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Acórdão 141/2004/T, de 17 de Abril

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Texto do documento

Acórdão 141/2004/T. Const. - Processo 206/2003. - Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Obra da Nossa Senhora das Candeias reclamou, nos termos do artigo 688.º do Código de Processo Civil, para o presidente do Tribunal da Relação do Porto, do despacho do Tribunal de Família e Menores do Porto que, por falta de legitimidade, não admitira o recurso que pretendera interpor, para o Tribunal da Relação do Porto, e decisão judicial que ordenara a transferência da menor Maria Teresa Silva Machado para outra entidade, situada no âmbito da segurança social, depois de, no âmbito de processo tutelar de promoção e protecção, anteriormente haver sido decretada a confiança provisória da dita menor à reclamante, por um período de seis meses, e de haver sido por duas vezes prorrogada.

A reclamação foi indeferida em 17 de Dezembro de 2002, com os seguintes fundamentos:

"A Obra da Nossa Senhora das Candeias, com sede na Rua do Bonfim, 164, nesta cidade do Porto, é uma instituição de solidariedade social de acolhimento de crianças em perigo.

Sendo que a situação da menor foi seguida pelos serviços de apoio do Tribunal, o que determinou a prorrogação da medida por mais duas vezes (fls. 39 e 51) e os exames de avaliação psicológica que determinaram o despacho de que se pretende recorrer.

Com o despacho judicial de 'confiar a menor provisoriamente por um período de seis meses' ou 'entregar a menor à instituição', de modo algum significa entregar a guarda e representação da menor para os efeitos que a reclamante se arroga. A legitimidade para recorrer das decisões sobre medidas de promoção e protecção aplicadas a menores prevista na parte final do artigo 123.º, n.º 2, da Lei 147/99 é idêntica à faculdade para requerer diligências e oferecer meios de prova do artigo 104.º, n.º 1, e intentar o processo do artigo 105.º, n.º 2, da mesma lei a 'quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem'.

A reclamante não tem tal qualidade, pois que a Maria Teresa lhe foi confiada por decisão judicial, apenas para a acolher, prover ao seu sustento, educação e conforto.

Sob a direcção e decisão do Tribunal de Menores, este com o poder de decidir sobre a manutenção, alteração ou cessação da medida nos termos da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo - Lei 147/99, de 1 de Setembro - v. artigos 34.º e segs.

Nem poderes de representação da menor no âmbito do disposto no artigo 123.º do Código Civil, tanto mais que nem inibição do poder paternal, nem regulação do poder paternal foi decretado sobre a menor, pelo que é inaplicável o disposto nos artigos 1878.º, 1906.º, 1907.º ou 1918.º do mesmo Código.

A reclamante nem parte no processo é, não ficou vencida no despacho em causa nem directa e efectivamente prejudicada por ele.

Pelo que não pode interpor recurso de tal decisão por falta de legitimidade nos termos do citado artigo 123.º, n.º 2, nem pelo princípio geral do artigo 678.º do CPC.

Louva-se o interesse que a reclamante revela na defesa do bem-estar e no que pensa ser o melhor para a menor, a continuação na sua instituição. Mas não lhe assiste o direito a opor-se ao que judicialmente foi decidido."

2 - Inconformada, a reclamante veio arguir nulidades, por omissão de pronúncia, entre as quais se destaca:

"[d]a inconstitucionalidade do artigo 123.º da LPCJP, nos termos que constam expressamente do n.º 25 da mesma reclamação, reiterando-se que:

2.4.1 - A interpretação pretendida do artigo 123.º da LPCJP, feita pela decisão de 1.ª instância, viola o princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP;

2.4.2 - Pois que seria inconcebível admitir legitimidade para recorrer a quem detenha a guarda de facto da criança;

2.4.3 - E não a conceder a quem possua a sua guarda de direito, por força de decisão judicial em que essa guarda lhe foi concedida;

2.4.4 - Ou sequer admitir que, na pior das hipóteses, essa interpretação permita sustentar que a entidade, que é a reclamante, a quem foi confiada a guarda da criança por decisão judicial e a mantenha na sua companhia, não tenha, também e por natureza física (!), a guarda de facto da mesma;

2.4.5 - Sendo, em qualquer caso afinal, tratada desigualmente da pessoa que, por exemplo, tenha a guarda de facto por ter 'agarrado' a criança, 'sequestrado' a criança, 'raptado' a criança, recebido, abusivamente ou não, a criança em sua casa, etc., etc.;

2.3.6 - Ora, esta questão não foi decidida no douto despacho."

Por decisão de 21 de Fevereiro de 2003, o presidente do Tribunal da Relação do Porto deu razão em parte à reclamante e afirmou que:

"Na verdade, não conhecemos da alegação nestes autos que a interpretação do artigo 123.º da LPCJP, nos termos em que foi feita no despacho reclamado, violaria o artigo 13.º da CRP, 'pois que seria inconcebível admitir legitimidade para recorrer a quem detenha a guarda de facto da criança e não a conceder a quem possua a sua guarda de direito, por força de decisão judicial em que essa guarda lhe foi conferida'.

Voltamos a reafirmar que a Maria Teresa foi confiada à reclamante por decisão do Tribunal de Menores, donde provém este apenso, apenas para a acolher, prover ao seu sustento, educação e conforto. É ao Tribunal de Menores que compete decidir sobre a manutenção, alteração ou cessação da medida nos termos em que lhe foi aplicada.

A reclamante não tem a 'sua guarda de direito', conceito não previsto na referida LPCJP.

Donde não se verificar qualquer inconstitucionalidade."

3 - Desta decisão vem interposto, pela reclamante, o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade "do artigo 123.º da Lei 147/99, de 1 de Setembro (LPCJP), na interpretação restritiva que a esta norma foi dada pela decisão recorrida, em sentido idêntico ao patrocinado pela primitiva decisão reclamada", por violação do "princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP". A reclamante concluiu as suas alegações nos seguintes termos:

"1.º O recurso é interposto do douto despacho do Exmo. Sr. Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 28 de Janeiro de 2003, que decidiu a reclamação ao abrigo dos artigos 688.º e 689.º do CPC, completado pelo de 21 de Fevereiro de 2003, que decidiu a arguição de nulidade daquele, ao abrigo dos artigos 668.º, n.º 1, alínea d), e 668.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC.

2.º Destas decisões não há recurso ordinário (CPC, artigo 689.º, n.º 2) - pelo que é ilícito processualmente o presente recurso para o Tribunal Constitucional, assim se cumprindo o pressuposto do artigo 70.º, n.os 2 e 3, da Lei 28/82.

3.º O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da citada Lei 28/82 - com esta indicação se cumprindo o primeiro pressuposto do artigo 75.º-A, n.º 1, da mesma lei.

4.º A norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o venerando Tribunal Constitucional aprecie é a do artigo 123.º da Lei 147/99, de 1 de Setembro (LPCJP), na interpretação restritiva que a esta norma foi dada pela decisão recorrida, em sentido idêntico ao patrocinado pela primitiva decisão reclamada.

5.º Esta interpretação restritiva confere legitimidade para recorrer a quem detenha a guarda de facto da criança e não a confere - como é o caso da ora recorrente -, como detendo guarda de facto ou de direito, a quem possua essa guarda por força de decisão judicial em que essa guarda tenha sido conferida - com esta indicação se cumprindo o segundo pressuposto do artigo 75.º-A, n.º 1, da mesma Lei 28/82.

6.º A norma ou princípio constitucional considerado violado foi o princípio constitucional da igualdade, consagrado no artigo 13.º CRP, assim também violado - com esta indicação se cumprindo o primeiro pressuposto do artigo 75.º-A, n.º 2, da mesma Lei 28/82.

7.º A peça processual em que a recorrente oportunamente suscitou a dita questão de inconstitucionalidade foi a da citada reclamação, formulada esta nos termos do artigo 688.º do CPC, renovadamente suscitada, como tendo havido omissão de pronúncia sobre ela, no subsequente requerimento de arguição de nulidade da primeira decisão do Exmo. Sr. Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação do Porto - com esta indicação se cumprindo também o segundo pressuposto do artigo 75.º-A, n.º 2, da mesma Lei 28/82.

8.º A questão processual suscitada está na sede da legitimidade, existindo esta se a interpretação feita pela decisão recorrida for considerada inconstitucional, como se sustenta - pelo que, sob pena de se denegar a possibilidade de apreciação da constitucionalidade em causa, a requerente tem legitimidade para o presente recurso.

9.º Atrás se fez uma exaustiva interpretação do citado artigo 123.º da Lei 147/99, de 1 de Setembro (LPCJP), na parte em que este confere legitimidade a quem detenha a 'guarda de facto' do menor (seu n.º 2).

10.º O Tribunal recorrido fez uma interpretação restritiva daquela norma, denegando legitimidade para recorrer à ora recorrente, com o fundamento em que, tendo esta a guarda da menor conferida por decisão judicial, isso significava que não tinha a sua guarda de facto.

11.º Deste modo, o presente recurso tem por fundamento que aquela interpretação restritiva dada pelo tribunal a quo ao artigo 123.º da LPCJP é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e do artigo 13.º da CRP.

12.º Com base nesse artigo, a Obra da Nossa Senhora das Candeias recorreu da decisão do Tribunal de Menores e de Família do Porto que ordenou a transferência para outra instituição da Maria Teresa, menor que tinha sido entregue à Obra por aquele Tribunal.

13.º O Tribunal pronunciou-se, e depois a Relação corroborou essa pronúncia, confirmando a decisão da 1.ª instância, no sentido da ilegitimidade da Obra da Nossa Senhora das Candeias, com o fundamento essencial de que esta não possuía a 'guarda de facto' da Maria Teresa, albergando a tese de que o artigo 123.º da LPCJP circunscreve a quem detenha aquela guarda a legitimidade e que a situação da recorrente não cabe naquele conceito.

14.º Todavia, como desenvolvidamente se deixou expresso nas alegações que precedem e aqui se dão por reproduzidas, uma tal interpretação restritiva da invocada norma do artigo 123.º da LPCJP, a entender-se assim, violará a CRP, o seu princípio da igualdade e o seu artigo 13.º

15.º Por isso, deve ser declarado por este venerando Tribunal Constitucional que a interpretação conferida pelo Tribunal à dita norma, nos termos em que o fez e se deixaram expressos, torna essa norma inconstitucional, só deixando de o ser se for interpretada no sentido de que a recorrente, na situação jurídica que possui de detentora de facto e de direito dimanante da confiança que lhe foi feita da menor Maria Teresa por anterior decisão judicial, tem legitimidade para recorrer da nova decisão judicial que altera o regime de confiança da mesma menor, atribuindo-a a outrem."

Nas suas contra-alegações, o Ministério Público junto deste Tribunal suscitou a questão prévia da inutilidade do recurso interposto, concluindo:

"1.º Tendo a decisão recorrida assentado claramente num duplo fundamento alternativo, traduzido na invocação das normas constantes do artigo 123.º da Lei 147/99 (denegando legitimidade para recorrer à reclamante com base em que esta não tem a 'guarda de facto' do menor) e do princípio geral constante do artigo 678.º do Código de Processo Civil (traduzido em a entidade recorrente não ser parte no processo, não tendo ficado vencida face ao despacho impugnado e não sendo directa e efectivamente prejudicada por ele - e limitando-se o recorrente a impugnar a constitucionalidade daquela primeira 'norma' - não tem utilidade (nem interesse processual) a dirimição de tal questão, já que a decisão recorrida sempre permaneceria incólume, com base na outra norma, não objecto de impugnação pelo recorrente.

2.º Não traduz consagração de um regime jurídico arbitrário ou discricionário a interpretação da norma, constante do n.º 2 do artigo 123.º da Lei 147/99, em termos de apenas ser admissível o recurso da pessoa física que, embora apenas no plano fáctico, vem exercendo a 'guarda de facto' do menor, assumindo reiteradamente (embora sem legitimação normativa ou judicial) o núcleo essencial das responsabilidades parentais.

3.º Já não detendo, porém, tal legitimidade para recorrer das medidas atinentes à promoção e protecção de menores as pessoas colectivas que - em termos institucionais e por incumbência do tribunal - são chamadas a assumir, em termos precários e provisórios, uma tarefa de acolhimento de crianças, provendo ao seu sustento, educação e conforto, sem outorga de poderes de representação - e sempre sob o poder decisório do tribunal com que cooperam.

4.º Termos em que, pelas razões apontadas, não deverá conhecer-se, por inutilidade, do recurso."

Notificada para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, a recorrente veio dizer o seguinte:

"1 - Está mais do que explicitado que a questão da legitimidade é una, pelo que não é divisível nos dois planos autónomos que são pretendidos na suscitada questão prévia.

2 - É porque o tribunal comum entende que a recorrente não tem a guarda de facto do menor, face ao artigo 123.º, n.º 2, da Lei 147/99, que lhe não reconhece que tenha ficado vencida e não tenha sido directamente prejudicada.

3 - Nada mais há a dizer, pois que tudo dito está nas alegações que a recorrente apresentou."

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentos. - 4 - O presente recurso vem intentado ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.

Ora, como se sabe, no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso (cf., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 15 de Maio de 1996, e J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998, p. 821), com exclusão dos actos de outra natureza (políticos, administrativos ou judiciais em si mesmos).

E, como também é sabido, para se poder conhecer do recurso de constitucionalidade interposto nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, torna-se necessário, a mais do esgotamento dos recursos ordinários e que a inconstitucionalidade normativa tenha sido suscitada durante o processo, que a norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido aplicada, como ratio decidendi, pelo tribunal recorrido.

É a seguinte a redacção do artigo 123.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (aprovada pela Lei 147/99, de 1 de Setembro), cujo n.º 2 é impugnado pela recorrente:

Artigo 123.º

Recursos

1 - Cabe recurso das decisões que, definitiva ou provisoriamente, se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e protecção.

2 - Podem recorrer o Ministério Público, a criança ou o jovem, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem."

Sustenta o Ministério Público que não deve tomar-se conhecimento do presente recurso por a decisão recorrida ter assentado numa "dupla linha argumentativa", isto é, por não ter assentado apenas na aplicação deste n.º 2 do artigo 123.º, considerando que a reclamante não tinha a guarda de facto da criança, exigida como condição de legitimidade, mas também no princípio geral constante do artigo 678.º do Código de Processo Civil (e também, apesar de não expressamente invocado, do artigo 680.º deste Código), pois não ficou vencida pelo teor do despacho que pretendeu questionar nem foi directa e efectivamente prejudicada pela decisão.

Existiria, assim, um outro fundamento, diverso da norma impugnada, por si só bastante para chegar à decisão recorrida, de indeferimento da reclamação, por falta de legitimidade para recorrer.

Na verdade, na decisão recorrida pode ler-se, depois de se invocar o artigo 123.º, n.º 2, já citado, que a reclamante "nem parte no processo é, não ficou vencida no despacho em causa nem directa e efectivamente prejudicada por ele", pelo que "não pode interpor recurso de tal decisão por falta de legitimidade nos termos do citado artigo 123.º, n.º 2, nem pelo princípio geral do artigo 678.º do CPC".

Importa considerar, porém, que o artigo 123.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo contém um regime especial de legitimidade para impugnar as decisões que se pronunciem sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas de promoção e protecção, regime, esse, que, evidentemente, prevalece sobre o regime geral do Código de Processo Civil.

Ora, a legitimidade para a interposição do recurso em causa nos presentes autos fere-se, em primeira linha, por esse regime especial, afigurando-se que a invocação do princípio geral do Código de Processo Civil não passou de um argumento adjuvante invocado na decisão recorrida. E, decisivamente, não pode dizer-se que uma eventual decisão de inconstitucionalidade da norma constante do referido regime especial, na medida em que não reconhece legitimidade a entidades que se encontrem na situação da recorrente, não implicaria uma alteração da decisão recorrida, pois é claro que levaria igualmente ao afastamento, por inconstitucionalidade, da mesma solução obtida por uma eventual interpretação desse regime geral.

Entende-se, pois, que, apesar da invocação do "princípio geral do artigo 678.º do CPC" (e repete-se a nota de que a disciplina de "quem pode recorrer" se contém antes no artigo 680.º desse Código de Processo Civil) pela decisão recorrida, o julgamento que este Tribunal viesse a efectuar sobre a norma especial do artigo 123.º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo não poderia deixar de se reflectir sobre a decisão recorrida. Pelo que - ainda que se considerasse que existe um outro fundamento normativo autónomo para a decisão da questão de legitimidade (problema que se pode deixar em aberto) -, sempre manteria utilidade a apreciação da constitucionalidade daquela norma.

Julga-se, pois, improcedente a questão prévia suscitada pelo Ministério Público, passando-se ao conhecimento do recurso.

5 - Está em questão a conformidade constitucional da norma do artigo 123.º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, na medida em que atribui legitimidade para recorrer a quem tiver a guarda de facto da criança ou do jovem, mas não a entidades como a recorrente - a quem tinha sido atribuída a confiança provisória do menor. Segundo a recorrente, "admitir legitimidade para recorrer a quem detenha a guarda de facto da criança e não a conceder a quem possua a sua guarda de direito, por força de decisão judicial em que essa guarda lhe foi conferida" - situação que seria a sua -, violaria o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.

Importa, antes de prosseguir, deixar claro que, na decisão de recursos de constitucionalidade, não compete ao Tribunal Constitucional dizer o melhor direito - ou, sequer, censurar a má aplicação ou interpretação de normas, dentro dos limites da conformidade constitucional -, mas apenas apreciar se a norma, ou interpretação, adoptada deve ser considerada inconstitucional. Está em causa não apenas o bom ou mau direito mas o que é não direito, por ser contrário à Constituição da República.

E é também claro que não está em causa, no presente recurso, nem a conveniência, o plano de jure condendo, da eventual atribuição de legitimidade a entidades como a recorrente, nem, muito menos, qualquer consequência da forma de desempenho do papel de entidades como a recorrente, na missão de assistência a entidades públicas na protecção de crianças e jovens em risco.

6 - No âmbito do processo tutelar de promoção e protecção da menor em causa, esta foi provisoriamente confiada à recorrente, por um período de seis meses, sendo esta medida prorrogada por duas vezes, até que, por despacho de Setembro de 2002, foi determinada a transferência da menor para outra instituição, sob a égide da segurança social. A confiança provisória havia sido decretada nos termos dos artigos 34.º e 35.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

Ora, não cabe ao Tribunal Constitucional decidir a questão de saber se a qualificação mais correcta da situação concreta da recorrente era ou não a de titular de "guarda de facto" da menor em causa - e se, portanto, uma correcta qualificação levaria a considerá-la abrangida no artigo 123.º, n.º 2, do diploma em questão.

Segundo a decisão recorrida, a recorrente "não tem tal qualidade, pois que a Maria Teresa lhe foi confiada por decisão judicial, apenas para a acolher, prover ao seu sustento, educação e conforto". E é justamente a exclusão da legitimidade para recorrer a quem recebeu o menor por decisão judicial, quando ela é reconhecida a quem apenas tem a guarda de facto do menor, que, segundo a recorrente, fundaria a violação do princípio da igualdade e a inconstitucionalidade da norma em questão - "tal interpretação restritiva da invocada norma do artigo 123.º da LPCJP, a entender-se assim, violará a Constituição da República Portuguesa, o seu princípio da igualdade e o seu artigo 13.º"

7 - Este Tribunal tem desde há muito desenvolvido, em numerosos arestos, o seu entendimento das exigências resultantes do princípio constitucional da igualdade. Essa linha jurisprudencial - bem como contributos doutrinários e de outras jurisdições - foi recenseada e resumida, recentemente, no Acórdão 232/2003 (publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 138, de 17 de Junho de 2003), da seguinte forma:

"O Acórdão 319/00 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 47.º vol., pp. 497 e segs.), apoiando-se no Acórdão 563/96 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º vol., pp. 47 e segs.), procedeu a uma síntese da jurisprudência constitucional relativa ao princípio da igualdade. Assim:

"[O] Tribunal Constitucional teve já a oportunidade de se pronunciar diversas vezes sobre as exigências do princípio constitucional da igualdade, que, no fundo, se reconduz à proibição do arbítrio, proibição essa que, naturalmente, não anula a liberdade de conformação do legislador onde ele a não infrinja. Assim, por exemplo, no Acórdão 563/96 [...], publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 33.º vol., pp. 47 e segs., foram assim descritas:

'1.1 - O princípio da igualdade do cidadão perante a lei é acolhido pelo artigo 13.º da Constituição da República, que, no seu n.º 1, dispõe, genericamente, terem todos os cidadãos a mesma dignidade social, sendo iguais perante a lei, especificando o n.º 2, por sua vez, que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social.

Princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., p. 129), o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro, da atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).

Muito trabalhado, jurisprudencial e doutrinariamente, o princípio postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual a situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual de situações desiguais) - cf., entre tantos outros, e além do já citado Acórdão 186/90, os Acórdãos n.os 39/88, 187/90, 188/90, 330/93, 381/93, 516/93 e 335/94, publicados no referido jornal oficial, 1.ª série, de 3 de Março de 1988, e 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990, de 30 de Julho de 1993, de 6 de Outubro do mesmo ano, e de 19 de Janeiro e de 30 de Agosto de 1994, respectivamente.

1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, razoável, racional e objectivamente fundadas, sob pena de, assim não sucedendo, estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes, no ponderar do citado Acórdão 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, p. 299).

Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 127, e, por exemplo, o Acórdão 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados Acórdãos n.os 330/93 e 335/94 -, sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial (tertium comparationis). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminado o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, p. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, p. 425; Acórdão 330/93).

Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 381; Alves Correia, ob. cit., p. 402), o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da diferença de modo que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.

O n.º 2 do artigo 13.º da Constituição da República enumera uma série de factores que não justificam tratamento discriminatório e assim actuam como que presuntivamente - presunção de diferenciação normativa envolvendo violação do princípio da igualdade -, mas que são enunciados a título meramente exemplicativo: cf., v. g., os Acórdãos n.os 203/86 e 191/88, publicados no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Agosto de 1986, e 1.ª série, de 6 de Outubro de 1988, respectivamente, na esteira do parecer 1/86, da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 1.º, pp. 5 e segs., maxime p. 11. A intenção discriminatória [...] não opera, porém, automaticamente, tornando-se necessário integrar a aferição jurídico-constitucional da diferença nos parâmetros finalístico, de razoabilidade e de adequação pressupostos pelo princípio da igualdade.'"

Registe-se ainda que quer a Comissão quer o Tribunal Constitucional admitiram já a hipótese de, em certos casos, se proceder a diferenciações de tratamento ou, noutra perspectiva, a 'discriminações positivas' (sobre a jurisprudência constitucional nesta matéria, cf., por todos, Luís Nunes de Almeida e Armindo Ribeiro Mendes, 'Les discriminations positives - Portugal', Annuaire International de Justice Constitutionnelle, vol. XIII, 1997, pp. 223 e segs.).

[...]

Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.

Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma 'fundamentação razoável' (vernünftiger Grund), tal como sustentou o 'inventor' do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. F. Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419 e segs.). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: '[E]stando em causa [...] um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela ratio do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ratio do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério.' (Cf. Princípio da Igualdade: Fórmula Vazia ou Fórmula 'Carregada' de Sentido?, separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, opina a mesma autora: '[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à ratio do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a ratio do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aqueloutro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a ratio do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade.' (ob. cit., pp. 31 e 32).

Também a jurisprudência constitucional se orienta nesse sentido. Assim, o Tribunal Constitucional Alemão já teve ensejo de afirmar que '[...] um tratamento arbitrário é aquele que [...] não é compreensível por uma apreciação razoável das ideias dominantes da lei fundamental' (42 BVerfGE 64, 74) e que '[A] máxima da igualdade é violada quando para a diferenciação legal ou para o tratamento legal igual não é possível encontrar um motivo razoável, que surja da natureza das coisas ou que, de alguma outra forma, seja compreensível em concreto, isto é, quando a disposição tenha de ser qualificada como arbitrária' (1 BVerfGE 14, 52; mais recentemente, cf. 12 BVerfGE 341, 348; 20 BVerfGE 31, 33; 30 BVerfGE 409, 413; 44 BVerfGE 70, 90; 51 BVerfGE 1, 23; 60 BVerfGE 101, 108).

Caminhos idênticos foram percorridos pelo Tribunal Constitucional Português (a título meramente exemplificativo, cf. os Acórdãos n.os 44/84, 186/90, 187/90 e 188/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3.º vol., pp. 133 e segs., e 16.º vol., pp. 383 e segs., 395 e segs. e 411 e segs., respectivamente). No Acórdão 39/88, o Tribunal teve ocasião de dizer: '[O] princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo constitucionalmente relevantes [...]' (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol., pp. 233 e segs.). E, curiosamente, também nos Estados Unidos se alude à necessidade de, no estabelecimento de diferenciações, obedecer a um cânone de razoabilidade (reasonableness) (cf. J. Tussman e J. tenBroek, 'The equal protection of the laws', California Law Review, n.º 37, 1949, p. 344, citado por Gianluca Antonelli, 'La giurisprudenza italiana e statunitense sul principio di solidarietà', Studi parlamentari e di politica costituzionale, n.os 125-126, 1999, p. 89; sobre o princípio da razoabilidade na jurisprudência norte-americana, cf. Giovanni Bognetti, 'II principio di ragionevolezza e la giurisprudenza della Corte Suprema degli Stati Uniti', in AA. VV., Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale. Riferimenti comparatistici, Milão, 1994, pp. 43 e segs.).

Neste domínio em especial, merece destaque a evolução da jurisprudência constitucional italiana, que, tendo firmado em termos absolutos a ideia da discricionariedade do legislador (sentenze n.os 28/1957 e 56/1958), veio pouco depois indagar se uma dada lei se apresentava 'destituída de qualquer justificação' e se a mesma detinha uma 'razão idónea' (sentenza n.º 46/1959). Na sentenza n.º 15/1960, a Corte disse que era sua jurisprudência constante considerar que '[...] o princípio da igualdade é violado mesmo quando a lei, sem um motivo razoável, procede a um tratamento diverso de cidadãos que se encontram em situação idêntica'. A doutrina, de seu lado, não andou longe destas asserções: já Mortati afirmava, por exemplo, que o legislador tinha 'a obrigação de não violar as leis da lógica' (Istituzioni di diritto pubblico, Pádua, 1958, p. 715; mais recentemente, cf. a mesma obra, 9.ª ed., actualizada, Pádua, 1976, pp. 1412 e segs.). Mais tarde, Carlo Lavagna teve a percepção clara da necessidade do recurso a um princípio de razoabilidade - que definiu como 'la utilizzazione razionale dei contesti umani nella costruzione di norme sulla base delle prescrizioni-fonte' - e enunciou os diversos critérios da sua ponderação: a correspondência (corrispondenza), o juízo sobre a finalidade (giudizio sulle finalità), a pertinência (pertinenza), a congruência (congruità) meios/fins, a coerência (coerenza), a evidência (evidenza) e, enfim, a motivação (motivazione) (cf. 'Ragionevolezza e legittimità costituzionale', in Studi in memoria di Carlo Esposito, vol. III, Pádua, 1973, pp. 1573 e segs.). De igual modo, Vezio Crisafulli reconheceu que o tribunal, ao indagar de eventuais violações do princípio da igualdade, fá-lo, designadamente, com base numa 'cláusula geral de razoabilidade' (cf. Lezioni di diritto costituzionale, t. II, 5.ª ed., revista e actualizada, Pádua, 1984, p. 372). Contrariando a tese do 'racional como razoável' (Aulis Aarnio), Gustavo Zagrebelski veio distinguir a ideia de racionalidade - que, em seu entender, corresponderia à coerência lógica - da ideia de razoabilidade, estando esta ligada a uma adequação aos valores de justiça que funciona primacialmente como um vínculo negativo do legislador [cf. La giustizia costituzionale, 2.ª ed., Bolonha, 1988, pp. 147 e segs.; idem, 'Su tre aspetti della ragionevolezza', in AA. VV., Il principio..., cit., pp. 179 e segs., em especial pp. 181-184 (onde parece aproximar os conceitos de razoabilidade e racionalidade)]. E, justamente naquele primeiro sentido - isto é, no sentido de uma racionalidade coerente -, aludiu o Tribunal Constitucional Italiano, na sua sentenza n.º 204/1982, a um 'cânone geral de coerência' (generale canone di coerenza) [cf., sobre a evolução jurisprudencial do Tribunal Constitucional Italiano, A. Agrò, 'Commento all'art 3 Cost.', in G. Branca (org.), Commentario della Costituzione, vol. I, Bolonha e Roma, 1975, pp. 141 e segs.; Paolo Barile, 'Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza della Corte Costituzionale', in AA.VV., Il principio..., cit., pp. 21 e segs.; Livio Paladin, 'Ragionevolezza (principio di)', in Enciclopedia del Diritto - Aggiornamento, vol. I, Milão, 1997, em especial pp. 900 e segs.] [...]"

Ora, assente este conteúdo paramétrico do princípio constitucional da igualdade, importa averiguar se a norma em questão o violará.

8 - A resposta à questão posta não pode deixar de ser negativa.

Na verdade, corresponda ou não a solução em causa à melhor interpretação da norma a apreciar, é certo que a limitação da legitimidade para recorrer à pessoa que, embora apenas no plano fáctico, exerce a "guarda de facto" do menor e assume reiteradamente (mesmo que sem legitimação normativa ou judicial) o núcleo das responsabilidades parentais, com exclusão da instituição ou pessoa colectiva que, por incumbência do tribunal, é chamada a assumir, em termos precários e provisórios, uma tarefa de acolhimento de crianças, sem outorga de poderes de representação e sob poder decisório do tribunal com que cooperam, não viola o princípio da igualdade.

Tal solução não é arbitrária, baseando-se em critérios objectivos e constitucionalmente relevantes: enquanto num caso está em questão uma pessoa que, no plano fáctico, tem a guarda do menor e que provê às suas necessidades, no segundo está em causa uma instituição que apenas vê ser-lhe confiada a guarda por incumbência do tribunal, o qual mantém o poder de decidir sobre a manutenção, alteração ou cessação desta medida - está em causa, por outras palavras, uma instituição cuja situação é já o resultado de uma medida de protecção e promoção do menor. Na primeira situação está uma pessoa que, mesmo sem legitimação normativa judicial, assume as responsabilidades parentais; na segunda está em causa uma pessoa colectiva que apenas é chamada a intervir em colaboração com o tribunal, por incumbência deste, em termos precários e provisórios, para acolher crianças e prover o seu sustento, educação e conforto, mas sem que lhe sejam concedidos poderes de representação e sempre sob o poder decisório do tribunal com que colaboram.

A atribuição de legitimidade para recorrer de decisões sobre medidas atinentes à promoção e protecção de menores apenas à pessoa singular que se encontre na primeira situação, mas já não à pessoa colectiva que se encontre na segunda (por força de anterior decisão judicial), não pode, pois, considerar-se arbitrária ou discricionária.

E, por conseguinte, não se verifica qualquer violação do princípio da igualdade na norma em causa, ao excluir a legitimidade para recorrer por parte de instituições que se encontrassem na situação da recorrente - e isto, repete-se, independentemente da questão de saber se tal solução corresponde ou não à melhor interpretação do direito infraconstitucional, ou se seria mais conveniente no plano de jure condendo atribuir também legitimidade a entidades como a recorrente.

Note-se, ainda, estar por demonstrar que resulte da norma em questão, pelo facto de dela resultar a falta de legitimidade para recorrer das instituições que, em colaboração com o tribunal, são chamadas a, em termos precários e provisórios, acolher crianças, qualquer não cumprimento do dever de protecção das crianças previsto no artigo 69.º da Constituição ou uma lacuna de protecção das crianças. Isto, desde logo, considerando o facto de essa protecção estar também especificamente cometida a entidades públicas, como as comissões de protecção de crianças e jovens, o Ministério Público e os tribunais.

Pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso.

III - Decisão. - Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:

a) Não julgar inconstitucional o artigo 123.º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei 147/99, de 1 de Setembro;

b) Por conseguinte, negar provimento ao presente recurso;

c) Condenar a recorrente em custas, com 15 unidades de conta de taxa de justiça.

Lisboa, 10 de Março de 2004. - Paulo Mota Pinto - Benjamim Rodrigues - Maria Fernanda Palma - Mário José de Araújo Torres - Rui Manuel Moura Ramos.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2206148.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1988-03-03 - Acórdão 39/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL DA NORMA DO ARTIGO 3, NUMERO 1, ALÍNEAS A) E B) E NUMERO 2, DA LEI 80/77, DE 26 DE OUTUBRO, POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INDEMNIZAÇÃO CONSAGRADO NO ARTIGO 82 DA CONSTITUICAO. NAO DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE DAS RESTANTES NORMAS QUE VEM IMPUGNADAS.

  • Tem documento Em vigor 1988-07-26 - Acórdão 157/88 - Tribunal Constitucional

    DECLARA A INCONSTITUCIONALIDADE, COM FORÇA OBRIGATÓRIA GERAL, DA NORMA DO ARTIGO 5 DO DECRETO LEI NUMERO 336/84, DE 18 DE OUTUBRO (CRIOU A PORTLINE E A TRANSISULAR E APROVOU OS RESPECTIVOS ESTATUTOS), TAL COMO INTERPRETADO PELA ALÍNEA A) DO ARTIGO ÚNICO DO DECRETO LEI NUMERO 45/85, DE 21 DE FEVEREIRO (FIXOU O ALCANCE DO ARTIGO 5 DO DECRETO LEI NUMERO 336/84, NA PARTE EM QUE SE REFERE A 'PORTARIA DE REGULAMENTAÇÃO DO TRABALHO', POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 57, NUMERO 2 ALÍNEA A) DA CONSTITUICAO DA REPÚ (...)

  • Tem documento Em vigor 1996-05-16 - Acórdão 563/96 - Tribunal Constitucional

    Não declara a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 295/73, de 9 de Junho; declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da alínea a) do n.º 7 da Portaria n.º 162/76, de 24 de Março, relativamente aos deficientes das Forças Armadas (Processo n.º 198/93).

  • Tem documento Em vigor 1999-09-01 - Lei 147/99 - Assembleia da República

    Aprova a Lei de protecção de crianças e jovens em perigo.

  • Tem documento Em vigor 2003-06-17 - Acórdão 232/2003 - Tribunal Constitucional

    Pronuncia-se pela inconstitucionalidade do segmento normativo que contém o critério respeitante aos candidatos que tenham acedido ao ensino superior integrados no contingente da Região Autónoma dos Açores, constante da parte final da alínea a) do n.º 7 do artigo 25.º do Regulamento do Concurso do Pessoal Docente da Educação Pré-Escolar e Ensinos Básico e Secundário.(Pocesso nº 306/2003)

Aviso

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