano.
115893224
Anexos
- Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/5137056.dre.pdf .
Ligações deste documento
Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):
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1982-07-30 -
Decreto-Lei
302/82 -
Ministério das Finanças e do Plano - Secretaria de Estado do Turismo
Cria o Instituto de Seguros de Portugal.
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1985-10-25 -
Decreto-Lei
446/85 -
Ministério da Justiça
Aprova o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.
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1995-08-31 -
Decreto-Lei
220/95 -
Ministério da Justiça
Altera o Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (institui o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais), e republica-o em anexo.
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1997-09-26 -
Decreto-Lei
251/97 -
Ministério das Finanças
Aprova o novo Estatuto do Instituto de Seguros de Portugal (ISP), pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio, sujeita à tutela e superintendência do Ministro das Finanças. Define os orgãos e serviços do ISP e dispõe sobre a sua gestão financeira e patrimonial.
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1999-07-07 -
Decreto-Lei
249/99 -
Presidência do Conselho de Ministros
Altera o Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, que regula o regime das cláusulas contratuais gerais.
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2001-11-13 -
Decreto-Lei
289/2001 -
Ministério das Finanças
Aprova o novo Estatuto do Instituto de Seguros de Portugal e altera o Decreto-Lei nº 158/96, de 3 de Setembro, que aprova a lei orgânica do Ministério das Finanças.
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2001-12-17 -
Decreto-Lei
323/2001 -
Ministério da Justiça
Procede à conversão de valores expressos em escudos para euros em legislação da área da justiça.
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2008-04-16 -
Decreto-Lei
72/2008 -
Ministério das Finanças e da Administração Pública
Estabelece o regime jurídico do contrato de seguro.
Aviso
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