Acordam no tribunal pleno do Supremo Tribunal de Justiça:
A Hidroeléctrica do Douro, S. A. R. L., recorreu para este tribunal pleno, nos termos do artigo 764.º do Código de Processo Civil, do Acórdão da Relação do Porto de 4 de Abril de 1962 (a fls. 76 e 115-A), por estar em oposição sobre a mesma questão de direito com o Acórdão da Relação de Coimbra de 24 de Novembro de 1953 (na Revista dos Tribunais, ano 73.º, p. 62).
O recurso foi tempestivamente interposto e seguiu os legais termos, tendo o Acórdão da secção, de 8 de Janeiro de 1963 (a fl. 152), julgado que se verificava a oposição doutrinal daqueles acórdãos e mandado seguir os termos do recurso.
A recorrente alegou, sustentando que as empresas concessionárias de produção de energia hidroeléctrica não estão sujeitas ao pagamento de licença de estabelecimento comercial ou industrial, visto que:
a) Só devem a renda a pagar ao Estado e o adicional a pagar aos municípios, conforme a base XV da Lei 2002 e os artigos 68.º e seguintes do Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960;
b) Nos dez primeiros anos gozam de gratuitidade fixada em tais disposições legais;
c) O artigo 16.º do caderno de encargos (no Diário do Governo, 3.ª série, de 14 de Julho de 1954) só exige o pagamento das rendas previstas nos n.os 1.º a 3.º da base XV da Lei 2002 e tal preceito especial do caderno de encargos prefere ao preceito geral do § 2.º do artigo 712.º do Código Administrativo;
d) O acórdão recorrido violou, portanto, os preceitos legais mencionados, tendo julgado correctamente o invocado acórdão da Relação de Coimbra e devendo tirar-se assento no sentido indicado pela recorrente.
A recorrida Câmara Municipal de Mogadouro e o distinto magistrado do procurador-geral da República que serviu neste tribunal emitiu o douto parecer de fls.
261 e seguintes, no sentido de que as empresas concessionárias de produção, transporte e grande distribuição de energia eléctrica estão sujeitas ao pagamento da licença de estabelecimento comercial ou industrial, nos termos do § 2.º do artigo 712.º do Código Administrativo, contrariando todas as razões apresentadas pela recorrente.
Estão juntos pareceres jurídicos defendendo as orientações deste conflito de jurisprudência.
Tudo visto e decidindo:
O acórdão da secção que verificou a existência dos pressupostos deste recurso não impede que este tribunal pleno volte a examinar tal aspecto prévio, como resulta do n.º 3 do artigo 766.º e do artigo 764.º do Código de Processo Civil.
Combinados os artigos 741.º do Código Administrativo e 764.º do Código de Processo Civil, vê-se que o recurso de decisões sobre reclamações de impostos municipais, como a dos autos, cabia do chefe da secretaria da câmara para o juiz de direito da comarca e deste para o Tribunal da Relação, não havendo recurso para este Supremo Tribunal por motivos diferentes do regime de alçadas.
O artigo 764.º do Código de Processo Civil de 1961 visou precisamente casos, como o destes autos, em que não havia recurso de revista ou de agravo para este Supremo e era necessária a intervenção do tribunal pleno para acabar com conflitos de jurisprudência entre vários acórdãos das Relações ou da mesma Relação.
As alterações que, em relação aos concelhos de Lisboa e Porto, os artigos 9.º e 11.º do Decreto-Lei 45248, de 16 de Setembro de 1963, introduziram naquele regime de recursos, só diminuíram os casos de aplicação do dito artigo 764.º, deixando intacta a competência deste tribunal pleno para a uniformização da jurisprudência contraditória das Relações nos casos, como este, em que elas continuam a intervir nos recursos das decisões fiscais municipais.
Se é certo que o acórdão recorrido não permite recurso de revista ou de agravo por motivo estranho às alçadas, não e menos certo que há oposição sobre a mesma questão de direito entre ele e o acórdão invocado em oposição, de 1953, da Relação de Coimbra.
Um e outro, na vigência da mesma legislação, firmaram posições contrárias sobre a mesma questão de direito - ser ou não devida licença de estabelecimento por empresas concessionárias hidroeléctricas, como a recorrente, com base no § 2.º do artigo 712.º do Código Administrativo.
O acórdão recorrido julgou que tal licença era devida e o Acórdão de 1953 julgou em sentido contrário.
O conflito teve lugar no domínio da mesma legislação e, assim, confirma-se a já apurada existência de todos os requisitos do conflito, que passa a apreciar-se e a solucionar-se. A orientação anterior é concordante com a do acórdão que firmou o assento de 10 de Maio de 1963 (Boletim n.º 127, p. 207) e com a de vários acórdãos que, depois do aludido decreto-lei, mandaram prosseguir recursos idênticos para o tribunal pleno.
Quanto ao fundo:
A questão vem sendo decidida pelas Relações nos dois sentidos, dominando, contudo, a orientação que exige o pagamento da licença de estabelecimento, hoje imposto do comércio e indústria.
A tese oposta da recorrente repete as razões de que tal imposto municipal não é devido pelas empresas concessionárias hidroeléctricas; estas só devem a renda referida na base XV da Lei 2002, de 26 de Dezembro de 1944, e no artigo 68.º do Decreto-Lei 43335, de 19 de Novembro de 1960, e o adicional a essa renda previsto naquela base e no artigo 70.º do mesmo decreto-lei, tributação que, sendo especial, afasta aquela tributação geral; acrescenta que as mesmas empresas estão isentas e não podem ser tributadas no aludido imposto municipal.
A evolução do regime legal, desde o Decreto de 27 de Maio de 1911, artigos 6.º, 14.º e 20.º, até aos citados diplomas, passando pelos Decretos n.os 5787-IIII (artigo 72.º), e 16767 (artigo 6.º), demonstra que aquelas empresas pagam tais importâncias «a título de renda», como se diz no Decreto-Lei 43335, com a clara intenção de pôr termo às dúvidas que as leis anteriores permitiam.
A renda, ao contrário do que a recorrente entende, não existe apenas no arrendamento e no censo consignativo, pois é entendimento seguro entre nós e noutros países que ela existe nos contratos de concessão como o dos autos, em que a citada base XV estabelece uma compensação das concessionárias ao concedente a que correctamente chama renda. A circunstância de esta ser variável em atenção à energia produzida é uma das formas admissíveis, como o refere a Lei 2002 (Prof.
Marques Guedes, A Concessão, pp. 43 e 159), e, assim, não pode ela conceber-se como imposto de natureza especial a afastar a contribuição industrial ou qualquer outro imposto. A renda é a contrapartida pelo uso da causa dominial e pela sua natureza e função não pode considerar-se imposto. De contrário, seria ilógica a gratuitidade de dez anos fixada na alínea d) da citada base XV - a gratuitidade não deveria ter limitação que não fosse o termo da concessão - e, por outro lado, não era menos necessária a isenção de contribuição industrial estabelecida na alínea c) da base XV - nada pagariam as empresas nos primeiros dez anos e depois pagariam o imposto renda, segundo a recorrente. O absurdo da tese da recorrente aumentaria no caso de as empresas que utilizem combustíveis estrangeiros, pois teriam as mesmas empresas de pagar dois impostos: contribuição industrial e renda [alínea c) da base XV].
Tudo isto se conjuga para afastar tal tese por ilógica e contrariadora do sistema legal.
O adicional sobre a renda segue o que se disse desta, dado o seu carácter acessório;
e, assim, não poderá classificar-se também como imposto especial a impedir o citado imposto municipal. É a própria lei a esclarecer a causa do adicional: é para ser repartido pelos municípios onde forem feitas as expropriações ou as compras de imóveis, na proporção do respectivo valor (base XV e artigo 70.º citados), visando compensar as câmaras dos prejuízos, das faltas de receitas ou quebras dos rendimentos e dos problemas sociais resultantes das ocupações dos terrenos. Assim o estabelecera em caso idêntico o Decreto-Lei 28637, de 6 de Maio de 1938.
A indemnização fixada no § 2.º do mesmo artigo 70.º é, como aí se diz, «indemnização pela quebra de rendimentos» e, deste modo, subsiste a razão de ser da exigência do imposto municipal pela actividade lucrativa comercial ou industrial exercida por tais empresas.
A isenção de contribuição industrial e a gratuitidade decenal da renda só visaram facilitar a instalação dos empreendimentos, abrindo o Estado mão dos seus interesses e direitos, mas nada dispondo quanto aos direitos e interesses das câmaras quanto ao imposto de comércio e indústria. A isenção do citado artigo 67.º respeita só à contribuição industrial; quanto aos demais impostos é de observar o seu regime legal.
A isenção de tal imposto municipal, como a de qualquer outro imposto, deve ser expressamente fixada na lei, conforme a exigência do § 1.º do artigo 70.º da Constituição Política. Ainda o anterior § 2.º do artigo 712.º do Código Administrativo repele o entendimento da recorrente quando vê na sua isenção de contribuição industrial a isenção da licença de estabelecimento.
Menos valor tem o argumento que a recorrente tira do n.º 4.º do artigo 16.º dó caderno de encargos, repetido em preceito semelhante do caderno de encargos de idênticas empresas.
Tal preceito é simples regulamentação das disposições da Lei 2002 e do Decreto-Lei 43335; o seu sentido não pode fugir de simples aplicação daqueles preceitos legais, cujo sentido ficou apurado. De resto, nos mesmos cadernos de encargos se diz que as empresas ficam sujeitas aos deveres aí estatuídos «além dos deveres gerais impostos pelas leis e regulamentos aplicáveis» (artigos 74.º, 101.º e outros). O n.º 10.º do relatório de tal diploma afasta qualquer dúvida afirmando que os encargos inerentes à exploração incluem os de natureza fiscal.
Este entendimento deriva do n.º 6.º do artigo 122.º do Decreto-Lei 43335, como derivava também do § 3.º do artigo 7.º do Decreto 16767, de 20 de Abril de 1929.
A tributação em imposto de comércio e indústria não pode assim perturbar o equilíbrio económico da concessão, porque nas despesas de exploração a lei manda incluir os encargos tributários, os impostos gerais ou municipais com o de comércio e indústria.
As empresas concessionárias hidroeléctricas estão sujeitas a imposto de comércio e indústria pelo exercício da sua actividade lucrativa prevista no artigo 710.º do Código Administrativo e de harmonia com o anterior § 2.º do artigo 712.º, hoje § único do artigo 710.º (segundo a redacção do Decreto-Lei 45676, de 24 de Abril de 1964) deste código, por estarem isentos legalmente da contribuição industrial e não terem idêntica isenção daquele imposto municipal (antiga licença de estabelecimento e hoje imposto de comércio e indústria).
Não há dupla tributação, visto que o adicional à renda é diverso do imposto de comércio e indústria e não impede estes, verificados que sejam os respectivos pressupostos legais.
São autónomos os dois impostos - contribuição industrial e imposto de comércio e indústria -, como constava do citado § 2.º do referido artigo 712.º, hoje § único do artigo 710.º, autonomia que vem já do § 2.º do artigo 2.º da Lei de 7 de Agosto de 1913 e que se vê aplicada no artigo 1.º e § único do Decreto-Lei 44172, de 1 de Fevereiro de 1962.
O citado Decreto-Lei 45676, alterando alguns artigos do Código Administrativo, como os artigos 704.º, 710.º e seguintes, em nada alterou o regime legal quanto à questão equacionada neste recurso.
Apenas se mudou com mais correcção a denominação do imposto directo municipal, que antes se chamava licença de estabelecimento comercial ou industrial e hoje se apelida de imposto de comércio e indústria (n.º 5.º do artigo 704.º na anterior e actual redacção); e a matéria que constava do artigo 710.º e seu § único foi englobada no corpo do artigo 710.º, passando o que se dispunha no § 2.º do artigo 712.º para o actual § único do artigo 710.º Os pressupostos de tal imposto mantiveram-se iguais e a solução das empresas isentas de contribuição industrial, mas não do imposto municipal, mantém-se igual à anterior.
Não procedendo nenhuma das razões da tese da recorrente, e porque vêm verificados e não impugnados os pressupostos dos anteriores artigos 710.º e § único e 712.º, § 2.º, actuais artigo 710.º e § único do Código Administrativo, conclui-se que correctamente exigida vem sendo a licença de estabelecimento comercial e industrial, actualmente imposto de comércio e indústria, em acordo com a orientação do acórdão recorrido, que é conforme à que largamente domina nas instâncias.
Nos termos expostos, e conforme o disposto nos artigos 704.º e seguintes do Código Administrativo, nos artigos 27.º e 28.º do Decreto 16731, de 13 de Abril de 1929 (Reforma Tributária), na base XV da Lei 2002, nos artigos 67.º e seguintes do Decreto-Lei 43335 e no artigo 70.º, § 1.º, da Constituição Política, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido, com custas pela recorrente, solucionando-se o conflito de jurisprudência com o seguinte assento:
As empresas concessionárias hidroeléctricas são passíveis de imposto de comércio e indústria, nos termos do anterior § 2.º do artigo 712.º, hoje § único do artigo 710.º do Código Administrativo.
Lisboa, 12 de Maio de 1964. - José Meneses - Fragoso de Almeida - Lopes Cardoso - F. Toscano Pessoa - Albuquerque Rocha - Barbosa Viana - Alberto Toscano - Simões de Carvalho - Lucena e Vasconcelos - João Caldeira - Torres Paulo - Eduardo Tovar de Lemos - Albino Resende Gomes de Almeida.
Processo 59316. - Autos de recurso para tribunal pleno vindos da Relação do Porto. Recorrente, Hidroeléctrica do Douro, S. A. R. L.
Acordam no tribunal pleno do Supremo Tribunal de Justiça:
A Hidroeléctrica do Douro, S. A. R. L., notificada do Acórdão de 12 de Maio último, em que foi proferido o assento da mesma data, reclamou tempestivamente contra tal acórdão, alegando o seguinte:
1.º No acórdão reclamado refere-se o § 2.º do artigo 2.º da Lei de 7 de Agosto de 1913, sendo certo que esse artigo apenas tem um parágrafo. Solicita, por isso, a respectiva rectificação.
2.º Diz que o acórdão peca por nulidade, pois que conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, acontecendo que a questão fundamental a decidir neste conflito de jurisprudência «era sòmente a de se saber se as empresas concessionárias hidroeléctricas, isentas ou não, sujeitas a contribuição industrial, deviam, não obstante, pagar o falado imposto municipal».
3.º O reclamado acórdão viola o n.º 2.º do artigo 763.º do Código de Processo Civil, visto que refere indevidamente o § único do artigo 710.º do Código Administrativo, muito posterior à vigência do § 2.º do artigo 712.º do mesmo código, invocado nos acórdãos em conflito.
Ouvido o digno magistrado do Ministério Público, por ele foi lançado o seu «visto» de fl.
A fl. 487, segundo período, consta o seguinte: «vem já do § 2.º do artigo 2.º da Lei de 7 de Agosto de 1913».
Esta expressão deve ser substituída pela seguinte: «vem já do artigo 108.º e seguintes da Lei 88, de 7 de Agosto de 1913, e do § 2.º do artigo 2.º da Lei 999, de 15 de Julho de 1920».
Do confronto das expressões se verifica fàcilmente o lapso havido na redacção e, por isso, se rectifica o acórdão reclamado nos termos que ficam apontados.
Quanto às nulidades apontadas pela reclamante, esta não tem a mínima razão.
O tribunal limitou-se a conhecer do objecto do recurso para o tribunal pleno, limitado pela recorrente na sua petição e alegações, fixado no acórdão da secção de fl. 139 e confirmado no acórdão ora reclamado do tribunal pleno.
O que a reclamante concluiu a fl. 167, sobre se as empresas concessionárias hidroeléctricas deviam ou não licença de estabelecimento comercial ou industrial, retira agora base séria à sua reclamação, porquanto o assento emitido no acórdão reclamado respondeu à sua pergunta, mas no sentido contrário à posição por ela defendida.
É também infundada a arguida violação do n.º 2.º do artigo 763.º do Código de Processo Civil.
A doutrina contida nas decisões apontadas pela reclamante de o julgamento do conflito dever recair exclusivamente sobre a interpretação da mesma ou mesmas disposições legais, dos mesmos diplomas, está ultrapassada pelo que agora se preceitua no n.º 2.º do citado artigo 763.º, dizendo-se aí que «os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação sempre que, durante o intervalo da sua publicação, não tenha sido introduzida qualquer modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida».
O que se diz no n.º 22.º do relatório do Decreto-Lei 44129, que aprovou o Código de Processo Civil, e as observações ministeriais ao novo regime de recursos para o tribunal pleno mostram que o acórdão reclamado não violou e antes respeitou o transcrito preceito, porquanto nos seus fundamentos e no próprio assento houve a preocupação de afirmar a correspondência entre o anterior § 2.º do artigo 712.º e actual § único do artigo 710.º do Código Administrativo.
Nos termos expostos, faz-se a apontada rectificação e desatende-se a reclamação quanto às nulidades infundadamente arguidas.
Custas pela reclamante, com o imposto, que se fixa em um sexto.
Lisboa, 21 de Julho de 1964. - José Meneses - Fragoso de Almeida - Albuquerque Rocha - Lopes Cardoso - Fernando Toscano Pessoa - Barbosa Viana - Gonçalves Pereira - Alberto Toscano - Simões de Carvalho - João Caldeira - Torres Paulo - Tovar de Lemos - Albino Resende Gomes de Almeida - António Teixeira Botelho.
Está conforme.
Secretaria do Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Julho de 1964. - O Secretário, Joaquim Múrias de Freitas.