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Acórdão 325/89, de 17 de Abril

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Sumário

Declara inconstitucionais, por violação do diposto no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), em conjugação com os artigos 80.º, alínea e), e 90.º, n.º 1, da Constituição da República, as normas constantes dos artigos 1.º, n.º 2 (na parte questionada), 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º do Decreto n.º 132/V, aprovado pela Assembleia da República para ser promulgado como lei.

Texto do documento

Acórdão 325/89 Processo 71/89

Acordam, em sessão plenária, no Tribunal Constitucional:

I - O Presidente da República requereu ao Tribunal Constitucional em 13 de Março corrente, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição da República e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei 28/82, de 15 de Novembro, a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º do Decreto 132/V, da Assembleia da República - que versa sobre o regime jurídico dos baldios -, entrado, como do registo se vê, em 9 do mesmo mês na Presidência da República para efeito de promulgação como lei.

Fundamentando o requerimento, diz o Presidente da República:

1 - Independentemente do juízo político de fundo que se possa fazer relativamente ao diploma em apreço, e não pondo em causa a necessidade de alteração do regime legal dos baldios, suscitam-se as seguintes dúvidas.

Refere o n.º 2 do artigo 1.º do diploma em apreço que os terrenos baldios «[...] integram bens do domínio público da freguesia ou das freguesias em que se localizam [...]».

Opera-se, assim, a integração dos baldios na titularidade exclusiva da freguesia ou freguesias em que se localizam, o que parece violar o disposto no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, em conjugação com os artigos 80.º, alínea e), e 90, n.º 1, na medida em que por esta via se pode produzir uma redução do subsector público comunitário, a qual, a verificar-se, contrariará o princípio constitucional do desenvolvimento da propriedade social.

2 - O n.º 1 do artigo 2.º, bem como o artigo 5.º do decreto em questão, ao cometerem a «administração» dos baldios às juntas de freguesia e a regulamentação da sua utilização comunitária às assembleias de freguesia, parecem violar o artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, que consagra o modo social de gestão comunitário como o único aplicável para esta área do sector público.

3 - Destas dúvidas resulta ainda a possibilidade de se questionarem os seguintes preceitos do diploma em apreciação:

3.1 - Artigos 2.º, n.os 2, 3 e 4, 3.º, n.os 1 e 2, e 11.º, ao configurarem a faculdade de delegação dos poderes de gestão dos baldios pelas assembleias de freguesia, o que pode violar o artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, ao admitir um modo social de gestão diferente do comunitário;

3.2 - O artigo 6.º, ao prever a possibilidade de afectação, total ou parcial, dos baldios pela junta de freguesia a outros fins que não os de uso e fruição comunitários pelas populações, pode estar a violar também o artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, ao atribuir eventualmente a posse útil à administração local;

3.3 - O artigo 8.º, ao consagrar a possibilidade de, por acto administrativo do Governo, os terrenos baldios virem a ser desafectados e alienados, parece também violar o disposto no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, na medida em que atribui poderes de disposição e gestão nesta matéria a um órgão de administração pública, logo do subsector público estadual lato sensu.

O artigo 9.º, n.os 1 e 2, prescreve idêntica atribuição de poderes de gestão à Administração Pública;

3.4 - O artigo 9.º, n.º 3, ao atribuir uma parte das receitas resultantes da utilização e exploração dos baldios a órgãos da Administração Pública, bem como o artigo 4.º, n.º 3, ao prever a entrega da totalidade do saldo da conta a esses mesmos órgãos, parecem configurar uma nova violação ao artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, na medida em que pressupõem a atribuição da posse útil a entidades diferentes das comunidades locais.

4 - Nestes termos, requeiro a apreciação da conformidade constitucional dos artigos 1.º, n.º 2, 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º do Decreto 132/V, acima identificado - disposições que poderão atingir toda a sua economia interna -, com a norma do artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição da República.

Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os efeitos do artigo 54.º da Lei 28/82, limitou-se ele a oferecer o merecimento dos autos.

Entretanto, o Secretariado dos Baldios do Distrito de Viseu enviou ao Tribunal dois pareceres sobre o assunto - o primeiro dos quais subscrito pelo Prof. J. J.

Gomes Canotilho -, pedindo para serem tomados em consideração, tendo sido juntos aos autos por despacho do relator.

II - O Decreto 132/V propõe-se instituir um novo regime legal dos baldios, substituindo o que hoje consta dos Decretos-Leis n.os 39/76 e 40/76, de 19 de Janeiro (com alterações dos Decretos-Leis n.os 205/76, de 20 de Março, e 702/76, de 30 de Setembro), vulgarmente conhecidos como «leis dos baldios», os quais são expressamente revogados, «bem como todas as normas que regulam a mesma matéria desta lei» (artigo 14.º do decreto).

Os referidos diplomas de 1976 visaram, por um lado, «devolver» os baldios ao «uso, fruição e administração dos respectivos compartes» (artigo 3.º do Decreto-Lei 39/76) - investindo a sua administração na «assembleia de compartes» e no «conselho directivo» por aquela eleito (artigos 6.º e 9.º do mesmo diploma) - e, por outro lado, recuperar para as «respectivas comunidades» os baldios «indevidamente apropriados por particulares» (preâmbulo do Decreto-Lei 40/76).

O presente Decreto 132/V, no essencial, ao mesmo tempo que integra os baldios no «domínio público da freguesia ou freguesias em que se localizam», transfere para os órgãos da freguesia a administração dos baldios, fazendo derivar desses dois princípios os demais aspectos do regime jurídico dos baldios.

Importa dar conta do conteúdo do decreto em causa, transcrevendo os preceitos questionados no pedido.

No artigo 1.º, depois de no n.º 1 se definir como baldios «os terrenos usados e fruídos comunitariamente por residentes em uma ou mais freguesias, ou parte delas» (no que se repete o que actualmente consta do artigo 1.º do Decreto-Lei 39/86), dispõe-se que:

2 - Os terrenos baldios são excluídos do comércio jurídico e integram bens do domínio público da freguesia ou das freguesias em que se localizam e não são individualmente apropriáveis por qualquer forma ou título, incluindo a usucapião.

O artigo 2.º preceitua:

1 - A administração dos baldios de uma freguesia compete à respectiva junta de freguesia, cabendo à assembleia de freguesia elaborar regulamentos destinados a regular a sua utilização comunitária.

2 - Por proposta da junta de freguesia, a assembleia de freguesia pode delegar a gestão dos baldios numa comissão eleita dos seus utentes ou em organizações que o costume fixou.

3 - Quando o baldio é tradicionalmente usado e fruído por residentes em parte de uma freguesia, e desde que mais de metade dos eleitores aí residentes o requeiram, pode a assembleia da freguesia delegar a gestão dos baldios nos seus utentes.

4 - A delegação prevista no número anterior é livremente revogável por deliberação do órgão delegante, devidamente justificada perante os utentes.

Quanto ao artigo 3.º, diz nos seus n.os 1 e 2:

1 - No caso da delegação prevista no artigo anterior, compete à assembleia de freguesia organizar a eleição da comissãos dos utentes do baldio e fixar o número dos seus membros entre o mínimo de três e o máximo de sete utentes eleitos.

2 - A eleição referida no número anterior está sujeita a ratificação pela assembleia de freguesia.

O n.º 3 do mesmo artigo acrescenta que «o presidente da junta de freguesia respectiva tem assento na comissão de utentes como membro de pleno direito».

O artigo 4.º estipula que «a comissão de utentes do baldio deve apresentar à assembleia de freguesia o plano de aplicação de receitas e prestar anualmente [...] contas da sua actividade» (n.º 1) e que «a junta de freguesia pode fiscalizar periodicamente a acção da comissão de utentes [...]» (n.º 2). É neste contexto que se insere o n.º 3, que dispõe:

3 - O saldo da conta é entregue à junta de freguesia.

Quanto ao artigo 5.º, é o seguinte o seu teor:

1 - Quando os baldios sejam usados e fruídos comunitariamente por residentes em mais de uma freguesia, a sua administração é feita em conjunto pelas respectivas juntas de freguesia, cabendo às correspondentes assembleias de freguesia regulamentar a actuação daquelas.

2 - No caso de divergência entre as assembleias de freguesia sobre a regulamentação a elaborar, cabe à assembleia municipal, ouvidas e ponderadas as divergências, bem como as razões invocadas, escolher a melhor solução, que passa a integrar os respectivos regulamentos.

3 - Se os baldios pertencerem a freguesias de diferentes municípios, a competência conferida no número anterior à assembleia municipal é atribuída à assembleia distrital, ou à assembleia da região, quando existir.

E o artigo 6.º prossegue:

1 - Os baldios não usados e fruídos comunitariamente pelas populações podem ser afectados, no todo ou em parte, pela junta de freguesia a outros fins de carácter marcadamente social e de manifesto interesse para a população da freguesia.

2 - A deliberação tomada ao abrigo do número anterior carece de aprovação da assembleia de freguesia, votada por um mínimo de dois terços dos membros em efectividade de funções, após parecer dos utentes do baldio.

3 - A deliberação tomada nos termos dos números anteriores deve ser fundamentada, com justificação clara e discriminada das razões que a determinaram e dos objectivos visados com a afectação aos fins referidos no n.º 1.

4 - A afectação referida no n.º 1 não implica a transferência da titularidade dos respectivos terrenos.

O artigo 7.º determina que «os actos e negócios jurídicos de apropriação de terrenos baldios [...] por particulares [...] são nulos» (n.º 1) e que «as apropriações baseadas em actos praticados pelas juntas de freguesia antes de 25 de Abril de 1974» só são anuláveis se preenchidos certos requisitos (n.º 2).

O artigo 8.º preceitua:

1 - Os terrenos baldios podem ser objecto de desafectação e alienação por resolução do Conselho de Ministros, sobre prévia deliberação, nos termos do artigo 6.º, da assembleia de freguesia competente, quando os mesmos se destinem a instalação de equipamentos sociais, incluindo habitação, ou de fomento turístico ou industrial, tendo em vista a criação de postos de trabalho e a fixação das populações.

2 - A construção dos equipamentos previstos no n.º 1 fica condicionada à viabilidade da sua integração em zonas urbanas já existentes ou futuras, de acordo com o plano director municipal, aprovado pelas entidades competentes.

3 - Quando o terreno não seja utilizado no prazo estabelecido na escritura, no caso de alienação, ou tenha destino diferente daquele para o qual foi concedido, voltará imediatamente a integrar o baldio, sem que haja direito a qualquer indemnização.

4 - Carecem de ratificação dos órgãos autárquicos referidos no n.º 1 deste artigo as alienações de baldios ocorridas anteriormente à data da aprovação desta lei.

Acrescenta o artigo 9.º:

1 - Os baldios constituídos por terrenos com capacidade de uso predominante não agrícola podem ser submetidos, total ou parcialmente, ao regime florestal, a requerimento das juntas de freguesia, com parecer favorável da respectiva assembleia.

2 - Compete aos serviços da administração central elaborar, em colaboração com os órgãos da autarquia local interessada, os planos de utilização e exploração dos baldios onde o Estado tenha feito investimentos de fomento florestal, podendo a junta de freguesia delegar naqueles serviços a respectiva execução e ulterior exploração da floresta.

3 - A autarquia local recebe 60% das receitas resultantes das vendas dos produtos da exploração florestal de povoamentos florestais feitos pelo Estado nos baldios da freguesia e 80% das receitas de povoamentos já existentes à data da submissão ao regime florestal.

O artigo 10.º estabelece que é da «competência dos tribunais comuns a decisão de todos os litígios que, directa ou indirectamente, tenham como objecto terrenos baldios [...]» (n.º 1) e isenta de custas as acções de «declaração de nulidade de apropriações por particulares» (n.º 2).

Estatui o artigo 11.º:

Os membros das comissões de utentes de baldios respondem pessoal e solidariamente perante os órgãos autárquicos da freguesia quando dessa gestão resultarem culposamente danos para a freguesia.

O artigo 12.º prevê para o caso das freguesias sem assembleia de freguesia, determinando que as competências a esta atribuídas pela lei serão exercidas pelos plenários de cidadãos eleitores.

O artigo 13.º prescreve que «os actuais conselhos directivos de baldios consideram-se extintos a partir da data da entrada em vigor da lei e devem prestar contas ás respectivas assembleias de freguesia no prazo de 30 dias».

O artigo 14.º, como já acima se referiu, procede à revogação dos Decretos-Leis n.os 39/76 e 40/76, «bem como de todas as normas que regulem a mesma matéria desta lei».

Finalmente, o artigo 15.º marca a entrada em vigor da lei para o dia da sua publicação.

Do conjunto destes preceitos o Presidente da República questiona aqueles que acima se deixaram enunciados e que acabam de se transcrever integralmente. Esta bem de ver, por outro lado - e nisso o texto do pedido é evolutivo -, que as questões de constitucionalidade levantadas têm a ver em primeira linha com as normas que integram os baldios no domínio público das freguesias e que entregam a estas a respectiva administração, sendo as demais normas questionadas a título derivado, na medida em que contêm um regime estruturado na base daquelas.

Com isto fica relativamente simplificada a abordagem das questões de constitucionalidade suscitadas no pedido.

Para fundamentar as dúvidas de constitucionalidade levantadas, o pedido do Presidente da República invoca, a título principal, o artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, bem como, a título complementar, o artigo 90.º, n.º 1, e o artigo 80.º, alínea e), da mesma lei fundamental.

Dispõem esses preceitos constitucionais:

Artigo 89.º

Sectores de propriedade dos meios de produção

1 - É garantida a existência de três sectores de propriedade dos meios de produção, dos solos e dos recursos naturais, definidos em função da sua titularidade e do modo social de gestão.

2 - O sector público é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas ou a comunidades, sob os seguintes modos sociais de gestão:

a) Bens e unidades de produção geridos pelo Estado e por outras pessoas colectivas públicas;

b) Bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores;

c) Bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais.

...

Artigo 90.º

Desenvolvimento da propriedade social

1 - Constituem a base do desenvolvimento da propriedade social os bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores, os bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais e o sector cooperativo.

...

Artigo 80.º

Princípios fundamentais

A organização económico-social assenta nos seguintes princípios:

...

e) Desenvolvimento da propriedade social;

...

São evidentes os pressupostos em que assenta o pedido de apreciação das questões de constitucionalidade envolvidas, podendo aqueles sintetizar-se no seguinte:

Que os baldios integram os «bens comunitários» a que se reportam as referidas normas constitucionais;

Que a qualificação dos baldios como domínio público da autarquia local freguesia e a transferência da respectiva administração para os órgãos das freguesias infringem a natureza comunitária dos baldios quanto à sua titularidade, posse útil e gestão.

As questões a analisar são, pois, as seguintes:

Se os baldios integram os «bens comunitários» a que se refere a Constituição;

Se a Constituição garante os bens comunitários como subsector público, em termos de impedir a sua aniquilação, enquanto sector de dimensão relevante;

Se a retirada dos baldios da categoria dos «bens comunitários» afecta ou não a subsistência desse subsector do sector público.

III - Para se compreender todo o alcance das normas questionadas, bem como para se precisar o sentido das normas constitucionais respeitantes aos «bens comunitários» na sua relação com os baldios, torna-se conveniente ter em conta o estado da questão à data da Constituição.

Antes da Revolução de 25 de Abril não era pacífica a qualificação e estatuto jurídico dos baldios. O Código Civil de Seabra (de 1867), apesar de um contexto doutrinário avesso às formas colectivas de propriedade, mencionava os baldios à cabeça das «coisas comuns», categoria que o Código punha a par das «coisas públicas» e das «coisas particulares». Na verdade, o artigo 279.º classificava as coisas, em relação às pessoas a quem a sua propriedade pertence, em «públicas», «comuns» e «particulares», sendo consideradas «coisas públicas» os bens do domínio público propriamente dito do Estado ou outra entidade pública (artigo 380.º), «coisas particulares», as do domínio privado de particulares ou de entidades públicas (artigo 382.º), e «coisas comuns», as coisas «não individualmente apropriadas, das quais só é permitido tirar proveito [...] aos indivíduos compreendidos em certa circunscrição administrativa ou que fazem parte de certa corporação pública» (artigo 381.º). Na categoria de coisas comuns o Código mencionava em primeiro lugar, expressamente, os baldios. Era claro que:

Os baldios eram «coisas comuns», consideradas sob o ponto de vista das pessoas a quem pertenciam;

Os baldios não integravam as «coisas públicas» nem as «coisas particulares» da freguesia ou de qualquer entidade pública.

O Código Administrativo de 1936-1940 definiu os baldios de acordo com a definição do Código Civil para as coisas comuns (artigo 388.º) e, sem nada estabelecer explicitamente quanto à sua propriedade - parecendo, assim, aceitar a qualificação que eles tinham no Código Civil -, confiou a sua administração às autarquias locais interessadas - freguesia ou município, conforme os casos (artigos 394.º e 389.º) -, permitindo também que, em certas condições, os baldios fossem considerados «dispensáveis do logradouro comum» (artigos 393.º e seguintes) e, consoante os casos, divididos e alienados a particulares (artigo 397.º) ou integrados «no domínio privado disponível do concelho ou da freguesia» (artigo 399.º).

Neste regime eram líquidos os seguintes pontos:

Que os baldios eram definidos por referência à definição das coisas comuns do Código Civil de 1867;

Que a administração dos baldios competia aos «corpos administrativos», ou seja, a órgãos das autarquias;

Que os baldios eram classificados em «paroquiais» ou «municipais» apenas para efeitos da sua administração, tendo em conta o âmbito da circunscrição dos moradores, de que o baldio constituía logradouro comum;

Que, quanto à titularidade dos baldios, a lei não a atribuía às autarquias locais em cuja circunscrição se situassem;

Que os baldios só passavam a propriedade particular das autarquias locais (ou de pessoas particulares) se «dispensados do logradouro comum» dos moradores.

O Código Civil de 1966 abandonou a classificação das coisas quanto à sua titularidade, limitando-se a dispor, a propósito da definição de coisa, que é tal «tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas», considerando-se, porém, «fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual» (artigo 202.º).

Deste preceito é lícito concluir que:

A lei renunciou a uma classificação universal das coisas quanto às pessoas a que podem pertencer;

As disposições do Código não significam necessariamente a abolição da concepção dos baldios como categoria a se (como assinalou, justamente, Rogério E. Soares, «Sobre os baldios», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, o qual sublinha logo no início do trabalho, a p. 219, que «a disposição citada não significa necessariamente, para as coisas fora da propriedade privada pura e simples, uma submissão ao regime do domínio público, pois bem pode acontecer que bens inteiramente libertos do estatuto da dominialidade tenham, por sua natureza ou por regulamentação especial, uma situação jurídica diferente do comum dos bens privados protegidos no Código»).

Doutrinalmente, as opiniões dividiam-se, quanto à natureza dos baldios, no que respeita à respectiva propriedade.

Segundo uma opinião - considerada por Rogério Soares (ob. cit., p. 295) como a «doutrina mais sufragada» entre nós -, os baldios eram «uma fortuna de propriedade comunal», pertencendo «à colectividade indivisível dos moradores vizinhos a quem está afecta a respectiva fruição». Como representante dessa doutrina dominante era expressamente citada a lição de Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, 6.ª ed., p. 221, e Anotação em o Direito, ano 94.º, pp. 136 e segs.), o qual viria contudo, posteriormente, a mudar de opinião, a partir da 9.ª edição do Manual (19...), invocando, justamente, o novo Código Civil de 1966, que, no seu entender, veio excluir a categoria de «bens comuns» (ob. cit., §§ 361 e 362).

Segundo outra opinião - defendida justamente por Rogério Soares no referido estudo (sobretudo pp. 300 e segs.) -, os baldios deveriam ser qualificados como bens do domínio particular das autarquias locais em cuja circunscrição se situassem, embora devendo ser considerados como bens sujeitos a afectação especial, ou seja, ao logradouro da comunidade de utentes, visto a «figura dos baldios ser impensável sem se atribuir uma especial consistência à posição dos utentes» (ob. cit., p. 301).

Como quer que devesse ser concebida a natureza jurídica dos baldios quanto à sua titularidade, a verdade é que, por um lado, a administração dos baldios estava legalmente entregue aos «corpos administrativos» e que, por outro lado, ao abrigo ou à margem da lei, se foram verificando alienações e apropriações de terrenos baldios por particulares. Acresce que, por via das Leis n.os 1949 e 1971, respectivamente de 15 de Fevereiro de 1937 e 15 de Junho de 1938, uma extensa área de baldios foi sujeita a regime florestal, sendo retirado o seu uso e fruição aos utentes e passando a sua administração para os competentes serviços da administração central, o que, de resto, não se fez sem resistência dos lesados, exemplarmente assumida no romance Quando os Lobos Uivam (1958), de Aquilino Ribeiro, que se tornou símbolo da resistência dos povos ao desapossamento dos baldios e dos anseios pela sua recuperação.

É neste quadro jurídico e cultural que a revolução de Abril de 1974 vem encontrar os baldios.

Com o 25 de Abril rapidamente se manifestaram as reivindicações de recuperação dos baldios por parte das respectivas populações, as quais encontravam eco, primeiro, nos textos programáticos do novo poder e, depois, no texto das leis (cf. Manuel Rodrigues, Os Baldios, Lisboa, 1988, pp. 59 e segs.).

Os diplomas de Janeiro de 1976 - as chamadas «leis dos baldios» - vieram justamente «restituir» os baldios às populações que deles haviam sido desapossadas. Operaram-se, assim, três mudanças jurídicas essenciais:

Pôs-se fim à administração dos baldios pelas autarquias locais, transferindo-a para as comunidades de compartes;

Determinou-se a restituição dos baldios de que o Estado se apossara para florestação;

Estipulou-se a recuperação dos baldios indevidamente apropriados por particulares.

Definindo os baldios como «terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas» (Decreto-Lei 39/76, artigo 1.º), as leis dos baldios de 1976 não solucionaram explicitamente a questão da propriedade dos baldios, falando apenas na restituição do seu uso, posse e administração. E tal regime era compatível, quer com uma concepção de propriedade comunitária - a posse era devolvida aos «donos» dos baldios -, quer com uma concepção de propriedade da autarquia (domínio público ou privado, não importa), com separação do seu uso, fruição e administração, embora a primeira concepção fosse a mais congruente, não apenas com o regime legal de posse, fruição e administração comunitárias, mas também com o contexto histórico e cultural da referida legislação.

A verdade é que a doutrina que se debruçou sobre o tema não hesitou em ver no novo regime dos baldios a recuperação explícita da concepção dos baldios como propriedade comunal, à maneira do Código Civil de 1867. A este propósito, um autor escreveu, de forma expressiva, que «a primeira conclusão que parece extrair-se do conjunto destes diplomas legais é que os baldios (terrenos comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas, fora do comério jurídico e insusceptíveis de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião) voltam a considerar-se coisas comuns, categoria em que estavam incluídos pelo Código Civil de 1867, mas que o actual extinguira, o que levou alguns autores a concebê-los como coisas particulares, incluídas no património da autarquia, ainda que sujeitos a especial afectação - a de suportarem certas utilizações pelos habitantes de uma dada circunscrição ou parte dela» (Manuel Lopes Rocha, «Dos baldios», in Revista da Ordem dos Advogados, ano 35.º, 1976, Setembro-Dezembro, p. 481).

IV - É neste enquadramento que é aprovada a Constituição da República de 1976, que no seu artigo 89.º passa a garantir a existência de «três sectores de propriedade dos meios de produção, dos solos e dos recursos naturais, definidos em função da sua titularidade e do modo social de gestão» (n.º 1 do referido preceito). E o n.º 2 do mesmo artigo distinguiu no sector público três subsectores, sendo um deles o dos «bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais» [artigo 89.º, n.º 2, alínea c)].

Não podem levantar-se dúvidas sérias acerca da necessária referência dos baldios à categoria constitucional dos bens comunitários, tendo sido essencialmente em vista dos baldios que se formaram os preceitos constitucionais relativos aos bens comunitários. Isso decorre naturalmente do contexto histórico da formação da parte económica da Constituição a esse respeito, da evidente ligação entre o conceito constitucional de «bens comunitários» e a definição dos baldios constante do artigo 1.º do Decreto-Lei 39/76 («terrenos comunitariamente usados e fruídos»), bem como com o conceito de «coisas comuns» do Código Civil de 1987, cuja componente principal eram justamente os baldios.

A verdade é que a identificação entre «bens comunitários» e baldios é unânime na doutrina, como coisa que não carece de demonstração, de tão evidente que é. Basta referir aqui o asserto de Jorge Miranda, para quem, «quando se está a pensar nestes bens [isto é, nos bens comunitários], está-se a pensar fundamentalmente nos baldios» (Direito da Economia, lições policopiadas, Lisboa, 1982-1983, p. 470). Do mesmo modo, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira afirmam que «o caso mais relevante [...] [de bens comunitários] é o dos baldios, precisamente devolvidos aos 'povos' após o 25 de Abril» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., vol. I, p. 426). Em suma, dizer bens comunitários é, essencialmente, dizer baldios: aquele conceito não é verdadeiramente pensável desligado destes.

No que respeita à natureza jurídica dessa categoria de bens, a referência a «bens comunitários» com posse útil e gestão das comunidades locais» [alínea c) do n.º 2 do artigo 89.º da Constituição da República Portuguesa] apontava claramente para a ideia de que tais bens não apenas estariam na posse e gestão das comunidades locais, como também lhes pertencia a respectiva titularidade, visto que, de outro modo, não se justificaria a qualificação de tais bens («bens comunitários»), o que não ocorria no caso das alíneas a) e b) do mesmo n.º 2 do artigo 89.º da Constituição, quanto aos dois outros subsectores do sector público.

A verdade é que continuou a suscitar-se a dúvida sobre a verdadeira natureza jurídica dos «bens comunitários», dúvidas de que davam conta, v. g., J. J.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, na 1.ª edição da Constituição da República Portuguesa Anotada, p. 217.

Tais dúvidas deixaram, porém, de ter sentido com a primeira revisão constitucional (de 1982), com a qual foi alterada a redacção do artigo 89.º n.º 2, da Constituição.

Onde anteriormente se dizia, no proémio dessa disposição, que «o sector público é constituído pelos bens e unidades de produção colectivizados» passou a dizer-se que «o sector público é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas ou a comunidades».

Era agora indiscutível que os «bens comunitários» a que se refere a alínea c) são bens «pertencentes a comunidades», como se diz no proémio desse preceito, distinguindo-se esses bens, também quanto à titularidade, dos bens «pertencentes a entidades públicas», designadamente às entidades públicas territoriais (desde o Estado à freguesia). Isto é, esclareceu-se, sem margem para dúvidas, que os «bens comunitários» são mesmo bens pertencentes a comunidades, e não bens pertencentes a entidades públicas.

Este ponto passou a ser pacífico na doutrina. Vale a pena registar algumas posições de vários autores.

Desde logo, Jorge Miranda:

Discutiu-se muito na vigência do artigo 89.º primitivo, tal como, de resto, já se discutia antes da Constituição de 1976, o que eram os baldios. Havia quem entendesse que os baldios correspondiam a propriedade pública (propriedade das autarquias locais e regime de gestão comunitária); e havia também quem entendesse que os baldios eram coisas comuns. Na revisão constitucional veio resolver-se, ao que parece, este problema, ao dispor-se que o sector público é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas ou a comunidades (que são grupos de pessoas não personalizados). Não se trata aqui de atribuir direitos a entidades que não são sujeitos de direito, que não são pessoas jurídicas - o que seria algo de contraditório. O que se quer dizer, a meu ver, é apenas que os baldios e outros bens comunitários são «coisas comuns», para empregar uma expressão que vinha do nosso direito tradicional e que constava do Código Civil de 1867.

[...] Já na vigência da Constituição de 1976, sobre a questão dos baldios, dividiram-se as opiniões. Num estudo que publicou sobre esta matéria o conselheiro Francisco José Teloso pronunciou-se no sentido de que os baldios pertenciam ao domínio das autarquias locais. Pelo contrário, outro jurista - o Dr. Manuel Lopes Rocha - publicou um trabalho em que sustenta que os baldios correspondiam a coisas comuns.

A meu ver, mesmo antes da revisão constitucional, tudo apontava no sentido de os baldios serem bens comunitários, e não coisas pertencentes a autarquias locais - quer a história dos baldios no direito português, quer o direito comparado, quer, finalmente, a lei dos baldios, que é o Decreto-Lei 39/76, de 19 de Janeiro, que fez aquilo a que se chamou a «entrega dos terrenos baldios às comunidades locais» e que contém o essencial da regulamentação jurídica sobre os baldios. [Direito da Economia, cit., pp. 70 e segs.] De igual modo, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira:

A partir do texto constitucional («bens e unidades de produção pertencentes a comunidades», «bens comunitários», «posse útil e gestão das comunidades locais»), parece seguro concluir que se trata aqui de uma figura específica, em que é a própria comunidade, enquanto tal, que é a titular da propriedade dos bens e da empresa, bem como da respectiva gestão, não se verificando aqui, portanto, a separação observada no caso do subsector autogerido. [Ob., cit., 2.ª ed., vol. I, p. 426.] Coincidente é a opinião de J. Simões Patrício, aliás em texto anterior à revisão constitucional de 1982. Depois de mencionar a posição do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, adiante exposta, no sentido de que os baldios constituem «propriedade comunal dos moradores», comenta:

E, na verdade, tanto em face da própria letra do artigo 89.º da Constituição como do regime jurídico a que ora fazemos referência, bem parece estarmos perante propriedade - ou, talvez antes, perante posse útil que vale propriedade - dos povos, não das autarquias administrativas; trata-se de coisas (bens) comuns, não propriamente públicas ou privadas. [Curso de Direito Económico, 2.ª ed., Lisboa, 1981-1982, p. 289.] Menos definitiva - mas estando nisso isolada - é a opinião de Carlos Ferreira de Almeida, comentando o texto constitucional saído da revisão de 1982:

Esta referência à titularidade de comunidades é inovadora em relação ao texto constitucional primitivo (que indicava «bens e unidades de produção colectivizados»).

Significará que os bens e unidades de produção incluídos nas alíneas b) e c) - subsectores autogestionário e comunitário - são pertença das respectivas comunidades laborais ou vicinais? Se assim for, deixará de ser correcto o entendimento, até agora predominante, segundo o qual o titular de tais bens e empresas é o Estado, cabendo aos colectivos de trabalhadores e às comunidades locais apenas a posse útil e gestão. Parece, todavia, mais prudente sustentar que, segundo a nova fórmula, a titularidade do Estado não é já condição necessária do sector público, ficando também aberta a possibilidade de uma titularidade comunitária. [Direito Económico - Propriedade dos Meios de Produção, policopiado, Lisboa, 1982-1983, pp. 19 e segs.] O corpo consultivo da Procuradoria-Geral da República vinha sustentando desde o início a natureza comunitária da própria propriedade - e não apenas da posse útil e gestão - dos baldios (v. o parecer relativo ao processo 136/78, no Diário da República, 2.ª série, n.º 259, de 10 de Novembro de 1978).

Pertencem a um recente parecer sobre a matéria as considerações seguintes:

Este Conselho Consultivo, no parecer 136/78, teve já oportunidade de concluir que os baldios constituem propriedade comunal dos moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas, que exerçam a sua actividade no local, só por eles podendo ser usados e fruídos.

[...] O último dado nesta matéria surge com a revisão constitucional, por força da qual o citado artigo 89.º, n.º 2, passou a ter a seguinte redacção:

O sector público é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas, ou a comunidades, sob os seguintes modos sociais de gestão:

...

c) Bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais.

Perante a nova redacção do n.º 2 do artigo 89.º da Constituição não se devem oferecer dúvidas quanto à propriedade de baldios, devendo manter-se a doutrina já afirmada no citado parecer 136/78: os baldios constituem propriedade comunal dos moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas e nunca bens do património (público ou privado) das autarquias locais. [Parecer 37/87, no Diário da República, 2.ª série, n.º 39, de 17 de Fevereiro de 1988.] Novas achegas no mesmo sentido - inclusive de doutrina estrangeira sobre figuras similares existentes noutros países - traz o parecer do Prof. J. J.

Gomes Canotilho junto aos autos. Respiguem-se apenas algumas passagens:

O regime dos baldios deve captar-se a partir das normas constitucionais vigentes, e não a partir de leis (Código Civil de 1867, Código Civil de 1966, Código Administrativo) que, ou estão revogadas, ou se revelam hoje imprestáveis para responder com rigor jurídico e político ao problema da densificação da categoria jurídica de bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais (Constituição da República Portuguesa, artigo 89.º, n.º 2). De resto, no plano metodológico concretizador é este também um princípio hermenêutico fundamental: as soluções legais devem estar em conformidade com a Constituição (Constituição da República Portuguesa, artigo 3.º, n.º 3), não é a Constituição que se deve adaptar às leis.

A constitucionalização expressa de bens «pertencentes a comunidades locais» (Constituição da República Portuguesa, artigo 89.º, n.º 2) pretende tornar claro que se visou dar guarida jurídico-constitucional a uma categoria de bens:

1) Incluídos no sector público;

2) Subjectivamente imputáveis e título de propriedade, posse e gestão a certas e determinadas comunidades locais.

[...] A Constituição procurou marcar também um enérgico retorno da titularidade dos bens comunitários aos povos, pondo termo ao processo histórico de privação que desde há muito, e por várias formas, conduziu ao esvaziamento dos tradicionais patrimónios colectivos.

Este retorno à dominialidade cívica já tinha sido consagrado, a nível da legislação ordinária, nos Decretos-Leis n.39/76 e 40/76, de 19 de Janeiro.

[...] O domínio cívico não é um domínio público da freguesia ou freguesias, pois conserva as características de um domínio colectivo, na medida em que é formado por bens ou propriedade colectiva de uma comunidade de habitantes.

Daqui deriva que, mesmo a haver uma correspondência territorial e pessoal entre comunidades locais («povos») e a freguesia ou freguesias (o que nem sempre acontece), não há qualquer identificação entre comunidades locais e colectividades territoriais autárquicas. A titularidade dominial dos bens comunitários é dos «povos», «utentes», «vizinhos», ou «compartes», e não das freguesias ou grupo de freguesias.

Retome-se o fio do discurso. Viu-se que dentro do sector público a Constituição distingue três subsectores, corespondentes a cada uma das alíneas do artigo 89.º, n.º 2, sendo clara a distinção entre o subsector da alínea a) - subsector público propriamente dito - e o da alínea c), o subsector comunitário. Aquele é constituído pelos bens pertencentes a entidades públicas e possuídos e geridos por elas; o último é constituído pelos bens pertencentes a comunidades locais e por elas possuídos e geridos.

O artigo 89.º constitui um exemplo típico daquilo que jurídico-constitucionalmente se chama uma «garantia institucional». A este respeito, dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira:

Esta norma é uma típica «garantia institucional». Não garante a existência de cada empresa em cada sector, nem sequer uma particular delimitação de cada sector - garante sim a existência de todos e de cada um dos sectores. O Estado pode fazer variar a dimensão de cada um dos sectores a deslocar as balizas entre eles. Mas não pode eliminar ou aniquilar nenhum deles. O mesmo vale para os subsectores do sector público. [Ob. cit., 2.ª ed., vol. II, pp.

422 e segs.] Ou seja: garantindo a existência de três sectores de propriedade dos meios de produção, definidos em função da sua titularidade e do modo social de gestão, a Constituição garante também, no que ao sector público concerne, as três componentes que o integram. O sector público é obrigatoriamente plural, não podendo ser reduzido a uma das três manifestações enunciadas no n.º 2 e não podendo, portanto, aniquilar-se nenhuma delas. Poderá, eventualmente, questionar-se esta asserção quanto ao subsector estadual [o da alínea a)], tendo em conta o disposto no n.º 3 do artigo 90.º (o qual, todavia, prevê apenas que as empresas do sector público propriamente dito «devem evoluir para formas de gestão que assegurem uma participação crescente dos trabalhadores», o que não implica necessariamente a recondução desse subsector ao subsector autogestionário). Seja como for, porém, quanto ao subsector comunitário, não pode haver dúvidas de que a garantia constitucional vale para ele. É que o artigo 90.º é claro ao autonomizar, dentro do sector público, o subsector comunitário (bem como o subsector autogerido), como uma das bases de desenvolvimento da propriedade social, sendo certo que o desenvolvimento da propriedade social é um dos princípios da «constituição económica» da Constituição da República Portuguesa [artigo 80.º, alínea e)]. Ora, como é que o sector comunitário pode constituir uma base de desenvolvimento da propriedade social sem a sua existência estar constitucionalmente assegurada? Adquirido que a «constituição económica» da Constituição da República Portuguesa garante a existência de um subsector público comunitário, resta saber se essa garantia institucional exige ou não a permanência dos baldios na categoria dos bens comunitários.

Como se viu acima, não é lícito pôr seriamente em dúvida que os baldios são a primeira realidade a vir à mente quando se fala em bens comunitários. De resto, é sabido que, além dos baldios, só se podem integrar nos bens comunitários certos e escassos vestígios de equipamentos comunitários em zonas bem localizadas (fornos, eiras, azenhas, etc.). Sem ousadia se poderá afirmar que, não existissem os baldios, e a Constituição não teria, provavelmente, curado de garantir um subsector comunitário como componente necessária do sector público; e é seguro que, se ele viesse a ser privado dos baldios, tal subsector ficaria essencialmente amputado, reduzido a dimensão despicienda, sem qualquer importância prática.

O subsector comunitário seria, pois, não apenas dramaticamente reduzido na sua dimensão, mas também fatalmente lesado no seu núcleo essencial. Uma tal mudança afronta, portanto, a garantia constitucional contida no artigo 89.º da Constituição. Tal como não é possível ter por constitucionalmente legítima a redução do sector privado a actividades marginais ou insignificantes (v. g., os quiosques ou as barbearias, a indústria de alfinetes ...), também não pode ter-se por constitucionalmente consentida a redução do subsector público comunitário a realidades marginais, económico-estruturalmente irrelevantes, pela amputação daquela figura - os baldios -, que, na verdade, constitui a razão de ser constitucional da própria existência do subsector comunitário.

Em resumo, deve assentar-se em que:

Os baldios integram a categoria de bens comunitários prevista na Constituição;

A Constituição garante a existência do subsector público comunitário, não sendo constitucionalmente lícita a sua inutilização prática;

A amputação dos baldios reduziria drasticamente a dimensão de tal subsector e retirar-lhe-ia todo e qualquer sentido como subsector relevante no quadro do complexo constitucional dos sectores dos meios de produção.

V - Cumpre agora verificar qual é o sentido e alcance das normas questionadas à luz dos princípios constitucionais analisados.

Recorde-se que essas normas se propõem, fundamentalmente, três coisas:

Integrar os baldios no domínio público das freguesias em cuja circunscrição eles existam;

Transferir para os órgãos da freguesia a administração dos baldios, retirando-a aos compartes, os quais só podem administrar baldios mediante delegação, a todo o tempo revogável, dos órgãos da autarquia, e sempre sob tutela destes;

Permitir a afectação dos baldios a outros fins de interesse público, mediante livre decisão dos órgãos da freguesia, bem como a desafectação e alienação dos próprios baldios, mediante decisão governamental, sob proposta da freguesia.

Face aos princípios constitucionais que se deram por adquiridos, é forçosa a conclusão de que tais normas são inconstitucinais. Elas afrontam a garantia constitucional dos bens comunitários sob vários aspectos:

Transformam os baldios, de bens comunitários, que constitucionalmente são, pertencentes às respectivas comunidades, em bens do domínio público da freguesia, privando, pois, aquelas de bens de que constitucionalmente são titulares;

Transferem a administração dos baldios dos seus utentes para os órgãos das autarquias, admitindo a participação dos utentes apenas a título de delegação, de forma precária e sempre sob tutela dos órgãos da freguesia;

Removem os baldios do subsector público comunitário [alínea c) do n.º 2 do artigo 89.º da Constituição] para o subsector público «stricto sensu» [o da alínea a) do mesmo preceito constitucional];

Enfim, excluindo os baldios dos bens comunitários, reduzem este sector a praticamente nada, visto que os baldios constituem a componente essencial daquele, quantitativa e qualitativamente.

Em resumo: viola-se a norma do artigo 89.º, n.º 2, alínea c), seja considerada isoladamente, seja lida conjugadamente com os artigos 90.º, n.º 1, e 80.º, alínea e), da Constituição, relativos ao «desenvolvimento da propriedade social», do qual os bens comunitários hão-de ser uma das bases.

É difícil pôr as coisas em termos mais claros do que J. J. Gomes Canotilho no já referido parecer:

Ao integrar os terrenos baldios no «domínio público» da freguesia (Projecto, artigos 1.º e 2.º) pretende-se:

1) Ou estabelecer uma espécie de comparticipação dominial das freguesias e dos povos sobre os bens comunitários;

2) Ou fixar a usurpação definitiva da titularidade dos bens comunitários por entes territoriais personificados (freguesia).

O que teríamos, em qualquer das hipóteses, mas sobretudo na última, era uma mutação dominial inconstitucional traduzida na substituição das comunidades de utentes dos baldios como titulares últimos do domínio cívico pelas entidades territoriais autárquicas, violando os princípios da «autodisposição», «auto-administração» e «autogestão» constitucionalmente caracterizadas da propriedade colectiva e da posse útil e gestão dos bens comunitários.

São, portanto, inconstitucionais todas as normas questionadas no presente processo:

O artigo 1.º, n.º 2, na parte em que integra os baldios no domínio público das freguesias;

Os artigos 2.º e 5.º, que transferem para as freguesias a administração dos baldios e que só a título de delegação precária consentem a gestão pelos próprios compartes;

Os artigos 3.º, n.os 1 e 2, e 4.º, n.º 3, que conferem poderes aos órgãos da freguesia para regularem e tutelarem a constituição e a actividade das comissões de utentes;

O artigo 11.º, que considera as comissões de utentes responsáveis perante os órgãos de freguesia;

Os artigos 6.º, 8.º e 9.º, que permitem, respectivamente, quer a alteração do fim comunitário dos baldios, por deliberação da junta de freguesia, quer a desafectação e alienação de baldios, por decisão do Conselho de Ministros, sob prévia deliberação da assembleia de freguesia, quer a submissão dos baldios ao regime florestal, a requerimento das juntas de freguesia, em todos os casos sem qualquer consideração pela posição ou manifestação de vontade dos interessados.

VI - Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1.º, n.º 2 (na parte questionada), 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º do Decreto 132/V, aprovado pela Assembleia da República para ser promulgado como lei, por violação do disposto no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), em conjugação cos os artigos 80.º, alínea e), e 90.º, n.º 1, da Constituição da República.

Lisboa, 4 de Abril de 1989. - José Magalhães Godinho - Martins da Fonseca - Vital Moreira - Luís Nunes de Almeida - Antero Alves Monteiro Dinis - Raul Mateus (vencido parcialmente, nos termos da declaração de voto junta) - José Manuel Cardoso da Costa (vencido, nos termos da declaração de voto junta) - Messias Bento (vencido, nos mesmos termos do Exmo. Conselheiro Cardoso da Costa) - Armando Manuel Marques Guedes.

Declaração de voto

1 - Ao contrário do decidido no acórdão, entendi que as normas do Decreto 132/V, da Assembleia da República, postas em questão pelo Presidente da República nem violam, por um lado, o preceituado no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição da República Portuguesa (CRP), nem violam, por outro lado, o preceituado nos artigos 80.º, alínea e), e 90.º, n.º 1, da CRP.

De seguida, e sucessivamente, quanto a um e outro destes pontos, se explicará porquê.

2 - É o seguinte o teor do artigo 89.º da CRP:

Artigo 89.º

Sectores de propriedade dos meios de produção

1 - É garantida a existência de três sectores de propriedade dos meios de produção, dos solos e dos recursos naturais, definidos em função da sua titularidade e do modo social de gestão.

2 - O sector público é constituído pelos bens e unidades de produção pertencentes a entidades públicas ou a comunidades, sob os seguintes modos sociais de gestão:

a) Bens e unidades de produção geridos pelo Estado e por outras pessoas colectivas públicas;

b) Bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores;

c) Bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais.

3 - O sector privado é constituído pelos bens e unidades de produção cuja propriedade ou gestão pertençam a pessoas singulares ou colectivas privadas, sem prejuízo do disposto no número seguinte.

4 - O sector cooperativo é constituído pelos bens e unidades de produção possuídos e geridos pelos cooperadores, em obediência aos princípios cooperativos.

Segundo este dispositivo constitucional, têm de existir três sectores de propriedade dos meios de produção, dos solos e dos recursos naturais: o sector público, o sector privado e o sector cooperativo.

Em comentário a este artigo 89.º da CRP, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., I vol., pp. 422 e 423:

Esta norma é uma típica «garantia institucional». Não garante a existência de cada empresa em cada sector, nem sequer uma particular delimitação de cada sector - garante sim a existência de todos e de cada um dos sectores. O Estado pode fazer variar a dimensão de cada um dos sectores e deslocar as balizas entre eles. Mas não pode eliminar ou aniquilar nenhum deles.

Aliás, o n.º 1 do artigo 89.º da CRP afirma expressamente tal garantia. No entanto, a CRP já não garante a existência de todos e cada um dos subsectores em que se desdobra o sector público.

De facto, o n.º 2 do artigo 89.º da CRP limita-se a afirmar que o sector público é constituído por três subsectores, que individualmente caracteriza. Todavia, não afirma declaradamente - ao contrário do que se verifica no n.º 1 desse mesmo artigo - que ali se garanta a existência desses subsectores.

E tanto é assim que a própria CRP, no n.º 3 do artigo 89.º, aponta para a extinção, a prazo, do subsector referido na alínea a) do n.º 2 do artigo 89.º Deste modo, não reconhecendo a CRP tal garantia institucional (a da existência de três subsectores dentro do sector público), não acompanhei, pois, o acórdão no passo em que conclui que as normas do Decreto 132/V, da Assembleia da República, postas em causa pelo Presidente da República, na medida em que retiram os baldios do subsector da alínea c) do n.º 2 do artigo 89.º da CRP e praticamente esvaziam tal subsector, ofendem essa mesma garantia. É que uma garantia constitucionalmente inexistente não pode, logicamente, ser infringida por normação ordinária.

3 - Dispõe o artigo 80.º, alínea e), da CRP que a organização económico-social assenta (entre outros) no princípio do desenvolvimento da propriedade social, e o subsequente artigo 90.º, n.º 1, que «constituem a base do desenvolvimento da propriedade social os bens e unidades de produção com posse útil e gestão dos colectivos de trabalhadores, os bens comunitários com posse útil e gestão das comunidades locais e o sector cooperativo».

Vê-se, assim, e de acordo com estes preceitos constitucionais, que o núcleo que servirá de base ao desenvolvimento da propriedade social - para que aí incisivamente se aponta - há-se ser constituído pelos subsectores e pelo sector definidos, respectivamente, nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo 89.º da CRP e no n.º 3 do mesmo artigo.

O princípio do desenvolvimento da propriedade social, se lido em articulação com o princípio democrático, decorrente, designadamente, dos artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da CRP, não impõe, todavia, que, uma vez adquiridos determinados meios de produção para o respectivo núcleo base, estes daí não mais possam ser retirados pelo legislador ordinário.

Na realidade, a ordenação económico-social em cada momento existente e referente à organização da propriedade social será, se conforme com os princípios constitucionais, apenas uma das constitucionalmente possíveis, mas não, necessariamente, a única possível.

O legislador ordinário, exprimindo a vontade da maioria e activando numa determinada direcção o princípio democrático, sempre poderá alterar tal ordenação e diminuir mesmo a dimensão da propriedade social. Ponto é que o faça com respeito pelos demais princípios constitucionais.

O princípio do desenvolvimento da propriedade social, de facto, não proíbe tal redução, já que esse desenvolvimento, por interferência do princípio democrático - a República Portuguesa, é bom não esquecê-lo, baseia-se, segundo os artigos 2.º e 3.º, n.º 1, da CRP, na soberania popular -, é, de todo em todo, compatível com avanços e recuos ao nível organizacional.

Face a esta interpretação da CRP, há que concluir, como se concluiu, e em oposição ao decidido no acórdão, que também aqui se não regista qualquer inconstitucionalidade por parte das normas do Decreto 132/V, da Assembleia da República, identificadas pelo Presidente da República, e na medida em que determinarão a saída dos baldios da zona da propriedade social. É que, como se viu, ao legislador - no caso, ao legislador parlamentar, por via do preceituado no artigo 168.º, n.º 1, alínea j), da CRP - sempre será lícito reduzir o âmbito da propriedade social.

Não se regista, pois, em suma, por parte das normas questionadas, qualquer infracção ao preceituado nos artigos 80.º, alínea e), e 90.º, n.º 1, da CRP.

4 - Para além disto, não se quer deixar de significar ainda uma muito particular discordância em relação ao juízo de inconstitucionalidade que no acórdão se formulou a respeito da norma do artigo 1.º, n.º 2, do Decreto 132/V, da Assembleia da República, na parte em que procede à integração dos baldios no domínio público das freguesias.

É que tal norma em nada contribui para que os baldios saiam do subsector referido na alínea c) do n.º 2 do artigo 89.º da CRP, e consequentemente da área da propriedade social, tal como o artigo 90.º, n.º 1, da CRP a concebe.

São, de facto, as demais normas postas em causa pelo Presidente da República (as dos artigos 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º), como de seguida se mostrará, que verdadeiramente procedem à expulsão dos baldios do subsector comunitário e, por conseguinte, da zona da propriedade social.

Desta maneira, e quanto a este último grupo de normas, ainda pude compreender (embora sem a acompanhar) a argumentação a propósito desenvolvida no acórdão. No entanto, e quanto ao segmento questionado da norma do artigo 1.º, n.º 2, já não pude, em boa verdade, entender tal linha argumentativa.

Impõe-se, pois, provar, como há pouco se anunciou, o diferente papel que, neste domínio, cabe, por um lado, ao artigo 1.º, n.º 2, do Decreto 132/V, da Assembleia da República, e, por outro lado, aos artigos 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º do mesmo diploma.

5 - Em nota ao artigo 89.º da CRP, observam Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., vol. cit., p. 423:

O critério de delimitação dos sectores (n.º 1) é misto. Faz apelo simultaneamente à propriedade formal («titularidade») e à posse e gestão («modo social de gestão») dos meios de produção. (A referência a «solos» e «recursos naturais» é, evidentemente, redundante.) Mas o critério dominante parece ser o último, pois, no caso de discrepância entre a titularidade da propriedade e a titularidade da posse e gestão, prevalece, em geral, esta última.

É, na verdade, o índice da titularidade da posse e gestão que, nas situações híbridas, se revela decisivo, como, aliás, tem sido jurisprudência constante do Tribunal Constitucional (v., neste sentido, os Acórdãos n.os 108/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 145, de 25 de Junho de 1988, e 321/89, ainda inédito).

Assim, e a esta luz, ainda que a CRP, no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), exija, para que determinados meios de produção integrem o subsector comunitário, que os mesmos sejam não só propriedade de comunidades locais, como estejam ainda na posse útil e gestão das mesmas, ainda assim, os bens que, ao nível dominial, deixem de ser comunitários e passem a estar unicamente na posse útil e gestão das comunidades locais manter-se-ão nesse caso, e, porque este último índice é o decisivo, no subsector da alínea c) do n.º 2 do artigo 89.º da CRP.

Nesta perspectiva, a norma do artigo 1.º, n.º 2, do Decreto 132/V, da Assembleia da República, enquanto determina que os baldios integram bens do domínio público da freguesia ou das freguesias em que se localizam, não implica a retirada de tais bens comunitários do subsector da alínea c) do n.º 2 do artigo 89.º da CRP, e em consequência do campo da propriedade social.

Já, porém, no que respeita as normas dos artigos 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º do mesmo diploma, normas que, de um modo ou de outro, directa ou indirectamente, privam as comunidades locais da posse útil ou da gestão dos baldios, a conclusão haverá de ser diversa. É que em causa está então um índice decisivo, o índice da posse útil e gestão pelas comunidades locais, índice que, a verificar-se, permitirá, por si só, situar tais bens no subsector de alínea c) do n.º 2 do artigo 89.º da CRP.

Fechado o parêntesis que se abrira em ordem a demonstrar a total irrelevância, no caso, da norma do artigo 1.º, n.º 2, impõe-se reafirmar, em jeito de síntese, que nenhuma das normas consideradas - e com muito mais evidência ainda a do artigo 1.º, n.º 2 - infringem o disposto, seja no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da CRP, seja nos artigos 80.º, alínea e), e 90.º, n.º 1, da CRP.

6 - Não obstante tudo o que se vem de dizer, entende-se, embora por outras razões, que as normas dos artigos 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º do Decreto 132/V, da Assembleia da República, são, na realidade, inconstitucionais.

É que estas normas, de uma maneira ou de outra, retiram às comunidades locais o direito de desfrutarem e de, com maior ou menor amplitude, gerirem os baldios respectivos. E mais: essa subtracção da posse útil e gestão de terras tradicionalmente comunitárias é esquematizada sem qualquer justificação relevante (não se faz depender tal perda do consentimento das próprias comunidades interessadas, não se prevêem compensações, não se limita a cessação de direitos a situações de não uso, etc.).

Neste quadro, e considerando ainda, muito particularmente, a dimensão multissecular daqueles direitos comunitários, não se pode deixar de entender que a sua extinção, nos termos previstos nos artigos 2.º, 3.º, n.os 1 e 2, 4.º, n.º 3, 5.º, 6.º, 8.º, 9.º e 11.º daquele diploma, se configura incompatível com o princípio do Estado de direito democrático, decorrente do artigo 2.º da CRP, enquanto tal princípio garante e protege os cidadãos, num plano ético-político, contra a prepotência e o arbítrio, especialmente por banda do Estado (cf.

Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., vol. cit., p. 74).

Por esse motivo, e só por esse motivo, votei a inconstitucionalidade das normas deste grupo.

7 - Já não adoptei, porém, idêntica postura quanto à norma do artigo 1.º, n.º 2, do Decreto 132/V, da Assembleia da República, e isto por entender que tal norma não implica, indiscutivelmente, a perda de um direito, rectius de um direito dominial, por parte das comunidades locais.

Na verdade, a história do direito tem vindo a mostrar, à saciedade, que a atribuição desse direito às autarquias locais não importou nunca, por si só, a extinção dos baldios (cf. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 9.ª ed., II vol., pp. 949 a 953). Isto revela que não é da essência do instituto o encabeçamento de tal direito dominial nas comunidades locais, que se trata, em suma, de um aspecto marginal do respectivo regime.

Aliás, nem mesmo o Decreto-Lei 39/76, de 19 de Novembro, que, segundo o preâmbulo, pretendeu proceder à «entrega dos terrenos baldios às comunidades que deles foram desapossados pelo Estado fascista», explicita, na sua parte dispositiva, que as comunidades locais passam, a partir de então, a ser titulares de um direito de propriedade sobre os baldios. Limita-se, sim, tal diploma a afirmar, quer o direito de uso e fruição dos moradores sobre os terrenos comunitários (artigos 1.º, 3.º, 4.º e 5.º), e bem assim quer o direito de administração dos compartes sobre os baldios (artigos 6.º e seguintes), ou seja, limita-se a tratar dos aspectos basilares de tal regime.

8 - Por outro lado, não parece correcto sustentar-se, como se faz no acórdão, que o artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da CRP atribui a propriedade dos baldios às comunidades locais.

Nesse artigo 89.º:

Garante-se a existência de vários conjuntos de meios de produção (conjunto de meios de produção do sector público, conjunto de meios de produção do sector privado e conjunto de meios de produção do sector cooperativo);

Explicita-se que o conjunto dos meios de produção do sector público será, em princípio, constituído por três subconjuntos [os referidos, sucessivamente, nas alíneas a), b) e c) do n.º 2];

Definem-se os índices ou sinais caracterizadores de cada um dos elementos (no caso, dos meios de produção) susceptíveis de integrarem tais conjuntos e subconjuntos.

Ora, estes conjuntos e subconjuntos, como classes lógico - jurídicas, são neutros, isto é, são neutros no sentido de que não influenciam, em termos caracterizadores, os respectivos elementos componentes. E por isso mesmo se considerou como um verdadeiro tour de force a «transferência», que no acórdão se fez - e contra toda a lógica de grupos -, de uma propriedade ou sinal caracterizador de determinado subconjunto [o da alínea a) do n.º 2 do artigo 89.º] para certos meios de produção, na situação em análise, e especificamente, para os baldios, como elementos susceptíveis de virem a integrar tal subconjunto.

9 - Em resumo, não podendo sustentar-se - nem teoricamente, nem à face do direito positivo (considerado este uma perspectiva histórica) - que o encabeçamento da propriedade dos baldios nas comunidades dos convizinhos fruidores haverá de ser indissociável do regime dos baldios, não li o artigo 1.º, n.º 2, do Decreto 132/V, da Assembleia da República, como postulando a perda de um direito. E, por isso mesmo - sento aqui, de todo em todo, inaplicável, mutatis mutandis, a linha de argumentação anteriormente desenvolvida sob o n.º 6 -, não conclui nesta minha declaração de voto pela inconstitucionalidade de tal norma.

Raul Mateus.

Declaração de voto

1 - A precedente decisão assenta basicamente nos seguintes pressuspostos:

Que o preceito do artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição tem o alcance de uma garantia (institucional) da existência de um subsector de «bens comunitários» dentro do sector público;

Que é característica desse subsector, além da de um certo modo social de gestão, a da «propriedade» comunitária dos respectivos bens;

Que os baldios integram e têm de integrar necessariamente esse subsector (são um elemento essencial do respectivo conjunto de bens), sob pena do esvaziamento da correlativa garantia constitucional;

Que o diploma em análise implica uma retirada dos baldios do subsector em causa de propriedade dos meios de produção, seja enquanto os inclui no domínio público das freguesias, seja enquanto deixa de atribuir directamente aos compartes a correspondente administração.

Ora, mesmo não impugnando neste momento os restantes pressupostos mencionados (e prescindindo assim, brevitatis causa, do que a respeito deles caberia ainda observar), a verdade é que não pode deixar de questionar-se a premissa segundo a qual os baldios hão-de necessariamente integrar o subsector dos «bens comunitários» - pelo menos enquanto formulada em termos genéricos e absolutos.

2 - A este respeito, importa atender, desde logo, a que o sentido da norma do artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição não pode ser, e não é, o de «fixar» o regime jurídico de certos e determinados bens - o daqueles que cabiam no seu conceito ao tempo em que ela foi editada. É antes, e tão-só, o de, por um lado, «definir» as características a que devem obedecer os bens integrantes do subsector de meios de produção a que a mesma norma respeita e, por outro lado (aceitando, claro está, o primeiro dos supra-indicados pressupostos), «garantir» que o correspondente conjunto de bens não venha a revelar-se, afinal, como um conjunto «nulo» ou «vazio», ou melhor, reduzido a uma expressão sem significado relevante (a uma expressão incompatível com o sentido da garantia constitucional).

Assim sendo, o artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição só poderá representar um obstáculo à modificação ou mutação do regime jurídico dos baldios - de todos os baldios - se com tal modificação se produzir o resultado acabado de referir. Mas - justamente -, não se negando que o subsector dos «bens comunitários» abrange, além dos baldios, outros bens, sempre poderia perguntar-se se estes últimos, pese embora o seu aparentemente pequeno, ou até diminuto, significado económico, não chegariam para assegurar uma extensão minimamente significativa a esse subsector de meios de produção.

E isso, de uma parte, porque para avaliar ou aferir do significado e importância do mesmo subsector de bens haverá de ter-se em conta, não o valor económico «abstracto» dos bens que em cada momento o integrem, mas o seu valor «real» e «concreto» para a economia das comunidades que os detém e fruem, e, te outra parte, porque, não obstante a «indicação» emergente dos artigos 80.º, alínea e), e 90.º, n.º 1, da Constituição, o subsector dos «bens comunitários» haverá certamente de assumir, ao cabo e ao resto, uma dimensão reduzida ou residual no conjunto da economia nacional: é perfeitamente irrealista pensar o contrário (é dizer, «pensar a Constituição» em contrário) - e a tal ponto que bem deverá concluir-se não poder a garantia da existência de um tal subsector de bens ser tomada, constitucionalmente, com o mesmo alcance e «dimensão», que, por exemplo, a garantia do «sector privado» de meios de produção.

Claro que as coisas nunca poderiam pensar-se assim se o preceito constitucional aqui em questão se referisse eo nomine aos baldios. Mas, não o fazendo, então não se vê que alguma outra razão - mormente relativa à história do mesmo preceito - possa sobrepor-se à análise estrutural e funcional da disposição para liminarmente excluir e tornar ilegítima a interrogação que se deixa formulada.

3 - Seja como for, porém, a rejeitar-se a viabilidade do entendimento pressuposto em tal interrogação e a ter de admitir-se, portanto, que a garantia da «efectividade» de um subsector de «bens comunitários» implica a necessária inclusão dos baldios no mesmo sector, então, e pelo menos, tenho por seguro que semelhante exigência só poderá valer quanto àqueles baldios que ainda cumpram (ou continuem a cumprir) a sua precípua e tradicional função «comunitária», enquanto bens directamente utilizados e fruídos pelos compartes, em complemento da respectiva economia privada (sobre esta função essencial e característica dos baldios, v. Rogério Ehrhart Soares, «Sobre os baldios», cit. no acórdão, passim). Ou seja: tenho por seguro, pelo menos, que a exigência da inclusão dos baldios no subsector de meios de produção definido no artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição só poderá valer quanto àqueles que - para utilizar a definição do artigo 393.º do Código Administrativo (preceito não tido por revogado no parecer da Procuradoria-Geral da República relativo ao processo 136/78, igualmente citado no acórdão) - «sejam aproveitados como logradouro comum pelos moradores de algum concelho ou freguesia e se considerem indispensáveis, sob essa forma de utilização, à economia local».

Em meu modo de ver, com efeito, não tem qualquer sentido que a garantia constitucional de um subsector de «bens comunitários» cubra outros terrenos sujeitos ao regime jurídico dos baldios, mas que há muito deixaram de representar um complemento da economia agrária de certas populações - e, portanto, de servir os interesses «particulares» de quaisquer compartes -, e só têm hoje um destino ou uma função que não é diversa da dos bens que integram o património privado ou o domínio público de uma autarquia. Ou seja:

têm a função de, nomeadamente através dos rendimentos que os respectivos bens propiciam (é o caso dos baldios florestados), permitirem a prossecução de fins «públicos» gerais, do tipo daqueles que se acham cometidos às autarquias locais. E que assim hoje acontece com grande parte (porventura a maior parte) dos terrenos sujeitos ao regime jurídico dos baldios é facto notório e geralmente conhecido, como sabido é que a própria evolução das condições económicas e sociais do País vem, desde. há décadas e inelutavelmente, fazendo reduzir, em extensão e importância, a função ancestral dos baldios;

mas a tal respeito é elucidativa e eloquente, por último, a reportagem que aqueles dedicou o Diário de Notícias, em suplemento à sua edição de 30 do mês transacto, onde se dão sobejos exemplos da utilização dos «baldios» tão-somente como fonte de rendimentos destinados a realizar nem mais nem menos do que fins próprios das autarquias (e a tal ponto que é mesmo de perguntar se o problema em causa, na «reivindicação» da gestão dos baldios unicamente pelos compartes, não é, no fundo, antes que propriamente esse, o de uma certa forma de «repartição» do poder político no âmbito local).

Em boa verdade, entender e pretender que, por força do artigo 89.º, n.º 2, alínea c), da Constituição, os «baldios», nas circunstâncias descritas, têm forçosamente de continuar a «pertencer» a uma comunidade de «compartes» e atribuídos à sua gestão - tal qual sucede (e admitamos que assim era também quanto à propriedade) no quadro do Decreto-Lei 39/76 -, não podendo ser transferidos pelo legislador para a titularidade e a administração da correspondente ou correspondentes autarquias, equivaleria a transformar aquele preceito constitucional numa nova «cláusula de irreversibilidade» (para além da do artigo 83.º, n.º 1), neste caso daquele diploma legal (e porventura também do Decreto-Lei 40/76, se é que este chegou alguma vez a ter aplicação); equivaleria, por outro lado, a consagrar um «anacronismo constitucional», e conduziria, além disso, por último, a «perpetuar», com a extensão que para ela hoje advém do decreto-lei antes mencionado, uma espécie de administração autárquica «paralela», inteiramente ao arrepio da lógica constitucional do «poder local» democrático. Tudo resultados que, em meu modo de ver, são excluídos por uma leitura funcionalmente adequada da Constituição os quais, por isso, não posso aceitar.

4 - Dir-se-á que tão-pouco tais resultados são assumidos explicitamente no presente acórdão. Certo, porém, é que nele se não considerou a diversidade de situações a que me reporto (ou seja, a distinção entre baldios que continuam afectos à sua função típica e terrenos sujeitos ao respectivo regime jurídico, mas que já não desempenham essa função), e muito menos se lhe atribui qualquer relevo - e, sendo assim, que mais não fosse por isso, não podia subscrevê-lo.

Eis, no que fica dito, as razões por que votei vencido.

José Manuel Cardoso da Costa.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1989/04/17/plain-42325.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/42325.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1976-01-19 - Decreto-Lei 39/76 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Define baldios e promove a sua entrega às comunidades que delas venham a fruir.

  • Tem documento Em vigor 1976-01-19 - Decreto-Lei 40/76 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Declara anuláveis a todo o tempo os actos ou negócios jurídicos que tenham como objecto a apropriação de baldios ou parcelas de baldios por particulares, bem como todas as subsequentes transmissões.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1986-03-04 - Decreto-Lei 39/86 - Ministério do Plano e da Administração do Território

    Extingue a EPPI - Empresa Pública de Parques Industriais, E. P., a qual manterá a sua personalidade jurídica, para efeitos de liquidação, até à aprovação final das contas a apresentar pela comissão liquidatária.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1991-06-28 - Acórdão 240/91 - Tribunal Constitucional

    Decide não pronunciar-se pela inconstitucionalidade [apreciação preventiva] das normas dos artigos 15º, nºs 1, 2, alíneas a), b), no segmento respeitante ao 'conhecimento da contabilidade', c) e d), e 3, 28, nºs 1, alínea a), e 3, e 29, salvo quanto a parte do seu nº 1, reportada ao período de não utilização dos baldios, e pronuncia-se pela inconstitucionalidade de algumas normas dos mesmos e de outros artigos do decreto numero 317/V da Assembleia da República (lei dos baldios).

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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