Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 408/2015
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1 - O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º, n.º 3, da Constituição e 82.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15 de novembro [LTC]), a apreciação e declaração, com força obrigatória geral, da norma resultante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil (CPC) e 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013, de 26 de junho, «na interpretação de que aquele artigo 703.º se aplica a documentos particulares emitidos em data anterior à da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil e então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961».
Legitima o presente pedido com a circunstância de a referida dimensão normativa já ter sido julgada inconstitucional, por este Tribunal, em pelo menos três casos concretos, facto evidenciado pelos Acórdãos n.os 847/2014 (1.ª secção) e 161/2015 (3.ª secção), e ainda pela Decisão Sumária n.º 130/2015 (1.ª secção).
2 - Notificada em representação do autor da norma para, nos termos do artigo 54.º da LTC, se pronunciar sobre o pedido, a Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos.
3 - Apresentado o memorando a que se refere o artigo 63.º, n.º 1, da LTC e fixada a orientação do Tribunal, cumpre elaborar o acórdão nos termos do n.º 2 do mesmo artigo.
II - Fundamentação
a) Verificação dos pressupostos
4 - A declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade de uma norma, segundo um processo de fiscalização abstrata, pode ser requerida sempre que a mesma tiver sido julgada inconstitucional em três casos concretos, pelo Tribunal Constitucional, num processo de generalização dos juízos de inconstitucionalidade com fundamento na repetição do julgado (artigo 281.º, n.º 3, da Constituição). Este requisito encontra-se preenchido quanto à norma objeto do pedido, tendo em conta os Acórdãos n.os 847/2014 e 161/2015 e a Decisão Sumária n.º 130/2015.
O presente processo de fiscalização abstrata foi promovido pelo Ministério Público, que tem legitimidade para tal, nos termos do artigo 82.º da LTC.
b) Delimitação e enquadramento da questão
5 - O presente pedido de declaração de inconstitucionalidade incide sobre a aplicação do artigo 703.º do Código de Processo Civil (CPC), aprovado em anexo à Lei 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, que resulta da conjugação do disposto no artigo 703.º do CPC, com o disposto no artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013, de 26 de junho.
O artigo 703.º do CPC tem a seguinte redação:
«1 - À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
[...]»
Por sua vez, a redação do artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013, de 26 de junho, é a seguinte:
«3 - O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, relativamente a títulos executivos, às formas de processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.»
Destes preceitos pode retirar-se que o novo CPC, entre outras alterações, eliminou do elenco dos títulos executivos os «documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto». Àqueles documentos era conferida a característica da exequibilidade pelo artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do anterior CPC, agora revogado. A norma objeto do pedido incide sobre a supressão do valor de título executivo de documentos particulares que já o possuíam aquando da entrada em vigor do novo CPC, por força do seu início de vigência.
6 - A questão de constitucionalidade que integra o objeto do processo surge, assim, da sucessão no tempo de leis processuais, resultando da conjugação do novo CPC com o regime transitório vertido no artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013. Tendo em conta a exclusão dos documentos particulares elencados no artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do anterior CPC da lista de títulos executivos constante do artigo 703.º do CPC e a aplicabilidade deste a todas as execuções iniciadas após a entrada em vigor da Lei 41/2013, nos termos do seu artigo 6.º, n.º 3, terá de concluir-se que é retirada força executiva a documentos particulares que anteriormente a detinham, se ainda não acionados. É esta afetação, a nível processual, da posição creditória, ocasionada pela alteração legislativa, que configura a questão de constitucionalidade aqui em causa.
O problema não se prende, portanto, com a solução material contida no artigo 703.º do CPC, ou seja, com o novo elenco de títulos executivos, a sua maior ou menor extensão ou a integração ou não de determinado documento. As decisões legislativas neste domínio têm incidência direta nos interesses particulares contrapostos, encabeçados por duas categorias distintas de sujeitos privados: credores e devedores (cf. M. Teixeira de Sousa, "Anotação ao Ac. do Tribunal Constitucional n.º 847/2014, de 3.12.2014", in Cadernos de direito privado, n.º 48, 2014, pp. 12 ss.). Não há qualquer critério constitucional que imponha a preferência por um desses interesses, pelo que nos encontramos no domínio de uma livre opção legislativa. Não é esse, no entanto, como se referiu, o objeto do presente processo.
7 - A análise da questão não convoca, portanto, um problema de confronto entre direitos de privados, o credor e o devedor, mas a eventual afetação do direito fundamental de acesso dos cidadãos aos tribunais da República (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição). Como o Tribunal Constitucional já referiu, no Acórdão 847/2014, n.º 9, «o direito à execução é um direito que se dirige contra o Estado, constituindo uma manifestação do direito público de ação, enquanto direito à tutela jurisdicional efetiva [...]», tendo a natureza de «direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias», pelo que «beneficia do regime de proteção do artigo 18.º da Constituição».
Com esse enquadramento, poderia questionar-se se existiria uma violação da proibição da aplicação retroativa de leis restritivas (artigo 18.º, n.º 3, da Constituição). O artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013 estabelece a aplicação do novo CPC, no que respeita aos títulos executivos, apenas às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor, de onde decorre a não aplicação do artigo 703.º do novo CPC às ações pendentes. Assim, como logo ficou salientado no Acórdão 847/2014, n.º 10, «tratando-se de uma alteração legislativa que se aplica apenas aos processos de execução iniciados após a sua entrada em vigor, repercute-se apenas para o futuro. Por via dela, não é retirado caráter executivo a títulos que tenham produzido já a sua eficácia executiva, não sendo atingidos processos de execução baseados em títulos que deixaram de o ser. Nessa medida, não colide com o princípio da proibição da aplicação retroativa das leis restritivas do direito de acesso aos tribunais».
Não sendo convocável a regra de proibição expressa e automática de retroatividade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, a situação recai, porém, no campo normativo do princípio da proteção da confiança dos cidadãos, ínsito no princípio do Estado de Direito, que se encontra consagrado no artigo 2.º da Constituição. Foi esse o parâmetro de controlo adequado à apreciação desta questão de constitucionalidade que foi considerado nas decisões judiciais que legitimam a presente generalização. Efetivamente, a mudança legislativa operada pela norma em análise não afeta os efeitos jurídicos produzidos sob o domínio do direito anterior, na medida em que não é retirado caráter executivo a títulos que já tenham produzido a sua eficácia executiva. Indubitável é, todavia, que afeta situações passadas, recusando o reconhecimento da força executiva a documentos particulares que antes a tinham, desta forma desvalorizando a posição do credor de modo com que este não podia contar. É, portanto, à luz do princípio da proteção da confiança que terá que ser apreciada a sua conformidade constitucional.
c) Apreciação da questão à luz do princípio da proteção da confiança
8 - O princípio da proteção da confiança assume, na jurisprudência constitucional portuguesa, um conteúdo normativo preciso, que faz depender a tutela da confiança legítima dos cidadãos da verificação de alguns requisitos ou testes cumulativos.
Tais requisitos foram analiticamente apontados e sistematizados pelo Acórdão 129/2008, a partir de critérios elaborados em jurisprudência anterior (máxime, o Acórdão 287/90, n.º 27-28). Desde aí vêm sendo reiteradamente utilizados pela jurisprudência do Tribunal, constituindo hoje um lastro aplicativo de acentuado valor no controlo da atividade do legislador (cf., entre muitos outros, os Acórdãos n.os 176/2012 [n.º 7], 187/2013 [n.º 26, 31-32, 55, 57, 65], 355/2013 [n.º 3], 862/2013 [n.º 25 ss.], 202/2014 [n.º 4], 413/2014 [n.º 57 ss., 91 ss.], 575/2014 [n.º 22 ss.]). Os primeiros testes procuram escrutinar a consistência e a legitimidade das expetativas dos cidadãos afetados por uma alteração normativa, havendo de concluir-se que aquela existe quando (1) o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nestes cidadãos expetativas de continuidade, (2) estas expetativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, (3) e as pessoas tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do comportamento estadual.
Caso todas estas condições se verifiquem, o percurso decisório quanto ao princípio da proteção da confiança culmina num exercício de ponderação entre interesses contrapostos, levado a cabo de acordo com o princípio da proporcionalidade em sentido estrito: de uma parte, a confiança (legítima) dos particulares na continuidade do quadro normativo vigente e, de outra, as razões de interesse público que motivaram a alteração.
9 - Para decidir, no presente processo, se estamos perante uma confiança tutelável dos cidadãos há que atentar na natureza do título executivo.
Sendo «a chave que abre a porta da ação executiva», na conhecida expressão de Castro Mendes, o título executivo constitui um pressuposto processual específico da ação executiva. Sem ele não pode ser instaurada, ou prosseguir, a ação executiva para cumprimento coercivo das obrigações. Para além de ser um requisito de admissibilidade da ação executiva, o título executivo é um documento escrito que tem valor probatório quanto à existência do direito de crédito, ou seja, que atesta, com suficiente grau de segurança, o conteúdo e os sujeitos da relação creditícia. O título de crédito não se confunde com o ato titulado, isto é, com o facto jurídico gerador do direito à prestação, mas condiciona a exequibilidade extrínseca da pretensão, para além de estabelecer uma presunção - ilidível - quanto à existência da obrigação exequenda (cf. J. Lebre de Freitas, A ação executiva - À luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra Editora, 2014, pp. 81 ss., e A. Abrantes Geraldes, "Títulos Executivos", Themis, ano IV, n.º 7, 2003, p. 35).
O referido enquadramento do título executivo conduz à classificação do seu regime como lei processual. Neste âmbito releva, desde logo, para efeitos de aplicação da lei no tempo, um princípio de aplicação imediata da lei nova, que tem um duplo significado. Num primeiro sentido, indica que o processo não se rege pela lei vigente ao tempo em que se constitui ou extinguiu o direito ou relação jurídica litigada, mas antes pela lei vigente ao tempo do processo. Num segundo sentido, aponta para que a nova lei processual se aplica imediatamente às ações pendentes, mesmo sendo a situação processual uma situação de formação sucessiva. A razão de ser desta dupla asserção entronca na natureza instrumental da lei processual, isto é, na circunstância de ela não afetar a situação material das partes, respeitando apenas ao modo como elas devem fazer valer em juízo as faculdades e os direitos que lhe são concedidos pela lei substantiva (cf., neste sentido, o Acórdão 508/99, n.º 4).
Assim sendo, poderia alvitrar-se que a exequibilidade dos títulos só é cognoscível aquando do impulso da ação executiva e nunca antes, estando permanentemente dependente da «opção do sistema jurídico, em sede de direito público (adjetivo), sobre o grau de certeza do direito exigível para a admissibilidade da ação executiva» (cf. J. Lebre de Freitas, A ação executiva, cit., pp. 85-86). Neste contexto, nenhuma mudança desencadeada pelo legislador a este nível poderia preencher os índices de imprevisibilidade necessários ao apuramento de uma situação de confiança legítima.
Não é de aceitar uma tal conclusão. O princípio da aplicação imediata da lei processual, sendo pertinente para a presente questão de constitucionalidade, não tem, todavia, por efeito a aniquilação da legitimidade das expetativas que os privados tenham depositado na continuidade de um determinado regime normativo mesmo em matéria de processo. Desde logo, como qualquer princípio, ele é por natureza harmonizável com outros princípios, como o da tutela da confiança. Neste âmbito, aludindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, o Tribunal Constitucional já referiu, no contexto da fiscalização de normas relativas à aplicação imediata da atualização do valor das alçadas para efeitos de recuso, «também o direito processual pode fundamentar posições de confiança, nomeadamente em processos pendentes e em situações processuais concretas. [...] Mesmo se em geral a Constituição protege menos a confiança na manutenção de posições jurídicas processuais do que na de posições jurídicas materiais, podem aquelas no caso concreto ter um significado e um peso que as torna tão dignas de proteção como estas» (Acórdão 287/90, n.º 20). É de rejeitar o estrito formalismo de se considerar aprioristicamente que perante alteração de lei processual em nenhuma situação se poderia invocar o princípio da tutela da confiança.
10 - A norma objeto do presente processo deve ser, por isso, submetida ao teste do princípio da confiança, analisando-se se o comportamento do legislador nesta matéria foi de molde a criar nos cidadãos expetativas legítimas, justificadas e fundadas de continuidade, em que estes se basearam ao formular planos de vida.
Ao longo das últimas décadas tem-se assistido a sucessivas iniciativas legislativas de alargamento do rol de títulos executivos. Destaca-se, neste capítulo, o Decreto-Lei 533/77, de 30 de dezembro, que subtraiu a exigência de reconhecimento notarial de assinatura do devedor nos títulos cambiários (letras, livranças e cheques) quando o montante da dívida constante do título fosse inferior à alçada da Relação, e, mais tarde, o Decreto-Lei 242/85, de 9 de julho, que estendeu aquela eliminação a todos os títulos de crédito, independentemente do seu valor. A reforma de 1995/96, introduzida pelo Decreto-Lei 329-A/95, de 12 de dezembro, ao consagrar a exequibilidade de documentos comprovativos de um leque muito alargado de obrigações, com dispensa generalizada de reconhecimento notarial da assinatura do devedor, foi o momento culminante deste progressivo alargamento. Assim, através de sucessivas reformas na ação executiva, o legislador tinha vindo a ampliar a exequibilidade dos documentos particulares, associando tal ampliação ao desiderato constitucionalmente admitido de evitar o recurso desnecessário a ações declarativas de condenação, sobretudo naquelas situações em que sobre o direito do credor não recai verdadeira controvérsia. Uma tal orientação legislativa veio todavia a ser invertida com a aprovação do novo CPC, que restringe essa exequibilidade, pretendendo reagir aos riscos de proliferação de ações executivas injustas. Existia, portanto, um comportamento consistente do legislador num determinado sentido, face ao qual a presente norma representa um volte-face.
Ora, apesar de o título executivo não se confundir com o documento que o materializa, a sua função probatória constitui pressuposto da sua função executiva. A norma em apreciação não influi na existência ou inexistência do direito de crédito ou da obrigação exequenda, mas altera o valor probatório para fins executivos de documentos já emitidos mas ainda não acionados, implicando, assim, uma inevitável reavaliação de factos passados, recusando-lhes a virtualidade de produção de certos efeitos. Documentos que antes admitiam a imediata instauração da ação executiva, agora perderam aquele atributo.
Assim, decisões passadas tomadas pelos cidadãos com base num determinado quadro normativo, relativamente estável, tiveram as suas consequências atuais e futuras afetadas negativamente pela presente alteração legislativa. De facto, o reconhecimento da exequibilidade imediata dos documentos que titulavam os seus créditos é suscetível de ter tido influência sobre a conduta dos credores, os quais, assumindo que já dispunham da "chave" de acesso ao processo executivo, se abstiveram de realizar outras diligências ao seu alcance como, por exemplo, diligenciar pela autenticação do documento que titulava o seu crédito. Como concretizado por Maria João Telles, «se, à data da celebração do negócio ou da constituição da relação jurídica, aquele documento não revestisse a força de título executivo, o credor não teria porventura formado a sua vontade nos termos em que a formou, podendo presumir-se que só não requereu a autenticação do documento particular porque tal formalidade não era necessária para que aquele documento fosse um título executivo» ("A Reforma do Código de Processo Civil: A supressão dos documentos particulares do elenco dos títulos executivos", in Julgar on line, setembro 2013). Ao suprimir a ligação que antes se estabelecia entre o valor probatório dos documentos particulares e a exequibilidade extrínseca da pretensão neles materializada, a norma sob escrutínio introduziu uma modificação que era imprevisível. Se a lei nova estivesse vigente ao tempo em que se produziu o facto a provar, poderiam os credores ter adotado outras diligências ou precauções no sentido de se munirem de um título executivo, o que significa que a base da confiança gerou, nesta hipótese, uma situação de "uso da confiança" por inatividade (cf. Sylvia Calmes, Du principe de protection da la confiance légitime en droits allemand, communautaire et français, Dalloz, 2001, pp. 392 ss.).
Sendo assim, pode concluir-se que os credores desses títulos depositaram uma confiança legítima na sua exequibilidade, criada e alimentada pelo legislador, representando o novo regime uma imprevisível opção legislativa defraudadora dessa confiança. Nada fazia prever, pela anterior conduta legislativa, que fosse retirada a esses documentos, ex abrupto, a força executiva. Estas são razões suficientes para conferir legitimidade, consistência e validade às expetativas dos credores na imediata exequibilidade do seu título. As situações jurídicas afetadas pela alteração introduzida pela norma em análise apresentam-se como dignas de proteção. O que torna inevitável um exercício de ponderação que tem, num dos seus polos, o interesse dos credores em ver protegida a confiança que legitimamente depositaram na não alteração do ordenamento jurídico, e no outro, o interesse público que subjaz à alteração.
11 - Neste âmbito, o Tribunal Constitucional deve confrontar o peso relativo da posição de confiança, afetada por uma mutação legislativa, com as razões que motivaram a alteração identificáveis como interesse público.
O legislador apontou as razões de interesse público que o levaram a retirar força executiva aos documentos referidos no artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do anterior CPC, na exposição de motivos da Proposta de Lei 113/XII, que veio dar origem à Lei 41/2013: combater o risco de proliferação de ações executivas injustas - risco, no entender do legislador, já concretizado no «aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório». Com esse objetivo, o legislador dispôs-se a abrir mão da vantagem da redução de número de ações declarativas - reconhecidamente um efeito da solução anterior. O Estado, enquanto titular único do poder de execução (i. e. agressão de esferas patrimoniais privadas, para realização coativa de direitos de crédito), deve assegurar-se que a regulação do seu exercício reflita, com a maior justeza possível, todos os interesses em presença. E são ponderáveis não só interesses jurídico-materiais e jurídico-processuais "internos" ao sistema jurídico, como interesses a ele "externos" (de esfera económica, em particular). Neste caso, o interesse identificado é inteiramente legítimo e escapa a qualquer censura constitucional. Como se deixou escrito no Acórdão 847/2014, n.º 15, é de aceitar «que a opção por um elenco mais modesto dos títulos executivos valoriza a segurança jurídica, impondo, por exemplo, maiores cautelas formais na verificação da autenticidade das declarações ou assinaturas constantes dos documentos ou obrigando à propositura da ação declarativa», corporizando «um interesse público legítimo e relevante».
Quanto ao peso relativo do interesse público em causa, o Tribunal Constitucional já referiu, no Acórdão 847/2014, n.º 16, que «nesta ponderação importa reter que o risco de instauração de execuções injustas» tinha vindo a ser «contrabalançado por variadas soluções legislativas», de onde se destacam, desde logo, «a possibilidade de deduzir oposição à execução (embargos de executado), a garantir o pleno exercício do contraditório por parte do executado (artigo 816.º do CPC antigo e artigo 731.º do CPC novo), ou a faculdade concedida ao juiz de, na sequência da dedução de oposição à execução com simples fundamento na falta de autenticidade da assinatura imputada ao executado, ordenar a suspensão da execução caso seja apresentado um documento que constitui indício de prova revelador da viabilidade da oposição (artigo 818.º do CPC antigo e artigo 733.º do CPC novo), ou ainda a penalização do exequente que atue sem a prudência exigível (artigo 819.º CPC antigo)». Sendo colimados, sobretudo, a obstar à procedência de execuções injustas, não é de negar a estes meios também eficácia dissuasora de iniciativas abusivas. Mas o legislador entendeu, dentro do seu espaço de liberdade, que tal era insuficiente, importando inibir, de forma proibitiva, a própria instauração de execuções baseadas em documentos particulares a que não atribuiu o necessário valor "de acertamento". Esta decisão não merece, à partida, censura constitucional - o problema coloca-se quanto à sua produção de efeitos, ou seja, na sua vigência também relativamente a documentos que já possuíam valor de título executório.
12 - Prosseguindo a mudança, em si mesma, um objetivo legítimo, o princípio da proteção da confiança requer a apreciação do modo como ela foi introduzida no ordenamento.
O peso de uma posição de confiança é-nos dado pela relevância do interesse afetado e pela intensidade lesiva dessa afetação. Quando está em causa uma norma processual - ou, pelo menos, uma norma relativa ao modo de realização dos direitos -, a intensidade lesiva da afetação da posição jurídica atinge o seu grau máximo quando se apresenta como irreversível, colocando os cidadãos numa situação de indefesa inultrapassável e, por isso mesmo, constitucionalmente insuportável. Para além dessas situações extremas, podem verificar-se situações em que da ponderação devida resulte que o particular peso da confiança legítima dos cidadãos não foi adequadamente acautelado ou que o peso relativo do interesse público em causa não justifica aquela medida de afetação - em especial perante outras vias para prosseguir o mesmo interesse, menos lesivas e igualmente eficazes.
No caso das normas em análise não pode dizer-se que o credor perca acesso à execução por força da situação gerada com a mutação legislativa e que, com isso, fique impedido da defesa e exercício do seu direito. Na verdade, ao credor restam sempre alternativas processuais para realização do seu direito: a obtenção de um título pela via geral da ação declarativa, ou, no âmbito em que é admitido, o recurso à via simplificada do procedimento de injunção. De facto, a disponibilidade deste mecanismo, pelo credor-exequente, terá pesado fortemente na opção legislativa de revisão restritiva do elenco dos títulos executivos, como se pode retirar da exposição de motivos da referida Proposta de Lei 113/XII, que veio dar origem à Lei 41/2013.
Todavia, em concreto, cumpre ponderar se havia margem para acautelar as expetativas legítimas dos sujeitos ativos de obrigações formalizadas em documentos particulares desqualificados como títulos executivos e, em caso afirmativo, se a proteção obedeceu aos ditames da "justa medida". No que diz respeito especificamente ao procedimento de injunção, deve ser referido que, para além de este nem sempre se revelar possível, a sua máxima garantia de simplicidade e celeridade (com dispensa de processo declarativo) fica necessariamente nas mãos do devedor, que, mediante oposição ao pedido, pode sempre "forçar" a mediação de um processo declarativo (ainda que simplificado). De modo ainda mais evidente, a exigência de recorrer primeiramente à ação declarativa pode colocar o credor em dificuldades sérias, ou mesmo na impossibilidade, de efetivar o seu crédito. Não se pode ignorar que, na realidade factual das situações geradas pelo não cumprimento voluntário de uma obrigação, estando o credor desprovido da garantia da penhora, a inerente "volatilidade" dos bens do devedor propicia estratégias que deixam sem objeto a execução. É de concluir que a intensidade do dano da confiança infligido pela aplicação imediata da lei nova não se deve medir apenas pela maior morosidade na satisfação do crédito, mas também pelo risco, muito acrescido, de perda de eficácia da ação executiva.
13 - Na presente situação, do regime transitório constante do artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013 não decorre uma acomodação ajustada dos interesses em presença, pois dele resulta uma lesão particularmente intensa da confiança legítima do particular - que perde o título executivo que possuía e de acordo com o qual tinha feito planos de vida, com base na lei - para prosseguir um interesse público que, embora relevante, poderia ser igualmente alcançado de forma eficaz através de meios menos lesivos.
A previsão pelo legislador de um autêntico regime transitório, quer formal, quer material, tutelador das posições de confiança alicerçadas na lei antiga, depende de uma ponderação muito específica entre os prejuízos que daí podem advir para a realização da finalidade da alteração legislativa e os prejuízos para os interesses particulares afetados decorrentes do novo regime e da não previsão de um regime transitório. Pode argumentar-se que a intenção legislativa de evitar as execuções injustas e de diminuir o número de ações executivas não precedidas de contraditório afasta ou enfraquece a possibilidade de sobrevigência da lei antiga, requerendo uma aplicação da lei nova tão imediata quanto possível. Contudo, a evolução legislativa quanto a esta matéria descrita supra foi suscetível de fundar uma confiança particularmente forte na constância do regime ou, pelo menos, na não supressão do valor de título executivo a documentos que já o possuíam. Por outro lado, o juízo quanto à excessiva amplitude do elenco dos títulos executivos, se justifica uma intervenção ablativa de uma das categorias anteriormente previstas, não impõe uma aplicação imediata e praticamente sem qualquer ressalva do novo regime, sem dar qualquer possibilidade aos titulares dos documentos que perdem a natureza de títulos executivos de instaurarem, após a publicação da nova lei, execuções com base neles.
Assim, o interesse público subjacente àquele regime não demonstra ter um contrapeso suficientemente intenso face à medida da afetação da confiança legítima dos credores. Tendo em conta o grau de relevância atribuível a este interesse público (e à urgência da aplicação do novo regime), não se afigura que «a previsão de um regime transitório adequado», tal como propugnado no Acórdão 847/2014, n.º 16, afetasse de modo incomportável ou irrazoável a sua realização, a ponto de justificar o sacrifício total da posição de confiança. Nessa medida, a norma objeto do pedido afeta excessivamente as expetativas dos particulares que se mostram legítimas e fundadas em boas razões, com ofensa do princípio constitucional da proteção da confiança dos cidadãos, ínsito no princípio do Estado de Direito, que se encontra consagrado no artigo 2.º da Constituição.
III - Decisão
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, constante dos artigos 703.º do Código de Processo Civil, e 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2.º da Constituição).
Lisboa, 23 de setembro de 2015. - Maria de Fátima Mata-Mouros - Catarina Sarmento e Castro - João Pedro Caupers - Maria José Rangel de Mesquita - Lino Rodrigues Ribeiro - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Pedro Machete (vencido pelas razões constantes da declaração de voto da Cons. Ana Guerra Martins) - Fernando Vaz Ventura (vencido pelas razões constantes da declaração de voto da Sr.ª Conselheira Ana Guerra Martins) - João Cura Mariano (vencido pelas razões constantes da declaração de voto que junto) - Ana Guerra Martins (vencida, conforme declaração junta) - Joaquim de Sousa Ribeiro.
Declaração de voto
O Novo Código de Processo Civil eliminou a possibilidade de poder ser instaurada execução, tendo por base um mero documento particular assinado pelo devedor que importasse constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante fosse determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto (artigo 46.º, c), do Código de Processo Civil de 1961, na sua redação mais recente), a qual tinha sido consagrada pela reforma processual de 1995.
E a Lei que aprovou o novo Código de Processo Civil determinou que o disposto sobre títulos executivos só se aplicava às execuções iniciadas após a entrada em vigor do novo diploma.
Estamos perante uma norma transitória sectorial que determina que a aplicação de uma nova regra processual que veio restringir o acesso direto à ação executiva, apenas se aplique aos processos instaurados após a sua entrada em vigor, mesmo que a respetiva relação jurídica controvertida se tenha constituído em data anterior.
Sendo a orientação geral, relativamente à aplicação no tempo das normas que regem os processos, a de a sua aplicação ser imediata, dado o direito processual ser, por um lado, um ramo do direito público, em que os interesses da boa administração da justiça se sobrepõem aos interesses dos particulares e, por outro lado, do direito adjetivo que não regula os conflitos de interesses, mas o modo de os solucionar, dificilmente se poderá falar neste domínio em expectativas legítimas dos particulares na manutenção do quadro legislativo vigente nesse domínio, sobretudo quando o processo ainda não foi instaurado.
Em princípio, não há razões que justifiquem que os particulares confiem que o quadro processual vigente à data da constituição de determinada relação jurídica se irá manter inalterado até ao momento em que tenham que recorrer aos tribunais para solucionar um conflito entretanto ocorrido nessa relação.
Admite-se, contudo, relativamente à questão sub iudicio que, à data da formação de um negócio jurídico, os seus outorgantes tenham em conta os títulos que no quadro legislativo vigente, sobretudo quando este revele alguma estabilidade, poderão conferir um acesso direto à ação executiva, num futuro litígio que implique o recurso aos tribunais, donde resultará uma expectativa na manutenção desse enquadramento jurídico, apesar da exequibilidade dos títulos só ser cognoscível no momento em que é proposta a ação executiva.
E se é verdade que desde há muito que a orientação legislativa neste domínio tinha sido o de alargar o número de títulos que permitem o acesso direto à ação executiva, visando diminuir o número de ações declarativas, não se pode ignorar que antes desta alteração o sistema português era o que se apresentava no quadro da União Europeia como o mais generoso no que concerne à exequibilidade de documentos extrajudiciais, sendo já muitas as denúncias quanto ao número preocupante de "execuções injustas" e uma realidade o excesso de pendência dos processos executivos, em grande parte motivado pelo elevado número de oposições à execução, com a consequente tramitação de uma ação declarativa dentro do processo executivo, pelo que a solução perfilhada pelo Novo Código de Processo Civil não pode ser olhada como uma surpresa totalmente inesperada. Atenta a prodigalidade do legislador português, pode dizer-se que no ponto a que se tinha chegado antes da aprovação do Novo Código de Processo Civil o único caminho que se avistava era o do retrocesso, o qual aliás já encontrava anunciado no Programa do XIX Governo Constitucional apresentado em 1 de julho de 2011.
Realce-se ainda que a frustração destas débeis expectativas, sobrevalorizadas no presente acórdão, não implica quaisquer consequências substantivas, refletindo-se apenas quanto ao modo como o direito invocado pode ser judicialmente exercido, sem que a necessidade de instauração de um processo declarativo a quem era possuidor de um documento particular assinado pelo devedor que importasse constituição ou reconhecimento das obrigações referidas no anterior artigo 46.º, c), do Código de Processo Civil de 1961, faça perigar o exercício efetivo daquele direito, atenta a faculdade de dedução de procedimentos cautelares que lhe confere uma tutela provisória antecipada.
No outro prato da balança temos os prementes interesses públicos que presidiram à alteração legislativa - o combate ao risco das "execuções injustas", e a diminuição do número das ações executivas que entorpeciam o regular funcionamento do sistema judicial - e a necessidade dessas alterações já se aplicarem aos processos iniciados após a sua entrada em vigor, independentemente da data da formação do título formalizador dos negócios jurídicos respeitantes à relação jurídica controvertida, de modo a evitar uma fragmentação do regime processual aplicável, prejudicial para a certeza e uniformidade do direito e para o sucesso das finalidades perseguidas com a nova política legislativa.
Tendo em conta a fragilidade das expectativas enunciadas, entendo ser evidente a prevalência das razões de ordem pública que presidiram à emissão da norma transitória sob fiscalização, a qual acautelou suficientemente os direitos processuais já constituídos ao determinar que as novas regras sobre títulos executivos só eram aplicáveis aos processos que no futuro viessem a ser instaurados, salvaguardando os processos em curso.
Por estas razões pronunciei-me pela não inconstitucionalidade da norma sob fiscalização e, por isso, votei vencido. - João Cura Mariano.
Declaração de voto
Votámos vencidos por considerar que a norma do artigo 6.º, n.º 3, da Lei 41/2013, de 26 de junho que aplica o artigo 703.º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à referida Lei, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil de 1961, não configura uma ofensa ao princípio da confiança (cf. artigo 2.º da CRP), pelo que não é inconstitucional.
Tal como se afirma no acórdão, para se aferir da violação do principio da confiança há que escrutinar a consistência e a legitimidade das expetativas dos cidadãos afetados por uma alteração normativa, havendo de concluir-se que aquela existe quando (1) o legislador tenha encetado comportamentos capazes de gerar nestes cidadãos expetativas de continuidade, (2) estas expetativas sejam legítimas, justificadas e fundadas em boas razões, (3) e as pessoas tenham feito planos de vida tendo em conta a perspetiva de continuidade do comportamento estadual.
Considera o acórdão que o reconhecimento da exequibilidade imediata aos documentos particulares implicou que os credores desses títulos tenham depositado uma confiança legítima nessa exequibilidade, criada e alimentada pelo legislador. O novo regime representaria, pois, uma imprevisível opção legislativa defraudadora dessa confiança, nada fazendo prever, pela anterior conduta legislativa, que fosse retirada a esses documentos, ex abrupto, a força executiva.
Ora, não concordamos, desde logo, com esta posição, na medida em que só a partir da Reforma de 1995-96, entrada em vigor de 1997, é que esta solução vingou. Até então haviam vigorado vários regimes mais ou menos mitigados de não reconhecimento de força executivo aos meros documentos particulares não autenticados. Assim, atente-se na breve resenha histórica, exposta por Armindo Ribeiro Mendes (cf. O processo executivo no futuro Código de Processo Civil, in http://www.oa.pt/upl/%7Ba62c667e-c5bf-44c0-a7eb-2c3d154dbef9 %7D.pdf, p. 101):
«22 - Em 1977, o Decreto-Lei 533/77, de 30 de dezembro, alterou as condições de exequibilidade dos títulos particulares. Na versão primitiva do Código de Processo Civil de 1961 - na linha do estabelecido já no Código antecedente - exigia-se o reconhecimento da assinatura do devedor em todos os documentos particulares, salvo no extrato de fatura. O reconhecimento era por semelhança, no caso de a execução ter por fim o pagamento da quantia certa e o montante da dívida constante do título não exceder a alçada do tribunal da comarca. Nos restantes casos, exigia-se o reconhecimento presencial da assinatura do devedor.
A partir de 1977, deixou de se exigir o reconhecimento de assinatura do devedor nos títulos cambiários (letras, livranças e cheques) quando o montante da dívida constante do título fosse igual ou inferior à alçada da Relação (na época, 200 contos). Nos restantes casos de títulos cambiários com valores acima da alçada da Relação, exigia-se o reconhecimento por semelhança da assinatura do devedor. Ficou, assim, claramente facilitada a execução de títulos cambiários, medida legislativa que beneficiou muito os bancos nacionalizados, portadores de títulos cambiários.
A chamada Reforma Intercalar de 1985 (Decreto-Lei 242/85, de 9 de julho) eliminou a exigência de qualquer reconhecimento notarial para a plena exequibilidade dos títulos cambiários (letras, livranças e cheques).
A partir de 1 de janeiro de 1997, com a entrada em vigor da Revisão de 1995-1996, deixou de se exigir qualquer reconhecimento notarial de assinatura do devedor nos documentos particulares, salvo no que toca aos escritos particulares com assinatura a rogo (artigo 51.º). Por outro lado, passou a permitir-se a exequibilidade de títulos particulares não só pecuniários, como daqueles de que consta a obrigação de entrega de coisas móveis ou de prestações de facto.»
Daqui decorre que, ao nível do direito interno, o grau de consolidação do regime de concessão de força executiva a documentos particulares não autenticados, vigente até à entrada em vigor da Lei 41/2013, não se encontrava totalmente consolidado.
Além disso, nunca se tratou de uma solução consensual até porque a opção pela não concessão de força executiva aos documentos particulares não autenticados corresponde ao que habitualmente se passa em outros ordenamentos jurídicos, em especial, nos modelos europeus. São raros os países que conferem força executiva aos meros documentos particulares não autenticados, sendo que, recentemente, até o ordenamento jurídico espanhol recuou, retirando força executiva aos documentos particulares reconhecidos mediante juramento perante o tribunal. E o próprio Direito Europeu - maxime, a Convenção de Bruxelas - limita-se a mencionar as escrituras públicas, quando trata da exequibilidade de títulos extrajudiciais. Nesse sentido, ver José Lebre de Freitas (cf. Os paradigmas da ação executiva, http://www.dgpj.mj.pt/sections/informacao-e-eventos/anexos/sections/informacao-e-eventos/anexos/professor-doutor-lebre/downloadFile/file/plf.pdf?nocache=1210676672.22, pp. 2-3):
«3 - A generalidade dos países europeus é avara na concessão de exequibilidade a títulos não judiciais. A Convenção de Bruxelas trata apenas da escritura pública: embora não imponha a sua força executiva aos Estados que não lha atribuem, o certo é que a maioria das ordens jurídicas internas a consideram título executivo, designadamente quando constitui título hipotecário. O mesmo não acontece no campo dos documentos particulares: em alguns países o cheque, noutros a letra, noutros ainda o cheque e a letra constituem título executivo (1); na Suécia, constitui-o o documento em que o devedor de alimentos reconheça a sua dívida, desde que a declaração seja atestada por testemunhas. A Espanha recuou: na nova LEC deixou de ser título executivo o escrito particular reconhecido sob juramento perante o juiz, sendo-o apenas o cheque, a letra e a conta de honorários de advogado. Esta timidez generalizada na concessão de exequibilidade ao documento particular tem como óbvia razão de ser a garantia do devedor perante a execução injusta, cujos males o contraditório subsequente a uma impugnação nem sempre tem a virtude de sanar em termos constitucionalmente aceitáveis. O generalizado recurso prévio à fórmula executiva (2), entre nós só conhecida no processo de injunção e no âmbito da Convenção de Bruxelas e da de Lugano, e o cuidado com que se discute hoje, em países como a França, a Bélgica ou a Itália, a necessidade da inversão do contencioso, nomeadamente mediante a postergação para a ação executiva da defesa do devedor que, notificado para pagar, não se oponha (3), são manifestações da tensão entre esta preocupação garantística e as necessidades de realização rápida e efetiva dos direitos violados. Dão-se passos importantes e decididos, mas graduais e prudentes.»
Isto significa que a opção tomada pelo legislador português, até à entrada em vigor do novo CPC nem sequer se afigurava uma solução consensual ou com paralelismo noutros ordenamentos jurídicos estrangeiros. Não é de estranhar, portanto, que a doutrina tendesse a qualificar o anterior sistema jurídico português como um dos mais generosos, relativamente ao reconhecimento de força executiva aos documentos particulares (precisamente nesse sentido, ver José Lebre de Freitas, Os paradigmas da ação executiva, cit., p. 3; Ribeiro Mendes (cf. O processo executivo no futuro Código de Processo Civil, cit., 101-102).
Mas mais decisivo é que o próprio Programa do XIX Governo Constitucional, apresentado em 30 de junho e 01 de julho de 2011 (cf. http://www.portugal.gov.pt/media/130538/programa_gc19.pdf) expressamente determinou, no Capítulo relativo à Justiça e a propósito das medidas a adotar, em matéria de ação executiva, que:
«- No caso de existir um título executivo diferente de sentença, deve ser criado um processo abreviado que permita a resolução célere dos processos, sem prejuízo da reponderação das condições de exequibilidade dos documentos particulares como títulos executivos (mantendo-se o atual regime de exequibilidade dos títulos de créditos), que só poderão ter a virtualidade de adquirir força executiva quando for inequívoca a obrigação exequenda e estiverem asseguradas as garantias das pessoas contra execuções injustas» (cf. p. 67)
Ora, pelo menos, quanto aos documentos particulares não autenticados desde essa data - isto é, 01 de julho de 2011 -, não pode invocar-se qualquer proteção de legítimas expetativas, visto que os destinatários da norma poderiam saber que era intenção do Governo propor a eliminação, pelo órgão com competência legislativa, do reconhecimento de força executiva a esses documentos. Assim sendo, a invocação da ausência de uma norma transitória que acautelasse as expetativas jurídicas de quem é beneficiário do reconhecimento de um crédito, mediante documento particular não autenticado também não pode deixar de ser interpretada à luz das supra aludidas circunstâncias.
E, mesmo que assim se não entendesse, sempre as razões de interesse público que motivaram a alteração se deveriam sobrepor às expectativas das pessoas.
Ora, conforme se assevera, no preâmbulo da Lei 41/2013, um dos objetivos que perpassou esta opção legislativa radicou na intenção de evitar a desproteção dos devedores menos informados ou mais incautos, que possam ter assinado declarações de dívida sem ter consciência plena do ato que praticavam (sem o devido controlo de um terceiro imparcial; designadamente, de um notário), e de combate à proliferação de incidentes declarativos no âmbito da ação executiva, em que os executados contestam a validade do reconhecimento da dívida, constante de documento particular não assinado. Aliás, conforme bem nota Armindo Ribeiro Mendes (cf. O processo executivo no futuro Código de Processo Civil, in http://www.oa.pt/upl/%7Ba62c667e-c5bf-44c0-a7eb-2c3d154dbef9 %7D.pdf, p. 146), membro da respetiva Comissão de Revisão, essa opção de eliminação da força executiva dos documentos particulares não autenticados muito contribuiria para a redução dos incidentes declarativos em sede de ação executiva e, por consequência, da própria pendência em sede de processo executivo:
«Se for conseguida a "limpeza" das secretarias dos tribunais e dos gabinetes dos agentes de execução através dos meios administrativos previstos no Decreto-Lei 4/2013 e se a Assembleia da República não alterar a solução proposta de eliminação dos documentos particulares não autenticados sem natureza cambiária como títulos executivos, estão reunidas, em nossa opinião, as condições para tornar mais eficaz a ação executiva em Portugal.»
A aceitação da força executiva de documentos particulares não autenticados tem suscitado inúmeros problemas relacionados com a fidedignidade dos mesmos e quanto à garantia da vontade livre e esclarecido daqueles que figuram como devedores nesses mesmos documentos. Nesse sentido, retoma-se a seguinte citação extraída de José Lebre de Freitas (cf. Os paradigmas da ação executiva, cit., pp. 2-3):
«Esta timidez generalizada na concessão de exequibilidade ao documento particular tem como óbvia razão de ser a garantia do devedor perante a execução injusta, cujos males o contraditório subsequente a uma impugnação nem sempre tem a virtude de sanar em termos constitucionalmente aceitáveis.»
E no mesmo sentido já se pronunciou Miguel Teixeira de Sousa (citado nas alegações do Ministério Público, in http://blogippc.blogspot.pt/2014/03/aplicacao-no-tempo-do-ncpc-titulos.html):
«O que talvez mais impressione no acórdão da RE é a unilateralidade da análise. Nunca se pondera a posição do executado. Será que, na opção do legislador (que, por sinal, não coincidiu com a da Comissão de Revisão do Processo Civil), não relevou que alguns títulos executivos não constituíam garantia suficiente da constituição da dívida e não protegiam suficientemente o executado? Se o credor tem um direito constitucionalmente protegido a instaurar uma execução, o devedor também tem um direito, necessariamente merecedor da mesma proteção, a não ser executado com base num título que não oferece garantias suficientes de constituição da dívida (e que até, por vezes, nem assegura ao devedor a consciência de que está a participar da formação de um título executivo que pode vir a ser utilizado contra ele). O cruzamento desta problemática com a da proteção do consumidor impõe, de imediato, uma perspetiva de análise bastante diferente daquela que foi a assumida no acórdão da RE» (cf. § 3)
Ainda que reportando-se a uma versão menos incisiva e intensa, proposta pela Comissão Revisora do Código de Processo Civil, ver igualmente Armindo Ribeiro Mendes (cf. O processo executivo no futuro Código de Processo Civil, cit., respetivamente, pp. 129 e 131-132):
«Procurava-se evitar abusos da prática empresarial em que o montante da dívida assumida só podia ser calculado tendo em conta a remissão do documento assinado para anexos mais ou menos complexos. Daí a exigência de inequivocidade da assunção de obrigação e do seu conteúdo." (idem, p. 129)
«55 - Em relação ao Código vigente, a preocupação de Proposta de Lei foi a de eliminar o título executivo mais problemático quanto à sua fiabilidade (documentos particulares não cambiários) - o que não deixará de suscitar críticas por parte de bancos, instituições financeiras e empresas de vendas de bens a prestações [...].» (idem, pp. 131-132)
Assim sendo, verifica-se uma notória contraposição de interesses entre os credores e os devedores que, segundo Miguel Teixeira de Sousa, deveria ter sido ponderada (in "Títulos executivos perpétuos? - Ac. do Tribunal Constitucional n.º 847/2014, de 3.12.2014; Proc. 537/14", Cadernos de Direito Privado, n.º 48,, 2014, p. 15).
Isto é: a solução legislativa ora em apreço, ao restringir o direito de acesso à Justiça (executiva), por parte dos credores que beneficiam do reconhecimento de dívida titulada por documento particular não autenticado, acaba por salvaguardar, aumentando o grau de proteção do direito de acesso à Justiça, por parte dos devedores, visto que afasta da ação executiva a discussão acerca de direitos de crédito controvertidos, remetendo-os para a ação declarativa ou, mesmo, para o processo especial de injunção.
Ora, a solução legislativa em apreço não deixa os credores totalmente desprotegidos, na medida em que se limita a não conceder força executiva ao documento particular, não impedindo os credores de instaurem uma ação declarativa, utilizando o referido documento como prova da existência do seu direito de crédito. Assim como não impede a instauração de um processo especial de injunção, fundado nesse mesmo crédito (nesse sentido, ver Sérgio Castanheira, Novidades na ação executiva, in «Lusíada - Direito», 11 (2013), disponível in http://repositorio.ulusiada.pt/bitstream/11067/1091/1/LD_11_7.pdf, p. 101; Armindo Ribeiro Mendes, O processo executivo no futuro Código de Processo Civil, cit., p. 129; Miguel Teixeira de Sousa, in http://blogippc.blogspot.pt/2014/03/aplicacao-no-tempo-do-ncpc-titulos.html).
Não fica, portanto, colocada em causa, de modo flagrante e absoluto, a confiança jurídica dos credores, visto que não ocorre uma integral elisão do valor jurídico dos documentos particulares não autenticados adotados em data anterior à entrada em vigor da Lei 41/2013.
Além disso, conforme também demonstrado pela prática jurisdicional e pela doutrina processual-civilista, o recurso dos devedores signatários de documentos particulares não autenticados a inúmeros incidentes declarativos apostos às ações executivas, através dos quais colocam em causa a validade (e mesmo a fidedignidade) desses documentos particulares acabou por deitar por terra o objetivo de imprimir maior celeridade ao processo executivo. Com efeito, não raras vezes, aquele tipo de títulos executivos acabou por suscitar mais controvérsias do que contribuiu para a diminuição da litigância e da pendência processual. Nesta linha, Sérgio Castanheira (cf. Novidades na ação executiva, cit., p. 101) alerta para que:
«- A facilidade com que atualmente se penhoram bens sem prévia citação do alegado devedor, impunha-se recuar no tempo, eliminando-se a exequibilidade dos documentos particulares, por forma a que a discussão sobre a existência/não existência da dívida tenha lugar na devida sede - ação declarativa - e não em incidente declarativo enxertado no âmbito da ação executiva.»
Em sentido próximo, José Lebre de Freitas (cf. Os paradigmas da ação executiva, cit., p. 3) refere-se ainda a um elevado "risco de imputar a autoria do documento particular a quem não o haja subscrito" (cf. Os paradigmas da ação executiva, cit., p. 3), para, mais adiante, lembrar que "não podemos perder de vista, quando consideramos o direito português, que [...] o grau de certeza da existência da obrigação constante dum documento particular de que o respeitante a uma obrigação reconhecida por sentença ou constante de escritura pública" (ibidem, cit., p. 5).
A circunstância de uma pendência processual gigantesca, no que diz respeito ao processo executivo, não pode deixar de justificar medidas tendentes à redução de incidentes declarativos que prejudicam a celeridade que é (ou devia ser) própria da ação executiva.
Assim sendo, verificam-se exigências sérias, do ponto de vista do interesse público, que se afiguram como suficientemente fortes para justificar uma compressão, razoável e ainda nos limites do admissível, do princípio da confiança, quanto aos beneficiários de documentos particulares não autenticados que reconheçam a existência de dívidas/créditos, ainda que estes tenham sido elaborados em data anterior à entrada em vigor da Lei 41/2013 ou mesmo em data anterior a 01 de julho de 2011, data da apresentação e discussão do Programa do XIX Governo Constitucional.
Em suma, não concordamos com o juízo de inconstitucionalidade proferido pelo Tribunal nos presentes autos. - Ana Guerra Martins.