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Acórdão 595/2015, de 28 de Dezembro

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Sumário

Não declara a inconstitucionalidade de diversas normas da Lei n.º 68/93, de 4 de setembro, na redação conferida pelo artigo 2.º da Lei n.º 72/2014, de 2 de setembro; não declara a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 8.º da Lei n.º 72/2014, de 2 de setembro, no segmento em que procede à revogação de diversas normas da Lei n.º 68/93, de 4 de setembro, na sua versão originária

Texto do documento

Acórdão 595/2015

Processos n.os 251 e 337/2015

(retificado pelo Acórdão 682/2015)

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Pedido formulado no âmbito do processo 251/2015

Um grupo de deputados à Assembleia da República requereu a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade «dos n.os 3 e 4 do artigo 1.º, do artigo 10.º, da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º», todos da Lei 68/93, de 4 de setembro, que estabelece a Lei dos Baldios, na redação dada pela Lei 72/2014, de 2 de setembro, por violação do previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição.

Fundamentam assim o seu pedido:

«Da inconstitucionalidade do n.º 3 e 4 do artigo 1.º e, consequentemente, da revogação da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º

1 - Os baldios são uma realidade centenária, já sendo descritos nas Ordenação Manuelinas, no século XVI, como Os matos maninhos e as matas e bravios que nunca hajam sido lavrados e aproveitados ou de que disso não haja, a não ser que haja grande prejuízo para a generalidade dos moradores do lugar nos pastos dos gados e criações, e no logradouro para a lenha e madeira para suas casas e lavoura (Ordenações Manuelinas, século XVI, livro 4, título 67).

2 - São diversas as referências escritas que demonstram a importância dos baldios para a sobrevivência das comunidades locais ao longo dos tempos.

3 - Durante a ditadura (1926-1974), foi autorizada a venda de parcelas dos baldios pelas autarquias, com vista à obtenção de verbas para a realização de obras, retirando-os às respetivas populações que, privadas destes, perdiam pastos para o gado, estrumes para as terras, lenhas para se aquecerem e meios de sustento, sendo muitos milhares de populares empurrados para a migração interna ou externa.

4 - Com a Revolução de 25 de Abril de 1974, foi devolvido aos povos serranos do Norte e Centro do país o direito histórico de uso, fruição e administração dos seus baldios.

Assim, o Decreto-Lei 39/76, e o Decreto-Lei 40/76, ambos de 19 de janeiro "[...] operaram a restituição dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossados pelo Estado, correspondendo-se assim a uma reivindicação antiga e constante dos povos, ocasionando-se por essa forma três mudanças jurídicas essenciais: (1) pôs-se fim à administração dos baldios pelas autarquias locais, transferindo-a para as comunidades de compartes; (2) determinou-se a restituição dos baldios de que o Estado se apossara para a florestação; (3) estipulou-se a recuperação dos baldios indevidamente apropriados por particulares [...]. "(Ver Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 240/90).

5 - A Lei 68/93, de 4 de setembro, denominada "Lei dos Baldios" (que revogou os decretos-lei 39/76 e n.º 40/76, de 19 de janeiro) passou a definir baldios como os terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, o que se mantém aliás na redação dada pela Lei 72/2014, de 2 de setembro.

6 - A definição de baldios encontra-se profundamente ligada à definição de comparte, ou seja, quem dentro de uma determinada comunidade local tem direito de uso e fruição do baldio. Este forma-se através dos usos e costumes das comunidades locais, para pastar os gados, recolher a lenha, colocar colmeias, ou seja, uma infindável gama de tarefas que complementam ou garantem mesmo o rendimento desses compartes, isto é, desses elementos da comunidade local.

7 - O Decreto-Lei 39/76, de 19 de janeiro, define que são compartes "os moradores que exerçam a sua atividade no local e que, segundo os usos e costumes reconhecidos pela comunidade, tenham direito à sua fruição" (artigo 4.º). No mesmo sentido, o artigo 1.º da Lei 68/93, de 4 de setembro, considera comparte o morador de uma ou mais freguesia ou parte dela que, segundo os usos e costumes, tem direito ao uso e fruição do baldio.

8 - Deste modo, na vigência da Lei 68/93, de 4 de setembro, eram os costumes e usos que definiam, dentro das comunidades locais e, segundo a especificidade de cada uma delas, quem tinha direito ao uso e fruição do baldio, verificando-se que as condições para se ser comparte de um baldio variam e sempre variaram de região para região de acordo com os usos e costumes de cada uma.

9 - A Lei 72/2014, de 2 de setembro, altera profundamente a definição de compartes considerando-os "todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios ou que aí desenvolvem uma atividade agroflorestal ou silvo pastoril", tal como "os menores emancipados que sejam residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios". Assim, a par do alargamento do âmbito subjetivo de baldio, com a extensão do direito ao uso e fruição dos baldios a todos os eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais, elimina-se o costume e o uso como forma de delimitação desse âmbito.

10 - Segundo a Lei 13/99, de 22 de março, na redação dada pela Lei 47/2008, de 27 de agosto, que estabelece o novo regime jurídico do recenseamento eleitoral, considera-se que a circunscrição eleitoral é a correspondente à morada que se obtém a partir do cartão de cidadão, sendo esta, segundo o previsto no artigo 1.º da Lei 7/2007, de 5 de fevereiro (que cria o cartão de cidadão e rege a sua emissão e utilização), o "endereço postal físico, livremente indicado pelo cidadão, correspondente ao local de residência onde pode ser regularmente contactado". Presume-se assim, que seja esta a definição de residência a que se refere a Lei 68/93, de 4 de setembro, na redação da Lei 72/2014, de 2 de setembro, e por conclusão, a definição de comparte, já que, sublinhe-se, a lei considera agora que será comparte todo o cidadão eleitor, inscrito e residente na comunidade local.

11 - É importante também referir que com a aprovação da Lei 11-A/2013, de 28 de janeiro, que procede à reorganização administrativa do território das freguesias, ou seja, que procedeu à união de diversas freguesias, com a extinção de muitas, os limites territoriais dos baldios alteraram-se. O mesmo acontece com o número de eleitores que agora existem em cada união de freguesias, sendo que, a título de exemplo, onde antes existiam 100 eleitores passam agora a 250 e, segundo a nova redação da Lei dos Baldios, todos estes eleitores são agora possuidores do estatuto de compartes e assim como direito a fruir dos baldios, mesmo aqueles que nem conhecem ou não tem interesse em conhecer ou explorar o baldio.

12 - A Lei 72/2014, de 2 de setembro, ao retirar os costumes e os usos como formadores do direito de uso e fruição dos baldios, e assim delimitar o estatuto de comparte, faz com que muitos cidadãos que anteriormente não seriam considerados compartes agora o sejam unicamente por serem eleitores dessa freguesia.

13 - Importa referir que no artigo 33.º da Lei 68/93, de 4 de setembro, previa-se o recenseamento dos compartes, ou seja, a identificação dos moradores dentro da comunidade local com direito sobre o baldio e assim considerados compartes. Em caso de esse recenseamento não existir, eram várias as iniciativas progressivamente diligenciadas, sendo em último caso utilizado o recenseamento eleitoral dos residentes da comunidade local para a definição de quem era comparte, mas sempre com as adaptações e correções aprovadas em Assembleia de Compartes, para que, deste modo não usufruísse deste estatuto quem não teria direito a ele. Desta forma, verifica-se que o legislador considerou que não eram todos os eleitores, inscritos e residentes que deveriam ser considerados compartes, mas apenas aqueles a que segundo os usos e costumes a isso tinham direito. Todavia, este recenseamento, acaba por ser revogado, tal como todas as normas que a ele façam alusão [alínea c) do artigo 15.º e alínea b) do artigo 21.º] com a aprovação da Lei 72/2014, de 2 de setembro.

14 - E não se compreende a razão de se atribuir o estatuto de comparte aos menores emancipados. Se um menor, segundo os usos e costumes, não teria o estatuto de comparte, não se entende como, só pelo facto de ser emancipado, lhe seja dado esse estatuto de forma automática e, no entender dos requerentes, arbitrária, dado que nem no preâmbulo do projeto de Lei 528/XII/3.ª (que deu origem à Lei sub judice) se aclaram as razões do alargamento do âmbito subjetivo do baldio ou a integração do menor emancipado no mesmo.

15 - O artigo 82.º da Constituição define os três setores de propriedade dos meios de produção: o setor público, constituído pelos meios de produção pertencentes ao Estado e outras entidades públicas; o setor privado, constituído pelos meios de produção cuja propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou coletivas; o setor cooperativo e social que compreende os meios de produção possuídos e geridos por cooperativas, por comunidades locais, pelos meios de produção objeto de exploração coletiva por trabalhadores e pelos meios de produção possuídos e geridos por pessoas coletivas.

16 - Os baldios são considerados bens comunitários. Nos termos referidos no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 325/89, é "indiscutível não poderem levantar-se dúvidas sérias acerca da necessária referência dos baldios à categoria constitucional dos bens comunitários, tendo sido essencialmente em vista dos baldios que se formaram os preceitos constitucionais relativos aos bens comunitários. Isso decorre naturalmente do contexto histórico da formação da parte económica da Constituição a esse respeito, da evidente ligação entre o conceito constitucional de «bens comunitários» e a definição dos baldios constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 39/76 («terrenos comunitariamente usados e fruídos»), bem como com o conceito de «coisas comuns» do Código Civil de 1987, cuja componente principal eram justamente os baldios".

17 - Também segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2012, "pode afirmar-se que os baldios constituem o núcleo essencial e imprescindível dos «meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais» integrados no setor de propriedade cooperativo e social, pertencendo a essas comunidades, comunidades de «vizinhos» ou «compartes», que não se confundem com comunidades territoriais autárquicas, não apenas a posse e gestão, mas também a própria titularidade dominial desses meios de produção. Desta forma, [...] a revisão de 1989 [...] trouxe para estes bens um acréscimo da sua autonomia enquanto bens integrados no setor cooperativo e social, autonomia essa que há de traduzir-se num reforço da dominialidade comunitária ou cívica dos baldios. [...] Estes meios de produção comunitários (nos quais se incluem os baldios) são imputáveis, quanto à titularidade-dominial, a uma coletividade-comunidade que não se confunde com as coletividades territoriais autárquicas. Esta titularidade dominial é dos povos, utentes, vizinhos ou compartes e não já das freguesias ou grupos de freguesias.

18 - A comunidade local é o universo dos compartes. Não se confunde comunidades locais com comunidades territoriais autárquicas, assim como também não se pode considerar equivalente compartes e todos os cidadãos de eleitores, inscritos e residentes de determinada freguesia, pois esta equivalência pode não corresponder à realidade concreta. A norma que refere quem pode aceder ou não ao estatuto de comparte não pode ser limitada a quem é eleitor de uma determinada freguesia, mas deve ser integrada na ordem social, segundo o que na realidade concreta se considera comparte e quem segundo os costumes e usos é considerado comparte para um determinado baldio.

19 - Os baldios são bens comunitários de que os compartes de um ou mais povoados podem tirar proveito de acordo com a natureza do terreno e respeitando os usos. Assim quando se integram todos eleitores de uma determinada freguesia no estatuto de comparte, esvazia-se o papel de garantia constitucional desses bens comunitários. Caso o direito ao uso do baldio seja alargado a todos os eleitores, simplesmente pelo facto de estarem inscritos nessa freguesia, o bem deixa de ser comunitário (por não ser fruído por uma comunidade local restrita, segundo os costumes da comunidade), podendo ser considerado um bem próprio de determinada freguesia, unicamente por razões de ordenamento territorial, independentemente das necessidades das populações que consuetudinariamente exploram determinado terreno para sua sobrevivência.

20 - Este alargamento poderá até resultar na usurpação das competências da assembleia de compartes pelos órgãos da freguesia. Ora, como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 96/2012, "os baldios não são matéria que, à partida, deva ser considerada de poder local. Havendo Assembleia de Compartes é a esta que, como conjunto de compartes de um bem comunitário gerido e possuído peia comunidade, e não aos eleitores recenseados que cabe decidir as questões que aos baldios respeitem. E nem se diga que uma eventual coincidência do universo dos compartes como o dos eleitores recenseados [...] permitiria metamorfosear cidadão eleitores interessados na coisa pública em compartes de uma propriedade comunal. [...] os baldios pertencem à comunidade dos vizinhos e não aos fregueses."

21 - A alteração prevista no artigo 1.º da Lei 68/93, de 4 de setembro, na redação dada pela Lei 72/2014, de 2 de setembro, toma possível o conflito entre o que é da titularidade dos compartes e da titularidade da junta de freguesia pois, com o alargamento do estatuto de comparte a todos os eleitores de uma freguesia, não havendo assim a separação de quem é ou não legítimo comparte, a junta de freguesia ao ser representativa de todos os eleitores e consequentemente de todos os compartes, pode administrar o baldio como se tivesse a titularidade do mesmo, ou seja, como se de um bem privado da freguesia se tratasse.

22 - Deste modo o alargamento do âmbito subjetivo dos baldios subverte o definido no artigo 82.º, n.º 4, alínea b) da Constituição ao permitir que bens comunitários sejam possuídos e geridos por entidades públicas como é a junta de freguesia, esvaziando assim o significado desta norma o que, segundo a jurisprudência vertida no Acórdão 325/89, é inconstitucional pois não pode a lei transferir para os órgãos da freguesia a administração dos baldios.

23 - Pelos motivos expostos, consideram os requerentes que os n.os 3 e 4 do artigo 1.º da Lei 68/93, de 4 de setembro, na redação dada pela lei de n.º 72/2014, de 2 de setembro são inconstitucionais por violação do disposto na alínea b), do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição.

Da inconstitucionalidade do artigo 10.º

24 - Como já foi referido, foi essencialmente em vista dos baldios que se formaram os preceitos constitucionais relativos aos bens comunitários, decorrendo do contexto histórico da formação da parte económica da Constituição.

25 - Os decretos-lei 39/76 e n.º 40/16, ambos de 19 de janeiro, concretizaram a devolução às respetivas comunidades dos baldios em que o Estado definira formas de aproveitamento e que se encontravam na sua posse, e daqueles que eram indevidamente apropriados por particulares.

26 - Deste modo, o Decreto-Lei 39/76, de 19 de janeiro, afirma no artigo 2.º que "os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objeto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião". Já o Decreto-Lei 40/76, de 19 de janeiro acrescenta que "os atos ou negócios jurídicos que tenham por objeto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de baldios por particulares, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, são, nos termos do direito, anuláveis a todo o tempo."

27 - Seguidamente, a Lei 68/93, de 4 de setembro, revoga os dois decretos-lei supra mencionados, porém mantêm a regra da inalienabilidade dos baldios e a proibição da posse privada sobre eles e consequentemente a sua apropriação por usucapião por privados. No artigo 4.º prevê que "os atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo pôr objeto terrenos baldios, bem como da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais do direito, exceto nos casos expressamente previstos na presente lei, ou seja, nos casos previstos no artigo 10.º prescrevendo no n.º 1 que "os baldios podem ser objeto, no todo ou em parte, de cessão de exploração, nomeadamente para efeitos de povoamento ou exploração florestal salvo nas partes do baldio com aptidão para aproveitamento agrícola." Deste modo, a disposição do terreno baldio apenas era possível nos casos de utilidade pública, e sempre com a salvaguarda do interesse dos compartes e segundo os limites e fins a que o baldio se destina.

28 - Todavia, na redação dada na Lei 72/2014, de 2 de setembro, subverte-se a regra de não disposição dos baldios, ao alterar o artigo 10.º de modo a permitir que os baldios possam "ser objeto, no todo ou em parte, de arrendamento ou cessão de exploração, com vista ao aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais [...]." Acrescentando no n.º 3 que a exploração deverá ser realizada de forma sustentada, sem prejuízo da utilização do baldio pelos compartes, de acordo com os usos e costumes locais.

29 - Deste modo, comparando a nova redação com a prevista na Lei 68/93, de 4 de setembro, a disposição do baldio passa de uma medida transitória para uma livre disposição, não apenas por necessidade de povoamento ou exploração florestal, ou seja, por motivos de utilidade pública, mas por qualquer motivo. Assim, permitir-se-á que um bem comunitário, que foi desde tempos imemoráveis fruído e gerido por certas comunidades, sendo muitas vezes a forma de sustento de muitas famílias, possa agora ser arrendado e a ser utilizado para outros fins.

30 - Como refere o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 235/91, "já o Código Civil de Seabra, de 1867, apesar de um contexto doutrinário avesso às formas coletivas de propriedade, mencionava os baldios à cabeça das «coisas comuns», categoria que o Código punha a par das «coisas públicas» e das «coisas particulares», sendo consideradas «coisas públicas» os bens do domínio público propriamente dito do Estado ou outra entidade pública, «coisas particulares», as do domínio privado de particulares ou de entidades públicas, e «coisas comuns», as coisas não individualmente apropriadas, das quais só é permitido tirar proveito [...] aos indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ou fazem parte de certa corporação pública.

31 - Da Lei 68/93, de 4 de setembro, resulta que os baldios são terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, não sendo deste modo propriedade, nem dos compartes, nem do respetivo universo de compartes. Não existe direito de propriedade, mas apenas de uso e fruição pelos compartes.

32 - Refere o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 325/89, que "a Constituição procurou marcar também um energético retorno da titularidade dos bens comunitários aos povos, pondo termo ao processo histórico de privação que desde há muito, e por várias formas, conduziu ao esvaziamento dos tradicionais patrimónios coletivos.

33 - O facto de o baldio poder ser arrendado, em parte ou na totalidade, vai fazer com que o mesmo passe de uma gestão comunitária para a uma gestão particular, passando a ser utilizado de acordo com o interesse de quem o arrendou, sendo assim subvertida a própria finalidade do baldio. Ao ser gerido por uma entidade privada mesmo continuando a ser considerado propriedade comunitária, é agora integrado no setor privado, violando o previsto na alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição. O artigo 10.º da Lei 72/2014, de 2 de setembro é, assim, inconstitucional.

34 - Sem prejuízo da inconstitucionalidade das normas referidas poder ser vista em separado, pode-se também refletir pela inconstitucionalidade das normas ora impugnadas, vendo-as conjugadas.

35 - Desta maneira, com o alargamento do âmbito subjetivo do baldio a todos os eleitores de uma determinada freguesia, qualquer eleitor, agora comparte, poderá por motivos egoísticos (mormente económicos, como acontece, por exemplo, com a indústria da celulose) querer arrendar o terreno ou querer dar de arrendamento o terreno, em prejuízo dos demais compartes e do próprio fim do baldio.

36 - Deste modo se compreende que a alteração dos artigos 1.º (n.º 3 e 4) e 10.º da Lei dos Baldios por via da Lei 72/2014, de 2 de setembro, é inconstitucional por violação da alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º da Constituição, pois permite não só que o uso e fruição dos baldios seja extensivo a cidadãos que segundo os costumes e usos da região a tal não tenham direito, como subverte a ratio da norma constitucional, possibilitando a disposição a privados de um terreno que deverá servir uma comunidade e dentro do que historicamente e consuetudinariamente é considerado a fruição e uso do terreno baldio».

2 - Pedido formulado no âmbito do processo 337/2015

Um grupo de deputados à Assembleia da República requereu a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas resultantes das «alterações» aos artigos 1.º, n.º 3, 4.º, n.º 2, alínea d), 10.º, 15.º, n.º 1, alínea f), e n.º 2, e artigo 21.º, alínea f), todos da Lei 68/93, de 04 de setembro, «previstas no artigo 2.º da Lei 72/2014, de 2 de setembro», por «violação do disposto nos artigos 80.º, alínea f), e 82.º, n.os 1 e 4, alínea b), da Constituição».

Fundamentam assim o seu pedido:

«I - Do alargamento do universo dos compartes

1 - Antes da entrada em vigor da Lei 72/2014, de 2 de setembro, estabelecia o n.º 3 do artigo 1.º da Lei dos Baldios que se consideravam compartes, pertencentes ao universo que compõe a comunidade local que possui e gere os baldios, «os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao uso e fruição do baldio».

2 - Ou seja, a Lei dos Baldios estabelecia como critério diferenciador relevante para estabelecer o estatuto de comparte, o direito ao uso e à fruição decorrente dos usos e costumes associados a determinado baldio.

3 - O novo n.º 3 do artigo 1.º introduzido pela Lei 72/2014, de 02 setembro, vem desvirtuar o conceito anteriormente definido, viabilizando o alargamento do estatuto de comparte a «todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos baldios ou que aí desenvolvem uma atividade agroflorestal ou silvopastoril».

4 - Significa esta alteração que bastará a partir de agora a residência e inscrição como eleitor em determinado território para que daí resulte a atribuição de um estatuto de comparte e a pertença a uma comunidade, independentemente dos usos e costumes estabelecidos relativamente à posse e fruição do baldio em causa, ou sequer do exercício de qualquer atividade agroflorestal ou silvopastoril.

5 - Como se sabe, do ponto de vista constitucional, desde a constituinte de 1976, os baldios consideram-se integrados no setor cooperativo e social, sendo qualificados atualmente como «meios de produção comunitários possuídos e geridos por comunidades locais», conforme dispõe o artigo 82.º n.º 4 alínea b) da CRP.

6 - Mediante a alteração em causa, o legislador optou por interferir no direito próprio e histórico das comunidades locais que possuíram e usufruíram de determinado terreno baldio, impondo o alargamento potencial do universo de compartes anteriormente estabelecido, violando o sentido do disposto naquela norma constitucional que salvaguarda a gestão e posse dos baldios alicerçada estritamente em critérios consuetudinários e não em critérios legais artificiais.

7 - Esta parece ter sido também a orientação subjacente ao Acórdão 325/89 do Tribunal Constitucional no qual se considerou que: «Os baldios, como bens comunitários que são, pertencem às comunidades locais que deles têm a posse útil e gestão».

8 - Também o Acórdão 240/1991 do Tribunal Constitucional preconizou que: «A constitucionalização expressa desses meios de produção comunitários torna claro que se visou dar guarida jurídico-constitucional a uma categoria de bens (meios de produção) incluídos no setor cooperativo e social, subjetivamente imputáveis a título de propriedade, posse e gestão a certas e determinadas comunidades locais».

9 - Acrescentando ainda: «Estes meios de produção são imputáveis, quanto à titularidade-dominial, a uma coletividade-comunidade de habitantes que não se confunde com as coletividades territoriais autárquicas. Esta titularidade dominial é dos «povos», «utentes», «vizinhos» ou compartes e não já das freguesias ou grupos de freguesias.»

10 - Ora, a alteração legislativa sub judice vai assim no sentido contrário desta interpretação do Tribunal Constitucional, vinculando o universo dos compartes à realidade territorial autárquica quando define como requisito admissível para a aquisição do estatuto de comparte, o mero vínculo de inscrição como eleitor e a residência na comunidade local em que o baldio se situa, desconsiderando a titularidade-dominial anteriormente constituída relativamente a esse mesmo baldio através do respetivo uso e usufruto ou, utilizando as palavras da douta jurisprudência constitucional, a respetiva «posse útil e gestão».

11 - Permitir-se-á, desta feita, que aquele que nenhuma relação manteve com o baldio, de uso ou usufruto, se torne comparte, lado a lado e com os mesmos poderes do que aqueles que constituíram ao longo de anos um costume sobre o uso e fruição desse mesmo baldio.

12 - Nomeadamente, fazendo parte da assembleia de compartes que decide, ainda que por maioria qualificada de dois terços dos membros presentes, situações tão relevantes para o destino do baldio como a alienação, o arrendamento (decorrente da alteração de 2014), a cessão de exploração ou mesmo a sua extinção.

13 - E pergunta-se: Será que um grupo de novos residentes e eleitores inscritos, pode passar a ter direitos e fazer prevalecer a sua vontade sobre o destino de um determinado baldio que nunca utilizou ou usufruiu, ao lado de todos aqueles compartes que, ao longo de anos, o geriram e usaram coletivamente e, ainda para mais, independentemente da sua vontade? Será esta conceção compatível com a salvaguarda constitucional que protege a propriedade social de meios de produção? Cremos que não.

14 - Cumprirá por isso escrutinar esta modificação na definição do universo de compartes, com um alargamento potencial e independente dos usos e costumes associados a determinado baldio que em nosso entendimento não é compatível com o disposto nos preceitos constitucionais do artigo 80.º alínea f) e artigo 82.º n.º 4 alínea b) da CRP.

II - Da utilização dos baldios para arrendamento

15 - Outra modificação introduzida no regime dos Baldios pela Lei 72/2014, de 2 de setembro, diz respeito à possibilidade de sujeitar estes terrenos a arrendamento.

16 - Com efeito, através dos novos artigo 4.º, n.º 2, alínea d), artigo 10.º, artigo 15.º, n.º 1, alínea f), e n.º 2, e artigo 21.º, alínea f), ficam os compartes habilitados a promover o arrendamento dos terrenos baldios.

17 - Ora, também nesta opção, o legislador ao viabilizar a transferência para terceiros, por via de contrato de arrendamento, dos terrenos baldios, viola o princípio constitucional da proteção do setor social de propriedade de meios de produção que implica, no caso dos meios de produção comunitários nos quais se inserem os baldios, a posse e gestão pelas comunidades locais.

18 - Ao contrário do que sucede, excecionalmente, com os contratos de cessão de exploração (anteriormente previstos) em que a respetiva vocação, pela própria natureza contratual, é limitada e mantém-se vinculada ao modo específico de uso e fruição da propriedade comunitária, admitir o arrendamento por outra entidade, independentemente da forma da utilização e do uso antecedente do respetivo baldio, pode vir a permitir na prática a subversão do princípio da gestão dominial comunitária dos baldios, e atentar contra o princípio de coexistência dos três setores de propriedade de meios de produção, salvaguardados pela Constituição.

19 - O que é comunitário é insuscetível de apropriação individual e, na mesma medida, insuscetível de tratamento como se de propriedade privada se tratasse através, neste caso, de eventual contrato de arrendamento.

20 - Atente-se ao que preconizam e concluem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA a este propósito: «[...] a partir do texto constitucional («bens comunitários», «possuídos e geridos pelas comunidade locais») parece seguro concluir que se trata aqui de uma figura específica, em que é a própria comunidade, enquanto coletividade de pessoas, que é titular da propriedade dos bens e da unidade produtiva, bem como da respetiva gestão (autogestão)».

21 - Em linha com este entendimento, consideramos que a possibilidade de gestão de baldios através de arrendamento por entidades privadas alheias às comunidades locais, desconsiderando a sua natureza jurídica e a antecedente utilização deve, por isso merecer da parte do Tribunal Constitucional o competente juízo sobre a sua inconstitucionalidade, incidindo nas supra citadas normas da Lei 72/2014, de 2 de setembro, também à luz do disposto no artigo 80.º alínea f) e no artigo 82.º n.º 1 e n.º 4 alínea b) da CRP.

III - Da integração de baldios em bolsa de terras

22 - À semelhança do ponto antecedente, também a solução legal prevista na Lei 72/2014, de 2 de setembro, que passa a permitir a integração de terrenos baldios na «bolsa de terras» criada pela Lei 62/2012, de 10 de dezembro, desvirtua o princípio de tutela e da gestão dominial comunitária dos baldios e atenta contra o princípio de coexistência dos três setores de propriedade de meios de produção, constitucionalmente consagrados.

23 - Concretizável pelo ora disposto nos novos artigo 15.º, n.º 1, alínea s), artigo 21.º, alínea f), e artigo 27.º, introduzidos pela Lei 72/2014, de 2 de setembro, a integração dos baldios em «bolsa de terras» pode significar também a gestão e usufruto de terrenos baldios por terceiros que não os compartes, em descontinuidade com os usos e costumes estabelecidos, e a sua utilização como se propriedade privada se tratasse.

24 - E note-se que nos termos da Lei 62/2012, de 10 de dezembro, a bolsa de terras visa disponibilizar para arrendamento, venda ou para outros tipos de cedência as terras com aptidão agrícola, florestal e silvopastoril, sendo a respetiva gestão atribuída não à comunidade local que tutela o baldio mas à Direção-Geral de Agricultura e Desenvolvimento Rural.

25 - Também esta via legislativa, por admitir a gestão dos baldios por entidades alheias às comunidades locais através dos ora designados «bancos de terras» para fins de arrendamento, venda ou outros tipos de cedência, sem obediência ao princípio de tutela e gestão dominial comunitária e de coexistência dos três setores de propriedade de meios de produção no nosso entendimento, incorre em inconstitucionalidade, por violação do artigo 80.º alínea f) e no artigo 82.º n.º 1, n.º 4 alínea b) da CRP».

3 - Retificação do pedido

Na sequência da notificação que, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 51.º da Lei de Organização e Funcionamento do Tribunal Constitucional (doravante, "LTC"), lhes foi nesse sentido dirigida, os requerentes do pedido que deu origem ao Processo 337/2015 procederam à retificação do pedido formulado, substituindo, no conjunto das normas impugnadas, a constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 15.º da Lei 68/93, de 4 de setembro, na redação conferida pelo artigo 2.º da Lei 72/2014, de 2 de setembro, e originariamente indicada, pela correspondente à alínea j) do n.º 1 do artigo 15.º da Lei 68/93, na redação conferida pelo artigo 2.º da Lei 72/2014.

Tal retificação foi admitida por despacho de 10 de outubro de 2015.

4 - Incorporação

Por despacho do Presidente do Tribunal Constitucional, de 10.04.2015, foi determinada a incorporação do Processo 337/2015 no Processo 251/2015, nos termos do artigo 64.º, n.º 1, da LTC.

5 - Resposta do autor das normas

Notificada para se pronunciar, querendo, sobre os pedidos formulados nos Processos n.º 251/2015 e 337/2015, a Assembleia da República, através da respetiva Presidente, limitou-se a oferecer o merecimento dos autos.

6 - Legitimidade processual dos requerentes

Tanto o pedido que deu origem ao Processo 251/2015, como o que deu origem ao Processo 337/2015 foram formulados ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea f), da Constituição.

Apresentado o memorando a que se refere o artigo 63.º, n.º 1, da LTC e fixada a orientação do Tribunal, cumpre elaborar o acórdão nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.

II - Fundamentação

7 - Delimitação do objeto dos pedidos

7.1 - Os requerentes do pedido que deu origem ao Processo 251/2015 pretendem ver declarada a inconstitucionalidade dos «n.os 3 e 4 do artigo 1.º, do artigo 10.º, da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º», todos da Lei 68/93, de 4 de setembro, na versão resultante da Lei 72/2014, de 2 de setembro

Considerando a retificação que sobre o mesmo recaiu, o objeto do pedido formulado no âmbito do Processo 337/2015 é integrado, por seu turno, pelas normas resultantes das "alterações" aos artigos 1.º, n.º 3, 4.º, n.º 2, alínea d), 10.º, 15.º, n.º 1, alínea j), e n.º 2, e artigo 21.º, alínea f), todos da Lei 68/93, de 04 de setembro, «previstas no artigo 2.º da Lei 72/2014, de 2 de setembro».

Embora por razões não coincidentes, quer no segmento referente ao artigo 10.º - comum a ambos os pedidos -, quer na parte relativa à alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, à alínea b) do artigo 21.º e ao artigo 33.º, todos da Lei 68/93, na versão resultante da Lei 72/2014 - respeitante apenas ao pedido formulado no âmbito do Processo 251/2015 - , a especificação do acervo normativo pretendido invalidar evidencia algum défice de precisão, carecendo, por isso, da concretização e dos ajustamentos necessários a sobre o mesmo poder recair, com a amplitude requerida, um juízo de constitucionalidade.

7.2 - Quanto ao artigo 10.º da Lei 68/93, na redação conferida pelo artigo 2.º da Lei 72/2014, apesar de ambos os grupos de requerentes não reportarem especificamente a qualquer um dos diversos números que o integram o conteúdo normativo que pretendem ver fiscalizado, extrai-se facilmente dos fundamentos que suportam qualquer uma das pretensões formuladas que o vício de inconstitucionalidade invocado é diretamente imputado aos termos mais amplos em que, de acordo com o n.º 1 daquele artigo, passou a admitir-se cedência a terceiros do gozo e fruição dos baldios, mormente à circunstância de os mesmos poderem ser «objeto, no todo ou em parte», não apenas de cessão de exploração, conforme anteriormente se verificava, mas também de arrendamento.

Da explicitação que acompanha os argumentos aduzidos em ambos os pedidos retira-se, com efeito, que a incompatibilidade que se considera existir entre o artigo 10.º da Lei 68/93, na versão aprovada pela Lei 72/2014, e o parâmetro extraído da alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º, da Constituição, reside na mutação do regime definido no respetivo n.º 1 - que, para os requerentes do pedido formulado no âmbito do Processo 251/2015 constitui uma subversão da «regra de não disposição» inerente ao estatuto constitucional dos terrenos baldios e, para os requerentes do Processo 337/2015, viola o «princípio constitucional da proteção do setor social de propriedade de meios de produção».

É, pois, exclusivamente no n.º 1 do artigo 10.º que se situa o vício de constitucionalidade alegado pelos requerentes. O n.º 2 está, à partida, fora do objeto do pedido, na medida em que não foi alterado pela Lei 72/2014. As demais normas constantes dos n.os 3 e 4 daquele artigo 10.º, apesar de alteradas pela Lei 72/2014, contêm um regime estruturado na base do estabelecido no n.º 1, de cunho explicitante dos termos a observar no arrendamento ou cessão dos terrenos baldios, deixando expresso que a exploração com base nesses títulos se efetivará «de forma sustentada, sem prejuízo» da sua «tradicional utilização» pelos «compartes, de acordo com os usos e costumes locais» (n.º 3), e sempre «nas formas e nos termos previstos na lei» (n.º 4).

Tendo em conta este seu alcance, é manifesto que tais normas não podem subsistir, em caso de decaimento da regra que as consente, sendo certo, por outro lado, que, em relação a elas, nada foi invocado que possa fundar um juízo de inconstitucionalidade por razões especificamente atinentes ao seu conteúdo dispositivo.

Deverá entender-se, assim, que, na parte em que recai sobre o artigo 10.º da Lei 68/93, na versão aprovada pela Lei 72/2014, o objeto comum a ambos os pedidos é integrado pela norma constante do n.º 1 do mencionado artigo. O Tribunal encontra-se dispensado de verificar autonomamente a validade constitucional das normas constantes dos n.os 3 e 4, sem prejuízo de o seu conteúdo dever ser convocado na fundamentação do juízo a emitir quanto à alteração introduzida no n.º 1.

7.3 - Relativamente ao segmento que incide sobre as alterações à alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, alínea b) do artigo 21.º e artigo 33.º, todos da Lei 68/93, de 4 de setembro, resultantes da Lei 72/2014, de 2 de setembro, a imprecisão evidenciada na conformação do bloco normativo pretendido sindicar é privativa do pedido que originou o Processo 251/2015 e prende-se com a correta sediação do efeito jurídico cuja constitucionalidade é aí contestada.

Para além de ter alterado, através do seu artigo 2.º, um amplo conjunto de preceitos da Lei 68/93, a Lei 72/2014 procedeu, no respetivo artigo 8.º, à revogação, entre outras, das normas que constavam da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º, todos da Lei 68/93, tendo procedido ainda à republicação do diploma revisto em conformidade com as referidas alterações (cf. artigo 9.º).

Ora, apesar de, através do pedido formulado no âmbito do Processo 251/2015, se pretender obter a declaração de inconstitucionalidade (também) da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º, todos da Lei 68/93, na "redação dada" pela Lei 72/2014, resulta da concatenação dos fundamentos ali aduzidos com o enquadramento que acaba de expor-se que a imputada inconstitucionalidade vem atribuída, não ao conteúdo prescritivo sediado nos preceitos indicados - inexistente, dada a sua revogação pela Lei 72/2014 - mas ao próprio efeito revogatório em si mesmo considerado, isto é, à circunstância de, por força do artigo 8.º deste diploma legal, as normas que em tais preceitos se encontravam alojadas terem deixado de constituir direito vigente e aplicável.

Se a declaração de inconstitucionalidade de que se pretende venham a ser objeto a alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, a alínea b) do artigo 21.º e o artigo 33.º, todos da Lei 68/93, na «redação dada» pela Lei 72/2014, tem como fundamento a respetiva revogação, o preceito a que haverá de reportar o efeito normativo pretendido invalidar só poderá ser o próprio preceito revogatório, na parte em que procedeu àquela revogação.

Assim, para além de consequencial - no sentido em que é pelos próprios requerentes configurada, não de modo autónomo, mas como uma decorrência do vício diretamente imputado às normas que, procedendo à alteração do conceito de comparte, constam atualmente dos n.os 3 e 4 do artigo 1.º do referido diploma legal -, a declaração de inconstitucionalidade de que se pretende venham a ser objeto a alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, a alínea b) do artigo 21.º e o artigo 33.º, todos da Lei 68/93, na «redação dada» pela Lei 72/2014 tem como causa o facto de os mesmos terem sido revogados, razão pela qual o preceito a que haverá que reportar o efeito normativo a invalidar só poderá ser o próprio preceito revogatório - isto é, o artigo 8.º da Lei 72/2014 -, com exclusão dos próprios preceitos revogados, os quais deixaram, por essa razão, de ter existência normativa e, portanto, um qualquer conteúdo suscetível de ser submetido a um controlo de constitucionalidade.

Deverá, assim, entender-se que, na parte em que incide sobre as alterações à alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, à alínea b) do artigo 21.º e ao artigo 33.º, todos da Lei 68/93, resultantes da Lei 72/2014, o objeto do pedido formulado no âmbito do Processo 251/2015 é integrado pelo artigo 8.º da Lei 72/2014, no segmento em que procede à revogação das normas constantes daqueles preceitos.

7.4 - Para além das normas ínsitas nos artigos 1.º, n.º 3, 4.º, n.º 2, alínea d), 10.º, n.º 1, 15.º, n.º 1, alínea j), e n.º 2, e no primeiro segmento da alínea f) do 21.º, todos da Lei 68/93, de 04 de setembro, na redação resultante da Lei 72/2014, de 2 de setembro, cuja declaração de inconstitucionalidade expressamente se requer, extrai-se dos fundamentos que acompanham o pedido formulado no âmbito do Processo 337/2015 que o respetivo objeto é integrado ainda pelas normas constantes dos artigo 15.º, n.º 1, alínea s), do segundo segmento da alínea f) do artigo 21.º, e do artigo 27.º, todos da Lei 68/93, de 04 de setembro, na versão resultante da Lei 72/2014, de 2 de setembro.

Com efeito, no ponto III do requerimento apresentado, que têm por epígrafe «Da integração de baldios em bolsa de terras», os subscritores do pedido em referência contestam a constitucionalidade da «solução legal prevista na Lei 72/2014, de 2 de setembro, que passa a permitir a integração de terrenos baldios na «bolsa de terras» criada pela Lei 62/2012, de 10 de dezembro», considerando que tal solução, surgindo concretizada «nos novos artigo 15.º, n.º 1, alínea s), artigo 21.º, alínea f), e artigo 27.º, introduzidos pela Lei 72/2014, de 2 de setembro [...] desvirtua o princípio de tutela e da gestão dominial comunitária dos baldios e atenta contra o princípio de coexistência dos três setores de propriedade de meios de produção, constitucionalmente consagrados». Para os aludidos requerentes, «também esta via legislativa, por admitir a gestão dos baldios por entidades alheias às comunidades locais através dos [...] designados «bancos de terras» para fins de arrendamento, venda ou outros tipos de cedência [...] incorre em inconstitucionalidade, por violação do artigo 80.º alínea f) e no artigo 82.º n.º 1, n.º 4 alínea b) da CRP».

Uma vez que também ao mesmo diretamente se reportam, quer os fundamentos, quer os parâmetros integradores do reivindicado juízo de inconstitucionalidade, não restam dúvidas de que o objeto do pedido formulado no âmbito do Processo 337/2015 é integrado ainda pelo bloco normativo que agrega os «novos artigo 15.º, n.º 1, alínea s), artigo 21.º, alínea f), e artigo 27.º, introduzidos pela Lei 72/2014, de 2 de setembro», apesar de não incluídos na súmula final do requerimento.

8 - Normas impugnadas

Em consonância com a delimitação a que, quanto ao respetivo objeto, foram sujeitos ambos os pedidos, as normas impugnadas, constantes da Lei 68/93, na redação conferida pelo artigo 2.º da Lei 72/2014, são as seguintes:

«Artigo 1.º

Noções

1 - [...]

2 - [...]

3 - São compartes todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios ou que aí desenvolvem uma atividade agroflorestal ou silvopastoril.

4 - São ainda compartes os menores emancipados que sejam residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios.

Artigo 4.º

Apropriação ou apossamento

1 - [...]

2 - A declaração de nulidade pode ser requerida:

a) [...]

b) [...]

c) [...]

d) Pelos arrendatários e cessionários do baldio, nos termos do artigo 10.º

3 - [...]

Artigo 10.º

Arrendamento e cessão de exploração

1 - Os baldios podem ser objeto, no todo ou em parte, de arrendamento ou de cessão de exploração, com vista ao aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais, no respeito pelo disposto na lei e nos programas e planos territoriais aplicáveis.

2 - [...]

3 - [...]

4 - [...]

Artigo 15.º

Competência

1 - Compete à assembleia de compartes:

[...]

j) Deliberar sobre a alienação, o arrendamento ou a cessão de exploração de direitos sobre baldios, nos termos do disposto na presente lei;

[...]

s) Deliberar sobre a disponibilização de terrenos do baldio na bolsa de terras criada pela Lei 62/2012, de 10 de dezembro.

2 - A eficácia das deliberações da assembleia de compartes relativas às matérias previstas nas alíneas e), j), l), p) e s) do número anterior depende da sua aprovação por maioria qualificada de dois terços dos membros presentes.

3 - [...]

Artigo 21.º

Competência

Compete ao conselho diretivo:

[...]

f) Propor à assembleia de compartes ou emitir parecer sobre propostas de alienação, de arrendamento e de cessão de exploração de direitos sobre baldios, bem como de disponibilização de terrenos do baldio na bolsa de terras criada pela Lei 62/2012, de 10 de dezembro;

[...]

Artigo 27.º

Utilização precária

1 - Decorridos três anos sem que os baldios estejam a ser usados, fruídos ou administrados nos termos da alínea c) do artigo anterior, a junta ou as juntas de freguesia em cuja área se localizem podem utilizá-los diretamente, disponibilizá-los na bolsa de terras ou ceder a terceiros a sua exploração precária, mantendo-se estas situações enquanto os compartes não deliberarem regressar ao uso e normal fruição dos baldios.

2 - O início da utilização dos baldios a que se refere o número anterior é publicitado nas formas previstas no n.º 1 do artigo 18.º, com a antecedência mínima de 30 dias.

3 - Durante o período em que os baldios estão a ser utilizados diretamente pela junta ou juntas de freguesia ou são explorados a título precário por terceiros, e sem prejuízo do disposto no número seguinte, há lugar à prestação de contas, com entrega aos compartes do valor da cedência ou da receita líquida de exploração apurada, deduzida de 50 % a título compensatório, no caso de utilização direta dos baldios pelas referidas juntas.

4 - Os contratos celebrados por junta ou juntas de freguesia a que se referem os números anteriores caducam no termo do prazo respetivo ou quando os compartes regressem ao normal uso e fruição dos terrenos, salvo se eles mantiverem interesse na sua manutenção, caso em que os compartes sucedem na posição contratual da junta ou juntas de freguesia.

5 - A utilização dos baldios pela junta ou juntas de freguesia, nas condições e formas previstas no n.º 1, não suspende o prazo de 15 anos previsto na alínea c) do artigo anterior.

Para além das normas acima transcritas, o pedido recai ainda sobre o artigo 8.º da Lei 72/2014, de 2 de setembro, no segmento em que procede à revogação da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, alínea b) do artigo 21.º e artigo 33.º, todos da Lei 68/93, na sua primitiva versão.

O artigo 8.º da Lei 72/2014 tem o seguinte teor:

Artigo 8.º

Norma revogatória

São revogados o artigo 8.º, a alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, a alínea b) do artigo 21.º, os n.os 2 e 3 do artigo 22.º, o n.º 6 do artigo 29.º, o n.º 2 do artigo 32.º, o artigo 33.º e os n.os 2 e 3 do artigo 35.º da Lei 68/93, de 4 de setembro, alterada pela Lei 89/97, de 30 de julho.

As normas que constavam da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º, todos da Lei 68/93, na sua versão originária, tinham, por seu turno, o seguinte teor:

Artigo 15.º

Competência

1 - Compete à assembleia de compartes:

[...]

c) Deliberar sobre as atualizações do recenseamento dos compartes;

[...]

2 - [...]

3 - [...]

Artigo 21.º

Competência

Compete ao conselho diretivo:

[...]

b) Propor à assembleia de compartes a atualização do recenseamento dos compartes;

[...]

Artigo 33.º

Competência

1 - O recenseamento dos compartes identifica e regista os moradores da comunidade local com direitos sobre o baldio.

2 - Os recenseamentos provisórios previstos no n.º 2 do artigo 22.º do Decreto-Lei 39/76, de 19 de janeiro, ou os recenseamentos tidos por definitivos, correspondentes ou não àqueles recenseamentos, ainda que validados apenas por práticas consuetudinárias inequívocas, são reconhecidos como válidos até à sua substituição ou atualização, nos termos da presente lei.

3 - Em caso de inexistência de recenseamento dos compartes de determinado baldio, a iniciativa da sua elaboração compete à assembleia de compartes, quando para o efeito convocada ou, em caso de inexistência ou não convocação daquela assembleia, ou da sua inércia dentro do prazo de seis meses a contar da entrada em vigor da presente lei, a sua elaboração compete a grupos de 10 membros da comunidade local usualmente reconhecidos como compartes, os quais deverão cooperar entre si no caso de se vir a constituir mais de um.

4 - Decorrido um ano a partir da entrada em vigor da presente lei sem que tenha ocorrido qualquer das iniciativas previstas no número anterior, a obrigação legal de efetuar o recenseamento é automaticamente transferida para a junta de freguesia em cuja área territorial se localize a totalidade ou a maior parte do baldio, para cumprimento no prazo de seis meses.

5 - A junta de freguesia referida no número anterior tem, em qualquer caso, o dever de cooperar com as entidades promotoras referidas no n.º 1, sob pena de, recusando-se a cooperar ou a cumprir a obrigação prevista no número anterior, passar a carecer de legitimidade para nela ser ou continuar delegada a administração do respetivo baldio, durante um período de 10 anos a contar do termo do semestre referido no número anterior.

6 - Em caso de renitente inexistência de recenseamento dos compartes, por inércia de todas as entidades referidas nos números 3 e 4 e até ao suprimento efetivo dessa falta, aplicam-se as regras consuetudinárias, quando inequivocamente existam e, na falta delas, supre a falta do recenseamento dos compartes o recenseamento eleitoral dos residentes na comunidade local a que o baldio pertence, com as adaptações e correções aprovadas nas reuniões da assembleia de compartes convocadas com base nele.

7 - A convocação prevista na parte final do número anterior compete ao conselho diretivo, quando exista, ou, na sua falta, a grupos de 10 membros da comunidade local usualmente reconhecidos como compartes, constituídos em comissão ad hoc.»

9 - A análise da evolução histórica do enquadramento constitucional dos baldios foi já objeto de tratamento detalhado na jurisprudência deste Tribunal, salientando-se os Acórdãos n.os 325/89 e 240/91, arestos para os quais se remete.

Embora a revisão constitucional de 1997 tenha introduzido certas alterações no artigo 82.º da Constituição, a atual redação dos respetivos n.os 1 e 4, alínea b), é ainda aquela que resultou da revisão de 1989.

Assim, depois de garantir, no respetivo n.º 1, a «coexistência de três setores de propriedade dos meios de produção» - isto é, o setor público, o setor privado e o setor cooperativo e social -, o artigo 82.º da Constituição alude, no n.º 4, ao setor cooperativo e social, especificando e autonomizando os quatro subsetores no mesmo compreendidos.

O setor cooperativo e social cuja existência se encontra constitucionalmente assegurada contempla, assim, o subsetor cooperativo [n.º 4, alínea a)], o subsetor comunitário [n.º 4, alínea b)], o subsetor autogerido empresarial e agrário [alínea c)] e, depois da revisão de 1997, também o subsetor de solidariedade social [aliena d), aditada pela revisão de 1997].

Conforme entendimento consensualmente sufragado na doutrina mais atual, ao garantir a existência do setor cooperativo e ao autonomizar, dentro deste setor, os quatro subsetores para esse efeito especificados, a Constituição não permite que o legislador suprima qualquer deles, nem lhe consente que reduza qualquer deles a realidades marginais ou económico-estruturalmente irrelevantes (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo II, p. 49).

No que diz particularmente respeito ao subsetor comunitário - que continua a abranger, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 82.º, os «meios de produção comunitários, possuídos e geridos pelas comunidades» -, a sua transferência do setor público para o setor cooperativo e social, operada no âmbito da revisão constitucional de 1989, veio reforçar a autonomia dos bens comunitários, de acordo com a ideia, posta sucessivamente em evidência nos Acórdãos n.º 325/89 e 240/91, de "dominialidade comunitária ou cívica".

Em face do artigo 84.º, n.º 2, alínea b), da Constituição, a impossibilidade que ao legislador ordinário se coloca de suprimir ou depreciar o subsetor comunitário em termos suscetíveis de colocar em causa a garantia da sua existência continua, assim, a dever ser aferida de acordo com o entendimento, sufragado em ambos os referidos arestos, segundo o qual: i) ao aludir a meios de produção comunitários, a norma constitucional aponta para a natureza comunitária da própria propriedade, excluindo com isso a possibilidade de tais bens pertencerem a entidades públicas, como autarquias locais ou juntas de freguesia; ii) ao aludir a bens possuídos e geridos pelas comunidades, a norma constitucional atribui às comunidades locais, enquanto comunidades de habitantes, a titularidade dos direitos de gozo, de uso e de domínio dos meios de produção comunitários, continuando a vigorar neste âmbito os princípios de autoadministração e de autogestão assinalados no Acórdão 325/89 (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., Tomo II, p. 52).

10 - Conforme resulta da exposição de motivos que acompanhou o Projeto de Lei 528/XII/3.ª, que esteve na origem da Lei 72/2014, a revisão do regime jurídico dos baldios por esta levada a cabo teve como propósito o de, «decorridos mais de 15 anos sobre a última alteração legislativa à Lei dos Baldios, constante da Lei 68/93, de 4 de setembro, alterada pela Lei 89/97, de 30 de julho», proceder a «uma adequação do quadro legal em vigor» às profundas transformações sofridas «ao longo dos últimos 50 anos» pela «relação da sociedade com o território», em particular à constatação de que os terrenos baldios, embora «continuem a representar um enorme potencial para as populações locais», deixaram, «na generalidade das situações, [...] de ser aproveitados e geridos de modo a produzir os benefícios idealizados».

De acordo ainda com a referida exposição de motivos, o «crescente aumento de receitas resultantes da exploração de terrenos baldios e os processos de negociação em curso, tendo em vista a instalação de [...] equipamentos electroprodutores, nomeadamente para a produção de energia eólica e hídrica, tem conduzido a um fenómeno de criação de novas delimitações de baldios e à sua consequente atomização», o que, contrariando «a necessidade de aumento de escala necessária para assegurar a coesão do espaço rural, e garantir [...] a viabilidade do investimento na gestão e no ordenamento do território», impôs a adoção de novas soluções.

Assim no essencial justificadas, as alterações introduzidas à Lei 68/93 corporizam, segundo ainda a aludida exposição de motivos, «uma reforma de cariz funcional, colmatando lacunas e solucionando conflitos, designadamente no âmbito da gestão territorial dos baldios», tendo particularmente em vista a criação de «uma dinâmica na gestão dos espaços comunitários» liberta das «barreiras anteriormente impostas e, simultaneamente, habilitar as entidades gestoras dos baldios a aproveitar de forma mais eficaz os mecanismos financeiros colocados à disposição de quem neles investe, quer o investimento seja realizado pelos conselhos diretivos dos baldios ou outros com quem aqueles venham a contratualizar a gestão, uma vez obtida a concordância dos compartes». Para além da eliminação de «um dos maiores entraves» considerados existir «na boa e rentável gestão dos baldios», a reforma da Lei dos Baldios, concretizada através da Lei 72/2014, visou ainda «alcançar maior transparência ao nível da gestão sustentável dos recursos financeiros que os baldios propiciam» (cf. Projeto de Lei 528/XII/3.ª).

Neste enquadramento, as modificações ao regime jurídico dos baldios introduzidas pela Lei 72/2014 cuja constitucionalidade é contestada prendem-se diretamente com a: i) ampliação do conceito de comparte; ii) modificação do regime de cedência do gozo e fruição do baldio, em particular através introdução da possibilidade do seu arrendamento a terceiros; e iii) instituição da possibilidade de disponibilização do baldio na bolsa nacional de terras criada pela Lei 62/2012.

Considerados os elementos que conformam e integram o estatuto constitucional dos baldios, importa seguidamente verificar se as alterações introduzidas naqueles três segmentos do respetivo regime legal atentam, em função do seu sentido e alcance, contra o domínio coletivo incidente sobre aqueles meios de produção ou em qualquer caso descaracterizam ou suprimem a posse útil e/ou os poderes de autogestão que, relativamente a tais bens, a Constituição atribui às correspondentes comunidades locais.

11 - Tendo por objetivo a "entrega dos terrenos baldios às comunidades" que deles haviam sido "desapossadas pelo Estado", o Decreto-Lei 39/76, de 19 de janeiro, começou por definir os baldios como os "terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas" (artigo 1.º) e os compartes dos terrenos baldios como os "moradores que exer[cessem] a sua atividade no local e que, segundo os usos e costumes reconhecidos pela comunidade, t[ivessem] direito à sua fruição". A titularidade do uso e fruição dos baldios encontrava-se, assim, legalmente atribuída àqueles que cumulativamente satisfizessem os seguintes requisitos: i) fossem moradores da freguesia ou freguesias em que se situasse o baldio; ii) exercessem aí a sua atividade; e iii) tivessem direito, segundo os usos e costumes locais, à fruição do baldio.

Ao regime estabelecido no Decreto-Lei 39/76 sucedeu a Lei 68/93, de 4 de setembro, diploma que, conforme apontado na doutrina (cf. Jaime Gralheiro, Comentário à Nova Lei dos Baldios, Almedina, 2002, p. 11), procedeu à ampliação do conceito de comparte a todos "os moradores de uma ou mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, t[ivessem] direito ao uso e fruição do baldio".

12 - De acordo com a nova redação conferida ao n.º 3 do artigo 1.º da Lei 68/93, compartes passaram a ser:

a) Os cidadãos eleitores, inscritos no recenseamento eleitoral da freguesia em que se situe o baldio; e que, concomitantemente

b) Residam na área da comunidade local em causa ou aí exerçam atividade agroflorestal ou silvopastoril.

Em resultado do aditamento àquele artigo 1.º do seu atual n.º 4, o conceito abrange os «menores emancipados que sejam residentes nas comunidades locais» onde tais baldios se situem. Em conformidade com o n.º 5 do artigo 1.º da Lei 68/93, igualmente aditado pela Lei 72/2014, os compartes, assim definidos, «usufruem os baldios conforme os usos e costumes locais e gerem de forma sustentada, nos termos da lei, os aproveitamentos dos recursos dos respetivos espaços rurais, de acordo com as deliberações tomadas em assembleia de compartes».

Em consequência da substituição do conceito de comparte baseado nos «usos e costumes locais», originariamente acolhido pela Lei 68/93, a Lei 72/2014 procedeu, no seu artigo 8.º, à revogação das normas que, através da previsão e regulação do mecanismo do recenseamento de compartes, tinham por função viabilizar a delimitação do universo de compartes à luz daquele critério, em particular àquelas que constavam da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, alínea b) do artigo 21.º e artigo 33.º, todos da Lei 68/93, de 4 de setembro.

Na medida em que atribuição do estatuto de comparte passou a estruturar-se sob um critério legal acabado, de aplicação direta e automática - no sentido em que, de acordo com a nova redação conferida n.º 3 do artigo 1.º da Lei 68/93, de tal estatuto beneficiam agora os cidadãos eleitores recenseados na freguesia onde se situam os terrenos baldios e que residam ou desenvolvam atividade agroflorestal ou silvopastoril na comunidade local que deles pode usufruir, sem dependência de qualquer deliberação, ato ou autónoma formalidade -, a Lei 72/2014, não só procedeu à revogação do conjunto de normas referentes ao mecanismo de recenseamento de compartes, constante da versão originária daquele diploma legal, como as não substituiu pela previsão de qualquer outro procedimento destinado a identificar ou registar os compartes, nem pela atribuição aos órgãos da administração dos baldios de qualquer competência para intervir a esse nível.

13 - Atentando na evolução do conceito de comparte à luz da sucessão dos regimes legais incidentes sobre os baldios, verifica-se que o mesmo foi sendo continuamente ampliado, resultando tal ampliação do progressivo decaimento de requisitos que começaram por ser cumulativamente exigidos para esse efeito.

Assim, dos três pressupostos primitivamente estabelecidos no Decreto-Lei 39/76 - (i) ser-se morador da freguesia ou freguesias em que se situasse o baldio, (ii) exercer-se aí determinada atividade e (iii) ter-se direito, segundo os usos e costumes locais, à fruição do mesmo -, a Lei 68/93 manteve apenas o primeiro e o terceiro, retirando relevância, no âmbito da noção de comparte estabelecida no n.º 3 do respetivo artigo 1.º, ao elemento de conexão baseado no exercício de determinada atividade.

Com as alterações introduzidas pela Lei 72/2014, a opção de remeter para as normas de direito consuetudinário o recorte final do universo dos compartes, introduzida pelo Decreto-Lei 39/76 e mantida em vigor pela Lei 68/93, foi expressamente abandonada; em consequência da eliminação de mais este pressuposto, o conceito de comparte passou a estruturar-se sob o único elemento de conexão que sobejou - o elemento relativo à freguesia da área de residência - ainda que sob diferente modelação.

Em resultado da nova redação conferida ao n.º 3 do artigo 1.º da Lei 68/93, à comunidade titular do domínio cívico sobre os baldios pertencem agora todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde aqueles se situam, ou que aí desenvolvem uma atividade agroflorestal ou silvopastoril.

A Lei 72/2014 repristinou, assim, o elemento de conexão relativo ao exercício de determinada atividade, que constara do regime originariamente estabelecido no Decreto-Lei 39/76, embora com duas diferenças fundamentais: i) trata-se, não de um pressuposto autónomo, mas de um requisito alternativo ao elemento de conexão baseado na residência; ii) as atividades cujo exercício é suscetível de relevar para esse efeito são apenas as de natureza agroflorestal e silvopastoril.

Para além da alteração do critério de determinação da qualidade de comparte e em estreita relação com esta, as modificações introduzidas pela Lei 72/2014 no regime acolhido pela Lei 68/93 determinaram ainda que: i) a qualidade de comparte tivesse passado a decorrer diretamente da lei, dispensando-se a intervenção do direito consuetudinário para o qual a primitiva versão remetia; e ii) o recenseamento eleitoral tivesse deixado de ter a função meramente supletiva que o regime anterior lhe era assinalava - isto é, a função de substituir o recenseamento dos compartes sempre que este se revelasse persistentemente inexistente e essa inexistência não pudesse ser suprida através do recurso a regras consuetudinárias - para se converter no elemento central do critério legal de atribuição da qualidade de comparte.

14 - De acordo com a posição sustentada pelos requerentes do pedido que deu origem ao Processo 251/2015, a alteração do conceito de comparte resultante das alterações introduzidas pela Lei 72/2014, na medida em que estende o direito ao uso e fruição dos baldios a todos os eleitores, inscritos e residentes nas freguesias em que estes se localizem ou que aí desenvolvam determinada atividade, prescindindo da função delimitadora até então exercida pelos usos e costumes locais, não só põe em causa a natureza comunitária do baldio - que deixará assim de poder ser fruído por uma «comunidade local restrita, segundo os costumes da comunidade» -, como tornará inclusivamente possível o conflito entre «o que é da titularidade dos compartes e da titularidade da junta de freguesia», tanto mais que, ao «ser representativa de todos os eleitores e consequentemente de todos os compartes», a junta «pode administrar o baldio como se tivesse a titularidade do mesmo, ou seja, como se de um bem privado da freguesia se tratasse».

Já segundo os requerentes do pedido formulado no Processo 337/2015, ao definir «como requisito admissível para a aquisição do estatuto de comparte, o mero vínculo de inscrição como eleitor e a residência na comunidade local em que o baldio se situa», a alteração introduzida pela Lei 72/2014 desconsidera «a titularidade-dominial anteriormente constituída relativamente a esse mesmo baldio» através da «respetiva "posse útil e gestão"», permitindo «que aquele que nenhuma relação manteve com o baldio, de uso ou usufruto, se torne comparte, lado a lado e com os mesmos poderes do que aqueles que constituíram ao longo de anos um costume sobre o uso e fruição desse mesmo baldio», o que é incompatível com «a salvaguarda constitucional que protege a propriedade social de meios de produção».

Tal como configurado por ambos os grupos de requerentes, o problema de constitucionalidade suscitado em torno da alteração do conceito de comparte produzida pela Lei 72/2014 consiste, assim, em saber se a abertura das comunidades titulares do domínio cívico incidente sobre os baldios a todos os cidadãos eleitores inscritos e residentes na freguesia onde estes se situem ou que «aí desenvolvam uma atividade agroflorestal ou silvopastoril», com a consequente exclusão da faculdade de autodelimitação que, através do recurso aos usos e costumes, se encontrava até então atribuída aos elementos integrantes de tais comunidades, anula ou invalida a autonomia dominial ou natureza comunitária da propriedade ou da posse que incidem sobre aqueles meios de produção.

15 - Ao contrário das normas cuja constitucionalidade foi apreciada no Acórdão 325/89, a alteração do conceito de comparte produzida pela Lei 72/2014, apesar de ter estendido essa qualidade a todos os «cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas comunidades locais onde se situam os respetivos terrenos baldios ou que aí desenvolvam uma atividade agroflorestal ou silvopastoril», não operou qualquer mutação dominial no âmbito do estatuto legal daqueles bens comunitários.

Com efeito, a circunstância de a qualidade de membro da comunidade cívica titular dos direitos de uso, gozo e domínio sobre os baldios decorrer agora diretamente da lei e se encontrar automaticamente atribuída, de acordo com o critério adotado, à comunidade-coletividade constituída pelo conjunto dos cidadãos eleitores, inscritos e residentes nas freguesias em que se situam os baldios ou que aí desenvolvam determinada atividade, não determina, em si mesma, a integração daqueles bens comunitários no domínio público de tais freguesias, nem tão pouco implica que aos órgãos de governo destas entidades passem por essa razão a caber quaisquer poderes de condicionamento ou de ingerência no âmbito da administração ou gestão daqueles bens.

E isto desde logo porque, mesmo nos casos em que o universo dos membros das comunidades cívicas - os compartes ou os condóminos - venha a coincidir com o substrato pessoal dos entes territoriais que lhes correspondam - conforme, de resto, já se previa que pudesse ocorrer quando, por falta de recenseamento dos compartes, se prescrevia a respetiva substituição pelo recenseamento eleitoral dos residentes na respetiva comunidade local (cf. artigo 33.º, n.º 6, da Lei 68/93, na sua versão originária) -, os bens comunitários mantêm-se na titularidade das respetivas comunidades locais, as quais não passam por essa razão a poder confundir-se com os entes territoriais locais ou autarquias locais com base nos quais foi realizada a respetiva delimitação (cf. José Casalta Nabais, Alguns perfis da propriedade coletiva nos países de civil law, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 61, p. 246).

Por isso, nem o alargamento do conceito de comparte a todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes na freguesia em que os baldios se situem ou que aí desenvolvam determinada atividade, nem a correspondência que assim tendencialmente se estabelece entre a condição de freguês e a qualidade de comparte, implicam, por si só, que a titularidade-dominial dos baldios deixe de permanecer legalmente imputada uma coletividade-comunidade de habitantes e, menos ainda, que essa titularidade seja desse modo transferida para qualquer um dos órgãos representativos da freguesia que, por constituir a circunscrição de recenseamento em território nacional, serve de referência àquela reconfiguração.

Conforme se escreveu logo no Acórdão 325/89, «mesmo a haver uma correspondência territorial e pessoal entre comunidades locais («povos») e a freguesia ou freguesias» - hipótese cuja possibilidade de verificação não deixou ali de admitir-se -, continuará a não existir «qualquer identificação entre comunidades locais e coletividades territoriais autárquica»:a titularidade dominial dos bens comunitários permanecerá dos «povos», «utentes», «vizinhos», ou «compartes»", não sendo por aquela razão transferida para «as freguesias ou grupo de freguesias».

A reconfiguração do critério de atribuição da qualidade de comparte resultante das modificações introduzidas pela Lei 72/2014, não obstante estender aquela qualidade a todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes na comunidade em que os baldios se situem ou que aí desenvolvam determinada atividade, apenas produz efeitos quanto à delimitação do universo subjetivo da própria comunidade cívica titular dos direitos de propriedade, uso e gozo sobre aqueles meios de produção. Por isso, não determina, nem direta, nem reflexamente, a transmudação da natureza comunitária do domínio e/ou da posse que sobre eles incidem, nem, consequentemente, implica qualquer perda de autonomia desses «bens comunitários» face ao Estado.

16 - Embora atribua a titularidade dominial dos baldios às comunidades locais, enquanto comunidades de habitantes, a Constituição não determina, contudo, o modo como tais comunidades devem considerar-se para aquele efeito constituídas, nem contém quaisquer critérios com base nos quais deva a respetiva delimitação ser legalmente concretizada.

Sendo, consequentemente, escasso o nível de predeterminação constitucional neste domínio, o legislador ordinário dispõe de uma ampla liberdade conformadora quanto à modelação do universo dos membros integrantes de tais comunidades, cabendo-lhe, assim, quer a determinação do tipo de regras a atender para o efeito - isto é, se as mesmas deverão resultar diretamente da lei ou antes de normas consuetudinárias para as quais a lei deverá limitar-se a remeter - quer ainda, sobretudo naquela primeira hipótese, a designação do(s) elemento(s) de conexão nos quais o vínculo de pertença deverá concretamente fundar-se.

Apesar de amplo, o poder de conformação que nestes termos assiste ao legislador ordinário encontra-se naturalmente sujeito aos limites que decorrem da própria garantia constitucional da natureza coletiva ou cívica do domínio incidente sobre aqueles bens comunitários: na medida em que a Constituição atribui às comunidade locais, enquanto comunidades de habitantes, a titularidade e a posse útil dos baldios, o legislador, ao definir o universo dos membros integrantes dessas comunidades, não o poderá fazer em termos de tal modo amplos e abrangentes - como sucederia, desde logo, se o fizesse à escala do país, tornando todos os cidadãos nacionais compartes de todos os baldios existentes em território nacional, apenas em função dessa sua qualidade - que, retirando materialidade à coletividade-referência ou esbatendo a sua densidade, a convertam numa realidade intangível e difusa e, por via disso, num mero simulacro do conceito de comunidade.

17 - Na sua versão originária, a Lei 68/93, não obstante estabelecer como requisito básico da qualidade de membro da comunidade local o ser-se morador da freguesia ou freguesias em que se situasse o baldio, remetia para o direito consuetudinário o recorte final do universo dos compartes.

A residência na freguesia ou freguesias em que se situasse o baldio constituía, assim, um pressuposto necessário mas não suficiente para a aquisição da qualidade de membro da comunidade cívica titular daquele bem comunitário: não sendo automaticamente atribuída a todos os residentes na freguesia em que se situasse o baldio pelo simples facto de o serem, tal qualidade encontrava-se dependente, em última instância, dos "usos e costumes" aplicáveis, na interpretação que deles viesse a ser feita pela própria assembleia de compartes no exercício da competência deliberativa que para esse efeito lhe estava expressamente atribuída (artigo 15.º, n.º 1, alínea c), da Lei 68/93, na redação originária). A qualidade de membro da comunidade cívica titular do domínio sobre os baldios decorria, assim, não diretamente da lei, mas do direito consuetudinário, para o qual então remetia o artigo 1.º, n.º 3, da Lei 68/93.

Assim entendida, a remissão para os "usos e costumes", que constava do n.º 3 do artigo 1.º da Lei 68/93, cometia ao direito consuetudinário o recorte definitivo e final do universo de compartes, decidindo nomeadamente, «quem fazia parte da respetiva comunidade: 1) se todos os residentes ou moradores da correspondente povoação ou lugar, ou só aqueles entre esses» que se dedicassem, «ao menos parcialmente, à atividade agrícola, como era tradicional atentas as funções dos bens comunitários cívicos; 2) se todos os residentes, independentemente do tempo de residência no lugar, ou apenas os residentes originários ou os aí residentes há um determinado prazo; e 3) se os membros da comunidade, mormente para designação dos respetivos órgãos de gestão", seriam "as famílias (ou fogos) ou os indivíduos» (cf. Casalta Nabais, loc. cit., p. 247).

Deste modo, mesmo em face do regime anterior, o estabelecimento de uma correspondência territorial e pessoal entre as comunidades locais (povos) titulares da dominialidade cívica e a freguesia ou freguesias em que os baldios se situavam constituía já uma das configurações possíveis que, através da intermediação exercida pelas normas de direito consuetudinário, o universo de compartes poderia em concreto assumir, por deliberação da respetiva assembleia.

Por via da atribuição deste poder deliberativo, a exercer de acordo com os usos e costumes aplicáveis, a lei colocava nas mãos das próprias comunidades titulares do domínio cívico a decisão acerca do seu caráter mais aberto ou mais fechado, concedendo-lhes a faculdade de, através da interpretação das normas das direito consuetudinário, se autoatribuírem a configuração máxima resultante da inclusão de todos os membros residentes ou moradores da correspondente povoação ou lugar ou, em alternativa, confinarem a cotitularidade dos direitos incidentes sobre os baldios ao conjunto daqueles que, de acordo com padrão de conduta implícito no costume, mantivessem, em função da sua particular qualidade, uma relação diferenciada com aqueles meios de produção.

18 - Este regime foi, como já se referiu, substancialmente alterado pela Lei 72/2014.

Por força da reconfiguração da noção de comparte, resultante da nova redação conferida ao n.º 3 do artigo 1.º da Lei 68/93, a comunidade cívica passou a ter o mais aberto dos perfis em geral configuráveis de acordo com o direito consuetudinário - no sentido em que coincide agora com o conjunto de todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes na comunidade em que se situe o baldio - e, na medida em que o critério delimitador passou a decorrer diretamente da lei, perdeu a faculdade de se autorrestringir a um núcleo mais restrito de membros dentro daquele universo com recurso a normas de direito consuetudinário.

Afastada a possibilidade de reconhecer nos referidos elementos inovatórios - quer em si mesmos, quer em resultado da sua conjugação - qualquer mutação na titularidade cívica decorrente da substituição da comunidade local de utentes por entidades de outro tipo, a questão de constitucionalidade suscitada em torno das alterações introduzidas pela Lei 72/2014 no n.º 3 do artigo 1.º da Lei 68/93 passa, assim, por determinar se a imperativa abertura do universo dos compartes a todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes na comunidade em que situe o baldio, com consequente exclusão da faculdade de autodelimitação através do recurso a regras de direito consuetudinário, põe em causa a natureza materialmente comunitária constitucionalmente atribuída àqueles meios de produção. A questão está em saber se, conferindo uma dimensão necessariamente mais ampla e abrangente à coletividade cívica, o novo critério pode esvaziar e fazer perder de vista, como é sustentado ainda pelos requerentes, a natureza materialmente comunitária que a Constituição assegura àqueles meios de produção.

19 - Conforme se viu já resultar do enquadramento constante da exposição de motivos que acompanhou o Projeto de Lei 528/XII/3.ª, tanto a alteração geral do regime jurídico dos baldios, resultante da Lei 74/2012, como, em particular, a reconfiguração do conceito de comparte dali resultante, são, no essencial justificadas através da invocação de um conjunto de fundamentos relacionados com a «profunda modificação da relação da sociedade com o território», em especial com a constatação de que os terrenos baldios deixaram, «na generalidade das situações, [...] de ser aproveitados e geridos de modo a produzir os benefícios idealizados», tendo-se convertido em objeto de um tipo de «exploração» propiciador de «um crescente aumento de receitas», designadamente com vista à «instalação de [...] equipamentos electroprodutores, nomeadamente para a produção de energia eólica e hídrica».

De acordo ainda com a orientação estratégica subjacente às alterações constantes da Lei 72/2014, tal fenómeno tornou necessária a adoção de novas soluções, suscetíveis de assegurar a criação de «uma dinâmica na gestão dos espaços comunitários», habilitando «as entidades gestoras dos baldios a aproveitar de forma mais eficaz os mecanismos financeiros colocados à disposição de quem neles investe».

Procedendo diretamente daquilo que se considera ser a nova forma de utilização dos baldios, centrada na sua exploração, e garantia da viabilidade do investimento na gestão, as razões invocadas para justificar a reforma levada a cabo pela Lei 72/2014 e, em particular, a reconfiguração do conceito de comparte ali contemplada, são reconhecidamente próximas daquelas que, na doutrina, servem para considerar hoje "bastante questionável" o caráter fechado tradicionalmente assumido pelas comunidades locais.

Tido por compreensível «enquanto os terrenos cívicos tiveram por função basicamente a subsistência dos respetivos condóminos ou compartes, proporcionando a cada um o aproveitamento dos bens necessários ou auxiliares da economia doméstica ou da atividade agrícola (concretizados na recolha de lenhas e matos, na apascentação de gados, no aproveitamento de águas destinadas a irrigação dos terrenos, etc.)», o confinamento do universo dos compartes a um núcleo restrito de membros da comunidade de residentes tornou-se, segundo se sustenta, inadequado «face a bens coletivos objeto de uma exploração de caráter empresarial e planificada, traduzida numa atividade de produção para troca, por via de regra monetária (concretizada, por exemplo, na exploração florestal, na exploração de pedreiras, na exploração de árvores de fruta, na criação de rebanhos, etc.)» (cf. Casalta Nabais, op. cit., p. 248).

Parecendo, assim, plenamente imputável ao propósito de ajustar o regime legal dos baldios às novas formas de exploração que atualmente incidem sobre aquele tipo de bens comunitários, o alargamento do universo de compartes a todos os cidadãos eleitores, inscritos e residentes na comunidade local em que aqueles bens se situem ou que aí exerçam determinada atividade, na medida em que se contém dentro dos limites resultantes da correspondência, desde sempre admitida, entre as comunidades de condóminos e o substrato pessoal dos entes territoriais respetivos - as freguesias -, assegura ainda à coletividade-referência uma dimensão compatível com o arquétipo de comunidade.

20 - Esse juízo não é contrariado pelos limites territoriais das circunscrições correspondentes às freguesias, resultantes da reorganização administrativa territorial autárquica, cujo regime jurídico foi aprovado pela Lei 22/2012, de 30 de maio.

Apesar de, em resultado da criação de freguesias por agregação e/ou da alteração dos seus limites territoriais, a circunscrição correspondente à freguesia ser hoje mais ampla, o alargamento do universo de compartes a todos os residentes na comunidade aí inscritos levado a cabo pela Lei 72/2014 continua a ter subjacente, até pelos critérios que foram seguidos na reorganização administrativa que conduziu àquela agregação - designadamente os da preservação da identidade histórica, cultural e social das comunidades locais e do equilíbrio e adequação demográfica das freguesias (cf. artigo 3.º, alíneas a) e f), da Lei 22/2012) -, uma ideia suficientemente tangível de comunidade, não sendo de modo a pôr em causa, do ponto de vista substantivo, o caráter comunitário constitucionalmente associado à titularidade do domínio e da posse incidentes sobre aqueles meios de produção.

Em suma: a reconfiguração do conceito de comparte resultante das alterações introduzidas pela Lei 72/2014, para além de encontrar fundamento num conjunto de razões hoje reconhecidas na doutrina, não só não compromete a distinção, constitucionalmente salvaguardada, entre o domínio cívico e o domínio público, como não amplia os limites da coletividade-referência ao ponto de comprometer a natureza comunitária daqueles meios de produção. É tanto mais assim quanto é certo que, nem a Constituição impõe, nem desta natureza diretamente deriva qualquer obrigação de atribuição àquela coletividade do poder de se autoconfinar, com recurso aos usos e costumes, a um núcleo mais restrito de elementos com base numa relação com os baldios costumeiramente diferenciável.

Sendo este também o fundamento que inviabiliza a possibilidade de considerar constitucionalmente imperativo o regime competencial e procedimental relativo ao recenseamento de compartes previsto nos artigos 15.º, n.º 1, alínea c), 21.º, alínea b) e 33.º, todos da Lei 68/93, na sua versão originária, deverá concluir-se, assim, pela não inconstitucionalidade, não apenas da norma constante do artigo 1.º, n.º 4, daquela Lei, na redação conferida pela Lei 72/2014, como ainda do próprio artigo 8.º deste último diploma legal, no segmento em que procede à revogação dos primeiros.

21 - Apesar de não invocarem qualquer argumento especificamente destinado a pôr em causa a constitucionalidade da inclusão no universo dos compartes dos menores emancipados - os quais, não tendo capacidade eleitoral ativa e não se encontrando por essa razão inscritos na freguesia, não poderiam ser considerados compartes de acordo com o critério geral definido no n.º 3 do artigo 1.º da Lei 68/93, na redação conferida pela Lei 72/2014 -, os subscritores do pedido que deu origem ao Processo 251/2015 requereram ainda a invalidação da norma constante do n.º 4 daquele artigo 1.º com o argumento de que, «se um menor, segundo os usos e costumes, não teria o estatuto de comparte não se entende como, só pelo facto de ser emancipado», poderá beneficiar «desse estatuto de forma automática» e também «arbitrária», já que «nem no preâmbulo do Projeto de Lei 528/XII/3.ª (que deu origem à Lei sub judice) se aclaram as razões do alargamento do âmbito subjetivo do baldio ou a integração do menor emancipado no mesmo».

Na medida em que a atribuição da qualidade de comparte aos menores se encontra dependente, não apenas do facto de os mesmos serem emancipados, mas também da circunstância de serem residentes na freguesia onde se situam os baldios, o problema de constitucionalidade suscitado em torno da referida norma acaba por perder autonomia. Com efeito, tendo-se concluído pelo cabimento, em face do artigo 82.º, n.º 4, alínea b), da Constituição, da conversão deste último pressuposto em critério delimitador da comunidade titular da dominialidade cívica, a única questão que a partir da norma constante do n.º 4 do artigo 1.º da Lei 68/93, na redação conferida pela Lei 72/2014, poderia com autonomia configurar-se seria a de saber se o alargamento do universo de compartes, não apenas aos cidadãos eleitores, inscritos e residentes na comunidade local em que se situem os baldios ou que aí exerçam determinada atividade, mas ainda aos menores emancipados - isto é, aqueles que, não tendo ainda completado dezoito anos de idade (artigo 122.º, do Código Civil), se emanciparam pelo casamento (artigo 132.º, do Código Civil) - aí igualmente residentes, se tornaria por essa razão contrário à garantia constitucional da natureza comunitária daqueles meios de produção.

Uma vez que a condição de menor emancipado, quando autonomamente considerada, não constitui, em si mesma, um elemento de conexão a que possa opor-se, de acordo com a sua função, a garantia constitucional da natureza comunitária da titularidade dos baldios, inexiste qualquer fundamento para, perante o julgamento que se fez do n.º 3 do artigo 1.º da Lei 68/93, na versão resultante da Lei 72/2014, censurar a norma constante do respetivo n.º 4.

22 - Para além da reconfiguração do conceito de comparte, as alterações introduzidas pela Lei 72/2014 contemplaram ainda a modificação do regime a que, no respetivo capítulo II, a Lei 68/93 sujeitava o uso e fruição por terceiros dos terrenos baldios. Tal modificação concretizou-se através, quer da ampliação do elenco dos títulos com base nos quais passou a ser admitida a cedência do gozo dos baldios, quer da contração dos limites que a tal cedência originariamente se colocavam no âmbito da única modalidade contratual para o efeito então admitida.

Na sua versão inicial, a previsão constante do n.º 1 do artigo 10.º da Lei 68/93 apenas contemplava a cessão de exploração como forma de cedência, no todo ou em parte, da utilização dos baldios a terceiros, excetuando dessa possibilidade as partes do baldio com aptidão para aproveitamento agrícola.

Tendo nomeadamente por finalidade o «povoamento ou exploração florestal» (cf. artigo 10.º, n.º 1), a cessão da exploração deveria «efetivar-se, tanto quanto possível, sem prejuízo da tradicional utilização do baldio pelos compartes, e tendo em conta o seu previsível impacte ambiental» (cf. artigo 10.º, n.º 3), sendo admitida «por períodos até 20 anos, sucessivamente prorrogáveis por períodos até igual tempo» (cf. artigo 10.º, n.º 4).

Alterando a regra originariamente constante do artigo 10.º, n.º 1, da Lei 68/93, a Lei 72/2014 veio consagrar a possibilidade de os baldios serem objeto, no todo ou em parte, tanto de cessão de exploração, como de arrendamento, em ambos os casos «com vista ao aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais, no respeito pelo disposto na lei e nos programas e planos territoriais aplicáveis» e sem exceção das partes do baldio com aptidão para aproveitamento agrícola.

Em face do princípio da taxatividade dos direitos reais limitados, consagrado no artigo 1306.º do Código Civil, poder-se-á, desde logo, afirmar que o contrato de arrendamento, tal como sucede com o de cessão da sua exploração, não só não tem eficácia translativa da propriedade incidente sobre os baldios - que se mantém por isso na titularidade da comunidade de habitantes -, como também não origina a sua compressão ou oneração, na medida em que o direito que através dele se atribui ao arrendatário não é, por força daquele princípio, um direito real de gozo mas antes um direito de natureza obrigacional.

Embora tal entendimento, ainda que dominante, não seja consensual, a conhecida polémica doutrinal em torno da natureza, real ou obrigacional, do direito do arrendatário não assume, do ponto de vista dos pedidos formulados, significado relevante.

E isto porque, para além de tal discussão ter na verdade por objeto a qualificação, como contrato obrigacional ou de natureza real, não especificamente do contrato de arrendamento, mas da própria figura matricial da locação - e dela não poder ser consequentemente afastado o contrato de cessão de exploração -, o certo é que, seja qual for a posição por que se opte, é seguro que a cedência do gozo e fruição do baldio através da celebração de um contrato de arrendamento não provoca, do ponto de vista do ordenamento jurídico, qualquer mutação na respetiva titularidade dominial, permanecendo, pelo contrário, incólume o princípio da sua inalienabilidade.

23 - Explicitando os termos em que a cessão de exploração e o arrendamento dos baldios poderão ter lugar, o artigo 10.º da Lei 68/93, na versão conferida pela Lei 72/2014, passou a estabelecer que a exploração a qualquer um dos referidos títulos deverá «efetivar-se de forma sustentada, sem prejuízo da tradicional utilização dos baldios pelos compartes, de acordo com os usos e costumes locais» (n.º 3), observando-se as «formas e os termos previstos na lei» para cada uma das referidas formas de cedência (n.º 4).

Em consequência da introdução da possibilidade de cedência do uso e fruição dos baldios a título tanto de cessão de exploração como de arrendamento, as competências legalmente atribuídas à assembleia de compartes e ao conselho diretivo foram ampliadas em termos de permitirem a respetiva concretização.

Assim, a par da modificação operada no próprio princípio geral estabelecido em matéria de administração dos baldios - modificação essa de acordo com a qual os terrenos baldios passaram a ser administrados pelos respetivos compartes, não diretamente, conforme sucedia no âmbito da versão originária da Lei 68/93, mas através de órgãos democraticamente eleitos, cuja intervenção àquele título deixou de ser por isso meramente supletiva (cf. artigo 11.º, n.º 1) -, a Lei 72/2014 ampliou o âmbito das competências atribuídas à assembleia de compartes e ao conselho diretivo de modo a viabilizar a concretização da possibilidade, agora admitida, de cedência do uso e fruição dos baldios a título de arrendamento.

Em resultado da alteração da alínea j) do n.º 1 do artigo 15.º da Lei 72/2014, passou a competir à assembleia de compartes deliberar, já não apenas sobre a alienação e a cessão de exploração de direitos sobre baldios, conforme sucedia no âmbito da versão originária da referida norma, mas ainda sobre o respetivo arrendamento.

Concordantemente, a competência legalmente atribuída ao conselho diretivo passou a contemplar, na alínea f) do artigo 21.º da Lei 68/93, a faculdade de propor à assembleia de compartes ou emitir parecer, não apenas sobre propostas de alienação e de cessão de exploração de direitos sobre baldios, conforme constava da versão originária da referida alínea, mas também sobre propostas de arrendamento.

Do mesmo modo, e à semelhança do que sucedia já com a eficácia da deliberação da assembleia de compartes sobre a alienação e a cessão de exploração de direitos sobre baldios, passou a decorrer do estatuído no n.º 2 do artigo 15.º da Lei 68/93, na redação conferida pela Lei 72/2014, que também a deliberação sobre o arrendamento apenas produzirá efeitos se for aprovada por uma maioria qualificada de dois terços dos membros presentes.

A última decorrência resultante da ampliação dos títulos com base nos quais passou a ser admitida a cedência do gozo dos baldios a terceiros foi a de conferir legitimidade aos arrendatários e cessionários para requerer a declaração de nulidade dos atos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento do baldio, bem como da sua posterior transmissão [cf. artigo 4.º, n.os 1 e 2, alínea d), da Lei 68/93, na versão resultante da Lei 72/2014].

Apesar de o objeto de ambos os pedidos formulados compreender, ainda que sob diferentes constelações, a globalidade das normas acima referidas, é patente que as questões de constitucionalidade suscitadas se prendem com a norma, constante do n.º 1 do artigo 10.º, que modifica o regime de cedência do uso e fruição do baldio a terceiros, sendo as demais normas questionadas a título meramente derivado ou consequencial.

24 - Confrontando as duas figuras contratuais com recurso às quais é atualmente admitida a cedência a terceiros do uso e a fruição dos terrenos baldios - cessão de exploração e arrendamento, rural ou para outros fins -, verifica-se ser comum a ambas a existência de uma transferência de tipo oneroso e caráter temporário daqueles bens comunitários com vista ao aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais, radicando o elemento diferenciador fundamental na circunstância de, no arrendamento, o locador transferir para o locatário o direito de gozo do prédio rústico nu, e na cessão de exploração essa transferência ter por objeto a fruição de uma unidade económica, mais ou menos complexa, que se apresenta como um bem a se e da qual o prédio constitui apenas um dos respetivos elementos componentes.

Por assim ser, a cessão de exploração, ao contrário do arrendamento, estará, em princípio, dependente da existência de algo mais para além do próprio baldio: tendo por objeto uma unidade económica, pressupõe que ao prédio rústico cujo gozo é transferido para o locatário se encontrasse já afetado um fim determinado e específico, mais concretamente ao de nele vir a ser explorada ou desenvolvida uma certa atividade.

Assim, enquanto o arrendamento, por se bastar com a transferência do gozo de determinada coisa imóvel, pode ter por objeto a temporária transmissão de qualquer prédio rústico, ainda que inativo ou abandonado, a cessão de exploração, justamente por pressupor uma organização concreta de fatores produtivos vinculada à prossecução de um determinado fim com utilidade económica, e mesmo que não tenha por objeto um verdadeiro estabelecimento comercial - o que, em bom rigor, a figura pressuporia - encontrar-se-á confinada aos casos em que o prédio pretendido transmitir se ache provido dos meios materiais indispensáveis ao seu aproveitamento económico, designadamente móveis, máquinas, utensílios que tornem viável o arranque da sua exploração, ainda que esta não se tenha ainda efetivamente iniciado (cf. neste sentido, a propósito da cessão de exploração do estabelecimento comercial, e Miguel J. A. Pupo Correia, Direito Comercial, Ediforum, 8.ª ed., p. 329).

Por isso, enquanto no arrendamento a transferência do gozo de outros elementos para além do prédio é apenas facultativa - no caso do arrendamento rural, este poderá abranger, por acordo das partes, não apenas o terreno, as águas e a vegetação que constituem o seu objeto típico, mas ainda o conjunto das infraestruturas, máquinas e equipamentos que se encontrem porventura associados à respetiva exploração -, já na cessão de exploração essa transferência é inerente à própria natureza do contrato: na cessão de exploração, o cedente demite-se temporariamente do exercício da atividade que, através da mobilização daquele conjunto de elementos, vinha sendo exercida sobre o prédio ou através dele para que a mesma possa ser assumida pelo locatário (cf. Miguel J. A. Pupo Correia, ob. cit., p. 327).

Justamente por assim ser, o cessionário, ao invés do arrendatário, encontra-se obrigado a preservar a utilidade da unidade produtiva que temporariamente lhe foi cedida, não podendo alterar o destino específico que a mesma assuma na economia do respetivo proprietário. Daqui não se segue, todavia, que, no âmbito do arrendamento, o locatário possa afetar o prédio locado ao serviço de qualquer finalidade: em se tratando de arrendamento rural, o arrendatário encontra-se obrigado a respeitar, relativamente ao prédio rústico cedido, a finalidade em vista do qual o contrato foi celebrado - exploração agrícola, florestal ou de campanha -, ainda que este não tenha implicado a cedência de qualquer bem para além do terreno, da vegetação e das águas. Aliás, o locador detém a faculdade de resolver o contrato de arrendamento com fundamento no incumprimento pelo arrendatário de obrigações, legal ou contratualmente impostas, que comprometam a produtividade, substância ou função económica e social do prédio.

Para além deste elemento diferenciador, há a salientar que, na disciplina do arrendamento rural, subsistem alguns traços de pendor vinculístico. A cessão de exploração, tal como o arrendamento de prédio rústico para outros fins, encontra-se atualmente equiparada ao arrendamento urbano para fins não habitacionais, acabando por lhe serem consequentemente aplicáveis, para além do regime geral da locação, as disposições previstas nos artigos 1109.º a 1113.º do Código Civil, em qualquer caso mais favoráveis à liberdade de autoconformação contratual do que o regime legal previsto para o arrendamento rural.

25 - Todos estes aspetos, que aproximam e diferenciam, no plano infraconstitucional, o contrato de arrendamento rural e o contrato de cessão de exploração, relevaram seguramente no âmbito da modelação por que sucessivamente optaram os legisladores de 98 e 2014: ao contrário da orientação subjacente à Lei 68/93 - que, priorizando a preservação do tipo de atividade tradicionalmente exercida sobre o baldio, acabou por limitar a possibilidade da sua temporária cedência aos prédios rústicos já afetos à exploração de um determinado fim -, a opção subjacente à Lei 72/2014 parece ter sido a de maximizar as possibilidades de rendibilização daqueles bens comunitários, incluindo para isso soluções negociais mais abrangentes, suscetíveis de permitir a (re)ativação dos prédios rústicos inativos ou conjunturalmente abandonados.

Ora, parece seguro que, em face da proibição constitucional de supressão ou depreciação do subsetor comunitário de propriedade dos meios de produção, a contraposição que verdadeiramente releva é aquela que permita divisar um diferente posicionamento de cada uma das modalidades contratuais agora admitidas perante a natureza comunitária ou cívica da titularidade dominial e/ou a posse útil, também constitucionalmente garantida, de tais bens comunitários.

O que interessa verdadeiramente ter em conta é que, seja qual for a modalidade contratual a que em concreto se recorra, o regime legal que especificamente lhe corresponda carecerá sempre de acomodar-se às normas constantes do próprio regime constante da Lei dos Baldios, em particular àquelas que, dispondo sobre as condições em que a respetiva exploração pode ser cedida a terceiros, condicionam a possibilidade de formação, contra os próprios compartes, do referido direito de sequela.

E assim se verifica que a inconstitucionalidade apontada em ambos os pedidos, não podendo radicar na exclusiva consideração das diferenças inerentes às duas modalidades contratuais em confronto, se encontra em última análise dependente da eventual insuficiência dos termos em que, por oposição ao regime originariamente constante da Lei 68/93, a Lei 72/2014 tornou possível o recurso a cada uma delas.

Tal perspetiva, apesar de minimizar a pertinência da contraposição das aludidas espécies contratuais é, no entanto, conforme se verá de seguida, aquela em que acaba por radicar o essencial dos argumentos invocados pelos próprios requerentes.

26 - Para concluir pela incompatibilidade entre o regime atualmente constante do artigo 10.º da Lei 68/93 e a garantia consagrada no artigo 84.º, n.º 2, alínea b), da Constituição, os requerentes alegam que, ao contrário dos contratos de cessão de exploração já anteriormente previstos - cuja celebração, para além de constituir uma "medida transitória", apenas era possível «nos casos de utilidade pública, e sempre com a salvaguarda do interesse dos compartes e segundo os limites e fins a que o baldio se destina[va]» (Processo 251/2015) -, o arrendamento é agora admitido «independentemente da forma da utilização e do uso antecedente do respetivo baldio» (Processo 337/2015), o que, convertendo a disposição do baldio numa medida de «livre disposição, não apenas por necessidade de povoamento ou exploração florestal, [...] mas por qualquer motivo» (Processo 251/2015), conduz à subversão do «princípio da gestão dominial comunitária» (Processo 337/2015).

Sendo estes, no essencial, os pressupostos em que assenta a conclusão, defendida por ambos os grupos de requerentes, de que a mutação do regime de uso e fruição dos baldios, decorrente das alterações introduzidas pela Lei 72/2014, atenta contra o «princípio de coexistência dos três setores de propriedade de meios de produção, salvaguardados pela Constituição», importa começar por verificar se e em que medida terão tais pressupostos efetiva correspondência ou expressão no regime atualmente constante dos artigos 10.º, 15.º, n.º 1, alínea f), e 21.º, alínea f), da Lei 68/93.

27 - Tal como sucedia no âmbito da versão originária da Lei 68/93, a celebração de contratos de arrendamento e/ou de cessão de exploração tendo por objeto o gozo e a fruição dos baldios apenas poderá ocorrer, no âmbito das alterações introduzidas pela Lei 72/2014, por decisão dos próprios membros da comunidade local, mais propriamente por deliberação aprovada por maioria qualificada dos membros presentes na assembleia de compartes, à qual competirá assim, enquanto órgão de representação máxima de tal coletividade, a decisão, quer de celebrar qualquer das duas modalidades contratuais legalmente admitidas, quer ainda sobre os termos em que, intervindo como contraparte, a comunidade local deverá em concreto contratar [cf. artigo 15.º, n.º 1, alínea j)].

Na medida em que não poderá ser heteronomamente imposta, havendo antes de resultar de uma decisão, livremente tomada pela própria coletividade-referência através dos seus órgãos de representação e gestão, a cedência do gozo dos terrenos baldios por meio da celebração, seja de um contrato de arrendamento, seja de um contrato de cessão de exploração, constituirá, não o reverso ou a antítese do poder de autodisposição e de autoadministração constitucionalmente assegurado às comunidades locais, mas, pelo contrário, uma sua efetiva e verdadeira manifestação: é justamente no âmbito do exercício dos poderes de autogoverno que legalmente se lhe encontram atribuídos (cf. artigo 11.º, n.os 1 e 2, da Lei 68/93, na redação conferida pela Lei 72/2014) que os membros da coletividade podem optar pela cedência temporária e onerosa do gozo do baldio através do arrendamento ou da cessão da sua exploração, rentabilizando-o desse modo no próprio interesse da coletividade, na medida em que as receitas assim obtidas revertem em proveito exclusivo do próprio baldio e das respetivas comunidades locais (cf. artigo 11.º-A, n.º 1, da Lei 68/93, na versão resultante da Lei 72/2014)

O poder deliberativo para tal efeito conferido à assembleia de compartes é, além do mais, um poder legalmente condicionado, no sentido em que, conforme resulta da redação da norma contida na alínea j) do n.º 1 do artigo 15.º da Lei 68/93, a tal assembleia apenas é consentido deliberar sobre o arrendamento ou a cessão de exploração de direitos sobre baldios nos termos previstos na própria Lei dos Baldios, mormente naqueles que constam do respetivo artigo 10.º

Por isso, a cedência a terceiros do uso e fruição dos baldios através da celebração de um contrato de arrendamento ou de cessão de exploração apenas poderá ser decidida pela assembleia de compartes: i) se essa cedência tiver por finalidade o aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais (n.º 1 do artigo 10.º); e ii) mediante a salvaguarda da sua tradicional utilização pelos compartes, de acordo com os usos e costumes locais (n.º 3 do artigo 10.º).

Verifiquemos cada destes pressupostos.

28 - De acordo com a versão original do n.º 1 do artigo 10.º da Lei 68/93, a cessão de exploração dos baldios, apesar de não poder incidir sobre as partes do baldio com aptidão para aproveitamento rural, só facultativamente tinha por finalidade o povoamento ou a exploração florestal: de acordo com a formulação legal então adotada, os baldios poderiam ser objeto de «cessão de exploração, nomeadamente para efeitos de povoamento ou exploração florestal», indicando o uso do advérbio "nomeadamente" - de uso habitual nas enumerações exemplificativas - que a cessão poderia ocorrer ainda que o objetivo tido em vista fosse outro.

Por força do n.º 1 do artigo 10.º da Lei 68/93, na versão resultante da Lei 72/2014, a possibilidade de cedência do uso e fruição dos baldios, seja através do arrendamento ou da cessão da sua exploração, encontra-se legalmente condicionada quanto à sua finalidade, apenas sendo admitida quando esta se relacionar com o aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais.

A mutação subjacente à nova redação conferida ao n.º 1 do artigo 10.º da Lei 68/93 não representa, assim, em matéria de cedência do uso e fruição dos baldios, a passagem de um regime condicionado à verificação de "motivos de ordem pública" a um regime de livre disposição, independentemente da natureza ou do tipo de motivo: não só o regime anterior não confinava a possibilidade de cedência do gozo dos baldios ao povoamento e à exploração florestal, excluindo todo e qualquer outro propósito ou finalidade, como o regime atualmente vigente não passou a acolher para aquele efeito todo e qualquer intuito ou motivo, o que resulta da conexão funcional com o aproveitamento dos recursos dos espaços rurais dos baldios a que, mesmo tratando-se de arrendamentos para outros fins, se encontra sujeita a celebração de qualquer uma das modalidades contratuais admitidas.

29 - A mesma falta de correspondência aos efetivos termos do regime resultante das alterações introduzidas pela Lei 72/2014 se verifica quanto à alegação de que o arrendamento é admitido «independentemente da forma da utilização e do uso antecedente do respetivo baldio», com quebra da salvaguarda, anteriormente assegurada «do interesse dos compartes, segundo os limites e fins a que o baldio se destina[va]».

Da proibição de o contrato de arrendamento, tal como o de cessão de exploração, vir a ser celebrado em termos que prejudiquem a tradicional utilização do baldio pelos compartes de acordo com usos e costumes locais, constante do atual n.º 3 do artigo 10.º da Lei 68/93 decorre, com efeito, uma relevante limitação à possibilidade de cedência do uso e fruição daqueles terrenos, operante no sentido de se encontrar imperativamente excluída a hipótese de vir a integrar o objeto da cedência a parte do prédio que, segundo as regras consuetudinárias, esteja destinada a ser diretamente fruída pelos membros da comunidade local, ou, pelo menos, quando assim se não entenda, no sentido de obrigar o locatário a suportar esse tipo de fruição no prédio locado e limitando, nessa medida, o direito de sequela que para o mesmo advém da sua equiparação ao possuidor pelo artigo 1037.º, n.º 2 do Código Civil.

Como quer que tal limitação seja entendida - isto é, como limitação ao âmbito do objeto do contrato ou como limitação ao âmbito do direito que através dele se constitui -, encontrar-se-á em qualquer caso assegurada, por força da parte final do n.º 3 do artigo 10.º da Lei 68/93, na redação conferida pela Lei 72/2014, a subsistência da possibilidade de fruição comunitária dos baldios nos termos em que a mesma consuetudinariamente se formou, uma vez que se trata aqui de um limite decorrente de norma especial e imperativa, que, como tal, se sobrepõe ao que em contrário possa resultar da disciplina legalmente fixada, em geral, para qualquer uma das modalidades contratuais agora admitidas.

Justamente porque ambas as modalidades contratuais se encontram sujeitas a tal limitação, a circunstância, acima assinalada, de a figura do arrendamento se encontrar, quando confrontada com a da cessão da exploração, menos vocacionada para assegurar a manutenção do exato tipo de atividade tradicionalmente exercida através do baldio ou a partir dele não é determinante de uma apreciação diferenciadora: essa é uma diferença que diz apenas respeito à espécie de atividade que o locatário é admitido a exercer sobre a coisa locada, em nada interferindo com o tipo de utilização que a lei mantém acessível aos compartes de acordo com os usos e costumes locais.

Em qualquer uma das hipóteses agora admitidas, encontra-se, em suma, assegurada a subsistência da possibilidade de exercício pelos membros da coletividade local dos poderes de facto correspondentes à consuetudinária forma de fruição do baldio - o que, associado à natureza autodispositiva do ato de cedência, constitui condição simultaneamente necessária e suficiente para assegurar a preservação da posse útil da comunidade de habitantes sobre aqueles meios de produção.

30 - Dos argumentos expendidos pelos requerentes subsiste, assim, o relativo à transitoriedade do direito de gozo que se forma ou constitui através de cada uma das espécies contratuais admitidas, argumento tornado relevante a partir da eliminação da referência à duração máxima da cedência do baldio, incluída no regime originariamente constante da Lei 68/93.

No regime originariamente constante da Lei 68/93 - que apenas admitia a cedência temporária do gozo dos baldios através da cessão de exploração -, esta poderia efetivar-se, de acordo com o n.º 4 do respetivo artigo 10.º, «por períodos até 20 anos, sucessivamente prorrogáveis por períodos até igual tempo».

Com as alterações introduzidas pela Lei 72/2014, tal referência foi eliminada, passando a aplicar-se, na ausência de qualquer outra indicação sobre os prazos, mínimo e máximo, de duração do contrato, o regime previsto para cada uma das duas modalidades negociais.

Embora tanto o arrendamento como a cessão de exploração constituam, enquanto modalidades da locação, formas de cedência não definitiva mas temporária do gozo da coisa locada, os prazos, mínimo e máximo, a que se encontram sujeitos não são iguais.

Encontrando-se tanto o contrato de cessão de exploração, como o de arrendamento do baldio para fins não agrícolas ou florestais, legalmente equiparados, para efeitos de determinação do regime aplicável, ao contrato de arrendamento urbano para fins não habitacionais (artigos 1109.º e 1108.º, do Código Civil, respetivamente), são-lhes por isso aplicáveis, para além do regime geral da locação, as normas constantes dos artigos 1110.º a 1113.º, do Código Civil, com as necessárias adaptações.

De acordo com o disposto no artigo 1110.º, n.º 1, a duração da cedência poderá ser livremente fixada pelas partes sob qualquer uma das aludidas modalidades contratuais, encontrando-se apenas sujeita ao prazo máximo de 30 anos fixado para o contrato de locação no artigo 1025.º do Código Civil. Inexistindo qualquer duração mínima legalmente estabelecida, esta poderá, ao contrário, ser livremente determinada.

O contrato de arrendamento rural, por seu turno, encontra-se sujeito aos prazos de duração fixados pelo Decreto-Lei 294/2009, de 13 de outubro, os quais variam em função da modalidade de que em concreto se trate. Assim: i) os arrendamentos agrícolas são celebrados por um prazo mínimo de sete anos, renovando-se automaticamente por sucessivos períodos de, pelo menos, sete anos, enquanto não forem denunciados por qualquer das partes; ii) os arrendamentos florestais não podem ser celebrados por prazo inferior a sete nem superior a setenta anos, não se renovando automaticamente no termo do prazo do contrato salvo cláusula em contrário; iii) os arrendamentos de campanha não podem ser celebrados por prazo superior a seis anos, não se renovando automaticamente no termo do prazo do contrato salvo cláusula em contrário.

Da confrontação dos regimes a que acaba de aludir-se resulta, assim, que, enquanto o contrato de cessão de exploração pode ter a duração mínima que as partes entenderem fixar-lhe, a duração do contrato de arrendamento rural não poderá ser inferior a sete anos se se tratar de arrendamento para fins agrícolas ou de exploração florestal, prazo esse que decresce para seis anos se se tratar de arrendamento para exploração de uma ou mais culturas de natureza sazonal.

31 - Considerado o disposto no artigo 1024.º, n.º 1, do Código Civil, a diferença de regimes a que, quanto à sua duração mínima, se encontram sujeitos os contratos de cessão de exploração e de arrendamento rural é juridicamente relevante no plano infraconstitucional: embora a locação constitua, para o locador, um ato de administração ordinária, essa qualificação decairá quando o contrato for celebrado por prazo superior a seis anos, passando o contrato a ser havido como ato de disposição.

Mas, mesmo nesse plano, a distinção releva fundamentalmente para a delimitação dos poderes de gestão patrimonial dos administradores de bens alheios (cf. Carlos Mota Pinto, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2005, p. 406) - aspeto do regime que aqui não está em causa. De resto, uma vez que o juízo de constitucionalidade não se encontra condicionado pelas qualificações pré-estabelecidas no plano infraconstitucional, a diferenciação que assim se estabelece entre as duas modalidades contratuais admitidas a partir da regra contida no artigo 1024.º do Código Civil não é, todavia, determinante de um juízo divergente: o que, do ponto de vista da proibição constitucional de supressão ou depreciação do subsetor comunitário dos meios de produção, verdadeiramente interessa é decidir se o período mínimo legalmente imposto à cedência do gozo do baldio a terceiros se apresenta de tal forma excessivo que passe a ter dificuldade em conviver, senão com o princípio da inalienabilidade, pelo menos com a preservação da liberdade contratual da comunidade de habitantes em matéria de destinação do baldio.

Assim colocada a questão, a circunstância de o prazo mínimo exceder em um ano aquele que no plano infraconstitucional é condição da possibilidade de considerar o ato de locação como de mera administração não é relevante: não havendo lugar, conforme se viu, à renovação automática e forçada do contrato de arrendamento rural - mesmo nos arrendamentos agrícolas, a renovação, apesar de automática, nunca é forçada, conservando qualquer das partes, designadamente a comunidade de habitantes, a faculdade de oposição à renovação -, a transitoriedade que a lei lhe associa é ainda uma transitoriedade compatível com a proibição constitucional de esvaziamento do setor comunitário dos meios de produção.

Em suma: ao dispor que a exploração dos baldios (também) mediante arrendamento (n.º 1) deverá destinar-se ao «aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais» e «efetivar-se [...] sem prejuízo da tradicional utilização do baldio pelos compartes, de acordo com os usos e costumes locais» (n.º 3) apenas pelo tempo que resultar do período de vigência do contrato de acordo com o convencionado pelas partes dentro dos limites resultantes do regime legal em concreto aplicável (n.º 4), o artigo 10.º da Lei 68/93, na versão resultante da Lei 72/2014, não põe em causa a natureza comunitária ou cívica do domínio e da posse útil incidente sobre aqueles bens. Ao invés, predispõe um mecanismo de rentabilização do próprio baldio, colocado ao dispor da própria comunidade para ser por ela livremente decidido e em concreto conformado, mecanismo esse que, para além de transitório ou precário, não exclui, além do mais, a possibilidade de fruição direta do baldio (ou parte dele) pelos habitantes da comunidade, de acordo com os usos e costumes locais.

Nem em si mesma considerada, nem quando conjugada com a concomitante reconfiguração do conceito de comparte, a possibilidade de arrendamento do baldio se apresenta, em conclusão, nos termos em que é admitida pelo artigo 10.º da Lei 68/93, qualitativamente diferenciável, ao ponto de poder justificar, perante a garantia constante do artigo 82.º, n.º 4, aliena b), da Constituição, um juízo de inconstitucionalidade.

32 - A terceira e última alteração cuja constitucionalidade é contestada pelos requerentes do pedido formulado no âmbito do Processo 337/2015 prende-se com a possibilidade, introduzida pela Lei 72/2014, de disponibilização dos terrenos baldios na bolsa de terras criada pela Lei 62/2012.

Tendo em vista a concretização de tal possibilidade, a Lei 72/2014 ampliou as competências atribuídas à assembleia de compartes e, por força do aditamento ao n.º 1 do artigo 15.º da sua atual alínea s), nas mesmas incluiu o poder de «deliberar sobre a disponibilização de terrenos do baldio na bolsa de terras criada pela Lei 62/2012, de 10 de dezembro», ainda que fazendo depender a eficácia de tal deliberação da sua aprovação por maioria qualificada de dois terços dos membros presentes (n.º 2). Em consonância com o novo poder deliberativo assim atribuído à assembleia de compartes, a competência legalmente cometida ao conselho diretivo foi objeto de ampliação simétrica, passando a contemplar, por força da nova redação conferida à alínea f) do artigo 21.º da Lei 68/93, a faculdade de «propor à assembleia de compartes a disponibilização de terrenos do baldio na bolsa de terras criada pela Lei 62/2012, de 10 de dezembro».

Para além de poder resultar de deliberação da assembleia de compartes, a disponibilização de terrenos do baldio na bolsa de terras criada pela Lei 62/2012, foi incluída ainda no conjunto dos poderes de destinação legalmente atribuídos à(s) juntas(s) de freguesia no âmbito do regime relativo à utilização precária do baldio. Assim, por força da nova redação conferida ao n.º 1 do artigo 27.º da Lei 72/2014, «decorridos três anos sem que os baldios estejam a ser usados, fruídos ou administrados» nos termos da alínea c) do artigo 26.º - isto é, «nomeadamente para fins agrícolas, florestais, silvopastoris ou para outros aproveitamentos dos recursos dos respetivos espaços rurais, de acordo com os usos e costumes locais e as deliberações dos órgãos representativos dos compartes» -, à junta ou juntas de freguesia em cuja área se localizem passa a caber a faculdade, já não apenas de utilizá-los diretamente ou ceder a terceiros a sua exploração precária - conforme sucedia no âmbito da versão originariamente constante da Lei 68/93 -, mas ainda de disponibilizá-los na bolsa de terras criada pela Lei 62/2012, de 10 de dezembro, «mantendo-se estas situações enquanto os compartes não deliberarem regressar ao uso e normal fruição dos baldios».

33 - A bolsa nacional de terras para utilização agrícola, florestal ou silvopastoril, designada por «Bolsa de terras», foi criada pela Lei 62/2012, tendo como objetivo, de acordo o respetivo artigo 3.º, «facilitar o acesso à terra através da disponibilização de terras, designadamente quando as mesmas não sejam utilizadas, e, bem assim, através de uma melhor identificação e promoção da sua oferta» (n.º 1).

A bolsa de terras é gerida, nos termos previstos no artigo 4.º da Lei 62/2012, pelo Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, através da Direção Geral da Agricultura e Desenvolvimento Rural (DGADR), sendo esta a entidade competente para celebrar, em nome do Estado, contratos que tenham por objeto a cedência a terceiros de prédios disponibilizados na bolsa de terras.

Assentando nos "princípios da universalidade e da voluntariedade" (cf. artigo 3.º, n.º 3), a bolsa de terras «disponibiliza para arrendamento, venda ou para outros tipos de cedência as terras com aptidão agrícola, florestal e silvopastoril»: i) do domínio privado do Estado, das autarquias locais e de quaisquer outras entidades públicas [artigo 3.º, n.º 2, alínea a)]; ii) pertencentes a entidades privadas [cf. artigo 3.º, n.º 2, alínea b)]; ou iii) integradas nos baldios, nos termos previstos na Lei 68/93, na versão resultante das alterações introduzidas pela Lei 72/2014 (artigos 2.º, n.º 2, 8.º, n.º 1, e 14.º, n.º 1).

No que aos baldios diz concretamente respeito, a possibilidade da sua disponibilização na bolsa de terras, para além de se encontrar desde logo sujeita aos limites resultantes da própria Lei 68/93, alterada pela Lei 72/2014 (cf. artigo 8.º, n.º 1), segue, com as necessárias adaptações, o regime previsto para a disponibilização de terras privadas, concretizando-se, como voluntária que é, através da celebração de contrato com a entidade gestora da bolsa de terras, contrato esse que, devendo observar o modelo para o efeito aprovado por portaria, conterá expressamente as condições, os direitos e as obrigações das partes, bem como as causas e os efeitos da cessação do contrato (cf. artigo 5.º, n.os 3 a 7, aplicável ex vi do artigo 8.º, n.º 2).

Estando sujeita, tal como a disponibilização na bolsa, aos limites decorrentes do regime constante da Lei 68/93, alterada pela Lei 72/2014 (cf. artigo 14.º, n.º 1), a cedência a terceiros do baldio disponibilizado segue, com as necessárias adaptações, o procedimento previsto para a cedência de terras privadas, efetuando-se, assim, através da intervenção do respetivo proprietário - no caso, a comunidade local, através dos seus órgãos representativos -, que deverá dar conhecimento da cessão, no prazo de quinze dias a contar da mesma, à entidade gestora da bolsa de terras (cf. artigo 11.º, aplicável ex vi do artigo 14.º, n.º 2).

34 - Do enquadramento a que, de acordo com as normas legais e regulamentares analisadas, se encontra sujeita a integração dos baldios na bolsa de terras gerida pela DGADR, a primeira nota a salientar é a de que, não só a própria disponibilização do baldio, como a cedência que com essa disponibilização se tenha em vista, apenas poderão ocorrer dentro dos limites que resultam do regime definido na Lei 68/93, com as alterações introduzidas pela Lei 72/2014.

Assim, para além de a disponibilização se encontrar dependente de decisão nesse sentido tomada pela própria comunidade de habitantes no exercício dos poderes de autogestão e de autoadministração que constitucionalmente se lhe encontram atribuídos, a cedência a terceiros que por essa via venha a proporcionar-se apenas poderá efetivar-se nos termos que atualmente constam do artigo 10.º da Lei dos Baldios - isto é, mediante arrendamento ou cessão de exploração, com vista ao «aproveitamento dos recursos dos respetivos espaços rurais» (n.º 1) e «sem prejuízo da tradicional utilização do baldio pelos compartes, de acordo com os usos e costumes locais» (n.º 3).

Não sofrendo o regime previsto na Lei 68/93 qualquer espécie de derrogação pelo facto de a cedência do baldio ocorrer através da intermediação proporcionada pela disponibilização do terreno na bolsa de terras - o que é sucessivamente afirmado no âmbito, tanto da Lei 62/2012 (artigos 2.º, n.º 2, 8.º, n.º 1, e 14.º, n.º 1), como do Regulamento aprovado pela Portaria 197/2013 (cf. artigos 10.º, n.º 1, e 13.º, n.º 1) -, a possibilidade de venda, apesar de em geral admitida no âmbito da Lei 62/2012 (cf. artigo 3.º, n.º 2), encontra-se à partida excluída, mantendo-se assim plenamente operante o princípio da inalienabilidade e da proibição de apropriação ou apossamento daqueles bens comunitários.

Por outro lado, resulta da concretização proporcionada, quer pelas normas regulamentares aplicáveis, quer pelo conjunto das cláusulas contratuais gerais incluídas no modelo de contrato de disponibilização dos prédios na bolsa aprovado pela referida Portaria, que tal contrato não atribui à entidade gestora - a DGADR - qualquer poder de conformação autónoma dos concretos termos em que a cedência dos prédios disponibilizado na bolsa pode vir a ocorrer: quer o tipo de cedência tida em vista para o baldio, quer as condições em que a mesma deva efetivar-se são, assim, livremente decididos pelo cedente e pelo cessionário dentro dos limites consentidos pela disciplina legal aplicável a cada uma das modalidades negociais admitidas, intervindo a entidade gestora como simples facilitadora ou intermediária, sem qualquer faculdade de determinar, contra a vontade da coletividade local ou na ausência dela, a destinação do baldio disponibilizado na bolsa de terras.

Acresce, por último, que a própria relação contratual que, por via da disponibilização do balido, se estabelece entre a coletividade local e a entidade gestora da bolsa de terras é, para além de temporária - tem a duração de um ano -, livremente revisível pela entidade cedente, não apenas por denúncia do contrato para o termo do prazo, mas a todo o tempo, independentemente do motivo, mediante comunicação aÌ entidade gestora com uma antecedência não inferior a quinze dias contados da data pretendida para a cessação do contrato.

De tudo isto resulta, em suma, que a disponibilização do baldio na bolsa nacional de terras criada pela Lei 62/2012, nos termos previstos nos artigos 15.º, n.º 1, alínea s), 21.º, alínea f), e 27.º, todos da Lei 68/93, na versão resultante da Lei 72/2014, não origina qualquer espécie de dissociação entre a comunidade local e a destinação do baldio: os poderes de afetação daquele bem comunitário permanecem inteiramente na titularidade da coletividade-referência, não só na configuração que a esta corresponda aquando da disponibilização do baldio, mas em todas as configurações que tal coletividade venha sucessivamente a assumir, em resultado da renovação a que, por via da integração, agora automática, das gerações vindouras, se encontra permanentemente sujeita.

III - Decisão

Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade:

a) das normas constantes dos artigos 1.º, n.os 3 e 4, 4.º, n.º 2, alínea d), 10.º, n.º 1, 15.º, n.º 1, alíneas j) e s), e n.º 2, 21.º, alínea f), e 27.º, todos da Lei 68/93, de 4 de setembro, na redação conferida pelo artigo 2.º da Lei 72/2014, de 2 de setembro;

b) da norma constante do artigo 8.º da Lei 72/2014, no segmento em que procede à revogação da alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º, da alínea b) do artigo 21.º e do artigo 33.º, todos da Lei 68/93, de 4 de setembro, na sua versão originária.

Lisboa, 17 de novembro de 2015. - João Pedro Caupers - Maria José Rangel de Mesquita - Pedro Machete - Lino Rodrigues Ribeiro - Fernando Vaz Ventura - Carlos Fernandes Cadilha - João Cura Mariano - Ana Guerra Martins - Maria Lúcia Amaral - Teles Pereira - Maria de Fátima Mata-Mouros - Catarina Sarmento e Castro - Joaquim de Sousa Ribeiro.

209210456

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2370650.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1976-01-19 - Decreto-Lei 39/76 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Define baldios e promove a sua entrega às comunidades que delas venham a fruir.

  • Tem documento Em vigor 1976-01-19 - Decreto-Lei 40/76 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Declara anuláveis a todo o tempo os actos ou negócios jurídicos que tenham como objecto a apropriação de baldios ou parcelas de baldios por particulares, bem como todas as subsequentes transmissões.

  • Tem documento Em vigor 1989-04-17 - Acórdão 325/89 - Tribunal Constitucional

    Declara inconstitucionais, por violação do diposto no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), em conjugação com os artigos 80.º, alínea e), e 90.º, n.º 1, da Constituição da República, as normas constantes dos artigos 1.º, n.º 2 (na parte questionada), 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º do Decreto n.º 132/V, aprovado pela Assembleia da República para ser promulgado como lei.

  • Tem documento Em vigor 1993-09-04 - Lei 68/93 - Assembleia da República

    APROVA A LEI DOS BALDIOS, PROCEDENDO A DEFINIÇÃO DA SUA NATUREZA, REGRAS DE USO E FRUIÇÃO, GESTÃO, EXTINÇÃO, COMPETENCIA JURISDICIONAL DE QUE DEPENDEM, RECENSEAMENTO E ADMINISTRAÇÃO. ESTE DIPLOMA SERA REGULAMENTADO NO PRAZO DE 90 DIAS A CONTAR DA DATA DA ENTRADA EM VIGOR DO MESMO.

  • Tem documento Em vigor 1997-07-30 - Lei 89/97 - Assembleia da República

    Altera a Lei dos Baldios.

  • Tem documento Em vigor 1999-03-22 - Lei 13/99 - Assembleia da República

    Aprova a nova lei do recenseamento eleitoral e publica em anexo os modelos dos impressos nela previstos.

  • Tem documento Em vigor 2007-02-05 - Lei 7/2007 - Assembleia da República

    Cria o cartão de cidadão e rege a sua emissão e utilização.

  • Tem documento Em vigor 2008-08-27 - Lei 47/2008 - Assembleia da República

    Procede à quarta alteração à Lei n.º 13/99, de 22 de Março (estabelece o novo regime jurídico do recenseamento eleitoral), e consagra medidas de simplificação e modernização que asseguram a actualização permanente do recenseamento. Republica a citada lei.

  • Tem documento Em vigor 2009-10-13 - Decreto-Lei 294/2009 - Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

    No uso da autorização concedida pela Lei n.º 80/2009, de 14 de Agosto, estabelece o novo regime do arrendamento rural.

  • Tem documento Em vigor 2012-05-30 - Lei 22/2012 - Assembleia da República

    Aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica.

  • Tem documento Em vigor 2012-12-10 - Lei 62/2012 - Assembleia da República

    Cria a bolsa nacional de terras para utilização agrícola, florestal ou silvopastoril, designada por «Bolsa de terras», e estabelece o seu objetivo e funcionamento, assim como a disponiblização e cedência de prédios.

  • Tem documento Em vigor 2013-01-28 - Lei 11-A/2013 - Assembleia da República

    Procede à reorganização administrativa do território das freguesias.

  • Tem documento Em vigor 2014-09-02 - Lei 72/2014 - Assembleia da República

    Procede à segunda alteração à Lei n.º 68/93, de 4 de setembro, que republica - estabelece a Lei dos Baldios -, à alteração ao Estatuto dos Benefícios Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de julho, e à nona alteração ao Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro.

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