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Acórdão 276/2003/T, de 3 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 276/2003/T. Const. - Processo 710/2002. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - 1 - Na comarca de Cuba, em processo comum perante tribunal singular, Maria de Fátima Heleno Coreixo Rosado, constituída assistente nos autos, deduziu acusação contra José Manuel Refacho Passinhas, a quem imputa a autoria material de um crime de injúrias, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal -, no que não foi acompanhada pelo Ministério Público.

O magistrado judicial respectivo, por despacho de 1 de Julho de 2002, ordenou o arquivamento dos autos, após ter julgado inconstitucional a norma constante do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), segundo a redacção da Lei 59/98, de 25 de Agosto, "na parte em que não permite ao juiz do julgamento rejeitar a acusação deduzida pelo assistente e não acompanhada pelo Ministério Público, por manifesta falta de prova indiciária", invocando, para o efeito, violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 1, 203.º, 207.º e 219.º, n.º 1, todos da Constituição da República (CR).

O magistrado do Ministério Público interpôs recurso do assim decidido para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do preceituado nos artigos 70.º, n.º 1, alínea a), e 72.º, n.os 1, alínea a), e 3, da Lei 28/82, de 15 de Novembro.

O recurso tem por objecto - como ficou posteriormente clarificado - "a norma constante do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (na redacção emergente da Lei 59/98) - jugado com a tipificação taxativa dos casos de acusação manifestamente infundada, constante do n.º 3 - na parte em que não permite ao juiz de julgamento rejeitar a acusação deduzida pelo assistente e não acompanhada pelo Ministério Público, por manifesta falta de prova indiciária, cuja aplicação foi recusada pela decisão recorrida, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, 203.º, 207.º e 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa".

2 - Recebido o recurso, tão-só o Ministério Público alegou, concluindo assim:

"1 - A norma constante do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (conjugada com a definição taxativa dos casos de acusação manifestamente infundada, constante do n.º 3 do preceito), enquanto veda ao juiz do julgamento, no momento do saneamento do processo, a rejeição da acusação deduzida pelo assistente, com fundamento na insuficiência de prova indiciária - tendo o arguido prescindido da oportunidade processual de requerer a instrução não ofende o princípio das garantias de defesa nem qualquer outra norma ou princípio da Constituição.

2 - Termos em que deverá proceder o presente recurso."

Cumpre apreciar e decidir.

II - 1 - A norma do artigo 311.º do CPP, inserida na fase de saneamento do processo como preliminar do julgamento, após dispor, no seu n.º 1, que, recebidos os autos no tribunal, "o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentes que obstam à apreciação do mérito da causa, de que se possa desde logo conhecer", acrescenta, no n.º 2, que, se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha - no caso previsto na alínea a), ora em causa - no sentido de "rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada", enunciando o n.º 3 do preceito os casos em que, para aquele concreto efeito, se considera a acusação manifestamente infundada: a) quando não tenha havido a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou, d) se os factos não constituírem crime.

Está em causa a dimensão interpretativa desse complexo normativo na medida em que, com fundamento na insuficiência manifesta de prova indiciária, impede ao juiz do julgamento rejeitar a acusação deduzida pelo assistente e não acompanhada pelo Ministério Público.

2 - Escreveu-se, a este respeito, na decisão recorrida, após transcrição dos artigos 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, do CPP:

"A versão em vigor desta norma corresponde à alteração introduzida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, sem qualquer correspondência na versão originária veio impedir que o juiz possa sindicar a existência de indícios na acusação, afirmando-se respeitar a estrutura acusatória do processo.

Não concordamos com esta posição.

Com a disposição normativa actual, uma acusação (ainda que a autoridade judiciária competente para o inquérito tenha afirmado entender não existirem indícios), que não tenha sido sindicada em instrução e totalmente desprovida de qualquer prova indiciária, sempre terá que ser recebida pelo juiz de julgamento.

Em decisão uniformizadora de jurisprudência (que o legislador deveria respeitar porque correspondia a um pensamento uniforme na aplicação da lei), o Supremo Tribunal de Justiça incluiu no conceito de 'acusação manifestamente infundada' a acusação que enfermasse de 'manifesta insuficiência de prova indiciária' (Assento 4/93, de 17 de Fevereiro de 1993, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 6 de Março de 1993).

Nessa decisão, o Supremo Tribunal de Justiça, pondo fim a uma divergência jurisprudencial, pretendeu evitar que ao arguido 'fossem aplicadas medidas coactivas que podem ir até à prisão preventiva, além de perante a sociedade ficar numa situação de presumível culpado da prática de um ou mais crimes.'

Não incluindo a acusação desprovida de indícios no conceito de acusação manifestamente infundada, o legislador veio repor uma solução legislativa expurgada na revisão do Código de Processo Penal de 1929 (Decreto-Lei 377/77, de 6 de Setembro), na qual se determinou a revogação de norma semelhante 'por se considerar injustificável impor ao juiz o recebimento da acusação sem que previamente se lhe faculte a apreciação dos elementos indiciários.' (preâmbulo do citado diploma).

Importa ter presente que este diploma, conforme vem mencionado no Boletim da ASPJ, 2.ª série, n.º 3 - Outubro de 1998 -, p. 51, veio dar cumprimento ao artigo 293.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa de 1976, no qual se estabelecia que devia ser feita a conformidade constitucional das normas legais anteriormente vigentes com o texto constitucional relativamente ao exercício dos direitos, liberdades e garantias e que, no essencial, o texto constitucional não sofreu quaisquer alterações significativas neste domínio, sendo certo que ocorreu uma maior concretização e ampliação do regime dos direitos, liberdades e garantias.

Nesta perspectiva, se juiz de julgamento não pode apreciar indícios, para que não seja colocada em crise a sua imparcialidade, então não vemos como é que se torna possível, com a actual organização judiciária, compatibilizar tal intenção com a possibilidade desse juiz poder aplicar ao arguido medidas de coacção que, necessariamente, implicam uma análise dos factos indiciários existentes nos autos, os quais constituem justamente o fundamento para o prossecução do processo para julgamento e para a imposição de uma medida de coacção.

Assim sendo, entendemos que a norma constante do artigo 311.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na parte em que não permite a rejeição da acusação particular deduzida pelo assistente, quando seja manifesta a insuficiência de prova indiciária, nomeadamente sendo essa a posição assumida pelo Ministério Público, é materialmente inconstitucional, na medida em que viola as garantias de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa), obrigando-o a pretender sindicar os indícios através da abertura da fase de instrução, e viola ainda o princípio da independência dos tribunais, obrigando o juiz de julgamento a apreciar indícios para aplicação da medida de coacção ao arguido, mas impedindo-o de apreciar esses mesmos indícios no que se refere ao objecto do processo (artigo 203.º da Constituição).

Por outro lado, a extensão de tal impossibilidade de apreciação dos indícios aos casos em que a autoridade judiciária a quem compete exercer a acção penal se abstém de formular pedido de requerimento de prossecução do processo para julgamento, por entender não existirem indícios que justifiquem esse julgamento, viola ainda o disposto no artigo 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na parte em que estabelece no Ministério Público o exercício da acção penal, permitindo que esta seja usada por quem não se encontra constitucionalmente habilitado para o efeito quando desacompanhados daquela autoridade, ou seja, os particulares.

O juízo de inconstitucionalidade de tal norma implica a repristinação da norma anterior a qual se coaduna com o entendimento de que a manifesta falta de prova indiciária constitui fundamento de rejeição da acusação particular [artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, na interpretação conferida pelo Assento do STJ n.º 4/93]."

3 - O Tribunal Constitucional pronunciou-se já no sentido da não inconstitucionalidade da norma em causa, num dos segmentos em que a mesma se desdobra.

Com efeito, escreveu-se no recente Acórdão 101/2001, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 6 de Junho de 2001, a dado passo:

"A norma em apreço, com a epígrafe 'Saneamento do processo', está inserida no título I (Actos preliminares), do livro VII do Código de Processo Penal relativo à fase de julgamento, fase processual esta que se segue imediatamente à acusação que encerra a fase do inquérito, no caso de não ter havido instrução ou, na hipótese inversa, após a prolação do despacho de pronúncia.

A lei reconhece ao arguido o direito de, uma vez deduzida acusação contra si, requerer a abertura da instrução, fase processual facultativa e que visa a comprovação, pelo juiz (de instrução), da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento.

O direito potestativo de o arguido requerer a instrução pressupõe um interesse juridicamente relevante na não realização do julgamento, fundamentando-se a não obrigatoriedade daquela fase processual num desígnio de celeridade processual, consagrada como valor constitucional aliada ao próprio princípio da presunção de inocência no artigo 32.º, n.º 2, da CRP.

O controlo judicial da decisão de acusação alcança-se, pois, através da abertura da instrução, matéria em que o arguido é soberano quanto à decisão, de a requerer ou não, consoante a estratégia processual que considere mais adequada para defesa dos seus direitos e interesses legítimos."

No caso então em apreço - em que a invocada insuficiência indiciária decorre de uma acusação pública, diferentemente da situação presente, proveniente de uma acusação exclusivamente particular -, entendeu-se que, não tendo o arguido requerido a abertura da instrução para controlo judicial da acusação, podendo fazê-lo, nem por isso seriam enfraquecidas as respectivas garantias de defesa.

E ponderou-se, a certa altura:

"As garantias de defesa não deixam de ficar asseguradas quando o arguido não requer a abertura de instrução, sujeitando-se a julgamento sem prévia apreciação judicial dos indícios e deixando para a audiência de julgamento a apresentação de provas cruciais para a sua absolvição, sendo inquestionável, como atrás se disse, a diferente força judicial da sentença de absolvição proferida em sede de julgamento relativamente ao despacho de arquivamento/rejeição da acusação.

Importa referir ainda que não colhe o argumento de que num tal cenário a sentença de absolvição, por insuficiência de prova para a condenação, premeia o arguido por não ter requerido a instrução.

Como já acima se disse, o arguido é soberano de requerer ou não a instrução - consoante o entendimento do que lhe for mais benéfico em termos de estratégia processual - não lhe competindo provar a sua inocência, sendo antes ao Ministério Público que compete carrear para os autos a prova da culpa do arguido coberto pelo manto da presunção de inocência.

A decisão absolutória verificar-se-á aí por força da "incapacidade/ineficácia" do Ministério Público em reunir os indícios suficientemente fortes para a condenação como consequência do equilíbrio de forças estabelecido dialecticamente entre acusação/arguido ao longo de todo o processo penal.

Não resultam assim violadas as garantias de defesa do arguido na interpretação da norma constante do artigo 311.º, n.º 3, do Código de Processo Penal no sentido em que se veda ao juiz de julgamento rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público manifestamente infundada por insuficiência da prova indiciária, no caso de o arguido não ter requerido a instrução."

4 - Concorda-se, na sua essencialidade, com a tese professada no acórdão citado para cuja fundamentação se remete.

De todo o modo, o que se afigura decisivo é que, face ao princípio constante do n.º 5 do artigo 32.º da Constituição, segundo o qual "o processo criminal tem estrutura acusatória", a solução legal agora em análise, embora porventura menos garantística, ainda é constitucionalmente consentida.

E não se tem por pertinente o facto de, in casu, se tratar de acusação meramente particular (o que poderia consubstanciar um argumento da maioria de razão). O que se tem por relevante é que, como observa o Ministério Público, nas suas alegações, "a limitação dos poderes cognitivos do juiz do julgamento, no momento em que profere despacho de saneamento do processo, não colide seguramente com o princípio das garantias de defesa - não podendo olvidar-se que elas estiveram ao pleno dispor do arguido, no momento em que lhe foi facultada oportunidade processual para - requerendo a instrução obter uma discussão efectiva sobre a suficiência da prova indiciária. Não exercitou, porém, o arguido tal direito potestativo, optando antes por antecipar a dedução de contestação - revelando tal estratégia processual a opção de se sujeitar 'julgamento sem prévia apreciação judicial dos indícios' e deixando para a fase de julgamento a apresentação das provas que considerava 'cruciais' para sua pretendida absolvição - privilegiando, deste modo, a celeridade processual e o típico efeito do caso julgado absolutório".

De igual modo, não se surpreende ofensa aos princípios constitucionais da independência dos tribunais e do exercício da acção penal pelo Ministério Público, emergentes do estatuído nos artigos 203.º e 219.º, n.º 1, da lei fundamental.

Finalmente, se, por um lado, o exercício da acção penal pelo Ministério Público não derroga o regime dos crimes particulares em que a acusação é legitimamente exercida pelo assistente, só ou acompanhado pelo Ministério Público, por outro lado, não se vislumbra colisão desse regime adjectivo com a independência decisória dos tribunais: nem a limitação ou circunscrição dos poderes cognitivos do juiz na apreciação de determinadas matérias, com exclusão de outras, afronta o disposto no artigo 203.º da Constituição nem com o mesmo texto contende o facto de o juiz do julgamento poder apreciar se existem indícios para aplicação da medida de coacção ao arguido.

III - Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, devendo, consequentemente, reformular-se a decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.

Lisboa, 28 de Maio de 2003. - Alberto Tavares da Costa - Bravo Serra - Gil Galvão - Maria dos Prazeres Beleza - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/2151632.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1977-09-06 - Decreto-Lei 377/77 - Ministério da Justiça

    Revê diversas disposições relativas à legislação de Processo Penal.

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1993-03-26 - Assento 4/93 - Supremo Tribunal de Justiça

    A ALÍNEA A) DO NUMERO 2 DO ARTIGO 311 DO CODIGO DE PROCESSO PENAL INCLUI A REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO POR MANIFESTA INSUFICIÊNCIA DE PROVA INDICIÁRIA.

  • Tem documento Em vigor 1998-08-25 - Lei 59/98 - Assembleia da República

    Altera o Código do Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei 78/87 de 17 de Fevereiro, na redacção introduzida pelos Decretos-Leis 387-E/87, de 29 de Dezembro, 212/89, de 30 de Junho e 317/95, de 28 de Novembro. Republicado na integra, o referido código, com as alterações resultantes deste diploma.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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