Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça, reunido em tribunal pleno:
O Exmo. Procurador da República junto da Relação de Lisboa traz perante este Supremo Tribunal de Justiça o presente recurso extraordinário, nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Penal.
Visa obter a fixação da jurisprudência no caso concreto versado nos presentes autos de instrução preparatória, que correram no 6.º juízo correccional de Lisboa contra José do Amaral Gomes.
E figura-nos em oposição o Acórdão de 11 de Outubro de 1961, lavrado nesses autos a fls. 32 e seguintes pelo Tribunal da Relação de Lisboa, com o proferido em 11 de Dezembro de 1957, pela mesma Relação, nos autos de recurso crime n.º 632.
Decidira-se no de 1957 que o preceituado no Decreto-Lei 41074 não revogou o artigo 58.º, n.º 8, do Código da Estrada, passando as duas normas a funcionar paralelamente, embora cada uma em seu plano separado.
A do artigo 58.º reserva-se aos casos de dano culposo nas regras de trânsito, ao passo que o artigo 482.º do Código Penal seria de aplicar, com as alterações do Decreto 41074, a todos os danos culposos não resultantes da infracção de regras da natureza apontada.
No acórdão de agora (1961) se decidiu que o artigo 58.º, n.º 8, aludido, deve ter-se por revogado.
Inicialmente, pretendeu o recorrente interpôr recurso ordinário para este Supremo Tribunal de Justiça do último acórdão. Tratando-se de um processo preparatório crime ainda não classificado não poderia ter-se como proferido em polícia correccional e sujeito, portanto, às limitações do artigo 646.º, n.º 4.º, do Código de Processo Penal.
Era a sua argumentação.
Mas, por cautela, desde logo pediu que, a ser arredado o ordinário, se considerasse interposto o competente recurso para tribunal pleno.
A possibilidade de recurso ordinário foi logo afastada, e muito bem, a fl. 37, pelo Sr.
Relator. Fundou-se na razão convincente de o despacho que inicialmente suscitou o recurso haver sido lavrado sobre uma promoção para julgamento em polícia correccional e os factos nela invocados não poderem conduzir a outra solução.
Tal aspecto mostra-se, assim, definitivamente resolvido, deixando-nos perante um recurso para tribunal pleno.
É este que temos de encarar neste momento.
Foi alegado oportunamente a fl. 38 e mandado seguir no acórdão de fl. 59, por se verificarem os pressupostos essenciais do artigo 763.º do Código de Processo Civil ao tempo em vigor, aplicável por força do disposto nos artigos 669.º, § único, e 668.º, § único, do Código de Processo Penal, que estabelece para este recurso ser interposto, processado e julgado como o recurso idêntico em matéria cível.
São eles o domínio da mesma legislação, impossibilidade de recurso ordinário, trânsito do acórdão anterior e proferimento em processo diverso.
Alegou depois, larga e doutamente, o Exmo. Ajudante do Procurador-Geral da República, a fl. 63.
Correram-se ainda os vistos legais a todos os Srs. Juízes do Supremo Tribunal de Justiça e o processo vem agora para decidir.
Tudo visto e ponderado:
1.º Já o Código de Processo Civil de 1939 estabelecia no seu artigo 767.º, § único, que o reconhecimento da oposição no acórdão preliminar não impede que o tribunal pleno decida em sentido contrário, e idêntica regra encontramos no artigo 766.º, n.º 3, do código actual.
Mas nem daí poderão advir dificuldades, pois, no caso vertente, a oposição é mais do que manifesta.
Os dois acórdãos em presença assentam claramente em soluções divergentes e opostas sobre a questão da vigência ou revogação do artigo 58.º, n.º 8, do Código da Estrada.
E entraremos, portanto, sem hesitações, na apreciação do objecto do recurso, ou seja o problema sobre o qual os dois arestos se enfrentam.
2.º A bipartição dos crimes em públicos e particulares ainda se mantinha na Novíssima Reforma Judiciária, artigo 854.º, e sòmente no regime criado pelo Decreto de 10 de Dezembro de 1852, artigo 1.º, surgiu a categoria dos crimes quase públicos, correspondendo à nova modalidade de acusação estabelecida no Código Penal do mesmo ano para certos crimes.
E foi esta fórmula tripartida, assim estruturada, que, vindo até nossos dias, através do disposto no artigo 21.º, § único, do Decreto 1 de 15 de Setembro de 1892, ainda perdura no Código de Processo Penal, artigos 5.º, 6.º e 7.º Nesta projecção crime particular será aquele que só pode ser perseguido criminalmente mediante acusação da parte ofendida ou pessoas a quem a lei confira essa faculdade.
Crime quase público aquele em que a acusação pelo Ministério Público só pode ter lugar quando as mesmas pessoas derem conhecimento do facto delituoso em juízo.
Crime público todos os outros, ou seja aqueles em que o Ministério Público pode acusar, independentemente das restrições mencionadas.
3.º Segundo o artigo 482.º do Código Penal, o dano involuntário, pela violação ou falta de observância, das providências policiais e administrativas contidas nas leis e regulamentos era crime público.
E assim se mantém com a publicação do Código de Processo Penal em 15 de Fevereiro de 1929, nos termos do respectivo artigo 5.º, pois quanto a ele se não verificava qualquer das restrições dos subsequentes artigos 6.º e 7.º Mais tarde, os Decretos-Leis n.os 39351, 39672 e 40275 vieram estabelecer um regime diverso de acusação para os casos de acidente de viação.
Primeiro, o Decreto-Lei 39351, de 7 de Setembro de 1953, que fez a integração da Polícia Judiciária no serviço e organização do Ministério Público. Dispôs no seu artigo 13.º que o procedimento criminal pelo crime de dano, quando consiste na violação ou falta de observância das providências policiais e administrativas contidas nas leis e regulamentos relativos ao trânsito de veículos, sem intenção malévola, depende de participação do ofendido.
Entretanto, o Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei 39672, de 20 de Maio de 1954, adoptou no seu artigo 58.º, n.º 9, a mesma regra, com ligeiríssimas alterações de redução:
9. O procedimento criminal pelo crime de dano, quando este consiste na violação sem intenção maléfica das disposições legais sobre trânsito, só terá lugar mediante participação do ofendido. Na falta desta apenas será punível a contravenção.
E o Decreto-Lei 40275, de 8 de Agosto de 1955, no seu artigo 2.º, substitui esse n.º 9 por um n.º 8, cuja redacção é pràticamente igual:
8. O procedimento criminal pelo dano culposo, quando este resulte de violação das disposições legais sobre trânsito, só terá lugar mediante participação do ofendido. Na falta desta apenas será punível a contravenção.
E na incidência destes textos, cujas redacções inteiramente se equivalem, se estruturam assim as infracções das regras do trânsito, como crime quase público, no âmbito do citado artigo 6.º do Código de Processo Penal, firmando a seguinte posição.
O dano culposo é, na generalidade, um crime público, devendo encarar-se a sua punição independentemente da atitude do ofendido.
No caso restrito de tal crime haver resultado da violação das regras legais do trânsito será quase público, por depender de participação daquele a sequência do competente procedimento crime.
Posteriormente, o Decreto-Lei 41074, de 17 de Abril de 1957, veio, porém, acrescentar ao artigo 482.º dois parágrafos, concebidos nestes termos:
§ 1.º O procedimento judicial pelo crime previsto neste artigo depente de participação do ofendido e ainda da sua acusação nos casos em que, se o dano tivesse sido dolosamente praticado, a acção dependeria de acusação particular.
§ 2.º Na falta de participação ou de acusação apenas haverá procedimento judicial pela contravenção.
Destarte adicionado, o artigo 482.º passou, na sua nova redacção, a alterar profundamente o regime processual da punição do dano involuntário.
Quando não concorra circunstância agravante, atira-nos para regime igual ao que no § único do artigo 481.º se estatui para o dano voluntário: crime particular.
Nos restantes casos, isto é, existindo agravante, passamos a estar em presença de um crime quase público.
E a posição resultante será a que, na verificação do agravamento, o Decreto-Lei 41074 atribui a todos os restantes danos involuntários esse carácter de crime quase público, que a legislação anterior estabelecera exclusivamente para todas as situações emergentes de violações dos preceitos reguladores do trânsito de veículos.
Não havendo agravante, o diploma atribui ao dano culposo, em geral, o regime de crime particular, quando o dano naquelas situações era considerado crime quase público.
E aqui nos quedamos perante a divergência de critério-base deste recurso.
Devem os crimes culposos de dano, emergentes da violação de regras de trânsito de veículos, manter-se, quando haja agravante, na designação de crimes quase públicos ou passar a ser tratados como particulares? Quer dizer: o preceituado no Decreto 41074 revogou o disposto no artigo 58.º, n.º 8, do Código da Estrada, lição do Decreto 40275, artigo 2.º, ou este preceito continua de pé? 4.º Parece não sofrer dúvida de que os preceitos do Código da Estrada constituem lei especial, quando as do Decreto-Lei 41074, ao pretender remediar alguns defeitos do Código Penal, nomeadamente o seu artigo 482.º, devem ter-se como lei geral.
Até o próprio acórdão de 1961 o aceita.
Como se afirma no parecer de fls. 63 e seguintes, não se trata pròpriamente de um direito excepcional, mas sim de variantes da norma geral e corrente em cujos princípios fundamentais se inspiram.
Tal conceito resulta marcadamente das considerações insertas nos relatórios que precedem os dois Decreto-Leis n.os 39672 (capítulo IV, n.º 3) e 40275 (n.º 15) e ainda da forma como em diversos preceitos desses diplomas se adoptam normas peculiares. Num e noutro lado transparece claramente a ideia de estruturar um conjunto de medidas mais rigorosas, capazes de manter a segurança do trânsito através da boa circulação nas estradas.
Podem citar-se neste aspecto Cunha Gonçalves (Tratado, I, p. 8), Prof. Antunes Varela, segundo as lições do Prof. Pires de Lima (1945, vol. I, pp. 28-31), Coviello (Manuale, p. 17), Coppa-Zuccari (Diritto Singolare e Diritto Commune, p. 72), todos citados no mesmo lugar.
5.º Ora segundo regra, ao que pensamos aceite por todos, ao passo que a lei especial revoga sempre a geral nos casos por ela contemplados, esta, por seu lado, só revoga aquela quando o diga expressamente ou quando haja incompatibilidade entre elas por uma se inspirar em princípios novos incompatíveis com os que informam a outra.
Veja-se Guilherme Moreira (Inst., I, p. 21), Prof. Manuel de Andrade (Interpretação ..., p.
106), Prof. Antunes Varela (ibidem, I, p. 60), Cunha Gonçalves (ibidem, I, pp. 15-159), Prof. Cabral Moncada (Lições ..., 2.ª edição, vol. I, pp. 104-105), Manzini (Diritto Penale, vol. I, pp. 319-321), igualmente citados no parecer de fl. 63.
E não se vislumbra qualquer circunstância susceptível de levar-nos a descobrir nesse Decreto-Lei 41074 inspiração em princípios incompatíveis com os ligados ao regime do preceituado no aludido artigo 58.º, n.º 8.
O competente relatório dá-nos o seu propósito de remediar alguns defeitos do Código Penal, alterando a fórmula da perseguição judicial de certos crimes, mas nele expressamente se observa, porém, nem por isso haver razões para modificar o sistema de direito em vigor.
E acrescenta mesmo prosseguir assim na linha de orientação que, iniciada pelo Decreto 39351, se fixou no texto do artigo 58.º, n.º 8, do Código da Estrada.
Tal referência traduz a ideia de manter esta norma, e nunca de a arredar, pois de outra forma não se compreenderia deixasse de dizê-lo expressamente, uma vez invocado aquele preceito especial.
6.º Em conclusão:
O Decreto-Lei 41074 não podia revogar, nem revogou, o artigo 58.º, n.º 8, do Código da Estrada.
Esta é lei especial.
Aquele lei geral.
Sem incompatibilidade de princípios.
Sem propósito de modificar o sistema do direito em vigor. Antes expressamente reconhecendo a conveniência do preceituado nesse artigo 58.º, n.º 8.
7.º Nestes termos se acorda, em conferência, neste Supremo Tribunal de Justiça, em tribunal pleno, em lavrar o seguinte assento:
O § 1.º do artigo 482.º do Código Penal, Decreto-Lei 41074, de 17 de Abril de 1957, não revogou o n.º 8 do artigo 58.º do Código da Estrada.
Sem imposto de justiça.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 1963. - F. Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Amorim Girão - José Osório - Gonçalves Pereira - Cura Mariano - Alberto Toscano - Arlindo Martins - José Meneses - Ricardo Lopes - Eduardo Coimbra - Fragoso de Almeida - Abreu Lobo - Lopes Cardoso.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 6 de Março de 1963. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.