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Acórdão 577/2015, de 18 de Fevereiro

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de que a sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição, não é suscetível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência nos termos do n.º 2 desse artigo

Texto do documento

Acórdão 577/2015

Processo 629/14

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

Relatório

O Tribunal Constitucional, na 3.ª secção, proferiu o Acórdão 124/15, de 12 de fevereiro, pelo qual decidiu «julgar inconstitucional, por violação do princípio do processo equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, consagrados nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição, a norma do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de que a sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição, não é suscetível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência nos termos do n.º 2 desse artigo».

Notificado dessa decisão, o Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal interpôs recurso obrigatório para o Plenário, nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, invocando a oposição de julgados com o Acórdão 846/2013, tirado na 2.ª secção, em 10 de dezembro de 2013, que «não julgou inconstitucional a norma constante do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada com o sentido de que das sentenças proferidas no âmbito de ações administrativas especiais de valor superior à alçada, julgadas pelo tribunal singular ao abrigo da referida alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, não cabe recurso ordinário para o Tribunal Central Administrativo, mas apenas reclamação para a conferência».

Admitido o recurso, o Magistrado do Ministério Público apresentou alegações em que formulou as seguintes conclusões:

"1 - Tendo em atenção a dimensão normativa que constituía o objeto do recurso e foi apreciada pelo Acórdão 124/2015, ora recorrido, não era convocável, para dirimir a questão de inconstitucionalidade, o princípio do processo equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança (artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição).

2 - Assim, aplicando-se integralmente a fundamentação constante do Acórdão 846/2013, a norma do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de que a sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição, não é suscetível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência nos termos do n.º 2 desse artigo, não viola o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.

3 - Consequentemente, deve conceder-se provimento ao recurso."

A Recorrida contra-alegou, concluindo do seguinte modo:

"A - Da inadmissibilidade do presente recurso - inexistência de oposição de julgados

1.ª O Ministério Público interpôs o presente recurso do douto acórdão deste Venerando Tribunal Constitucional n.º 124/2015, de 2015.02.12, "nos termos do artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC", invocando que "o juízo de inconstitucionalidade constante do acórdão recorrido, é contraditório com o juízo de não inconstitucionalidade formulado no Acórdão 846/2013 e nas decisões referidas no ponto 4 - Acórdãos n.os 381/2014, 486/2014, 47/2015 (e) 146/2015" (v. requerimento de interposição de recurso, de 2015.02.23) - cf. texto n.os 1 a 7;

2.ª A admissibilidade do recurso para o plenário depende da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

i) Aplicação ou desaplicação da mesma norma jurídica; e

ii) Existência de decisões contraditórias ou em sentido divergente, no julgamento da mesma questão de inconstitucionalidade (v. artigo 79.º-D/1 da LTC; cf. Acs. TC n.º 636/04, de 2004.11.10; n.º 987/96, de 1996.09.17; n.º 257/2002, de 2002.06.12; n.º 408/2006, de 2006.07.05; e n.º 197/99, de 1999.03.24, todos in www.tribunalconstitucional.pt) - cf. texto n.os 1 e 2;

3.ª As normas jurídicas aplicadas pelo douto acórdão recorrido e pelos acórdãos fundamento não são inteiramente coincidentes, pois, por um lado, o "objeto do recurso de constitucionalidade", tal como foi formulado pela ora recorrida (v. requerimentos, de 2014.04.15 e de 2014.09.02) e fixado pelo douto acórdão recorrido, "encontra-se circunscrito ...às normas dos artigos 27.º, n.º 1, alínea i), e artigo 87.º, n.º 1, do CPTA" (v. fls. 10 do acórdão recorrido), e, por outro lado, nos acórdãos fundamento não foi convocada e aplicada a norma do artigo 87.º/1 do CPTA, parecendo-nos que não se verifica o primeiro pressuposto acima referido (v. Acs. TC n.º 636/04, de 2004.11.10; n.º 257/2002, de 2002.06.12; e n.º 987/96, de 17/09/96, todos in www.tribunalconstitucional.pt) - cf. texto n.os 1 e 2;

4.ª As questões de inconstitucionalidade, apreciadas e decididas no douto acórdão recorrido e nos doutos acórdãos fundamento, são manifestamente diversas:

- Acórdão recorrido: Violação do princípio do processo equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança;

- Acórdãos fundamento: Violação do direito ao recurso - cf. texto n.os 3 a 7;

5.ª Não se verifica assim in casu o segundo pressuposto previsto no artigo 79.º-D/1 da LTC - existência de decisões contraditórias ou em sentido divergente, no julgamento da mesma questão de inconstitucionalidade -, pelo que o presente recurso deve ser rejeitado - cf. texto n.os 3 a 7;

B - Da inconstitucionalidade dos arts. 27.º/1/i) e 2 e 87.º/ do CPTA

6.ª Mesmo que o presente recurso seja admitido - o que só em mera hipótese se admite -, deve o mesmo ser julgado improcedente, com base nos proficientes fundamentos invocados no acórdão recorrido, que se podem sintetizar nas seguintes proposições:

a) Dúvida pertinente quanto à interpretação das normas do artigo 27.º/1/i) e 2 do CPTA;

b) Inaplicabilidade ao caso do regime previsto para a prolação de decisão sumária;

c) Inexistência de qualquer fundamentação relativa à aplicabilidade in casu da norma do artigo 27.º/1/i) e 2 do CPTA, que também se reflete no juízo de inconstitucionalidade;

d) Ausência de suficiente explicitação quanto ao uso de competência decisória como juiz relator, face ao disposto nos arts. 27.º/1 e 2 e 94.º/3 do CPTA;

e) Manifesta imprevisibilidade do ónus processual imposto à parte;

f) Caráter excessivamente gravoso da consequência cominatória resultante da inobservância do ónus, ficando definitivamente precludida a possibilidade de a parte reagir contra a sentença, apesar da manifesta desculpabilidade da sua conduta processual;

g) Violação dos princípios do processo equitativo, da segurança jurídica e da proteção da confiança (v. arts. 2.º e 20.º da CRP) - cf. texto n.os 8 a 11;

7.ª No presente recurso, o Ilustre Senhor Procurador-Geral Adjunto aceitou "plenamente que a alteração da orientação jurisprudencial pode levar, e levou certamente, a situações em que o direito ao recurso acabe por não poder ser exercido, concordando-se que em tais situações seriam violados o princípio do processo equitativo em conjugação com os princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança" (v. p.p. 5 das alegações) - cf. texto n.os 8 a 11;

8.ª O juízo de inconstitucionalidade constante do douto acórdão recorrido é ainda reforçado pelas razões invocadas nas alegações de recurso apresentadas pela ora recorrida, em 2014.11.19, que aqui se dão por integralmente reproduzidas - cf. texto n.os 12 e 13.

Nestes termos,

Deve ser liminarmente indeferido o presente recurso ou, se assim não se entender, ser-lhe negado provimento, mantendo-se na íntegra o douto acórdão recorrido, com as legais consequências."

Fundamentação

1 - Da admissibilidade do recurso

O presente recurso para o Plenário é interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 79.º-D da LTC, com fundamento na contradição de julgados entre o Acórdão 124/15, de 12 de fevereiro, proferido na 3.ª secção, e o Acórdão 846/2013, de 10 de dezembro de 2013, tirado na 2.ª secção.

Em qualquer dos casos está em causa uma interpretação normativa extraída do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), no sentido de que a sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, não é suscetível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência, sendo irrelevante, para efeito da verificação do conflito jurisprudencial, a especificidade que decorre do inciso «com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição», que consta da parte dispositiva do Acórdão 124/15, ou a referência a «sentenças proferidas no âmbito de ações administrativas especiais de valor superior à alçada», que consta do conteúdo decisório do Acórdão 846/13.

Desde logo, a interpretação julgada inconstitucional no Acórdão 124/15 apenas se torna aplicável a decisões proferidas por juiz singular nas ações administrativas especiais de valor superior à alçada do tribunal, visto que só nessa situação o tribunal funciona, em primeira instância, em formação de três juízes (artigo 40.º, n.º 3, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), e se torna operativa a intervenção, em sede de reclamação, de um órgão colegial ao qual está deferido, em regra, o julgamento de facto e de direito.

Por outro lado, como resulta da transcrição da decisão recorrida, no processo analisado no Acórdão 846/13, também nesse caso a sentença de primeira instância foi proferida com expressa menção da faculdade conferida pelo artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, apenas se constatando que, na delimitação do objeto do recurso de constitucionalidade, não foi especificamente autonomizada essa circunstância. Tal não impede que exista uma identidade normativa da questão de constitucionalidade, pois para além da diferença de mera formulação, está substancialmente em causa a mesma norma no ponto em que se reporta à prévia exigência de reclamação para a conferência nas situações em que seja proferida sentença de mérito pelo juiz singular quando a competência para o julgamento se encontre abstratamente atribuída, por efeito do regime-regra, a um órgão colegial.

Nestes termos, o acórdão recorrido não restringiu o alcance do julgamento de constitucionalidade por forma a impedir que um mesmo juízo pudesse ser efetuado no âmbito do processo em que foi proferido o Acórdão 846/13, podendo concluir-se que a norma que constitui objeto do recurso neste último aresto apresenta uma substancial coincidência com a que foi apreciada no Acórdão 124/15, que se pronunciou quanto à questão de constitucionalidade em sentido divergente (no sentido da admissibilidade do recurso para o Plenário por oposição de julgados em caso de coincidência parcial da interpretação normativa, os acórdãos n.º 614/2005 e 93/2014 e, na doutrina, Lopes do Rego, Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 2010, pág. 281).

Não constitui ainda obstáculo à admissão do recurso a circunstância de a oposição de julgados não ter tido por base um mesmo parâmetro constitucional.

No Acórdão 846/13 formulou-se um juízo de não inconstitucionalidade por referência ao direito ao recurso enquanto expressão do princípio da tutela jurisdicional efetiva, afastando-se expressamente a apreciação da questão à luz dos princípios da segurança jurídica e da confiança, por se ter considerado que estes se dirigiam a um segmento que não tinha sido incluído na norma impugnada no requerimento de interposição de recurso.

O Acórdão 124/15 não dissentiu deste entendimento, vindo a considerar que a reclamação para a conferência, em si, não prejudica nem preclude a possibilidade de interposição de recurso, que sempre poderá ser dirigido ao tribunal hierarquicamente superior contra a decisão tomada em conferência que tenha confirmado o julgado pelo relator. No entanto, este aresto questionou a exigência formal de prévia reclamação para a conferência em processo de primeira instância à luz da previsibilidade dos ónus processuais e veio a formular um juízo de inconstitucionalidade, relativamente à norma do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, por violação do princípio do processo equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, consagrados nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição.

O Acórdão 124/15 julgou assim inconstitucional a interpretação normativa sub judicio mas com base em parâmetro de constitucionalidade que o Acórdão 846/13 entendeu não se justificar ser ponderado. Isso não é, no entanto, impeditivo do recurso para o Plenário previsto no artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional, que tem como pressuposto a existência de conflito jurisprudencial, ou seja, a divergência de julgamento, nas secções, sobre a questão de constitucionalidade de uma mesma norma, independentemente das normas ou princípios constitucionais que tenham sido invocados.

Nada obsta, por conseguinte, a que se conheça do objeto do recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional.

2 - Do mérito do recurso

A questão de constitucionalidade decidida de forma divergente pelas diferentes Secções do Tribunal Constitucional respeita a uma interpretação do disposto no artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do CPTA.

As referidas disposições da alínea i), do n.º 1, e do n.º 2, do artigo 27.º, do CPTA, estipulam o seguinte:

1 - Compete ao relator, sem prejuízo dos demais poderes que lhe são conferidos neste Código:

[...]

i) Proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada;

[...]

2 - Dos despachos do relator cabe reclamação para a conferência, com exceção dos de mero expediente, dos que recebam recursos de acórdãos do tribunal e dos proferidos no Tribunal Central Administrativo que não recebam recursos de acórdãos desse tribunal.

Conforme explica o acórdão recorrido "este artigo 27.º refere-se aos «poderes do relator» e tem correspondência, ainda que com algumas alterações, com o estabelecido no artigo 700.º do Código de Processo Civil, a que agora corresponde o artigo 652.º do Novo Código de Processo Civil, que elenca as competências do relator nos tribunais superiores. No entanto, ao aludir aos «poderes do relator», e sendo essa uma disposição da Parte Geral do Código atinente aos atos processuais, o artigo 27.º pretende também designar o juiz a quem o processo for distribuído, nos tribunais administrativos de círculo, nos casos em que o tribunal funcione em conferência. Esta possibilidade é expressamente prevista no artigo 92.º, n.º 1, do CPTA, que, referindo-se ao julgamento na ação administrativa especial, consigna, no seu n.º 1, o seguinte: «concluso o processo ao relator, quando não deva ser julgado por juiz singular, tem lugar a vista simultânea aos juízes-adjuntos, que, no caso de evidente simplicidade da causa, pode ser dispensada pelo relator».

O julgamento através de órgão colegial, em primeira instância, tem aplicação nas ações administrativas especiais de valor superior à alçada, em que o tribunal funciona em formação de três juízes, à qual compete o julgamento da matéria de facto e de direito (artigo 40.º, n.º 3, do ETAF). Nesse caso, o relator detém os poderes que lhe confere o artigo 27.º, incluindo quanto à possibilidade de proferir decisão sumária, nos termos da citada alínea i) do n.º 1, situação que está especificamente prevista no artigo 94.º, n.º 3, para a sentença a proferir em primeira instância.

Este último preceito, sob a epígrafe «Conteúdo da sentença ou acórdão», e referindo-se ainda ao julgamento na ação administrativa especial, especifica os termos em que pode ter lugar a prolação de decisão sumária, em concretização do regime já decorrente da alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º, estipulando o seguinte:

3 - Quando o juiz ou relator considere que a questão de direito a resolver é simples, designadamente por já ter sido apreciada por tribunal, de modo uniforme e reiterado, ou que a pretensão é manifestamente infundada, a fundamentação da decisão pode ser sumária, podendo consistir na simples remissão para decisão precedente, de que se junte cópia.

[...]

Em regra, os tribunais administrativos de círculo funcionam com juiz singular, competindo a cada juiz o julgamento de facto e de direito dos processos que lhe sejam distribuídos (artigo 40.º, n.º 1, do ETAF). Porém, nas ações administrativas especiais de valor superior à alçada do tribunal, que está definida no artigo 6.º do ETAF, o julgamento é efetuado em formação de três juízes, à qual compete o julgamento da matéria de facto e de direito (artigo 40.º, n.º 3, do ETAF).

É na perspetiva de o julgamento vir a ser efetuado por um órgão colegial, mesmo em primeira instância, que se justifica a referência no artigo 92.º do CPTA ao relator e se prevê a possibilidade de vista aos juízes adjuntos.

No entanto, com a finalidade de economia e simplificação processual, e à semelhança do que sucede na ordem judiciária civil, no âmbito dos recursos jurisdicionais (artigo 705.º do CPC a que corresponde agora o artigo 656.º), o artigo 94.º, n.º 4, do CPTA permite que o juiz ou relator possa proferir decisão sumária.

Tendo sido originariamente pensada para a resolução de recursos jurisdicionais, a decisão sumária visava essencialmente evitar a intervenção da conferência, quando estivessem em causa questões simples, permitindo que o recurso pudesse ser logo julgado pelo relator (cf. preâmbulo do Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de dezembro, que introduziu a nova redação do artigo 705.º do CPC). Aplicável às decisões de primeira instância em processo administrativo (que são sempre elaboradas por juiz singular, ainda que a matéria de facto ou de direito seja apreciada por uma formação alargada), o mecanismo processual tem em vista que, por razões de celeridade e economia processual, a questão seja resolvida por decisão liminar, que poderá traduzir-se numa exposição sucinta dos fundamentos ou em remissão para decisões precedentes.

Como se depreende do disposto no artigo 94.º, n.º 3, a prolação de decisão sumária apenas tem lugar em duas situações: (a) quando a questão de direito a resolver seja simples, designadamente por já ter sido apreciada por tribunal, de modo uniforme e reiterado; (b) quando a pretensão seja manifestamente infundada. Ou seja, o juiz pode optar por uma decisão sumária, avocando a competência que está atribuída à formação de três juízes, quando a ação verse sobre aspetos que foram já analisados pela jurisprudência de modo uniforme (seja pelos tribunais de primeira instância, seja pelos tribunais superiores), sem que tenha sido aduzida argumentação inovadora e suscetível de por em causa a corrente jurisprudencial já formada, caso em que basta ao juiz ou relator remeter para as precedentes decisões, de que juntará cópia; ou quando, pela análise meramente liminar dos fundamentos invocados seja possível concluir, com segurança, que as questões suscitadas são manifestamente improcedentes (neste sentido, Mário Aroso de Almeida/Carlos Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª edição, Coimbra, pág. 631).

Importa ainda ter presente que a intervenção de um órgão colegial no julgamento de primeira instância (apreciando a matéria de facto e de direito) tem uma justificação no plano legislativo. Tendo ocorrido, com a reforma de contencioso administrativo de 2002, uma alteração do quadro de distribuição de competências entre os diferentes graus da hierarquia dos tribunais administrativos, que implicou que os processos de jurisdição administrativa, na sua generalidade, passassem a ser intentados nos tribunais administrativos de círculo, essa foi a solução encontrada pelo legislador para compensar o facto de ter sido transferida para esses tribunais um conjunto de litígios em que a decisão em primeira instância era tradicionalmente atribuída a tribunais superiores (cf. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Coimbra, 2010, pág. 403). Pretendendo-se, desse modo, que a atribuição de competência a um órgão colegial confira maior ponderação e objetividade ao julgamento nos casos em que estejam em causa processos que envolvam órgãos superiores da Administração Pública, ou que, em função do valor da causa, possam revestir-se de maior complexidade (cf. acórdão do STA de 5 de dezembro de 2013, Processo 1360/13).

O Acórdão recorrido decidiu «julgar inconstitucional, por violação do princípio do processo equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, consagrados nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição, a norma do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de que a sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição, não é suscetível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência nos termos do n.º 2 desse artigo».

Considerou-se que a imposição de reclamação como meio de impugnação dessas decisões, constituía um ónus processual imprevisível, cuja inobservância tinha consequências cominatórias excessivamente gravosas, o que era ofensivo do direito a um processo equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

A imprevisibilidade da reclamação ser o meio adequado à impugnação das decisões previstas na alínea i), do n.º 1, do artigo 27.º, do CPTA, resulta, segundo a decisão recorrida dos seguintes fatores:

- a existência de dificuldades interpretativas que prejudicam a determinabilidade da lei neste aspeto;

- a ausência de suficiente explicitação dos fundamentos do uso da competência decisória do juiz relator;

- a prática jurisprudencial existente à data da interposição do recurso no caso concreto, em sentido oposto ao da interpretação em causa;

- a inexistência no caso concreto dos pressupostos que permitem a prolação de decisão singular.

Estes dois últimos fundamentos respeitam a dados do caso concreto que não integram o conteúdo normativo sub iudicio.

Ora, o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa, tem por objeto apenas uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria do caso concreto, não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo para defesa de direitos fundamentais. Daí que não podem as particularidades do caso concreto ou as circunstâncias que rodearam a sua aplicação ao caso, se não integrarem o conteúdo normativo sindicado, delimitando-o, serem fatores determinantes de um juízo de inconstitucionalidade que vai afetar uma norma que, apesar de fundamentar a decisão tomada no processo, tem uma eficácia que extravasa o caso, por força da suas características de generalidade e abstração.

Por esta razão, o facto de à data da interposição do concreto recurso interposto para o TCA por Torre da Marinha Realizações Turísticas, S. A., poder ter existido uma prática jurisprudencial com um sentido oposto ao da interpretação impugnada, assim como o facto da concreta decisão que foi objeto daquele recurso poder não preencher qualquer um dos pressupostos que permitem a prolação de decisão singular, por serem elementos que não integram o conteúdo normativo sob fiscalização, não podem ser fatores determinantes de um juízo de inconstitucionalidade da norma.

As "dificuldades interpretativas" apontadas pela decisão recorrida resultariam do disposto no artigo 142.º, n.º 1, do CPTA, que, genericamente, permite o "recurso das decisões que, em primeiro grau de jurisdição, tenham conhecido do mérito da causa" nos processos de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre, e da possibilidade de impugnação da decisão do relator se basear em fundamentos absolutos, como sucede quando se alega a incompetência absoluta do tribunal.

Estamos perante problemas comuns que se colocam com frequência quando são introduzidas tramitações inovadoras num determinado sistema processual, aos quais a jurisprudência reponde com soluções encontradas através da interpretação dos preceitos em causa, não assumindo uma relevância que prejudique de tal forma a determinabilidade da lei que impeça os seus destinatários de agirem em conformidade com o por ela preceituado.

A solução a que corresponde a interpretação normativa em causa é facilmente encontrada através da qualificação da norma constante do artigo 27.º, n.º 2, do CPTA, como especial, relativamente à norma geral constante do artigo 142.º, n.º 1, do mesmo diploma, e portanto, especificamente aplicável nas situações em que as decisões, mesmo relativas ao mérito da causa, são proferidas pelo juiz relator, do mesmo modo que tal solução não é incompatível com as impugnações deduzidas com base em fundamentos absolutos, uma vez que a reclamação para o tribunal coletivo não é impeditiva da posterior possibilidade de interposição de recurso para um tribunal hierarquicamente superior. Acresce, relativamente a esta segunda "dificuldade interpretativa", realçada pela decisão recorrida, que a mesma respeita a um segmento específico do modo de impugnação destas decisões, que apenas a ele diz respeito, não se encontrando o mesmo individualizado no conteúdo interpretativo sob recurso.

Quanto à ausência de suficiente explicitação da fundamentação do uso da competência do relator prevista no artigo 27.º, n.º 1, i), do CPTA, em resultado da decisão ser proferida com base numa mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição, tal circunstância em nada interfere com a maior ou menor previsibilidade da sua impugnação ter de utilizar como meio processual a reclamação. Na verdade, se a simples alusão pela decisão que esta é proferida ao abrigo da competência prevista no artigo 27.º, n.º 1, i), do CPTA, é útil na sua sinalização, alertando os destinatários para o tipo de decisão que lhes é dirigida, já a explicitação do preenchimento dos pressupostos que permitem a sua utilização nada acrescenta ao conhecimento pelas partes do meio processual que devem fazer uso para a impugnarem. O que é determinante para que o meio adequado de impugnação seja a reclamação prevista no n.º 2, do artigo 27.º, do CPTA, é que a decisão formalmente se insira na previsão da alínea i), do n.º 1, do artigo 27.º, do CPTA - uma decisão proferida pelo juiz relator avocando a competência do órgão colegial que integra. Se estavam ou não reunidos os pressupostos que permitiam a utilização deste tipo de decisão já é uma questão que respeita à sua regularidade processual, não sendo um problema cuja solução determine o modo de reação a essa decisão. Esse meio será sempre a dedução de uma reclamação, a qual poderá ter precisamente como fundamento a circunstância de não estar preenchido nenhum dos pressupostos que permitiam a avocação pelo relator da competência atribuída ao órgão colegial. Daí que a falta de explicitação das razões que permitiram ao relator proferir decisão singular não seja um fator criador de incerteza sobre qual o meio processual que as partes devem utilizar para impugnar aquela decisão.

Há ainda a notar que, se é verdade que o menor prazo para deduzir a reclamação, relativamente ao que é concedido para a interposição de recurso, faz perigar a impugnabilidade da respetiva decisão em situações em que se gera uma incerteza sobre a necessidade de utilizar o primeiro daqueles meios impugnatórios, a consequência da utilização do recurso para além do prazo concedido para reclamar não é necessariamente a perda do direito de impugnar, consequência que não é assumida pela interpretação normativa sub iudicio, sendo possível, numa linha interpretativa, convolar o meio utilizado para o meio devido (vide, neste sentido, Armindo Ribeiro Mendes, em Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 97, pág. 33-36).

Não se contando entre as competências do Tribunal Constitucional a fiscalização do modo como determinada norma foi aplicada no caso concreto e não existindo no conteúdo normativo impugnado fatores que prejudiquem seriamente a previsibilidade pelos destinatários do meio de impugnação que devem utilizar para obterem uma reapreciação de uma decisão proferida ao abrigo da competência prevista no artigo 27.º, n.º 1, i), do CPTA, não há motivos para que se considere aquela interpretação normativa ofensiva do direito ao processo equitativo na dimensão em que reflete os princípios inerentes a um Estado de direito da confiança e da segurança jurídica.

O Tribunal Constitucional não ignora, até pelo que lhe é espelhado nos inúmeros processos que lhe têm chegado, tendo por objeto esta temática, que devido a uma utilização questionável das decisões previstas no artigo 27.º, n.º 1, i), do CPTA, e a uma contemporização inicial generalizada com a utilização do recurso como meio de impugnação dessas decisões, muitos recorrentes poderão ter sido surpreendidos por decisões de não admissão do recurso por eles interposto antes de fixação de jurisprudência nesse sentido pelo Supremo Tribunal Administrativo. Não se exclui que tal facto possa ter gerado situações de perda do direito ao reexame da decisão - situações, aliás, preveníveis ou suscetíveis de correção, nas instâncias pela via interpretativa acima apontada. O recurso de constitucionalidade é que não pode ser adequadamente utilizado para esse efeito. Na verdade, não pode o Tribunal Constitucional, sob pena de entorse aos seus poderes funcionais, julgar inconstitucional, com fundamento numa situação de incerteza ocorrida no passado, uma interpretação normativa que não reflete tais circunstâncias temporalmente localizadas, fazendo uso dos dados do caso concreto, com o resultado da avaliação da conformidade constitucional desta norma ficar casuisticamente dependente de dados circunstanciais estranhos ao conteúdo da norma em si.

Tendo em consideração que no domínio da fiscalização concreta, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional pela Constituição cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas aplicadas pelas decisões das quais seja interposto recurso para este Tribunal e que a interpretação normativa sindicada não viola o direito ao recurso, enquanto expressão do direito a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, conforme se concluiu no Acórdão 846/2013, nem o direito a um processo equitativo, na dimensão em que reflete os princípios inerentes a um Estado de direito da confiança e da segurança jurídica, consagrado nos artigos 20.º, n.º 4, e 2.º da Constituição, nem se afigura que ofenda qualquer outro parâmetro constitucional, deve o recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional ser julgado procedente, revogando-se o Acórdão 124/2015 e julgando-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por Torre da Marinha Realizações Turísticas, S. A.

Decisão

Nestes termos, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, interpretada no sentido de que a sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição, não é suscetível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência nos termos do n.º 2 desse artigo;

b) Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional;

c) Revogar o Acórdão 124/2015 proferido nestes autos;

d) Julgar improcedente o recurso interposto por Torre da Marinha Realizações Turísticas, S. A.

Custas do recurso para o Tribunal Constitucional pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os elementos referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).

Lisboa, 3 de novembro de 2015. - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins (vencida quanto ao conhecimento, por considerar que não há oposição de julgados, na medida em que a dimensão normativa apreciada no acórdão fundamento e no acórdão recorrido não é idêntica) - Maria de Fátima Mata-Mouros - Pedro Machete - Fernando Vaz Ventura - Maria Lúcia Amaral (vencida, conforme declaração que junto em anexo) - Catarina Sarmento e Castro (vencida quanto à decisão de conhecer da oposição de julgados. A meu ver, as normas em apreciação não eram coincidentes, desde logo porque o segmento "a mera invocação dos poderes conferidos", conhecido no Acórdão 124/15, faz dele uma norma distinta. Havendo o tribunal decidido que estavam reunidos os pressupostos da oposição de julgados, fiquei vencida pois teria, de novo, subscrito o Acórdão 124/15 da 3.ª secção) - João Pedro Caupers (vencido, pelos fundamentos constantes da declaração do Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha) - Maria José Rangel de Mesquita (vencida, conforme declaração anexa) - Lino Rodrigues Ribeiro (vencido de acordo com os argumentos da declaração de voto do Conselheiro Carlos Cadilha) - Carlos Fernandes Cadilha (vencido de acordo com a declaração de voto em anexo) - Joaquim de Sousa Ribeiro (com voto de qualidade).

Declaração de voto

Vencida, pelas razões que constam da declaração de voto do Senhor Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha. Seguramente que não é inconstitucional o disposto nos n.os 1, alínea i) e 2 do artigo 27.º do CPTA. Nenhum motivo há para que se considere que lesa o direito ao recurso (ou qualquer outra «norma» ou «princípio» constitucional) a decisão do legislador ordinário, que, em processo administrativo, resolveu atribuir ao juiz singular o poder de resolver questões simples através de decisão sumária, da qual cabe reclamação para a conferência a apresentar no prazo de dez dias.

Contudo, se alguma virtualidade tem a prática jurisprudencial adotada pelo Tribunal desde o início da sua fundação - segundo a qual se considera que, em fiscalização concreta, cabe ao Tribunal controlar [sob o prisma da constitucionalidade], não apenas as escolhas do legislador, mas, mais do que isso, o modo pelo qual tais escolhas vão sendo concretizadas através da interpretação que lhes venha sendo conferida, caso a caso, pelos demais tribunais -, essa é, precisamente, a de possibilitar que se dê remédio àqueles casos em que, não obstante nenhum problema colocar a escolha feita pelo legislador, já a concretização que dela foi sendo tecida pelo «direito vivente» resultou em clara ofensa de direitos fundamentais. É certo que controlar a constitucionalidade de certa «interpretação» de dada norma ou de uma sua particular «dimensão normativa» não significa controlar as decisões dos poderes públicos em si mesmas consideradas, e muito menos as decisões judiciais. Este último poder - o de controlo da constitucionalidade de decisões - é, como bem se sabe, um poder de que não dispõe o Tribunal Constitucional português. Estou todavia convicta que não foi esse o poder o Tribunal exerceu no caso do Acórdão 124/2015; e por isso mesmo o subscrevi, com a anotação de que através dele revia posição anterior que sobre o mesmo problema já tinha assumido. Na verdade, não estou segura que a particular «dimensão normativa» que no referido acórdão se julgava não tivesse já estado presente em outros casos, em que, finalmente, só não se terá optado pelo juízo de inconstitucionalidade com fundamento em violação do princípio do processo equitativo pela única e simples razão de se ter o objeto do julgamento cingido à literalidade do preceito do artigo 27.º do CPTA, sem consideração alguma pelas particularidades das diferentes «dimensões normativas» por que foi passando a sua aplicação aos casos concretos. - Maria Lúcia Amaral.

Declaração de voto

Vencida quanto ao sentido decisório e fundamentação do Acórdão por se entender que a dimensão normativa em causa no acórdão recorrido, objeto de apreciação, viola o princípio do processo equitativo em conjugação com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, consagrados nos artigos 2.º e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, nos termos da fundamentação do acórdão recorrido e também do Acórdão 442/2015, que subscrevemos. Não se acompanha por isso a fundamentação do Acórdão quanto ao mérito, desde logo na parte em que limita, considerando inexistir nessa parte, a dimensão normativa apreciada no acórdão recorrido - mas que se admite existir para efeitos de admissibilidade do recurso para o Plenário por oposição de julgados - com reflexo na apreciação da violação, pela dimensão normativa do acórdão recorrido, dos parâmetros em causa apreciados por este; e, assim sendo, ainda por se considerar que a apreciação da ofensa do princípio do processo equitativo, conjugado com os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança (não apreciados pelo Acórdão 846/13), tendo sido efetuada a partir daquela delimitação negativa, e invocando argumentação de que nos afastamos face às ponderações do acórdão recorrido que subscrevemos, não apreciou de modo cabal o caráter excessivo do ónus processual que para a parte decorre da interpretação normativa objeto do acórdão recorrido e que se revelou determinante para o sentido decisório deste. - Maria José Rangel de Mesquita.

Declaração de voto

Vencido com base nas seguintes ordens de considerações.

1 - No presente recurso, interposto pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto no artigo 79.º-D da LTC, com fundamento na contradição de julgados entre os acórdãos n.º 124/15, da 3.ª secção, e o Acórdão 846/2013, da 2.ª secção, o acórdão do Plenário considerou que, em qualquer dos casos, está em causa uma interpretação normativa extraída do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), no sentido de que a sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, não é suscetível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência, tendo como irrelevantes, para efeito da verificação do conflito jurisprudencial, a especificidade que decorre do inciso «com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição», que consta da parte dispositiva do Acórdão 124/15, ou a referência a «sentenças proferidas no âmbito de ações administrativas especiais de valor superior à alçada», que consta do conteúdo decisório do Acórdão 846/13.

O Tribunal assentou, por conseguinte, na existência de numa identidade normativa da questão de constitucionalidade, admitindo que, para além de uma diferença de mera formulação, estava substancialmente em causa a mesma norma no ponto em que se reporta à prévia exigência de reclamação para a conferência nas situações em que seja proferida sentença de mérito pelo juiz singular quando a competência para o julgamento se encontre abstratamente atribuída, por efeito do regime-regra, a um órgão colegial.

Assim, e partindo do pressuposto que a admissibilidade do recurso para o Plenário exige uma real identidade ou coincidência entre as normas ou dimensões normativas que foram objeto de apreciações antagónicas, o Tribunal entendeu não haver obstáculo ao conhecimento do objeto do recurso.

Todavia, em sede de apreciação de mérito, analisando os parâmetros que conduziram o acórdão recorrido a formular um juízo de inconstitucionalidade, o Tribunal considerou que o acórdão recorrido atendeu a fatores que respeitam a dados do caso concreto e que não correspondem a um critério normativo, sublinhando que o recurso de constitucionalidade «tem por objeto apenas uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, enquanto ponderação casuística da singularidade própria do caso concreto», fazendo notar que não existe no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo para defesa de direitos fundamentais.

Vindo a concluir que o Tribunal Constitucional, sob pena de entorse aos seus poderes funcionais, não pode fazer uso dos dados do caso concreto, por forma a que o resultado da avaliação da conformidade constitucional fique casuisticamente dependente de dados circunstanciais estranhos ao conteúdo da norma em si.

Neste contexto, o Tribunal acaba por reconhecer, contrariamente ao que anteriormente afirmara, que o acórdão recorrido não se pronunciou sobre uma norma ou interpretação normativa coincidente com a que tinha sido objeto de recurso no Acórdão 846/14 e se limitou a sindicar diretamente a violação de princípios constitucionais por parte de uma decisão judicial, valorando circunstâncias localizadas que não poderiam refletir-se numa interpretação normativa de vocação genérica tal como fora enunciada na delimitação do objeto do recurso de constitucionalidade.

Sendo assim, o acórdão enferma de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão de admissibilidade do recurso, na medida em que se reconhece que o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Acórdão 124/15 não incidiu sobre uma norma ou interpretação normativa, e que, no caso, não seria invocável a identidade de norma ou interpretação normativa que justificava o recurso por oposição de julgados (artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil).

2 - O acórdão do Plenário, pronunciando-se sobre o mérito do recurso, não formulou um qualquer juízo autónomo relativamente aos princípios do processo equitativo, da segurança jurídica e da proteção da confiança, que haviam sido invocados pelos recorrentes, a título principal, nos respetivos processos, como fundamento de inconstitucionalidade, e limitou-se a refutar, de modo inconsistente, as ponderações de que o acórdão recorrido partiu para chegar a um juízo de inconstitucionalidade com base nesses mesmos parâmetros constitucionais.

Para afastar as dificuldades interpretativas que o artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA efetivamente suscita, o acórdão resolve a antinomia existente entre as normas do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2 do CPTA, que admitem a reclamação para a conferência de decisão sumária proferida pelo relator em primeira instância, e a do artigo 142.º, n.º 1, do mesmo Código, que, sem qualquer ressalva, permite genericamente o «recurso das decisões que, em primeiro grau de jurisdição, tenham conhecido do mérito da causa», com base na existência de uma relação de especialidade entre essas disposições, de modo que a reclamação para a conferência seria sempre admissível no tocante a decisões, mesmo relativas ao mérito da causa, quando proferidas pelo relator, ao passo que o recurso jurisdicional seria aplicável a decisões proferidas pela conferência ou pelo juiz singular quando seja o competente para o julgamento de facto e de direito.

Desde logo, semelhante interpretação subverte o sentido literal da lei, admitindo que a reclamação para a conferência possa ter lugar em relação a qualquer decisão de mérito proferida pelo relator, sem ter em devida linha de conta que o poder jurisdicional facultado ao relator pelo artigo 27.º, n.º 1, alínea i), se cinge a decisões liminares que incidam sobre questões simples.

Ora, como é evidente, não ocorre uma qualquer relação de especialidade entre as normas dos artigos 27.º, n.º 2, e 142.º, n.º 1, do CPTA, pela linear razão de que estamos perante normas gerais que têm um campo de aplicação distinto. A reclamação para a conferência tem aplicação em relação a decisões do relator que se reportam a questões simples, que, por sua própria natureza, dispensam a exigência de um julgamento por órgão colegial, como é o caso em que a questão de direito tenha sido apreciada por tribunal, de modo uniforme e reiterado, ou se trate de pretensão manifestamente infundada. Pelo contrário, o recurso é o meio jurisdicional de reação próprio contra decisões de mérito proferidas por uma formação de três juízes ou pelo juiz singular, no quadro das suas competências próprias de julgamento (artigo 40.º, n.º 1 e 3, do ETAF), e que não se confundem a competência delegada do juiz singular quando intervém como relator, que apenas pode proferir decisões sumárias quando a questão de direito a resolver seja simples.

Não é possível afirmar, por isso, dentro do quadro competêncial legalmente definido, que a reclamação para a conferência «é especificamente aplicável nas situações em que as decisões [...] são proferidas pelo relator», de modo a poder concluir-se que há sempre lugar a reclamação para a conferência das decisões do relator e que dos acórdãos da conferência é que pode recorrer-se, nos termos gerais.

Não podendo falar-se de uma relação de especialidade entre as normas em causa, as dúvidas interpretativas a que se referia o Acórdão 124/15 subsistem e colocam-se em vários planos. Em primeiro lugar, embora o modelo de competência funcional do relator nos tribunais administrativos de primeira instância tenha sido transposto dos recursos em processo civil, a situação não é inteiramente equivalente à que se verifica com a intervenção do relator nos tribunais superiores. Aí sabe-se que o processo é julgado por três juízes e que qualquer decisão que não seja emitida pela formação de julgamento, mas pelo relator a título individual, é passível de reclamação para a conferência. Nos tribunais administrativos de primeira instância, as questões relacionadas com a intervenção do relator não se colocam com a mesma linearidade: o julgamento pode ser efetuado pelo juiz singular no uso de competência própria ou por uma formação de três juízes ou ainda pelo juiz singular no uso da competência delegada. E o meio de reação para qualquer destes casos não é idêntico: há lugar a recurso para o tribunal superior ou a reclamação para a conferência, consoante o órgão judiciário que tenha intervindo e a qualidade em que tenha intervindo.

Introduz-se, desde logo, um maior grau de dúvida quanto à definição do órgão judicial interveniente face às diferentes regras de competência, e um estado de incerteza objetiva quanto ao meio de reação, o qual se acentua quando o relator intervém fora do contexto processual que se encontra estritamente delimitado pelo artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e, extravasando a competência do órgão colegial, profere de decisão de mérito que se não confina a questão simples.

O acórdão do Plenário pretende superar a dúvida adotando um sentido interpretativo que não tem qualquer correspondência com a letra da lei e a unidade do sistema jurídico, e, para aferir a determinabilidade da lei, faz recair sobre os sujeitos processuais o ónus de efetuarem, na prática judiciária, essa mesma interpretação, apesar de não ser consentânea com os princípios da hermenêutica jurídica.

3 - O acórdão refere ainda que a previsão legal de um menor prazo para deduzir a reclamação (10 dias), relativamente ao que é concedido para a interposição de recurso (30 dias), não traz como necessária a consequência a perda do direito ao recurso, quando este seja exercido para além do prazo concedido para a reclamação, admitindo-se, numa certa linha interpretativa, a possibilidade de «convolar o meio utilizado para o meio devido».

Parece depreender-se deste excerto que a interpretação da norma do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, segundo a qual da «sentença proferida por tribunal administrativo e fiscal, em juiz singular, com base na mera invocação dos poderes conferidos por essa disposição, não é suscetível de recurso jurisdicional, mas apenas de reclamação para a conferência nos termos do n.º 2 desse artigo», não gera qualquer consequência cominatória desfavorável para a parte, visto que sempre será possível, numa certa linha interpretativa, convolar o recurso em reclamação apesar de deduzido fora do prazo perentoriamente fixado para o efeito. Não ocorreria, por isso, violação do princípio do processo equitativo uma vez que não seria imposto à parte o ónus excessivo da perda do direito de recorrer.

Para assim concluir, o acórdão acolhe o entendimento de Armindo Ribeiro Mendes que, em anotação ao acórdão de uniformização de jurisprudência do STA n.º 3/2012, defendeu a ideia de que, ainda que fosse exigível a reclamação para a conferência, deveria convolar-se em reclamação a peça processual que contivesse o requerimento de interposição de recurso e a sua alegação, independentemente de ter sido entregue para além do prazo de reclamação (Uma reclamação indesejada, verdadeira armadilha contra actionem, Cadernos de Justiça Administrativa n.º 97, págs. 33-36).

No entanto, o acórdão ignora, ostensivamente, que, pelo acórdão de uniformização de jurisprudência 3/2014 (publicado no Diário da República n.º 199, de 15 de outubro de 2014), o STA, pronunciando-se precisamente sobre essa questão, decidiu que não pode convolar-se em reclamação para a conferência o recurso jurisdicional se tiver sido interposto depois de esgotado o prazo de reclamação. E que o Tribunal Constitucional, através dos acórdãos n.os 749/14 e 884/14, o último dos quais também subscrito pelo relator do presente processo, não julgou inconstitucionais as normas do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, «quando interpretadas no sentido de não admitir a convolação do recurso de apelação em reclamação para a conferência, nas situações em que não tenha sido respeitado o prazo da reclamação», ainda que com o muito discutível argumento de que o «estabelecimento de prazos para a prática de atos processuais é condição da prossecução de um interesse fundamental - o da realização da justiça - e garante de uma posição subjetiva também ela fundamental - o direito a obter uma decisão em tempo razoável».

Ou seja, o acórdão do Plenário propõe que não ocorre uma violação do princípio do processo equitativo, com base na imposição à parte de um ónus processual excessivo, porque o juiz de primeira instância, perante a rejeição do recurso, e contrariando a jurisprudência uniformizada do STA, pode convolar o recurso em reclamação para a conferência, mesmo que o recurso seja apresentado para além do prazo previsto para a reclamação, embora se saiba, à partida, que um tal expediente processual está votado ao insucesso, porque não é consonante com a jurisprudência administrativa dos tribunais superiores, nem tem apoio, pelo menos até agora, na jurisprudência constitucional!

4 - Para além de utilizar uma argumentação completamente inconsequente quanto ao estado de dúvida sobre a interpretação da lei e a existência de um risco efetivo de perda do direito ao recurso, que é potenciado pela interpretação normativa sindicada, o acórdão do Plenário também desconsidera totalmente a própria jurisprudência constitucional referente ao princípio do processo equitativo.

Ora, o Tribunal Constitucional tem dito que as normas processuais, como decorrência do princípio do processo equitativo, não podem impossibilitar ou dificultar de modo excessivo a atuação processual das partes, nem estabelecer consequências ou preclusões que sejam desproporcionadas em relação à gravidade da falta que é imputada (acórdãos n.os 468/01 e 260/02). Dentro dessa mesma linha de entendimento, o Tribunal considera que não pode deixar de ponderar, na apreciação da questão de constitucionalidade, e para aferir da previsibilidade da interpretação normativa adotada, as orientações jurisprudenciais que são seguidas, de forma pacífica, maioritária ou suficientemente sedimentada, quanto aos textos legais que devam ser aplicados (acórdão 413/02; LOPES DO REGO, Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime de citação em processo civil, in «Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra, 2003, págs. 847-848).

Nada obstando a que se tenha em devida consideração como fatores de ponderação aplicáveis à análise dos parâmetros de constitucionalidade, independentemente de integrarem o conteúdo normativo do recurso, a prática jurisprudencial que veio sendo normalmente seguida quanto à admissão de recurso jurisdicional de decisões proferidas pelo relator em primeira instância, e a jurisprudência entretanto firmada pelo STA em relação à não convolação do recurso para reclamação para a conferência quando o recurso tiver sido interposto depois de esgotado o prazo para o uso daquele meio processual.

Em todo este contexto, a perda do direito ao recurso como efeito irremediavelmente preclusivo da não apresentação de prévia reclamação para a conferência em relação a decisões de mérito do juiz singular, constitui objetivamente um ónus excessivamente oneroso, face à dúvida pertinente quanto à interpretação dos textos legais e ao próprio caráter inovatório do regime legal, quando aplicável a tribunais administrativos de primeira instância. O que surge reforçado pelo facto de, na interpretação normativa sindicada, a decisão de mérito ter sido proferida com a mera invocação da faculdade prevista no artigo 27.º, n.º 1, alínea i), do CPTA, e sem suficiente explicitação quanto ao uso da competência decisória como juiz relator, ao abrigo dessa disposição. Além de que o ónus processual imposto à parte se reveste de maior imprevisibilidade face à prática jurisprudencial pacífica que foi inicialmente seguida e acarreta uma consequência desproporcionada em relação à relevância da falta, mormente quando desprovida da possibilidade de convolação do recurso em reclamação para a conferência.

E não pode ignorar-se que a exigência de um meio processual que tenha uma natureza meramente formal ou instrumental para abrir caminho à ulterior interposição de recurso jurisdicional - quando este é o meio próprio para discutir a complexidade das questões jurídicas colocadas pela sentença -, não deixa de pôr em causa o princípio do processo equitativo, entendido este como a conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela jurisdicional efetiva. Isso porque não constitui um ónus razoável e funcionalmente adequado impor à parte a dedução prévia de reclamação para a conferência, ainda que em termos meramente perfunctórios, apenas para salvaguardar a possibilidade de utilizar um prazo mais longo de recurso para reagir em termos mais substanciais e fundamentados ao conteúdo desfavorável da decisão.

E importa sublinhar, por fim, que o acórdão do Plenário, pretendendo uniformizar a jurisprudência sobre uma questão de grande relevância jurídica e social, além de ter usado argumentos completamente inconsistentes (cf. supra n.os 2 e 3), e ter desconsiderado jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf. supra n.º 4), também se absteve se analisar criticamente os textos doutrinários que se pronunciaram recentemente sobre esta questão, em sentido contrário à posição agora firmada, dois dos quais em anotação concordante com o Acórdão 124/15 (JOSÉ MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA, O fim do dualismo das formas do processo declarativo não urgente e outros (previsíveis) impactos da reforma da ação administrativa, in «Anteprojeto de Revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e do Estatuto dos Tribunais Administrativos em Debate», AAFDUL, 2014, pág. 53; MARCO CALDEIRA/TIAGO SERRÃO, De volta às reclamações para a conferência: (um)a decisão constitucionalmente adequada, O Direito, ano 147.º, 2015, I, págs. 213-228; RUI PINTO, «Reclamação para a conferência e direito ao recurso. A propósito de uma solução de remédio do Tribunal Constitucional»,Cadernos de Justiça Administrativa, págs. 20-32).

5 - Por todo o exposto, seria possível concluir pela inconstitucionalidade das normas do artigo 27.º, n.º 1, alínea i), e n.º 2, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, por violação do princípio do processo equitativo em conjugação com o princípio da segurança jurídica e da proteção da segurança, tal como se decidiu no acórdão recorrido. - Carlos Alberto Fernandes Cadilha.

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  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2508739.dre.pdf .

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