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Acórdão 159/2000/T, de 10 de Outubro

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Texto do documento

Acórdão 159/2000/T. Const. - Processo 507/99. - Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I

1 - Nos autos de processo comum singular n.º 508/98, que o Ministério Público instaurou contra Júlio Avelar Gomes, na audiência de julgamento, realizada no dia 27 de Maio de 1999, o respectivo juiz ditou para a acta despacho no qual determinou que as declarações oralmente prestadas serão documentadas através de gravação áudio, não se transcrevendo na acta as declarações fixadas em fita magnética.

O magistrado, que não deixa de reconhecer, no entanto, inexistir unanimidade de opiniões quanto à interpretação a conceder à norma do n.º 2 do artigo 101.º do Código de Processo Penal (CPP), após invocar os artigos 18.º, n.º 1, 204.º e 277.º, n.º 1, da Constituição da República (CR), não aplicou, por inconstitucionalidade, aquela norma "com o sentido de a mesma, nos casos de documentação da audiência de julgamento mediante gravação magnetofónica ou audiovisual, impor a transcrição do teor da respectiva gravação para a acta porquanto tal interpretação viola o disposto nos artigos 20.º, n.º 5, e 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o que, desde já, declaro".

Os autos prosseguiram a sua normal tramitação e, posteriormente, em 7 de Julho seguinte, seria proferida decisão, objecto de recurso para o Tribunal da Relação do Porto por parte do queixoso, Manuel Ferreira Ribeiro, constituído assistente nos autos.

Entretanto, perante o juízo de inconstitucionalidade formulado, com a consequente desaplicação normativa, o magistrado do Ministério Público competente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, para apreciação da questão de constitucionalidade levantada.

Este recurso foi recebido na pendência da audiência de julgamento (sessão de 15 de Junho - fl. 158), para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

2 - Neste Tribunal apenas o Ministério Público alegou, tendo o Sr. Procurador-Geral-Adjunto concluído assim:

"1.º A interpretação normativa do n.º 2 do artigo 101.º do Código de Processo Penal, traduzida em considerar que -para permitir uma correcta e efectiva reapreciação da decisão sobre a matéria de facto tomada em 1.ª instância- os depoimentos gravados no decurso da audiência devem ser oficiosamente transcritos, não viola o direito ao recurso (que visa, aliás, potenciar) nem afecta as garantias de defesa do arguido em processo penal.

2.º Os inconvenientes que, em termos de celeridade e eficácia, podem decorrer de tal transcrição oficiosa dos depoimentos gravados mediante sistema sonoro não radicam propriamente em tal regime jurídico, em si mesmo considerado, mas numa eventual e deficiente dotação, em meios humanos e materiais, dos tribunais para realizarem tal tarefa.

3.º Não podendo, deste modo, assacar-se a tal regime jurídico, emergente da interpretação normativa feita pela decisão recorrida, a violação de um preceito ou princípio constante da lei fundamental -e não se situando objectivamente no âmbito da fiscalização da constitucionalidade a apreciação da conveniência e da praticabilidade dos regimes instituídos pelo legislador infraconstitucional- deverá proceder o presente recurso."

Cumpre apreciar e decidir.

II

1 - Enquanto o artigo 100.º do CPP se debruça sobre a redacção dos autos - cuja definição nos dá o n.º 1 do artigo 99.º -, dispõe o artigo 101.º, no seu n.º 1, que o funcionário encarregado de redigir o auto pode utilizar meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como socorrer-se de gravação magnetofónica ou audiovisual.

E preceitua, por sua vez, o n.º 2 deste normativo, cuja interpretação se discute:

"2 - Quando forem utilizados meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, o funcionário que deles se tiver socorrido, ou, na sua impossibilidade ou falta, pessoa idónea, faz a transcrição no prazo mais curto possível. Antes da assinatura, a entidade que presidiu ao acto certifica-se da conformidade da transcrição."

É esta a norma que constitui o objecto do presente recurso na medida em que o magistrado recorrido a interpretou, "desaplicando-a". A leitura da norma, em parâmetros de constitucionalidade -a que óbvia e logicamente nos ateremos -, que implica, nessa visão, a transcrição para o processo, em escrita comum, das declarações e depoimentos produzidos em audiência, não obstante constarem de gravação magnetofónica ou audiovisual, não só não tem suporte no elemento literal e contraria a vontade histórica do legislador (sempre nessa tese), como se afasta do enquadramento sistemático, desrespeita os princípios fundamentais do processo penal da imediação, da oralidade e da economia processual e - o que interessa reter de modo particular - viola os princípios constitucionais da celeridade, da tutela efectiva e do direito de recurso, previstos nos artigos 20.º, n.º 5, e 32.º, n.os 1 e 2, da CR.

2 - A interpretação assim dada à norma não veio a ser, no entanto, a acolhida pelo magistrado recorrido, que a qualificou de inconstitucional, constituindo, deste modo, na medida em que foi rejeitada, o objecto do presente recurso de constitucionalidade.

No entanto, é legítimo colocar a questão da verificação, no concreto caso, dos pressupostos de admissibilidade deste tipo de recurso ou, por outras palavras, cuidar de saber se se está perante uma recusa de aplicação normativa com fundamento em inconstitucionalidade, em sentido verdadeiro e próprio.

Com efeito, o despacho recorrido começa por determinar que "as declarações prestadas oralmente nesta audiência de julgamento serão documentadas através de gravação áudio uma vez que o tribunal dispõe de meios para tanto" - cf. fl. 144 - mas, desde logo adianta "desde já ficar decidido que essas declarações fixadas em fita magnética não serão transcritas para a acta desta audiência de julgamento", uma vez que tal transcrição não é imposta por qualquer norma do Código de Processo Penal.

Poderia objectar-se que a argumentação a seguir desenvolvida, no sentido de fundamentar a decisão tomada, de rejeição de uma dada dimensão interpretativa, não passará de mero obter dictum, de todo irrelevante para a decisão da causa, despido, por consequência, de interesse prático. A essa luz recorde-se que a jurisprudência constitucional, desde os tempos da Comissão Constitucional, atendendo à instrumentalidade própria do recurso de constitucionalidade, tem entendido inexistir interesse processual sempre que se pudesse ter chegado à decisão a que se chegou, independentemente de qualquer pronúncia de inconstitucionalidade, cuja decisão, assim, se mostra irrelevante, de projecção meramente académica (cf. por todos, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 12/83, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 28 de Janeiro de 1984).

Assim sucederia se a decisão a proferir nos presentes autos seja de negar provimento ao recurso, seja de o conceder, fosse de todo em todo indiferente ao já decidido a respeito das transcrições a efectuar: negando-se provimento ao recurso, mantém-se integralmente o decidido: concedendo-se provimento (e, por conseguinte, determinando-se uma reformulação da decisão no sentido de não inconstitucionalidade da interpretação que implica a transcrição do material gravado), deixar-se-ia, de qualquer modo, incólume a decisão da 1.ª instância.

Crê-se, no entanto, que o afastamento de uma dada via interpretativa constitui verdadeira desaplicação, excluindo a correspondente dimensão normativa.

Ou seja, ocorre realmente um juízo relevante de inconstitucionalidade, sem prejuízo de o mesmo poder ser motivado, ao menos em parte, por razões pragmáticas aliadas à operacionalidade da exigência legal -na interpretação de maior rigor-, como sejam razões ditadas por factores de ponderação relativas a praticabilidade e a celeridade processuais: os serviços podem não estar apetrechados com meios técnicos e humanos que possibilitam realizar, em tempo razoável e com fiabilidade, uma operação não isenta de dificuldades e naturalmente mais morosa, como é a de transferência do conteúdo das gravações para um suporte material clássico.

Conclui-se, por conseguinte, pela efectiva equacionação de uma questão de constitucionalidade do n.º 2 do artigo 101.º do CPP interpretado, no sentido de esta norma impor que a gravação em fita magnética das declarações prestadas em audiência seja obrigatoriamente "convertida" para a acta, em toda a sua extensão.

3 - É que, na verdade, há quem defenda essa obrigatoriedade.

Assim, em anotação àquele preceito, observa Maia Gonçalves que "quando se utilizam meios diferentes da escrita comum para redigir o auto, ou se faz uso de gravação magnetofónica ou audiovisual, terá de ser feita a respectiva transcrição, em escrita comum, para o processo, no mais curto prazo que for possível, e com as formalidades prescritas no n.º 2 [do artigo 101.º]" (cf., Código de Processo Penal Anotado, 7.ª ed., Coimbra, 1996, p. 218 - sublinhado agora).

Esta interpretação, que, aliás, já perante o princípio geral de documentação de declarações orais, expresso no artigo 363.º do mesmo diploma, o mesmo comentador parece não perfilhar tão abertamente, por significar a preterição do princípio da oralidade, do mesmo passo constituindo fonte de delonga processual (ob. cit., p. 535), é veiculada em alguns lugares jurisprudenciais como sucede nos casos dos Acórdãos da Relação do Porto de 21 de Janeiro de 1998 e de 6 de Outubro de 1999 e da Relação de Lisboa de 10 de Dezembro de 1996, publicados na Colectânea de Jurisprudência, anos XXIII (1998), t. I, pp. 232 e segs., XXIV (1999), t. V, pp. 245 e segs. e XXI (1996), t. V, pp. 157 e segs., respectivamente.

4 - No entanto, como observa judiciosamente o Ministério Público nas suas alegações, não pode colidir com o direito ao recurso nem com o princípio constitucional das garantias de defesa um regime que se traduza em fazer constar da própria acta a transcrição integral das declarações prestadas e gravadas durante a audiência.

E, na verdade, independentemente do que se possa entender sobre o mérito de semelhante procedimento ou sobre as virtualidades do regime introduzido no processo civil pelo Decreto-Lei 39/95, de 15 de Fevereiro, que a reforma subsequente acolheu (Decretos-Leis 329-A/95, de 12 de Dezembro e 180/96, de 25 de Setembro) e da sua precipitação no Código de Processo Penal -questões que não têm de ser aqui abordadas-, o certo é que não se vê como sustentar que uma transcrição por escrito dos depoimentos gravados, que, a existir, tornará mais efectiva a possibilidade do exercício de um segundo grau de jurisdição relativamente à decisão sobre a matéria de facto proferida em 1.ª instância, possa funcionar, afinal, ao invés, isto é, em detrimento dos objectivos de economia processual, de eficácia e de garantia subentendidos no sistema.

Se é certo que, como se ponderou no Acórdão deste Tribunal n.º 680/98 - publicado no Diário da República, 2.ª série, de 5 de Março de 1999, citado na decisão recorrida -, a fundamentação das sentenças penais -especialmente das sentenças condenatórias, pela repercussão que podem ter na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas - deve ser susceptível de revelar os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, o que tudo obedece a uma filosofia de transparência, não se vê como a transcrição em escrita comum da gravação magnetofónica ou audiovisual das declarações prestadas em audiência empobreça, despreze ou desvalorize elementos probatórios não verbais essenciais para a formação da convicção, como se argumenta na decisão recorrida, postergando, desse modo, "os princípios básicos da imediação e da oralidade".

Em boa verdade, a transcrição tem o mérito de constituir um registo fidedigno, susceptível de ser sempre pontualmente retido pelo leitor que analise o texto, e não suprime a vertente de espontaneidade que a gravação pode fornecer - sem dúvida importante na formação da convicção do julgador, pela sua imediação e oralidade - uma vez que o material gravado acompanha a sorte dos autos.

Não se vislumbra, insiste-se, como é que a interpretação rejeitada é garantisticamente inconstitucional - sem prejuízo de uma certa projecção na celeridade processual, hipoteticamente representável (não necessariamente) - nem que a mesma colida, de algum modo, com o direito ao recurso. Terá mesmo a virtualidade, como também sublinha o Ministério Público, de colocar à disposição da Relação não apenas a decisão, em si mesma (e a respectiva fundamentação substancial), mas também o suporte magnético de que consta a integral gravação das provas produzidas em audiência (e de que naturalmente a Relação se poderá servir, para completar os elementos resultantes do texto transcrito em acta) e a própria transcrição integral da gravação, constante da acta de julgamento e dotada de integrais garantias de genuinidade e fidedignidade.

Por outras palavras, ainda, a interpretação normativa do n.º 2 do artigo 101.º do CPP, que, para obter uma correcta e efectiva reapreciação da decisão sobre matéria de facto tomada em 1.ª instância, impõe a transcrição oficiosa dos depoimentos gravados no decurso da audiência, não viola o direito ao recurso nem afecta as garantias de defesa do arguido em processo penal.

A esta luz, os eventuais inconvenientes que, em termos de celeridade e de eficácia possam resultar, dada a necessidade de proceder à transcrição oficiosa, não se inscrevem em sede de parâmetros de constitucionalidade, dada a sua óbvia matriz organizatória e contingencial.

III

Em face do exposto, decide-se:

a) Não julgar inconstitucional, por violação dos artigos 20.º, n.º 5, e 32.º, n.os 1 e 2, da Constituição da República, a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 101.º do Código de Processo Penal que exige a transcrição para auto, em escrita comum, das declarações e depoimentos produzidos em audiência, constantes de gravação magnetofónica ou audiovisual;

b) Consequentemente julgar procedente o recurso, devendo reformular-se o decidido de acordo com o antecedente juízo de constitucionalidade.

Sem custas, por não serem devidas.

Lisboa, 22 de Março de 2000. - Alberto Tavares da Costa - Maria dos Prazeres Beleza - José de Sousa e Brito - Messias Bento - Luís Nunes de Almeida.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1828812.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1995-02-15 - Decreto-Lei 39/95 - Ministério da Justiça

    Revê, em ordem a consagração da regra da gravação sonora, sem inviabilizar o recurso a meios audiovisuais ou a outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor, varias matérias em sede dos Códigos de Processo Civil (aprovado pelo Decreto Lei 44129, de 28 de Dezembro de 1961), e das Custas Judiciais (aprovado pelo Decreto Lei 44329, de 8 de Maio de 1962). Dispõe, nomeadamente, quanto ao registo dos depoimentos, aos procedimentos cautelares, aos processos especiais e sumário, adiamento da (...)

  • Tem documento Em vigor 1995-12-12 - Decreto-Lei 329-A/95 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil. Altera o Código Civil e a Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais

  • Tem documento Em vigor 1996-09-25 - Decreto-Lei 180/96 - Ministério da Justiça

    Revê o Código de Processo Civil, altera o Decreto-Lei 329-A/95 de 12 de Dezembro que o reviu e republicou e rectifica algumas inexactidões na republicação do Código em anexo ao citado diploma.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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