Acórdam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional (T. Const.):
1 - Nos termos do disposto nos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e nos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, o Presidente da República requereu ao T. Const. a apreciação preventiva da constitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do decreto aprovado pelo Conselho de Ministros em 23 de Dezembro de 1986, para ser promulgado como decreto-lei, e registado sob o n.º 804/86.
O referido artigo 1.º do diploma em causa estabelece que «é revogada a alínea b) do n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei 280-C/75, de 5 de Junho, na parte referente à nacionalização das sociedades TUCO - Turismo e Comércio, S. A. R. L, e STAL - Sociedade Torrejana de Automóveis, Lda.».
Como pelo citado artigo 1.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei 280-C/75 se procedeu, expressamente, à nacionalização das referidas sociedades comerciais, o Presidente da República suscita a dúvida sobre se o artigo 1.º do diploma ora em apreço respeita o disposto no n.º 1 do artigo 83.º da lei fundamental, o qual estatui que «todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras».
Para além disso, questiona o Presidente da República se o órgão competente para legislar sobre a matéria é o Governo ou a Assembleia da República (AR), considerando o disposto na alínea l) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP.
2 - Notificado o Primeiro-Ministro para se pronunciar, querendo, sobre o pedido, nos termos do preceituado no artigo 54.º da Lei 28/82, veio o mesmo a remeter a sua resposta, juntando também aos autos um parecer jurídico, um parecer do Gabinete do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, um parecer da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) e um relatório da mesma Inspecção-Geral sobre as empresas em causa.
Na sua resposta, o Governo sustenta, em síntese, que o acto de nacionalização é um acto materialmente administrativo, pelo que, como qualquer outro acto administrativo, deve ser considerado inválido quando baseado em erro de facto essencial. Ora, no caso em apreço ter-se-ia apurado que era falsa a fundamentação constante do preâmbulo do Decreto-Lei 280-C/75, porquanto, em conformidade com o relatório e o parecer elaborados pela IGF, haveria «prova bastante da inexistência dos pressupostos que, à luz do referido diploma, fundamentavam a nacionalização da TUCO e da STAL».
Em consequência, «na presença de uma medida ferida de invalidade, resolveu o Governo promover a sua correcção, pondo termo a uma situação anómala criada pelo próprio Estado», não se podendo interpretar o n.º 1 do artigo 83.º da lei fundamental como tendo querido sanar todo e qualquer acto de nacionalização efectuado após o 25 de Abril de 1974, ainda que ilegalmente efectuado.
Finalmente, no que respeita à eventual inconstitucionalidade orgânica, alega o Governo que, «tratando-se da revogação de um acto administrativo, não poderia nunca estar simultaneamente em causa a disciplina de um regime geral sobre nacionalização ou socialização».
3 - De acordo com o parecer jurídico junto aos autos, da autoria do Dr. Miguel Galvão Teles, há que saber, antes de mais, «se o princípio constitucional da irreversibilidade das nacionalizações se encontra ou não limitado, e até que ponto, pela própria validade do acto de nacionalização ou, mais precisamente, pela observância dos requisitos dos actos desse tipo segundo o direito em vigor ao tempo em que a nacionalização se verificou». Ou seja, importa averiguar se o n.º 1 do artigo 83.º da lei fundamental «quer dizer que são intocáveis todas as nacionalizações que de facto se concretizaram ou, pelo menos, que foram determinadas por um acto jurídico, independentemente do juízo sobre a sua legalidade, ou, pelo contrário, pressupõe a legalidade dos actos de nacionalização e o regime geral sobre os seus vícios».
E, na verdade, esta é a questão que importa dilucidar em primeiro lugar.
É que, se eventualmente se vier a concluir no sentido de que a disposição constitucional invocada pelo Presidente da República garante a irreversibilidade de todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974, independentemente do juízo que devesse incidir sobre a respectiva validade face ao direito constitucional então vigente, a verdade é que se tornará inútil prosseguir na análise das outras questões suscitadas na resposta do Primeiro-Ministro.
Efectivamente, se se verificar que é aquele o sentido e alcance que, de um ponto de vista estritamente objectivo, se deve atribuir ao n.º 1 do artigo 83.º da CRP, então a desnacionalização que ora se pretende operar afronta imediatamente, de forma inadmissível, aquele preceito constitucional, tornando-se, assim, desnecessária qualquer outra indagação, que sempre se revelaria inteiramente irrelevante para a solução do caso sub iudicio.
4 - Não se vai agora, pois, averiguar se o relatório da IGF sufraga a tese de que é falsa a fundamentação do Decreto-Lei 280-C/75, ou, sequer, se a este Tribunal competiria apreciar tal matéria de facto; consequentemente, também se não vai apurar se o referido relatório permitia, ou não, que se extraíssem as conclusões constantes do parecer da mesma Inspecção-Geral. Da mesma forma, não cabe neste momento questionar se o acto de nacionalização se configura como um acto administrativo (contra, J. Simões Patrício, Curso de Direito Económico, Polic., AAFDL, 1980, pp. 312 e 313, e Carlos Ferreira de Almeida, Direito Económico, I parte, AAFDL, 1979, p. 73); ou se o erro de facto pode conduzir à existência de um vício por excesso de poder legislativo, designadamente quando «se demonstrasse a divergência entre as disposições legais e a situação de facto a que se destinava ou se provasse a inexistência da circunstância de interesse público a que a lei se referia na 'motivação' do exercício da função legislativa» (J. J. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 258; cf., igualmente, a bibliografia aí citada, bem como Vezio Crisafulli, Lezioni di diritto constituzionale, II, Pádua, 1984, pp. 367 a 375, Jorge Rodriguez-Zapata y Pérez, «Desviación de poder y discrecionalidad del legislador», in Revista de Administración Publica, n.os 100-102, vol. II, 1983, pp. 1527 e segs., e, especificamente em relação às leis-providência ou leis-medida, Constantino Mortati, Le leggi provvedimento, Milão, 1968, pp. 244 e segs.); ou, ainda, em caso afirmativo, se tal vício se configuraria como uma inconstitucionalidade, se ainda se estava em tempo de dela se conhecer e se o seu conhecimento caberia, em qualquer caso, a este Tribunal, ainda que a título meramente prejudicial.
Não se afigura igualmente necessário proceder desde já à apreciação da questão - longamente analisada no já referido parecer jurídico - de saber se é sempre irrelevante o juízo de validade dos actos normativos face ao direito constitucional anterior, vigente à data da sua produção jurídica, ou se esse juízo pode ser relevante nalguns casos, como o dos autos, em que o vício, a existir, resultaria da violação de normas constitucionais precedentes, mas «tituladas» pela Revolução de 25 de Abril de 1974, dado que não existiria entre a Revolução e a CRP «ruptura jurídica, menos ainda ruptura por negação».
É que, ainda aqui, esta questão fica prejudicada se se entender que, em qualquer caso, o n.º 1 do artigo 83.º da lei fundamental veio objectivamente sanar qualquer vício que eventualmente pudesse ter afectado originariamente as nacionalizações anteriormente efectuadas.
5 - As nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 - únicas a que se refere o texto constitucional - ocorreram, como é sabido, durante o período que se seguiu ao acto revolucionário que se propôs reimplantar o regime democrático em Portugal e que antecedeu a estabilização e a legitimação jurídica desse regime, através da aprovação e entrada em vigor da Constituição de 1976.
Como também é do conhecimento geral, as nacionalizações efectuadas nem sempre mereceram o apoio de todas as forças e correntes políticas. Segundo alguns, «o processo das nacionalizações, por outro lado e significativamente, não obedeceu a um plano publicamente discutido e elaborado, antes as nacionalizações aparecem, mormente as decretadas após o 11 de Março, como factos consumados, impostos pelas forças político-sociais dominantes que emergirem no processo político» (Manuel Afonso Vaz, Direito Económico, p. 179).
Neste contexto, bem se pode sustentar que com o n.º 1 do artigo 83.º da lei fundamental se tenha pretendido não só «traduzir o reconhecimento» da política de nacionalizações entretanto operada, mas também proceder à sua «legitimação» (cf.
J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., 1.º vol., p. 408). Esta legitimação jurídica ex post (que não pressupõe necessariamente a inexistência de uma legitimidade ex ante), operada pelo artigo 83.º relativamente às nacionalizações, seria, assim, paralela à legitimação jurídica operada pela CRP relativamente à Revolução e teria, pois, para além do mais, um efeito sanatório relativamente a qualquer eventual vício jurídico que houvesse afectado os mesmos actos nacionalizatórios.
6 - Este entendimento parece sair reforçado com a própria contraposição sistemática entre os artigos 82.º e 83.º da lei fundamental.
Segundo o mencionado artigo 82.º, a lei determinará os meios e as formas de nacionalização dos meios de produção, bem como os critérios de fixação de indemnizações.
Logo a seguir, o artigo 83.º garante a irreversibilidade das nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974, com as ressalvas constantes do seu n.º 2.
Tudo leva a crer que o legislador constituinte tenha pretendido estabelecer, para futuro, uma regra de jurisdicidade estrita quanto às nacionalizações que eventualmente viessem a efectuar-se: definição legal dos respectivos meios e formas, bem como dos critérios de fixação de indemnizações, com atribuição dessa competência à AR na alínea e) do n.º 1 do artigo 168.º [originariamente, na alínea q) do artigo 167.º]. Simultaneamente, quanto ao passado, a intenção terá sido a de consolidar as situações preexistentes, encerrando definitivamente toda a controvérsia gerada em torno das nacionalizações já efectuadas.
Tal actuação do legislador constituinte terá sido motivada por razões de certeza e segurança jurídicas, impedindo, assim, a sistemática reabertura do debate sobre a legitimidade de todas e de cada uma das nacionalizações entretanto operadas.
7 - Dir-se-á, porém, que o n.º 1 do artigo 83.º, embora reconhecendo e tutelando a política geral de nacionalizações efectuada no período subsequente ao 25 de Abril, não pode ter querido proteger «todas as nacionalizações de facto concretizadas, ainda que com violação da legalidade» (cf. o citado parecer jurídico junto aos autos).
Todavia, um tal entendimento poderia conduzir à total inoperância do n.º 1 do artigo 83.º da CRP, no que respeita ao mencionado objectivo de garantir a certeza e a segurança jurídicas.
Vejamos porquê.
O Programa do Movimento das Forças Armadas (PMFA), publicado em anexo à Lei 3/74, de 14 de Maio, previa que «as grandes reformas de fundo só poderão ser adoptadas no âmbito da futura Assembleia Nacional Constituinte» (ponto B 5), muito embora o governo provisório devesse lançar os fundamentos de «uma nova política económica, posta ao serviço do povo português, em particular das camadas da população até agora mais desfavorecidas, tendo como preocupação imediata a luta contra a inflação e a alta excessiva do custo de vida, o que necessariamente implicará uma estratégia antimonopolista» [ponto B 6, alínea a)].
Quanto a qualquer política de nacionalizações, era completamente omisso o PMFA, na sua literalidade. E se, para uns, elas constituíam «grandes reformas de fundo», portanto reservadas à Assembleia Constituinte, para outros, elas eram necessariamente exigidas para a prossecução de «uma estratégia antimonopolista».
Isto é, a conformidade material das nacionalizações com o Programa era contestada. E se, mais tarde, o n.º 1 do artigo 6.º da Lei 5/75, de 14 de Março, veio conferir ao Conselho da Revolução (CR) «o poder legislativo para as necessárias reformas de estrutura da economia portuguesa», nem por isso se pode dizer que todos os problemas tivessem ficado automaticamente resolvidos.
Com efeito, e desde logo, não é de excluir que alguns pudessem suscitar a própria legitimidade de uma lei constitucional provisória, na parte em que eventualmente contradissesse o próprio PMFA.
Por outro lado, sempre poderia haver quem discutisse, caso a caso, se certa nacionalização era ou não adequada à necessária reforma da estrutura da economia portuguesa.
Assim sendo, e a não se considerar que o n.º 1 do artigo 83.º teve por efeito garantir a irreversibilidade de todas as nacionalizações - ainda que originariamente inválidas -, bem poderiam hoje vir ainda a ser postas em causa todas, ou quase todas, ou muitas, ou algumas das nacionalizações (tudo dependeria afinal de quais as consideradas como invalidamente efectuadas), com manifesta postergação do efeito de certeza e de segurança jurídicas pretendido pelo legislador constituinte.
Nem se diga que o artigo 83.º, n.º 1, sanou qualquer eventual vício dos diplomas que procederam a nacionalizações, no que se refere ao respectivo conteúdo, mas já não pode ter tido essa consequência quanto aos eventuais vícios orgânicos ou formais de que eles padecessem (aproximando-se, para este efeito, o erro sobre os motivos ou os pressupostos a estes últimos vícios).
É que, como se viu, a Lei 5/75 concedeu ao CR poderes legislativos para as «necessárias reformas de estrutura da economia portuguesa». Mas, se algumas nacionalizações foram ordenadas por diploma do CR, outras foram decididas por decretos-leis dos governos provisórios; quanto a estas, que foram a larga maioria, não está excluído que se pudesse, bem ou mal, vir a sustentar que foram invalidamente efectuadas, por terem dimanado de órgão constitucionalmente incompetente para o efeito.
Do exposto resulta que as razões de certeza e segurança jurídicas que conduziram à consagração da garantia da irreversibilidade das nacionalizações não permitem que do n.º 1 do artigo 83.º da lei fundamental se possa deduzir que aquele preceito constitucional haja pretendido abranger no regime nele estabelecido apenas as nacionalizações validamente efectuadas à face do direito constitucional vigente na respectiva data.
Pelo contrário, tudo leva a crer que ali se haja pretendido consolidar e legitimar todas as nacionalizações, independentemente de qualquer juízo sobre a forma como foram efectuadas ou sobre os motivos que as tenham determinado; isto prescindindo agora, por desnecessário, de analisar a eventual relevância da inexistência jurídica de actos normativos pré-constitucionais.
8 - O n.º 1 do artigo 83.º da CRP, como já atrás se referiu, estabelece que «todas as nacionalizações efectuadas depois de 25 de Abril de 1974 são conquistas irreversíveis das classes trabalhadoras».
Esta regra da irreversibilidade das nacionalizações é, contudo, limitada pela excepção constante do n.º 2 do mesmo artigo, segundo o qual «as pequenas e médias empresas indirectamente nacionalizadas, fora dos sectores básicos da economia, poderão, a título excepcional, ser integradas no sector privado, desde que os trabalhadores não optem pelo regime de autogestão ou de cooperativa».
No caso em apreço, porém, não há que fazer apelo a esta última norma constitucional, desde logo porque a TUCO e a STAL não foram indirectamente nacionalizadas, antes constituíram objecto de nacionalização directa, operada, como se viu, pelo mencionado Decreto-Lei 280-C/75.
A garantia da irreversibilidade das nacionalizações, constante do n.º 1 do artigo 83.º, consiste na proibição de desnacionalizar o que foi nacionalizado, ou seja, na sua reintegração no sector privado, como decorre, a contrario sensu, do disposto no n.º 2 do mesmo artigo.
A desnacionalização «pode ser concretizada, tal como a nacionalização, através de vários esquemas. Tipicamente, a desnacionalização directa traduzir-se-á num acto de soberania, máxime num acto legislativo de carácter revogatório» (Acórdão 11/84 do T. Const., publicado no Diário da República, 2.ª série, de 8 de Maio de 1984; cf., também, os pareceres n.os 13/77 e 15/77, in Pareceres da Comissão Constitucional, 2.º vol., pp. 43 e segs., e 279 e segs.).
Isto é, no caso em apreço não podem restar quaisquer dúvidas quanto ao facto de estarmos perante um caso típico de desnacionalização. E essa desnacionalização é constitucionalmente vedada pelo n.º 1 do artigo 83.º da lei fundamental.
9 - Atingida a conclusão de que a norma questionada viola o referido preceito constitucional, desnecessário se torna averiguar se ela também foi emitida em contradição com o disposto na alínea l) do n.º 1 do artigo 168.º da CRP.
Com efeito, tendo-se já chegado à inconstitucionalidade da norma com um certo fundamento, seria completamente inútil verificar posteriormente que ela ainda era inconstitucional com outro fundamento ou se o não era. Na verdade, em qualquer caso, sempre este Tribunal teria de declarar a sua inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, nos termos do preceituado no artigo 281.º da lei fundamental.
10 - Nestes termos, decidem pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 1.º do decreto aprovado pelo Conselho de Ministros em 23 de Dezembro de 1986, para ser promulgado como decreto-lei, e registado sob o n.º 804/86, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 83.º da CRP.
Tribunal Constitucional, 18 de Março de 1987. - Luís Nunes de Almeida - Martins da Fonseca - Mário Afonso - José Manuel Cardoso da Costa - Magalhães Godinho - Vital Moreira - Raul Mateus - Antero Alves Monteiro Diniz - Messias Bento - Mário de Brito (votei o acórdão com reserva quanto à competência do Tribunal pelas razões constantes do n.º 1 da declaração de voto que fiz no Acórdão 26/85, de 15 de Fevereiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 96, de 26 de Abril de 1985) - Armando Manuel Marques Guedes.