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Acórdão 85/2010, de 16 de Abril

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Sumário

Decode não julgar inconstitucional a norma do n.º 3 do artigo 42.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, na redacção da Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro, enquanto estabelece que a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor. (Proc. nº 653/09)

Texto do documento

Acórdão 85/2010

Processo 653/09

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que figura como recorrente CARES - Companhia de Seguros, S. A., e como recorrida a Fazenda Pública, foi proferida decisão, em 20 de Maio de 2009, que negou provimento ao recurso que o ora recorrente havia interposto de uma anterior decisão do Tribunal Tributário de Lisboa de 16 de Janeiro de 2008, através do qual, para o que agora importa, a mesma havia impugnado a liquidação de IRC referente ao exercício de

2003.

2 - É daquela decisão do Supremo Tribunal Administrativo que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o presente recurso de constitucionalidade, através do seguinte requerimento:

«[...], vem, ao abrigo dos artigos 70.º e segs. da Lei 28/82, de 15 de Novembro, interpor recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão de 20 de Maio de 2009, na medida em que julgou não haver violação do artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, nem violação do princípio constitucional da Segurança Jurídica, nem, ainda, violação do artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da supracitada Lei

n.º 28/82, de 15 de Novembro.

Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da norma estabelecida no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC, efectivamente aplicada ao caso.

Consideram-se violados os seguintes princípios constitucionais:

a) Não aplicação retroactiva da lei fiscal, com previsão no artigo 103.º, n.º 3, da

Constituição da República Portuguesa;

b) Segurança jurídica, com previsão no artigo 2.º da Constituição da República

Portuguesa;

c) Tributação das empresas fundamentalmente sobre o seu rendimento real, com previsão no artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa - consoante se suscitou na impugnação judicial (artigos 12.º a 31º) e no recurso para o Supremo Tribunal Administrativo (conclusões 2.ª a 16.ª).

Termos em que se requer a admissão do recurso agora interposto.» 3 - Notificada para alegar, veio a recorrente concluir da seguinte forma:

«1.ª A Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, introduziu uma alteração ao Código do IRC, passando a este a estabelecer que 'a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital [...] concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor' (aartigoº

42.º, n.º 3);

2.ª Decorre, da referida norma, que perdas efectivas, reais, sofridas pelos contribuintes, apenas são dedutíveis em 50 % do seu valor;

3.ª Sendo embora certo que a recorrente alienou participações sociais em 2003, altura em que já estava em vigor o referido n.º 3 do artigo 42.º do CIRC, e que essas alienações geraram perdas (menos-valias), a aplicação de tal norma viola o disposto no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa;

4.ª Estamos perante uma retroligação ou retroconexão de efeitos jurídicos, na medida em que a norma - o referido n.º 3 do artigo 42.º do Código do IRC - atinge situações e direitos desenvolvidos do passado e que permanecem no presente;

5.ª É que as referidas participações sociais, embora alienadas em 2003, tinham sido adquiridas antes da entrada em vigor da nova norma;

6.ª Aliás, o legislador, nas alterações aos regimes das mais e menos-valias, sempre ressalvou esses efeitos do passado, determinando que os novos regimes só se aplicavam aos bens adquiridos após a sua entrada em vigor (cf. artigo 5.º do Decreto-Lei 442-A/88, de 30 de Novembro, artigo 18.º-A do Decreto-Lei 442-B/88, de 30 de Novembro, e artigos 3.º, n.º 5, e 10.º, n.º 4, da Lei n.º

30-G/2000, de 29 de Dezembro);

7.ª A aplicação do regime do artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC a participações adquiridas antes da sua entrada em vigor viola, assim, o princípio constitucional da não

aplicação retroactiva da lei fiscal;

8.ª A referida aplicação do artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC a participações sociais adquiridas antes da sua entrada em vigor, viola, também, o princípio da segurança jurídica, estabelecido no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa;

9.ª Os contribuintes adquiriram participações sociais com base num determinado quadro legal, que era, aliás, o quadro normal ou típico, segundo o qual os ganhos da alienação dessas participações eram tributados e as perdas eram dedutíveis;

10.ª A alteração anormal, imprevisível, mudando, radicalmente, o quadro legal, de modo que as perdas passaram a ser deduzidas apenas em metade, violou, frontalmente,

o princípio da segurança e da confiança;

11.ª A não aceitação de metade das perdas geradas na alienação de participações sociais viola o princípio da tributação do rendimento real, estabelecido no artigo 104.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa;

12.ª A tributação pelo rendimento real, efectivo, é uma decorrência do princípio da capacidade contributiva, segundo o qual os contribuintes só podem ser tributados pela sua efectiva e real capacidade e esta mede-se pelos seus ganhos ou acréscimos;

13.ª A não aceitação de metade das perdas, implica, obviamente, a tributação sobre um ganho/acréscimo que o contribuinte não teve.

Termos em que o presente recurso deve ser julgado procedente, considerando-se inconstitucional o artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC nos termos indicados.»

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II - Fundamentação

4 - A recorrente pretende ver apreciada a «norma estabelecida no artigo 42.º, n.º 3, do Código do IRC», invocando três fundamentos de inconstitucionalidade: a proibição de retroactividade na criação de impostos, a violação da protecção da confiança e a proibição de tributação por um rendimento não real.

Importa, então, determinar qual a norma efectivamente em causa.

Na versão original do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC - aprovado pelo Decreto-Lei 442-B/88, de 30 de Novembro), nenhuma regra se estabelecia, designadamente no artigo 42.º, quanto ao montante de menos valias cuja dedução se autorizava. Apenas se afirmava, na alínea i) do seu artigo 23.º, que se consideravam custos ou perdas «as menos valias realizadas». Por força da entrada em vigor da Lei 32-B/2002, de 30 de Dezembro, o mencionado artigo 42.º passou a estatuir, no seu n.º 3, que «A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remissão e amortização com redução de capital, concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor». Entretanto, por força da vigência da Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro, e através do seu artigo 44.º, o referido n.º 3 do artigo 42.º do CIRC recebeu a seguinte redacção:

«A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas

metade do seu valor».

Finalmente, após a republicação do CIRC, efectuada pelo Decreto-Lei 159/2009, de 13 de Julho, a solução manteve-se na íntegra, apesar de ter sido deslocada para o actual artigo 45.º, por via da renumeração entretanto operada.

É esta a redacção actual da totalidade do preceito em causa:

«1 - Não são dedutíveis para efeitos da determinação do lucro tributável os seguintes encargos, mesmo quando contabilizados como gastos do período de tributação:

a) O IRC e quaisquer outros impostos que directa ou indirectamente incidam sobre os

lucros;

b) Os encargos evidenciados em documentos emitidos por sujeitos passivos com número de identificação fiscal inexistente ou inválido ou por sujeitos passivos cuja cessação de actividade tenha sido declarada oficiosamente nos termos do n.º 6 do

artigo 8.º;

c) Os impostos e quaisquer outros encargos que incidam sobre terceiros que o sujeito passivo não esteja legalmente autorizado a suportar;

d) As multas, coimas e demais encargos pela prática de infracções, de qualquer natureza, que não tenham origem contratual, incluindo os juros compensatórios;

e) As indemnizações pela verificação de eventos cujo risco seja segurável;

f) As ajudas de custo e os encargos com compensação pela deslocação em viatura própria do trabalhador, ao serviço da entidade patronal, não facturados a clientes, escriturados a qualquer título, sempre que a entidade patronal não possua, por cada pagamento efectuado, um mapa através do qual seja possível efectuar o controlo das deslocações a que se referem aqueles encargos, designadamente os respectivos locais, tempo de permanência, objectivo e, no caso de deslocação em viatura própria do trabalhador, identificação da viatura e do respectivo proprietário, bem como o número de quilómetros percorridos, excepto na parte em que haja lugar a tributação em sede de IRS na esfera do respectivo beneficiário;

g) Os encargos não devidamente documentados;

h) Os encargos com o aluguer sem condutor de viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, na parte correspondente ao valor das depreciações dessas viaturas que, nos termos das alíneas c) e e) do n.º 1 do artigo 34.º, não sejam aceites como gastos;

i) Os encargos com combustíveis na parte em que o sujeito passivo não faça prova de que os mesmos respeitam a bens pertencentes ao seu activo ou por ele utilizados em regime de locação e de que não são ultrapassados os consumos normais;

j) Os juros e outras formas de remuneração de suprimentos e empréstimos feitos pelos sócios à sociedade, na parte em que excedam o valor correspondente à taxa de referência Euribor a 12 meses do dia da constituição da dívida ou outra taxa definida por portaria do Ministro das Finanças que utilize aquela taxa como indexante;

l) As menos-valias realizadas relativas a barcos de recreio, aviões de turismo e viaturas ligeiras de passageiros ou mistas, que não estejam afectos à exploração de serviço público de transportes nem se destinem a ser alugados no exercício da actividade normal do sujeito passivo, excepto na parte em que correspondam ao valor fiscalmente depreciável nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 34.º ainda não aceite como

gasto;

m) Os gastos relativos à participação nos lucros por membros de órgãos sociais e trabalhadores da empresa, quando as respectivas importâncias não sejam pagas ou colocadas à disposição dos beneficiários até ao fim do período de tributação seguinte;

n) Sem prejuízo da alínea anterior, os gastos relativos à participação nos lucros por membros de órgãos sociais, quando os beneficiários sejam titulares, directa ou indirectamente, de partes representativas de, pelo menos, 1 % do capital social, na parte em que exceda o dobro da remuneração mensal auferida no período de tributação a que respeita o resultado em que participam.

2 - Tratando-se de sociedades de profissionais sujeitas ao regime de transparência fiscal, para efeitos de dedução dos correspondentes encargos, poderá ser fixado por portaria do Ministro das Finanças o número máximo de veículos e o respectivo valor.

3 - A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas

metade do seu valor.

4 - A Direcção-Geral dos Impostos deve disponibilizar a informação relativa à situação cadastral dos sujeitos passivos relevante para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º

1.

5 - No caso de não se verificar o requisito enunciado na alínea m) do n.º 1, ao valor do IRC liquidado relativamente ao período de tributação seguinte adiciona-se o IRC que deixou de ser liquidado em resultado da dedução das importâncias que não tenham sido pagas ou colocadas à disposição dos interessados no prazo indicado, acrescido

dos juros compensatórios correspondentes.

6 - Para efeitos da verificação da percentagem fixada na alínea n) do n.º 1, considera-se que o beneficiário detém indirectamente as partes do capital da sociedade quando as mesmas sejam da titularidade do cônjuge, respectivos ascendentes ou descendentes até ao 2.º grau, sendo igualmente aplicáveis, com as necessárias adaptações, as regras sobre a equiparação da titularidade estabelecidas no Código das

Sociedades Comerciais.»

Assim, a norma cuja constitucionalidade a recorrente questiona é a que se retira do segmento normativo incluído no referido n.º 3 - «a diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital [...] concorre para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor - , na medida em que tal se traduz numa redução das menos-valias dedutíveis.

5 - No seu Acórdão 128/09 (disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal Constitucional afirmou: «[...] foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos. Explicitou-se, aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da protecção de confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. i, Coimbra Editora, Coimbra,

2007, pp. 1092 e segs.).

Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável (não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando assuma natureza retroactiva, sendo a expressão 'retroactividade' usada, aqui, em sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova, desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal revogada (a lei antiga) e mais

favorável.

[...]

Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma

certa relação jurídico-tributária.

[...]

A retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em

vigor da lei nova).»

E acrescentou, ainda, que:

«[...] questão diferente da que se deixou resolvida é a de saber se a decisão recorrida deve ser mantida quanto ao outro fundamento de inconstitucionalidade (violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º

da Constituição).

O tema da protecção da confiança tem sido abundantemente tratado pelo Tribunal Constitucional. Contudo - e em matéria tributária - a jurisprudência do Tribunal sobre o que queira dizer 'a necessária protecção da confiança legítima' não pode deixar de ser olhada com cautela, consoante a sua produção tenha ocorrido antes ou depois da revisão Constitucional de 1997. Na verdade - e como o tem dito a doutrina -, com a formulação actual do n.º 3 do artigo 103.º da CRP alterou-se o lugar constitucional que o princípio decorrente do artigo 2.º ocupa em matérias de natureza fiscal: a aprovação, em 1997, de um princípio geral de irretroactividade da lei fiscal veio modificar (e não diminuir ou aumentar) a relevância do princípio.

Quer isto dizer exactamente o seguinte.

A proibição expressa da retroactividade da lei fiscal não tornou inútil a eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da protecção da confiança.

Como diz Casalta Nabais (cf. Direito Fiscal, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 149), a protecção da confiança não foi absorvida pelo novo preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fiscais retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio, corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou autêntico. Nesses casos - nos quais, recorde-se, se não inclui o presente - não há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do n.º 3 do artigo 103.º, inconstitucional. Mas tal não significa que, por causa disso, se tenha esgotado ou exaurido a 'utilidade' do princípio da confiança em matéria tributária.

Pode haver outras situações - de retroactividade imprópria, ou até de não retroactividade - que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela tutela da

confiança.»

[...]

«No Acórdão 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal estabeleceu já os limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual inconstitucionalidade de normas dotadas de 'retroactividade inautêntica, retrospectiva'. Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que deveria ser dado aos casos de 'retroactividade autêntica' e o tratamento a conferir aos casos de 'retroactividade inautêntica' que seriam, disse-se, tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.

De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam

dois pressupostos essenciais:

a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).

Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes requisitos ou 'testes'. Para que para haja lugar à tutela jurídico-constitucional da 'confiança' é necessário, em primeiro lugar, que o Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar nos privados 'expectativas' de continuidade; depois, devem tais expectativas ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de continuidade do 'comportamento' estadual; por último, é ainda necessário que não ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.

Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do Estado.

Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe atribui protecção.

Por isso, disse-se ainda no Acórdão 287/90 - e importa ter este dito presente no caso - que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das leis, 'não há [...] um direito à não frustração de expectativas jurídicas ou a manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a factos complexos já parcialmente

realizados'.»

6 - Ora, o que se retira do que antecede permite concluir sobre as questões da proibição da retroactividade e da protecção da confiança colocadas pela ora

recorrente.

6.1 - No que se refere à problemática da proibição da retroactividade, parece claro que a hipótese de uma qualquer aplicação retroactiva do disposto no artigo 42.º, n.º 3, do CIRC, no caso concreto e nos termos proibidos pelo n.º 3 do artigo 103.º da Constituição - retroactividade própria ou autêntica, ou seja, aplicação de lei nova a factos anteriores à entrada em vigor da lei nova - , não se pode colocar. Na verdade, por um lado, o facto gerador da obrigação - a alienação - ocorre indubitavelmente na vigência da lei nova. Por outro, não é sustentável afirmar a existência de um facto jurídico-fiscal complexo de formação sucessiva. Na verdade, não basta que se verifique uma aquisição anterior e uma alienação posterior para que se possa afirmar a existência de um único facto, embora complexo. A ser assim, qualquer aquisição que, no futuro, próximo ou longínquo, desse origem a uma alienação seria um facto complexo, não obstante serem distintos o primeiro alienante e o segundo adquirente, não obstante o conteúdo da contratação ser diverso na primeira e na segunda alienação, não obstante ocorrer um lapso de tempo mais ou menos prolongado entre tais operações.

A intermediação meramente casual de uma pessoa (no caso, o primeiro adquirente/segundo alienante) não pode ser elemento suficientemente capaz de produzir a união de factos que são juridicamente distintos, quer do ponto de vista dos intervenientes, quer, acima de tudo, do ponto de vista da sua substância. Não havendo sequer conexão fáctica entre a aquisição e a posterior alienação - o que, de resto, sendo alegado pela ora recorrente, não surge demonstrado - a aplicação a esta última do regime em vigor no momento em que ela ocorreu, ou seja daquele que resulta da citada disposição legal, não se traduz em nenhuma aplicação retroactiva.

6.2 - E quanto à alegada violação da protecção da confiança e da segurança jurídica, também não é possível sufragar a tese da recorrente. De facto, a protecção das alegadas expectativas invocadas pela ora recorrente jamais pode colidir, nem impedir, o funcionamento do princípio da livre revisibilidade das leis. A menos que os requisitos de protecção da confiança, tal como têm sido reconhecidos e aceites na jurisprudência constitucional, estejam integralmente verificados. E, na realidade, não estão.

Vejamos.

Em primeiro lugar, não se pode dizer que o Estado, através da administração fiscal, ao permitir durante certo período a dedução da totalidade das menos-valias obtidas em determinada alienação, possa ter criado uma expectativa de manutenção de idêntico regime para o futuro. Admitir o contrário seria aceitar um princípio de imutabilidade das

leis, que se não pode reconhecer.

Em segundo lugar, também não se antevê como possa a expectativa da recorrente ser havida como legítima, já que tal implicaria uma como que «proibição de retrocesso» em matéria de deduções fiscais, igualmente inaceitável.

Em terceiro lugar, tão-pouco se pode dizer que a ora recorrente possa ter feito, legitimamente, um plano de vida assente no pressuposto de continuidade do 'comportamento' da Administração Fiscal. Na realidade, afigura-se insustentável afirmar que a ora recorrente ao adquirir as participações sociais em causa o fez no pressuposto de, posteriormente, independentemente até de qualquer "proximidade temporal" entre a aquisição e a alienação - que poderá vir a ocorrer décadas após - , as vir a alienar com prejuízo, deduzindo, nesse caso, a totalidade das menos-valias.

Em quarto e último lugar, parece existir uma razão de interesse público subjacente à alteração legislativa em causa: obter uma mais justa e equilibrada repartição de encargos fiscais entre as diversas espécies de contribuintes, dado que o regime resultante do artigo 42.º, n.º 3, do CIRC, apenas se aplica, por definição, a contribuintes que tenham a natureza de pessoa colectiva ou afim.

Não é, assim, possível concluir, como pretende a recorrente, pela violação do 'princípio da segurança jurídica, estabelecido no artigo 2.º da Constituição da República

Portuguesa'.

7 - No que toca à questão da 'proibição de tributação por um rendimento presumido' é a própria letra do artigo 104.º, n.º 3, da CRP, que fornece uma resposta segura: 'a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu rendimento real' (itálico

aditado).

Como se afirmou no Acórdão 162/2004 (igualmente disponível na página Internet do Tribunal Constitucional), «[...] o rendimento real fiscalmente relevante não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, mas antes um conceito normativamente modelado e contabilisticamente mensurável, [...].

Por outro lado, a injunção constitucional da tributação segundo o rendimento real não pode deixar de atender, necessariamente, aos princípios da praticabilidade e de operacionalidade do sistema, pelo que não pode deixar de se lhes reconhecer natureza constitucional, sob pena dos arquétipos legalmente construídos não conseguirem realizar, com a aproximação possível, o princípio da universalidade e da igualdade no

pagamento dos impostos.

Um sistema inexequível ou um sistema que não permita o controlo dos rendimentos e da evasão fiscal, na medida aproximada à realidade existente, conduz em linha recta à distorção, na prática, do princípio da capacidade contributiva e da tributação segundo

o rendimento real.

São estas as dificuldades que explicam que a Constituição se tenha limitado a prever que a imposição fiscal deve incidir fundamentalmente sobre o rendimento real, não 'excluindo com tal disposição o recurso a outras formas fiscais estranhas ao mito do apuramento declarativo-contabilístico do rendimento real' - José Guilherme Xavier de Basto (O princípio da tributação do rendimento real e a Lei Geral Tributária, in Fiscalidade, n.º 5) (cf. também, João Pedro Alves Ventura Silva Rodrigues, Algumas reflexões em torno da efectiva concretização do princípio da capacidade contributiva, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, 2003, pp.

906 e segs.)

No dizer de Casalta Nabais, «a CRP, ao exigir que a tributação das empresas se norteie pelo rendimento real, está apenas a 'recortar' o quadro típico ou caracterizador do sistema fiscal [...] e não [a] 'estabelecer' ou 'desenhar a cheio' esse mesmo quadro» (cf. 'Alguns aspectos do quadro constitucional das empresas', in Fisco, n.os 103/104, p. 19)». Por conseguinte, não só não é constitucionalmente imperioso que o rendimento tributável consista sempre e apenas no rendimento real, tal como aparentemente resulta da contabilidade empresarial, mas também tal rendimento não é, em si próprio, uma realidade de valor fisicamente apreensível, antes sendo um conceito normativamente

modelado.

Nestes termos, não viola o preceito constitucional um regime fiscal que se traduza numa menor ponderação, para efeitos tributários, de determinadas menos valias contabilizadas pelas empresas. Aliás, a impossibilidade de dedução integral de alguns custos ou perdas, como tal contabilizados pelos contribuintes, para efeitos de determinação da base tributável, não só resulta de diversos números do actual artigo 45.º do CIRC, como já tem sido objecto de recurso para este Tribunal, nomeadamente nos processos decididos pelos Acórdãos n.os 418/2000 e 451/2002 (disponíveis na página Internet do Tribunal Constitucional em http://www.tribunalconstitucional.pt/), os quais não julgaram inconstitucional a solução encontrada. Jurisprudência que se entende

dever agora igualmente reiterar.

III - Decisão

Em face do exposto, o Tribunal decide negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.

Lisboa, 3 de Março de 2010. - Gil Galvão - Maria João Antunes - Carlos Pamplona de Oliveira - José Borges Soeiro - Rui Manuel Moura Ramos.

203133147

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/2010/04/16/plain-272931.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/272931.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1988-11-30 - Decreto-Lei 442-A/88 - Ministério das Finanças

    Aprova o Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares (IRS).

  • Tem documento Em vigor 1988-11-30 - Decreto-Lei 442-B/88 - Ministério das Finanças

    Aprova e publica em anexo o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC).

  • Tem documento Em vigor 2002-12-30 - Lei 32-B/2002 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para o ano de 2003.

  • Tem documento Em vigor 2005-12-30 - Lei 60-A/2005 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para 2006.

  • Tem documento Em vigor 2009-07-13 - Decreto-Lei 159/2009 - Ministério das Finanças e da Administração Pública

    Adapta o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442-B/88, de 30 de Novembro, às normas internacionais de contabilidade adoptadas pela União Europeia e ao Sistema de Normalização Contabilística (SNC), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 158/2009, de 13 de Julho, e procede à sua republicação.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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