Acórdão 370/2000/T. Const. - Processo 334/2000. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - 1 - Alcindo Cardoso de Oliveira foi condenado, nos autos de processo comum n.º 186/92, do 2.º Juízo Criminal da Comarca de Viseu, na pena única de 15 anos de prisão, da qual, mercê do disposto no artigo 14.º, n.º 1, alínea b), da Lei 23/91, de 4 de Julho, lhe foram perdoados 22 meses de prisão.
O cúmulo jurídico assim operado resultou das seguintes penas parcelares:
Nos processos n.os 22/91, 2.ª Secção, 1.º Juízo, e 183/90, 1.ª Secção, 2.º Juízo, da comarca de Oliveira de Azeméis, 3 anos e 1 ano de prisão, respectivamente;
No processo 78/91, da comarca de São Pedro do Sul, 4 anos, 1 ano e 6 meses, 2 anos e 1,5 mês de prisão;
No processo 526/91, 2.ª Secção, 3.º Juízo, da comarca de Viseu, 4,5 anos e 1,5 ano de prisão:
No processo 186/92, 3.ª Secção do 2.º Juízo da comarca de Viseu, 4 anos de prisão e 15 meses de prisão.
Nos termos do artigo 1.º, alínea i), da Lei 15/94, de 11 de Maio, foi-lhe declarado amnistiado o crime previsto no artigo 177.º do Código Penal pelo qual fora condenado em 1,5 mês de prisão no citado processo 78/91 da comarca de São Pedro do Sul.
Reformulado o cúmulo jurídico, por Acórdão de 6 de Dezembro de 1994, proferido no processo 186/92 da comarca de Viseu, foi o arguido condenado na pena unitária de 14 anos e 11 meses de prisão.
Dessa pena, declararam-se perdoados 22 meses e 12 dias de prisão, ao abrigo do artigo 14.º, alínea b), da Lei 23/91, e igual tempo de prisão nos termos do artigo 8.º, n.º 1, alínea d), da Lei 15/94, no total de 3 anos, 8 meses e 24 dias de prisão, ficando, assim, a pena inicial reduzida a 11 anos, 2 meses e 6 dias de prisão (feita a correcção em 20 de Dezembro de 1994).
2 - O Tribunal de Execução de Penas de Évora, nos autos de processo gracioso de liberdade condicional nele pendentes, sob o n.º 128/96, proferiu decisões negando a concessão de liberdade condicional ao recluso, em 29 de Fevereiro de 1996, 18 de Junho de 1997, 22 de Julho de 1998 e 23 de Setembro de 1999.
Nesta última - que importa reter - esse Tribunal fixou o início do cumprimento da pena a 26 de Julho de 1990, o meio da pena a 29 de Fevereiro de 1996 e o termo previsto para 2 de Outubro de 2001, "caso, entretanto, não ocorram situações de alteração ou extinção da pena".
Pronunciando-se, concretamente, sobre a data do cumprimento dos cinco sextos da pena, tendo em conta o n.º 5 do artigo 61.º do Código Penal (CP), o Tribunal considerou essa data - 21 de Novembro de 1999 - irrelevante, justificando-se assim: "Já beneficiou, cf. fl. 209" (a fl. 209 consta a fotocópia de dois boletins de registo criminal do recluso: pelo primeiro, verifica-se ter-lhe sido concedida liberdade condicional de 20 de Abril de 1989 a 20 de Abril de 1991, relativa a pena que lhe havia sido aplicada nos autos de querela n.º 30/88, que correram termos na 1.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal da Comarca de Águeda; pelo segundo boletim constata-se a revogação dessa liberdade condicional, por decisão de 16 de Janeiro de 1991, determinando-se a execução da pena imposta naquele processo, ainda não cumprida).
Num segundo momento, a sentença de 23 de Setembro de 1999, face aos elementos constantes dos autos, à audição do arguido e à auscultação dos elementos do Conselho Técnico, concluiu:
"O recluso já atingiu mais de metade da pena de prisão em que foi condenado.
Não revela, porém, um propósito que se nos afigure firme e sério de se reinserir socialmente de forma responsável e sem cometer novos crimes. Não denotou o arrependimento havido por suficiente nem uma correcta e devida interiorização da culpa e, assim, temos sérias dúvidas de que a sua libertação desde já não venha a constituir-se medida perturbadora da ordem e tranquilidade públicas."
3 - O recluso não interpôs recurso desta sentença do Tribunal de Execução de Penas - o que se regista, para já, independentemente de se poder questionar a recorribilidade da decisão, tendo em conta o disposto no artigo 127.º do Decreto-Lei 783/76, de 29 de Outubro, segundo o qual não é admitido recurso das decisões que concedam ou neguem a liberdade condicional (norma não julgada inconstitucional pelo Acórdão 321/93 do Tribunal Constitucional, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 22 de Outubro de 1993, merecendo nota crítica de Alberto Esteves Remédio, na Revista do Ministério Público, n.º 55, Julho-Setembro de 1997, pp. 150 e segs. E que, mesmo referentemente à liberdade condicional após os cinco sextos de cumprimento da pena de prisão, tem fundamentado decisões jurisprudenciais, como, v. g., o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Janeiro de 1994, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XIX, t. I, p. 154, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Outubro de 1998, publicado na Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, t. III, pp. 179 e segs.).
No entanto, se bem que tenha deixado transitar a sentença, o recluso endereçou uma exposição ao Procurador-Geral da República, logo a 24 desse mês de Novembro, expondo a sua situação, perante os cinco sextos da pena de prisão, que tem por atingidos a 21, exposição que, remetida para o Tribunal de Execução das Penas de Évora, mereceu despacho, de 8 de Janeiro do corrente ano, onde se consigna nada haver a ordenar em face da decisão de 23 de Setembro anterior e se acrescenta:
"É que, se o recluso se não conformou com a decisão de considerar irrelevantes os cinco sextos por já ter beneficiado do regime de liberdade condicional - que até viu revogado, conforme fl. 209 -, deveria ter recorrido ou, sempre poderá interpor pedido de habeas corpus."
4 - O recluso requereu a providência de habeas corpus com fundamento na alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal (CPP), com a alegação de se manter no Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz, se bem que já tenha cumprido, em 21 de Novembro de 1999, cinco sextos da pena única em que foi condenado, estando, assim, a ser violada a norma do n.º 5 do artigo 61.º do CP (requerimento expedido a 4 de Janeiro de 2000 e recebido no dia seguinte no Supremo Tribunal de Justiça).
Na audiência a que se procedeu, nos termos do artigo 223.º do CPP, e feita pelo conselheiro relator, a exposição a que se refere a primeira parte do n.º 3 deste preceito, a representante do Ministério Público, no uso da palavra, requereu que ficasse a constar da acta a sua posição sobre a matéria, o que foi deferido, tendo passado a ditar o seguinte:
"Numa interpretação conjugada dos artigos 219.º e 222.º, ambos do Código de Processo Penal, artigo 61.º, n.º 5, do Código Penal, no sentido da interposição ou possibilidade de interposição de recurso ordinário, sobre a questão objecto da petição de habeas corpus - no caso excesso de prisão, por apesar de terem sido atingidos cinco sextos da pena única por que foi condenado não ter sido colocado em liberdade condicional - implica a irremediável conclusão da possibilidade de recurso àquela providência excepcional, afrontaria as garantias de defesa, assim violando o disposto nos artigos 31.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, 18.º, n.os 2 e 3, e 20.º, n.º 1, da CRP."
5 - O pedido não obteve deferimento, nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Janeiro de 2000, no qual se escreveu:
"1 - Alcindo Cardoso de Oliveira, que se encontra preso no Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz no âmbito do processo 186/92 do 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, veio requerer a presente providência excepcional de habeas corpus, por excesso de cumprimento de pena de prisão, dado que já ultrapassou os cinco sextos do cumprimento da pena única de prisão em 21 de Novembro de 1999.
O juiz do processo acima referido não prestou a informação referida no artigo 223.º do CPP, apesar de ter sido solicitada.
No entanto, o Tribunal de Execução das Penas de Évora enviou elementos que permitem que seja proferida decisão sobre a petição do requerente. Entre tais elementos encontra-se o despacho de 23 de Setembro de 1999, proferido pelo juiz daquele Tribunal, que não concedeu a liberdade condicional ao requerente, por não se verificarem os pressupostos de índole subjectiva ínsitos no artigo 61.º do Código Penal. Foi ainda enviado outro despacho do mesmo juiz, de onde se extrai que o requerente não recorreu daquele primeiro despacho.
2 - O pedido do requerente funda-se no disposto no artigo 61.º, n.º 5, do Código Penal do seguinte teor: 'sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a 6 anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena'.
Ora, vê-se dos elementos constantes dos autos, nomeadamente do despacho de 23 de Setembro de 1999, que o requerente foi condenado, pelos crimes de furto qualificado e introdução em casa alheia, na pena única de 14 anos e 11 meses de prisão, remanescendo para cumprimento, por aplicação das Leis de amnistia n.º 23/91, de 4 de Julho, e 15/94, de 11 de Maio, a pena de 11 anos, 2 meses e 6 dias de prisão, que teve o seu início em 26 de Julho de 1990 e tem o seu termo previsto para 2 de Outubro de 2001.
Para apurar se ao requerente poderia ser aplicado o disposto no artigo 61.º, n.º 5, do Código Penal, foi instaurado, no referido Tribunal de Execução das Penas, o competente processo gracioso de liberdade condicional, que culminou com o mencionado despacho de 23 de Setembro de 1999 que não concedeu a liberdade condicional ao requerente.
Este não recorreu de tal despacho, pelo que o requerente mantém-se em cumprimento de pena, cujo termo previsível, se entretanto a sua situação prisional não for alterada, se verificará em 2 de Outubro de 2001.
Portanto, o requerente não se encontra preso para além de qualquer prazo fixado pelo lei ou por despacho judicial - v. o artigo 222.º, n.º 2, alínea c), do CPP, pelo que improcede a sua pretensão.
3 - Pelo exposto, acorda-se em indeferir o pedido do requerente [...]"
6 - A magistrada do Ministério Público junto do Supremo Tribunal de Justiça requereu oportunamente a aclaração do acórdão, em ordem a esclarecer as seguintes dúvidas:
"a) Remanescendo para cumprimento 11 anos, 2 meses e 6 dias da pena de prisão por que fora condenado o peticionante, e tendo tido a pena o seu início em 26 de Julho de 1990, não se compreende como pode o processo, que culminou com a sentença do TEP de Évora de 23 de Setembro de 1999, ter sido instaurado para se apurar se ao requerente poderia ser aplicado o disposto no artigo 61.º, n.º 5, do CP quando os cinco sextos da referida pena só seriam atingidos em 21 de Novembro de 1999, conforme consta também da sentença do TEP de Évora, a que se faz referência no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
b) Não se compreende como é que no processo instaurado no TEP de Évora para, e segundo o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, se ''apurar se ao requerente poderia ser aplicado o disposto no artigo 61.º, n.º 5, do CP'', não tenha sido concedida a liberdade condicional por, nas palavras do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 'não se verificarem os pressupostos de índole subjectiva ínsitos no artigo 61.º do Código Penal', quando, atento o disposto nesse artigo 61.º, n.º 5, do CP, a liberdade condicional é obrigatória, não dependendo senão de requisitos objectivos ou formais: mostrarem-se cumpridos cinco sextos de pena de prisão superior a 6 anos."
7 - O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 6 de Abril último, em conferência, indeferiu o requerido, por entender nada haver a aclarar.
Escreveu-se, a este propósito:
"A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta veio requerer a aclaração do Acórdão de 19 de Janeiro de 2000, ao fim e ao cabo por este se ter estribado no despacho proferido pelo juiz do Tribunal de Execução das Penas de Évora, que não concedeu a liberdade condicional ao requerente do pedido de habeas corpus, por não se verificarem os pressupostos de índole subjectiva ínsitos no artigo 61.º do Código Penal, não compreendendo por que é que o processo do TEP foi instaurado para se apurar se ao requerente poderia ser aplicado o disposto no artigo 61.º, n.º 5, do Código Penal, nem por que é que àquele não foi concedida a liberdade condicional.
Só que, antes de mais, aquela Exma. Magistrada vem discordar da decisão do juiz do TEP, o que é perfeitamente inócuo, pois a mesma já transitou em julgado, não restando outra solução senão aceitá-la. Mal ou bem, foi decidido definitivamente que não era de conceder a liberdade condicional ao requerente, não sendo possível alterar tal decisão por meio da providência de habeas corpus.
De resto, não se compreendem as dúvidas da Exma. Procuradora-Geral-Adjunta, pois o processo para a concessão da liberdade condicional tem de ser sempre instaurado, mesmo no caso do artigo 61.º, n.º 5, do Código Penal, como se extrai dos artigos 484.º e seguintes do CPP, 42.º e 90.º e seguintes do Decreto-Lei 783/76, de 19 de Outubro. E, por outro lado, o n.º 5 do artigo 61.º do Código Penal remete para os pressupostos referidos nos números anteriores - 'sem prejuízo do disposto nos números anteriores [...]', diz aquele normativo.
Face ao que vai exposto, nada há, pois, a aclarar, pelo que se acorda em indeferir o requerimento da Exma. Procuradora-Geral-Adjunta."
8 - Reagiu o Ministério Público, interpondo recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei 28/82, de 15 de Novembro.
Pretende-se a apreciação da constitucionalidade da interpretação conjugada das normas dos artigos 222.º, n.os 1 e 2, alínea c), do CPP e 61.º, n.º 5, do CP, no sentido adoptado pelo acórdão recorrido de que a não interposição de recurso da decisão sobre a questão fundamento da providência de habeas corpus, a que alude a alínea c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, implica a irremediável preclusão da possibilidade de recurso àquela providência.
Na tese defendida pelo recorrente, a questão, suscitada na audiência a que alude o artigo 223.º do CPP, envolve uma interpretação daquelas normas que afronta as garantias de defesa e viola as normas dos artigos 31.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, todos da Constituição da República (CR).
9 - Recebido o recurso, alegou neste Tribunal apenas o respectivo magistrado do Ministério Público, que assim conclui:
"1.º É inconstitucional, por violação dos artigos 31.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa a interpretação normativa do artigo 222.º do Código de Processo Penal que se traduz em cominar ao arguido que pretende socorrer-se da providência de habeas corpus, com fundamento na manutenção de prisão para além dos prazos fixados na lei, o ónus de prévio e efectivo esgotamento ou exaustão dos recursos ordinários possíveis.
2.º Sendo certo que, pelo seu conteúdo, a providência requerida não implica que o Supremo tenha de entrar numa apreciação de mérito ou da validade da decisão judicial que aplicou ou manteve a prisão tida por ilegal - apenas lhe cumprindo determinar se se verificam ou não os pressupostos de concessão da liberdade condicional, prevista no n.º 5 do artigo 61.º do Código Penal.
3.º E não se mostrando tal matéria expressamente abordada e resolvida na decisão do Tribunal de Execução das Penas, proferida nos autos, podendo a mesma ser razoavelmente interpretada em termos de conter simples rejeição da outorga ao arguido da liberdade condicional facultativa, por inverificação dos pressupostos subjectivos enunciados no n.º 2 do artigo 61.º do Código Penal.
4.º Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com o juízo de inconstitucionalidade da interpretação normativa que constitui objecto do presente recurso."
Dispensados os vistos legais, dada a economia de urgência inerente a este tipo de processo, cumpre apreciar e decidir.
II - 1 - Nos termos do n.º 5 do artigo 61.º do Código Penal, ressalvado o disposto nos números anteriores do preceito (que ora desinteressam), "o condenado a pena de prisão superior a 6 anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena."
E dispõe, por sua vez, o artigo 222.º do CPP, na parte relevante:
"1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) ...
b) ...
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial."
2 - O objecto do presente recurso de fiscalização concreta radica, para o recorrente, na concreta interpretação feita pela decisão recorrida das normas dos artigos 61.º, n.º 5, do CP e 222.º, n.os 1 e 2, alínea c), do CPP, entendidas, conjugadamente, no sentido de que a não interposição de recurso da decisão sobre a questão fundamento da providência de habeas corpus, a que alude a alínea c) do n.º 2 deste artigo 222.º - ilegalidade de prisão por se manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial -, precludiu irremediavelmente a possibilidade de o interessado se socorrer dessa providência.
3 - A norma substantiva do n.º 5 do artigo 61.º do CP determina a colocação do recluso em liberdade condicional cumpridos que sejam cinco sextos da pena de prisão (sem prejuízo do disposto nos n.os 1 a 4 e 6 do mesmo preceito).
Objecto de controvérsia doutrinária, a liberdade condicional conhecida como "obrigatória" é justificada pela conveniência em assegurar "espaços de transição para a efectiva readaptação dos condenados" (cf. António Manuel de Almeida Costa, "Passado, Presente e Futuro da Liberdade Condicional no Direito Português", in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXV, 1989, pp. 401 e segs., máxime pp. 433 e 451).
A liberdade condicional prevista no n.º 5 do artigo 61.º perfila-se, assim, como um instrumento destinado a facilitar a reintegração social do recluso, do mesmo passo que permite o exercício de um certo controlo sobre a sua inicial inserção na comunidade. Observa, a este respeito, Maia Gonçalves que o destinatário da medida, solto após o cumprimento de cinco sextos de uma pena de prisão longa e sujeito à observância de imposições que podem revestir severidade, mantém, nessa fase de transição, um desejável contacto com a administração da justiça (cf. Código Penal Anotado, 9.ª ed., Coimbra, 1996, p. 337), assim se propiciando uma adequada reinserção social que, de outro modo, pode tornar-se difícil de alcançar.
Esta liberdade condicional "obrigatória" depende do consentimento do próprio condenado mas não exige a verificação dos pressupostos formais e subjectivos próprios da liberdade condicional "facultativa": a colocação em liberdade condicional tem lugar, independentemente do mais que está previsto nos n.os 1 a 4 do mesmo artigo 61.º quanto à liberdade condicional "facultativa". Não obstante, o "automatismo" da medida não dispensa a prévia intervenção do tribunal de execução das penas competente, nos termos do n.º 8 do artigo 22.º do Decreto-Lei 783/76, na redacção do artigo único do Decreto-Lei 222/77, de 30 de Maio, como tem entendido a jurisprudência pertinente, caso do recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 1999, proferido no processo 1084/99, 5.ª Secção.
No caso sub judice, o Tribunal de Execução das Penas de Évora, debruçando-se sobre a situação prisional do ora reclamante, tendo em vista a sua eventual liberdade condicional, pronunciou-se no sentido da "irrelevância" dos cinco sextos da pena já cumpridos e o Supremo Tribunal de Justiça, por sua vez, considerou deparar-se-lhe uma situação já definida por decisão com trânsito em julgado, como consta do Acórdão de 19 de Janeiro, precludido que se encontra o exercício do direito a petição de habeas corpus pelo referido trânsito, assim se tendo julgado de modo definitivo - bem ou mal - não se encontrar o recluso "preso para além de qualquer prazo fixado pela lei ou por despacho judicial".
Ou seja, foi dada, no concreto caso, às normas dos artigos 222.º, n.os 1 e 2, alínea c), do CPP e 61.º, n.º 5, do CP, uma interpretação conjugada no sentido da inadmissibilidade do acesso à providência de habeas corpus, com fundamento na ilegalidade da prisão por ter decorrido o prazo fixado nesta última norma. O que decorre do facto de o interessado não ter recorrido da decisão do Tribunal de Execução das Penas que lhe negou a liberdade condicional, no processo gracioso instaurado para apreciação da sua situação prisional.
4 - O habeas corpus é, na verdade, uma providência de carácter excepcional destinada a proteger a liberdade individual nos casos em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade.
O Supremo Tribunal de Justiça vem, reiterada e impressivamente, perfilhando o entendimento nos termos do qual, em princípio e para que se não pervertam a essência e a finalidade do instituto, não há lugar a essa medida sempre que haja possibilidade de interpor recurso ordinário (cf., inter ali, os Acórdãos de 11 de Março de 1998, 8 de Abril e 14 de Outubro de 1999, este último já citado, aqueles proferidos nos processos n.os 349/98 e 449/99, 3.ª Secção, respectivamente).
No caso, a interpretação normativa impugnada, que conduziu ao não conhecimento do pedido de habeas corpus com o fundamento do trânsito em julgado da decisão proferida quanto à liberdade condicional do requerente, parte da ideia de que a prisão do recorrente só poderia ser havida por ilegal, por exceder os cinco sextos da pena, se ele tivesse interposto recurso da decisão do juiz do Tribunal de Execução das Penas, que a própria lei diz ser irrecorrível e que, como tal, tem sido considerada pela jurisprudência, sem merecer censura constitucional.
Simplesmente, uma tal interpretação da lei implica que o condenado, que cumpriu cinco sextos da pena e não foi posto em liberdade, fique sem quaisquer meios de defesa: de facto, não pode recorrer da decisão que lhe recusa a liberdade condicional porque a mesma é irrecorrível; e, depois, justamente porque não recorreu, a sua prisão é considerada como cumprimento de pena - e, assim, como prisão não ilegal.
Assim, o meio que a Constituição da República consagra, nos termos do n.º 1 do artigo 31.º - no caso, por alegado excesso de duração da pena de prisão a cumprir -, mostra-se afrontado com essa interpretação.
III - Em face do exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.º 1 do artigo 31.º da Constituição da República, a interpretação da norma do artigo 222.º, n.os 1 e 2, alínea c), do Código de Processo Penal, conjugada com a do artigo 61.º, n.º 5, do Código Penal, no sentido de que a não interposição de recurso da decisão proferida sobre a questão fundamento da providência de habeas corpus, a que alude esta última norma, implica necessariamente a preclusão da possibilidade do recurso à referida providência;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, no que à questão de constitucionalidade respeita, de modo que se possa apreciar da existência ou não de fundamento para aquela providência ser decretada.
12 de Julho de 2000. - Alberto Tavares da Costa - Maria dos Prazeres Beleza - José de Sousa e Brito - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida.