Acórdão 18/2004/T. Const. - Processo 853/2003. - Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Por sentença do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Setúbal, foi julgado improcedente o recurso interposto por Tomaz António da Bandeira Rodriguez Pessanha, ao abrigo do n.º 1 do artigo 59.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, da decisão da Direcção-Geral de Viação (Delegação de Setúbal) que o condenou na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 60 dias pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida nos termos do n.º 1 e da alínea a) do n.º 2 do artigo 27.º, do artigos 139.º e da alínea b) do artigo 146.º do Código da Estrada.
Em 7 de Outubro de 2003, o recorrente apresentou um requerimento de interposição de recurso dessa decisão (fl. 52). Por despacho de 24 de Outubro de 2003 (fl. 59), o juiz daquele Tribunal rejeitou o recurso.
O recorrente apresentou reclamação deste despacho, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro (LTC), com os seguintes fundamentos:
"1 - Por manifesto lapso de que o ora signatário se penitencia, não se indicou, como era intenção, que o recurso interposto, visando
tão-somente o conhecimento da invocada inconstitucionalidade das normas indicadas, era destinado ao Tribunal Constitucional.
2 - Aliás, que assim era resultou também perceptível pelo Tribunal recorrido que muito bem indica tal sentido do requerimento ao afirmar que tal 'poderia pretender' o recorrente.
3 - Igualmente não se mencionou de forma expressa, mas sempre resultaria tacitamente dessa interposição no termo do prazo, a renúncia ao recurso ordinário a que se refere o mesmo douto despacho reclamado, condição legal necessária à admissão do recurso interposto.
4 - Dir-se-á, e com justeza, que são demasiados lapsos, numa questão que pela sua tecnicidade não os deveria permitir ao signatário, mas a mesma relevância e evidência do direito que se pretende ajuizar impõe que seja admitida a correcção dos mesmos e em consequência admitido o recurso em tempo interposto, por quem tinha legitimidade, a fim de que sejam removidas razões de ordem formal que impeçam o conhecimento de mérito do pedido formulado."
Ouvido nos termos do n.º 2 do artigo 77.º da LTC, o Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência da reclamação (fls. 74 v.º-75).
Sem vistos, face à simplicidade da questão, cumpre decidir (n.º 3 do artigo 77.º da LTC).
2 - O requerimento de interposição do recurso (fl. 52) é do seguinte teor:
"Tomaz António da Bandeira Ramirez Pessanha, residente na Estrada do Lumiar, 13, bloco 2, 3.º, direito, em Lisboa, vem deduzir recurso, suscitada que foi, nos autos à margem referenciados, a inconstitucionalidade dos artigos 33.º e 34.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas."
Perante este requerimento, foi proferido o seguinte despacho:
"O arguido 'vem deduzir recurso suscitada que foi [...] a inconstitucionalidade dos artigos 33.º e 34.º do Regime Geral das Contra-Ordenações'.
O recurso é admissível para o Tribunal da Relação porque a decisão manteve a aplicação de sanção acessória [artigo 73.º, n.º 1, alínea b), do regime dos ilícitos de mera ordenação social].
Mas segue a tramitação do processo penal (artigo 74.º, n.º 4, do referido regime).
O que significa que deve incluir a motivação, sob pena de não admissão do recurso (artigo 411.º, n.º 3, do CPP).
O arguido não apresentou a motivação.
Porventura poderia pretender ver a questão apreciada pelo Tribunal Constitucional, já que expressamente alude à matéria da inconstitucionalidade (muito embora esta possa e deva ser apreciada por qualquer tribunal).
Para tanto, haveria que ter atentado no artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 22/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei 13-A/98, de 26 de Fevereiro).
Não se esgotaram os recursos ordinários e não houve renúncia à sua interposição.
Assim, rejeita-se o recurso."
3 - Previamente à apreciação dos argumentos do reclamante, convém deixar esclarecidos dois aspectos, a propósito dos quais poderiam gerar-se dúvidas sobre a idoneidade do meio processual utilizado.
O primeiro é o de que, embora o despacho reclamado conclua com a expressão "rejeita-se o recurso", é manifesto estarmos perante um despacho de "indeferimento do requerimento de interposição" ou de "não admissão" do recurso interposto e, portanto, perante uma decisão relativamente à qual o meio de impugnação adequado é a reclamação (o antigamente chamado recurso de queixa).
O segundo consiste em que o sentido ou o conteúdo decisório contra o qual o reclamante agora reage é o de indeferimento do requerimento a fl. 52 enquanto (suposto) veículo da interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. Efectivamente, o despacho contém um outro expresso sentido decisório, que é o de não admissão do recurso para o Tribunal da Relação, com fundamento na falta de motivação, nos termos impostos pelo n.º 3 do artigo 411.º do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no n.º 4 do artigo 74.º do Decreto-Lei 433/82, de 26 de Outubro, diploma que estabelece o regime geral das contra-ordenações. Com esse outro conteúdo decisório do despacho - cuja apreciação não caberia na competência do Tribunal Constitucional, sublinhe-se -, o reclamante conformou-se.
Assim, como o despacho a fl. 59 perspectivou, embora em termos hipotéticos e num plano subsidiário de decisão, o requerimento a fl. 52 como de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional e (também com esse sentido) o indeferiu, é admissível o meio de impugnação previsto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
4 - Além dos requisitos que a lei para cada espécie estabeleça, os actos processuais devem ser redigidos de maneira a tornar claro o seu conteúdo (artigo 138.º, n.º 3 do CPC). De um modo geral, vale para os actos processuais das partes, sobretudo para os actos postulativos (aqueles em que é solicitada uma decisão ao tribunal e cujos efeitos só se produzem mediante essa decisão), a regra que se retira das disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 236.º, do n.º 1 do artigo 238.º e do artigo 295.º do Código Civil e do artigo 75.º-A da LTC, ou seja, centrando-nos no que para o caso interessa, actos do tipo do requerimento de interposição de recurso, que se desenvolvem apenas na vertente bipolar (requerente juiz ) da relação processual, devem ser interpretados com o sentido que um juiz normal, colocado na posição do juiz concreto, lhes daria. Vale por dizer que, aquando da interpretação do acto da parte, não pode ser considerada uma vontade que não tenha no texto que o corporiza um mínimo de correspondência verbal, embora nessa tarefa interpretativa o tribunal deva atender também às circunstâncias que resultam dos autos (o contexto e a dinâmica da lide), presumir que o requerente pretende o efeito mais favorável ou de maior utilidade para que o acto seja idóneo.
Ora, o requerimento a fl. 52 não satisfaz minimamente os requisitos de interposição de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade para o Tribunal Constitucional (de natureza "mais rígida" do que o regime geral, cf. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, p. 191, nota 1).
Em primeiro lugar, nem sequer é nele inteligível que o recurso interposto se destinasse ao Tribunal Constitucional. Efectivamente, o requerimento a fl. 52 não contém qualquer menção ao Tribunal Constitucional, ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade ou a qualquer preceito legal da qual se pudesse inferir que era um recurso deste tipo que se visava interpor. Ora, quando no requerimento de interposição do recurso não se menciona o tribunal ad quem, deve entender-se, segundo um juízo de normalidade, que se pretende interpor recurso ordinário para o tribunal competente inserido na hierarquia própria da ordem jurisdicional a que pertence o tribunal de que se recorre. A mera indicação de que o tema do recurso seria "a inconstitucionalidade dos artigos 33.º e 34.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas" não é suficiente para que se entenda diversamente, porque a questão de constitucionalidade pode ser discutida perante os restantes tribunais (artigo 204.º da Constituição).
Em segundo lugar, o requerimento não dá cumprimento a qualquer das exigências do artigo 75.º-A da Lei 28/82, designadamente, não indica a alínea do n.º 1 do artigo 70.º ao abrigo do qual o recurso é interposto, a norma ou princípio constitucional que se considera violado e [suposto que possa depreender-se daquela referência aos artigos 33.º e 34.º do regime geral das contra-ordenações que se pretendia recorrer ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º] a peça processual em que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade.
Perante um tal concreto circunstancialismo, nenhuma censura merece o despacho reclamado ao perspectivar, em primeira linha, o recurso como dirigido ao Tribunal da Relação e, consequentemente, ao nem sequer convidar o requerente a fazer as indicações indispensáveis à apreciação dos pressupostos específicos do recurso para o Tribunal Constitucional (n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC).
De todo o modo, sucede que o reclamante nem agora, na fase de reclamação, supriu tais deficiências. Ficou apenas certo que, afinal, pretendia recorrer para o Tribunal Constitucional. As demais deficiências permanecem e com elas a impossibilidade de apreciar os pressupostos específicos do recurso de constitucionalidade, como seria indispensável ao provimento da reclamação.
Com efeito, fazendo a decisão caso julgado quanto à admissibilidade do recurso, nos termos do n.º 4 do artigo 77.º da Lei 28/82, é pressuposto do provimento da reclamação que estejam reunidas todas as condições para que o Tribunal Constitucional possa resolver definitivamente, no momento em que a aprecia, sobre a admissibilidade do recurso. Daí que o reclamante, quando não lhe tenha sido dada oportunidade de supri-las perante o tribunal a quo, tenha de aproveitar a reclamação para colmatar espontaneamente as deficiências do requerimento que possam obstar à admissão do recurso, sob pena de ver o indeferimento confirmado.
5 - O que antecede seria suficiente para a improcedência da reclamação. Mas a isto acresce uma razão, se assim pode dizer-se, ainda mais definitiva.
O despacho reclamado, admitindo - num plano de apreciação subsidiária, já o dissemos - a hipótese de o recorrente pretender interpor recurso para o Tribunal Constitucional, considerou o recurso inadmissível por não esgotamento dos recursos ordinários, nos termos do n.º 2 do artigo 70.º da Lei 28/82.
O reclamante não contesta que no caso coubesse recurso ordinário. O que afirma é que devem considerar-se esgotados os recursos ordinários, por renúncia (cf. a disposição extensiva do conceito de esgotamento dos meios de recurso ordinários constante do n.º 4 do artigo 70.º da Lei 28/82, que o reclamante não refere mas que teve em mente). Para tanto, sustenta que, embora não tenha renunciado expressamente ao recurso ordinário, deve ser como tal interpretado o recurso para o Tribunal Constitucional no "termo do prazo".
Mas, também por esta via, sem razão.
A renúncia tácita ao recurso é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer (artigo 681.º, n.º 3, do CPC). Transpondo este conceito para a hipótese versada, a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional não é, seja de modo geral seja no caso particular, um facto concludente inequívoco da vontade de não interposição de recurso ordinário (hoc sensu). Que não tem, em geral, esse significado inequívoco resulta do próprio sistema legal, designadamente da conjugação do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 70.º da Lei 28/82. Não teria sentido útil, seria uma previsão legal redundante - que o intérprete não deve presumir, cf. o artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil -, fazer depender a admissibilidade de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade de renúncia ao recurso ordinário (artigo 70.º, n.º 4) se a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional valesse ipso facto como renúncia àquele outro recurso. E que o não tem no caso concreto está já demonstrado pelo que acima se disse sobre a interpretação do requerimento a fl. 52, que levou o tribunal a quo a, acertadamente, solucionar a ambiguidade no sentido de que o ora reclamante pretendia interpor recurso para o Tribunal da Relação.
6 - Decisão. - Pelo exposto, indefere-se a reclamação e condena-se o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2004. - Vítor Gomes - Maria dos Prazeres Beleza - Luís Nunes de Almeida.