Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1 - António Manuel Ribeiro da Costa propôs no Tribunal da Comarca de Leiria acção declarativa sob forma ordinária contra David de Jesus Rodrigues e o Fundo de Garantia Automóvel, alegando que, enquanto conduzia um motociclo na via pública, fora vítima de um acidente de viação exclusivamente causado pelo primeiro réu, que na altura circulava, sem beneficiar de qualquer seguro válido e eficaz, com um motocultivador com reboque; pedia, em consequência, que os réus fossem condenados a pagar solidariamente a quantia de 9 265 005$00 acrescida dos juros legais que se vencessem após a citação, a título de indemnização pelos danos por si sofridos, entre os quais se incluía a amputação traumática pelo terço superior da perna direita e a incapacidade permanente global de 70 %.
Os réus contestaram e, ulteriormente, houve lugar à ampliação do pedido, por parte do autor.
Por sentença de 24 de Abril de 2007, foi a acção julgada parcialmente procedente, nos seguintes termos:
«[...]
Nos casos de acidente de viação, aquilo que está coberto pelo seguro é a obrigação de indemnização que, em virtude do acidente, possa recair sobre o segurado (até ao limite do valor convencionado entre as partes).
Ora, no caso vertente o réu David não tinha a responsabilidade por acidentes de viação, em que o seu motocultivador interviesse, transferida para qualquer companhia de seguros, pelo que, em caso de responsabilidade sua, é nossa humilde opinião, intervém o Fundo de Garantia Automóvel, apesar da redacção literal do artigo 21.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, que se transcreve:
'1 - Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer [...] as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes nacionais.
2 - O Fundo de Garantia Automóvel garante, por acidente originado pelos veículos referidos no número anterior, a satisfação das indemnizações por:
a) Morte ou lesões corporais, quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz ou for declarada a falência da seguradora;
b) Lesões materiais, quando o responsável, sendo conhecido, não beneficie de seguro válido ou eficaz.
2 - Nos casos previstos na alínea b) do número anterior haverá uma franquia de (euro) 299,28 a deduzir no montante a cargo do Fundo'.
Adoptamos assim uma interpretação que não colhe no teor literal do n.º 1 deste preceito quando parece exigir, cumulativamente, para que o FGA seja responsabilizado:
1.º Veículo sujeito ao seguro obrigatório;
2.º E que seja matriculado.
O motocultivador não está sujeito a seguro obrigatório nem a matrícula uma vez que tal situação não foi ainda regulamentada, conforme o impunha o artigo 117.º, n.º 3, do Código da Estrada, vigente à altura.
Tal situação implicaria, tomado o preceito à la lettre, que os lesados, nestes casos de acidentes provocados por motocultivador, não seriam inteiramente protegidos na sua pretensão indemnizatória em comparação com os lesados por acidente de viação provocado por veículo sujeito ao seguro obrigatório e matriculado.
Assim, a redacção do referido preceito constitui uma clara violação do princípio constitucional da igualdade, consignado na CRP no seu artigo 13.º, n.º 1, princípio esse estruturante do sistema constitucional global e inerente ao conceito de Estado de direito democrático e social pelo que se nega a sua aplicação.
Só esta interpretação obedece ao princípio da eliminação das desigualdades fácticas, no sentido de que se atinja, sempre que possível, uma igualdade e protecção reais de todos os cidadãos.
Entender-se o contrário seria tratar diferentemente situações facticamente iguais e retirar protecção ao lesado que tivesse 'a desventura' de sofrer acidente de viação causado por veículo não sujeito a seguro obrigatório e a matrícula.
Aliás, podemos aqui considerar até que o Estado Português, ao não regulamentar a situação relativa aos motocultivadores, como já o impunha o artigo 117.º, n.º 3, do Código da Estrada vigente à altura, comete omissão grave do seu dever de legislar neste campo, como lhe é imposto pela Directiva n.º 84/9/CEE, do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983, no que toca a estas situações, pelo que até o próprio Estado pode incorrer em responsabilidade.
Isto posto:
A circulação rodoviária é uma actividade perigosa pelo que está sujeita a regras de conduta plasmadas no Código da Estrada a que todos devem obediência.
Assim, e em caso de acidente de viação, cabe em 1.º lugar averiguar se existiu violação ou não de uma norma estradal, e, no caso de existir violação, se esta pode ser imputada ao agente a título de culpa (dolo ou negligência).
Ora, da prova produzida nos autos resulta que o acidente se deve a culpa exclusiva do condutor do motocultivador, que, com negligência, violou as mais elementares normas estradais, nomeadamente a obrigação de cedência de passagem imposta pelo artigo 31.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada vigente à altura.
Quanto aos danos a indemnizar?
[...]
Ora, passando aos danos efectivamente comprovados, temos o seguinte:
[...]
V - Decisão:
Pelo exposto, condeno os réus David de Jesus Rodrigues e Fundo de Garantia Automóvel, solidariamente, a pagar ao autor a quantia de:
(euro) 49 879,79 (quarenta e nove mil oitocentos e setenta e nove euros e setenta e nove cêntimos) pelo dano corporal emergente da amputação do membro inferior direito;
(euro) 37 409,87 (trinta e sete mil quatrocentos e nove mil e oitenta e sete cêntimos) a título de danos futuros;
(euro) 29 927,87 (vinte e nove mil novecentos e vinte sete euros e oitenta e sete cêntimos) pelos danos morais sofridos;
(euro) 769,67 (setecentos e sessenta e nove mil e sessenta e sete cêntimos) a título de danos patrimoniais.
Acrescidas, tais quantias, de juros de mora à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento.
Quanto aos danos materiais, e relativamente ao FGA, há que deduzir a franquia de (euro) 229,28 - artigo 21.º do Decreto-Lei 522/85.
No mais vão os RR absolvidos.
[...]
Declara-se inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do preceituado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (princípio da igualdade).
[...].»
Desta sentença - e na medida em que nela «se recusou a aplicação dos ditames do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, por violação do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa» - interpôs o Ministério Público recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (fl. 571).
O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fl. 585.
Nas alegações, sustentou o representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional o seguinte (fls. 600 e segs.):
«[...]
O presente recurso obrigatório vem interposto pelo Ministério Público da decisão, proferida no Tribunal Judicial de Leiria, na acção indemnizatória por acidente de viação intentada por António Manuel Ribeiro da Costa, na parte em que julgou inconstitucional a norma constante do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, considerando que a exclusão da responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não sujeita a matrícula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro obrigatório, afronta o princípio constitucional da igualdade.
Percorrendo as normas relevantes para a dirimição do caso, verifica-se que no acidente a que a acção se reporta teve intervenção um veículo agrícola - dispensado de obrigatoriedade de matrícula, nos termos do n.º 3 do artigo 117.º do Código da Estrada - e cujo proprietário não se encontrava sujeito à obrigatoriedade de segurar a respectiva responsabilidade civil face aos lesados, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei 522/85, precisamente por estar em causa 'máquina agrícola não sujeita a matrícula'.
Por sua vez, tal regime implica que - em termos previstos no artigo 21.º, n.º 1, do citado Decreto-Lei 522/85 - o FGA não seja responsável pelas indemnizações devidas aos lesados, já que tal responsabilidade aparece condicionada, quer à "matrícula" do veículo terrestre a motor em Portugal, quer à exigência de que se trate de veículo 'sujeito ao seguro obrigatório' (condições que, como se viu, se não verificam no caso sub judicio). Como é evidente - e dá nota a sentença recorrida - tal regime normativo implica uma completa desprotecção dos lesados em acidentes originados pelos referidos veículos agrícolas, prejudicando, de forma incompreensível, a 'socialização do risco' associado à circulação rodoviária nas vias públicas.
Na verdade, as viaturas agrícolas do tipo da que originou o grave acidente a que a acção se reporta circulam frequentemente - e sem restrições - nas vias públicas, estando dotados de elevada perigosidade - não propriamente pela sua eficácia, dinâmica, mas pelo facto de se poderem constituir frequentemente em gravosos obstáculos à segurança e fluidez da circulação do restante tráfego (como manifestamente terá sucedido no caso dos autos, em que tal viatura, saindo inopinadamente de um caminho particular, cortou abruptamente a linha de marcha do motociclo em que se deslocava o lesado).
A dispensa da obrigação de celebrar seguro obrigatório, como condição para tais viaturas motorizadas serem admitidas a circular nas vias públicas, implica, como atrás se notou, uma total desprotecção dos direitos dos lesados: na verdade - a não se admitir a responsabilidade do FGA - estes, não só terão o ónus de, na sequência de eventual sentença condenatória do responsável directo, intentar e impulsionar a subsequente acção executiva como - muito em particular - terão de suportar o risco de uma eventual insolvabilidade do referido responsável directo, impossibilitadora de um efectivo ressarcimento dos gravíssimos danos - pessoais e patrimoniais - sofridos.
Na verdade, se se poderia admitir a dispensa do seguro obrigatório referentemente a viaturas agrícolas que não circulassem nas vias públicas, compreende-se com dificuldade tal dispensa nos casos em que estas são admitidas a circular, sem restrições substanciais, em tais vias, potenciando riscos relevantes para os restantes utentes, sem qualquer garantia efectiva de ressarcimento dos danos sofridos.
Desta perplexidade dá, aliás, nota Filipe Albuquerque Matos, em 'O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel', in BFD, n.º 78, 2002, p. 336, nota 6, ao afirmar: 'Relativamente à exclusão das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula do âmbito da obrigação de segurar (artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85), impõem-se, tendo em conta a ratio legis deste preceito, algumas considerações. Parece ter sido propósito do legislador no artigo 1.º, n.º 1, impor a obrigatoriedade de celebração de um contrato de seguro obrigatório sempre que estiverem em causa veículos terrestres susceptíveis, dada a sua necessária e frequente utilização na via pública bem como a sua perigosidade, de provocar perturbações na circulação no espaço público. Assim sendo, e no tocante às máquinas agrícolas, que apesar de serem veículos de tracção mecânica, se destinem a habitualmente circular na via pública (para por exemplo efectuarem o transporte dos produtos agrícolas), não vemos razão para não integrar as pessoas eventualmente responsáveis pelos danos causados pela sua circulação no círculo de sujeitos sobre quem recaía a obrigação de realizar o seguro. Na verdade, em relação a estas máquinas agrícolas colhem as mesmas razões justificativas da obrigatoriedade do seguro subjacentes ao artigo 1.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85. Não estamos aqui a pensar no caso especial dos tractores. Com efeito, e de acordo com a noção de veículo automóvel decorrente do Código da Estrada (seja Código de 1954, seja Código de 94 revisto em 98, artigo 105.º), o tractor deve classificar-se como veículo automóvel, e deste modo considerar-se imediatamente incluído no âmbito da obrigatoriedade de celebrar o contrato de seguro. Queremos então referir-nos àqueles transportes e máquinas agrícolas, que apesar de não serem veículos automóveis para efeitos do actual Código da Estrada, se traduzem em veículos terrestres de tracção mecânica habitualmente destinados a circularem na via pública.
Defendemos, de iure condendo, uma tal extensão apenas para as hipóteses em que estes veículos, apesar de não serem motorizados, apresentem características substancialmente idênticas a estes últimos. Referimo-nos desde logo aos perigos especiais envolvidos na sua utilização. Afastadas ficariam então aquelas máquinas agrícolas cuja circulação é feita apenas em propriedades privadas, ou de muito ocasionalmente circulem na via pública, bem como aquelas cuja perigosidade se revele praticamente nula, apesar de transitarem habitualmente naquela.'
Como é manifesto, na óptica do lesado, a situação de desprotecção, notada na sentença recorrida, decorre simultaneamente da dispensa de celebração do contrato de seguro obrigatório, decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 1.º do citado Decreto-Lei 522/85, e da exclusão de responsabilidade do FGA, emergente da norma desaplicada, inviabilizando, quer a demanda da seguradora (que não existirá, salvo se o detentor da viatura agrícola tiver celebrado contrato de seguro facultativo da respectiva responsabilidade civil), quer do FGA (legalmente excluído pelo simples facto de não incidir sobre o detentor do veículo não matriculado a referida obrigação de segurar...).
Acompanhando a linha argumentativa expendida na decisão recorrida, afigura-se que esta absoluta desprotecção do lesado em acidente de viação imputável ao condutor da viatura agrícola se configura como solução normativa carecida manifestamente de fundamento material: na verdade, face aos interesses subjacentes à instituição do seguro obrigatório da responsabilidade civil automóvel - e à socialização do risco que lhe subjaz - não se vê qualquer razão para desconsiderar os interesses do lesado só pelo facto de o instrumento que causou o dano ter determinadas características intrínsecas ou "regulamentares" (nomeadamente, a dispensa de matrícula) totalmente irrelevantes quanto ao que deveria efectivamente interessar: a sua potencialidade para, circulando frequentemente nas vias públicas, causar danos graves aos restantes utilizadores das mesmas.
Saliente-se que esta inadmissível solução legislativa estará - para o futuro - arredada, face ao regime prescrito no Decreto-Lei 291/2007, de 21 de Agosto, que procedeu a uma completa e substancial reformulação da disciplina do seguro obrigatório automóvel, acentuando a protecção dos lesados, em consonância com as normas comunitárias vinculantes do Estado Português.
Assim - e embora o artigo 4.º, n.º 2, de tal diploma legal mantenha a isenção da obrigação de segurar referentemente a 'máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula" - , o artigo 48.º, n.º 1, alínea c), amplia a responsabilidade do FGA aos veículos cujo responsável pela circulação se encontre isento da obrigação de seguro 'em razão do veículo em si mesmo'.
Na verdade, enquanto as isenções 'subjectivas' da obrigação de segurar não afectam, em termos substanciais, os interesses legítimos do lesado no seu ressarcimento efectivo - já que pressupõem a necessária solvabilidade da entidade institucional dispensada da celebração do contrato de seguro - as isenções 'objectivas', assentes em mera característica inerente ao veículo causador do acidente, podem deixar o lesado totalmente desprotegido, bastando que o responsável não detenha património suficiente para o pagamento das indemnizações devidas pelos danos causados - justificando-se, deste modo, que deva competir ao FGA, face ao lesado, tal ressarcimento prioritário.
2 - Conclusão. - Nestes termos e pelo exposto, conclui-se:
1.º Constitui solução legislativa arbitrária ou discricionária - discriminatória relativamente ao lesado em acidente imputável ao detentor de máquina agrícola - não sujeita a matrícula, mas admitida a circular nas vias públicas - a que, dispensando a existência de seguro obrigatório, exclui a responsabilidade do FGA pelos danos - corporais e materiais - sofridos pelo lesado, deixando o ressarcimento deste totalmente condicionado à situação patrimonial do responsável pelo acidente;
2.º Na verdade - face aos objectivos subjacentes à instituição do seguro obrigatório - o acautelamento da efectividade do direito ao ressarcimento dos danos por parte do lesado terá de estar conexionado - não com quaisquer características intrínsecas, de ordem regulamentar, dos veículos, - mas tão-somente com a sua potencialidade para, circulando pelas vias públicas, causarem danos gravosos aos restantes utilizadores das mesmas;
3.º Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado quanto à norma constante do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro.»
Os recorridos não contra-alegaram.
II - Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
2 - A decisão recorrida declarou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, em si mesma considerada.
No entanto, da respectiva fundamentação decorre que esse juízo de inconstitucionalidade versa sobre uma concreta interpretação desse preceito legal: aquela que exclui a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não sujeita a matrícula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel.
Sendo essa a interpretação normativa que foi julgada inconstitucional - e é a ela que sempre alude o Ministério Público nas alegações - , o objecto do presente recurso há-de necessariamente restringir-se à norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, quando interpretada no sentido de se encontrar excluída a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel por danos causados a terceiros por viatura agrícola, relativamente à qual não haja obrigatoriedade de seguro automóvel por o veículo não estar sujeito a matrícula.
Cumpre, portanto, aferir se esta interpretação normativa é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, tal como decidiu o tribunal recorrido e sustenta, nas alegações de recurso, o Ministério Público.
3 - Com relevo para a apreciação da questão jurídico-constitucional que vem suscitada, interessa considerar, no essencial, a seguinte factualidade:
O acidente ocorreu por virtude de uma colisão entre um motociclo de matrícula 2-LRA-86-37, conduzido pelo autor, e um motocultivador sem matrícula, tripulado pelo réu David de Jesus Rodrigues;
E verificou-se quando o réu, conduzindo o motocultivador, entrou na via pública, súbita e inesperadamente, interrompendo a linha de marcha do autor, que circulava na sua faixa de rodagem;
Em resultado do embate, o autor sofreu lesões corporais, bem como danos materiais.
A sentença recorrida, com base em todos os factos tidos como provados, deu como assente que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do condutor do motocultivador, que, com negligência, violou as regras estradais, nomeadamente a obrigação de cedência de passagem imposta pelo artigo 31.º, n.º 1, alínea a), do Código da Estrada, então vigente.
Tendo julgado inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, na interpretação segundo a qual a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel apenas opera em relação a danos causados a terceiros por viatura agrícola que esteja sujeita a matrícula e relativamente à qual seja obrigatório seguro automóvel - e, por consequência, recusado a aplicação da referida norma - , a sentença acabou por condenar nas indemnizações devidas, em solidariedade, ambos os réus, que haviam sido demandados em litisconsórcio voluntário passivo.
4 - O artigo 21.º do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, sistematicamente inserido nas disposições gerais relativas ao Fundo de Garantia Automóvel e possuindo como epígrafe «Âmbito do Fundo», dispõe, no seu n.º 1, o seguinte:
«1 - Compete ao Fundo de Garantia Automóvel satisfazer, nos termos do presente capítulo, as indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório e que sejam matriculados em Portugal ou em países terceiros em relação à Comunidade Económica Europeia que não tenham gabinete nacional de seguros, ou cujo gabinete não tenha aderido à Convenção Complementar entre Gabinetes Nacionais.»
Os veículos referenciados nesta disposição que se encontram sujeitos ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel encontram-se definidos no artigo 1.º do mesmo Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, aí se mencionando os veículos terrestres motores e seus reboques ou semi-reboques. O n.º 2 do mesmo artigo determina, por outro lado, que a obrigação de segurar «não se aplica aos responsáveis pela circulação dos veículos de caminho de ferro, bem como das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula» (itálico acrescentado).
A obrigatoriedade de matrícula está, por sua vez, consignada no artigo 117.º, n.º 3, do Código da Estrada (aprovado pelo Decreto-Lei 265-A/2001, de 28 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei 20/2002, de 21 de Agosto), que, no seu n.º 3, estatui o seguinte:
«3 - Os casos em que as máquinas agrícolas e industriais, os motocultivadores e os tractocarros estão sujeitos a matrícula são fixados em regulamento.» (Itálico acrescentado.)
O regulamento a que alude o artigo 117.º, n.º 3, do Código da Estrada não chegou a ser publicado, pelo que, por efeito da inércia regulamentar, nada foi determinado quanto à possibilidade de as máquinas agrícolas e industriais, incluindo os motocultivadores, ficarem sujeitas a matrícula para serem admitidas à circulação rodoviária.
Tal significa que, por mera decorrência do citado artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei 522/85, os motocultivadores, como no caso dos autos, não estando sujeitos a matrícula, poderiam circular na via pública independentemente de o respectivo proprietário possuir seguro automóvel.
Com a linear consequência de, por efeito do já mencionado artigo 21.º, n.º 1, desse diploma, os acidentes causados por esse tipo de veículos não se encontrarem cobertos pelo Fundo de Garantia Automóvel, que, como se viu, apenas está obrigado a satisfazer as «indemnizações decorrentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório».
5 - Sublinhe-se, uma vez mais, que a norma que constitui objecto do recurso de constitucionalidade é a do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, que define o âmbito de intervenção do Fundo de Garantia Automóvel, e não a do artigo 2.º desse diploma, que estabelece o âmbito da obrigação de segurar.
E sendo assim, a única questão que se coloca - e que pode ser dirimida - é a de saber se pode considerar-se constitucionalmente justificável a exclusão da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados por veículos não sujeitos a seguro de responsabilidade civil obrigatório (por não estarem sujeitos a matrícula).
Nesta medida, não cabe apurar se é razoável a própria dispensa da obrigação de celebrar seguro de responsabilidade civil automóvel em relação a veículos que são objectivamente aptos a causar graves acidentes na via pública, mas que não estão sujeitos a matrícula (defendendo a obrigatoriedade do seguro em relação a máquinas se destinem a circular habitualmente na via pública e cuja utilização envolva uma perigosidade especial, Filipe Albuquerque Matos, «O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - Alguns aspectos do seu regime jurídico», in Boletim da Faculdade de Direito, n.º 78, 2002, pp. 329-364, em especial, p. 333, nota 6.
Como também não releva considerar as consequências que, no plano do direito, possam resultar do incumprimento do dever de regulamentar, derivavam do disposto no artigo 117.º, n.º 3, do Código da Estrada.
6 - Entrando na apreciação da questão de constitucionalidade, convirá começar por enquadrar historicamente a solução legislativa em presença.
O Decreto-Lei 408/79, de 25 de Setembro, que instituiu o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, determinou no seu artigo 20.º que «[o]s direitos dos lesados por acidentes ocorridos com veículos sujeitos ao seguro obrigatório poderão ser efectivados, nos termos que legalmente vierem a ser estabelecidos, contra o fundo de garantia automóvel, a instituir no âmbito do Instituto Nacional de Seguros, nos seguintes casos:
a) Quando o responsável seja desconhecido ou não beneficie de seguro válido ou eficaz;
b) Quando for declarada a falência do segurador».
O Fundo de Garantia Automóvel - reconhecendo-se ter constituído um contributo importante no sentido da socialização do risco (cf. Filipe Albuquerque Matos, ob. cit., p. 361) - foi simultaneamente instituído pelo Decreto Regulamentar 58/79, de 25 de Setembro, que, nos termos do artigo 2.º, n.º 2, lhe atribuiu a competência para «satisfazer as indemnizações de morte ou lesões corporais consequentes de acidentes originados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório, nos casos previstos no artigo 20.º do Decreto-Lei 408/79».
Nem todos os danos se encontravam, no entanto, cobertos pelo fundo de garantia: para além das limitações inerentes ao âmbito objectivo de protecção (indemnizações por morte ou lesões corporais em acidentes em que fossem intervenientes veículos sujeitos ao seguro obrigatório), o diploma também previa a existência de certos limites às indemnizações a satisfazer pelo Fundo (artigo 2.º, n.º 3); estipulava diversas exclusões, como, por exemplo, a referente ao condutor do veículo titular da apólice e aos danos causados às pessoas dos autores, cúmplices e encobridores de roubo, furto ou furto de uso de qualquer veículo que intervenha no acidente (artigo 3.º); e determinava que só aproveitavam do benefício do Fundo os lesados por acidentes ocorridos em Portugal (artigo 4.º).
À delimitação do âmbito de protecção do Fundo (circunscrito como estava aos acidentes provocados por veículos sujeitos ao seguro obrigatório) não será alheio o próprio regime de financiamento, sabendo-se que constituía receita do Fundo «o montante, a liquidar por cada seguradora, resultante da aplicação de uma percentagem sobre os prémios simples (líquidos de adicionais) de seguros directos automóvel processados no ano anterior, líquidos de estornos e anulações», para o que ficavam «as seguradoras autorizadas a cobrar dos seus segurados do ramo 'automóvel' um adicional, calculado sobre os prémios simples (líquidos de adicionais) [...]» (artigo 6.º, n.os 1 e 4). E só em situações excepcionais, devidamente comprovadas, o Estado podia assegurar uma dotação correspondente ao montante dos encargos que excedessem as receitas previstas do Fundo (n.º 5 do mesmo artigo).
A articulação do funcionamento do Fundo de Garantia Automóvel com a actividade seguradora era também revelada pelo estabelecido no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar 58/79, de 25 de Setembro, que habilitava o Fundo a solver eventuais compromissos superiores às suas disponibilidades de tesouraria mediante o recurso às seguradoras, permitindo-lhe arrecadar até ao limite de 0,25 % da carteira de prémios de seguro directo automóvel processados no ano anterior.
O regime jurídico Fundo de Garantia Automóvel viria a ser alterado pelo Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro - o diploma que agora está particularmente em foco - , que, através do seu artigo 40.º, revogou os mencionados Decreto-Lei 408/79 e Decreto Regulamentar 58/79, de 25 de Setembro.
O Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, procedeu ao alargamento do âmbito de responsabilidade civil do Fundo, passando a assegurar também o ressarcimento de danos materiais em relação a acidentes em que o responsável, sendo conhecido, não seja portador de seguro válido e eficaz [cf. o preâmbulo do diploma e o seu artigo 21.º, n.º 2, alínea b)].
Manteve, todavia, a dependência financeira do Fundo em relação às seguradoras, que teriam de participar nas respectivas receitas através do pagamento uma verba correspondente a uma percentagem sobre os prémios simples de seguro directo do ramo 'automóvel' processados no ano anterior [artigo 27.º, n.º 1, alínea a)], para cujo cumprimento ficavam as seguradoras autorizadas a cobrar aos seus segurados do ramo 'automóvel' um adicional de idêntico montante (artigo 27.º, n.º 4).
Além de que o Fundo continuava a poder fazer face a ocasionais dificuldades de tesouraria através de outro tipo de recursos financeiros que eram provenientes das entidades seguradoras (artigo 28.º).
7 - A questão de saber se a exclusão da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel em casos como o dos autos viola ou não o princípio da igualdade implica que se averigúe se o critério que é utilizado pela lei para definir o âmbito restrito de protecção dos lesados - o da sujeição do veículo causador do acidente a seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel - poderá ser entendido como razoável, racional ou objectivamente fundado.
Como logo se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
«O princípio da igualdade reconduz-se [...] a uma proibição de arbítrio sendo inadmissíveis quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais.
A proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controle.
Mas existe, sem dúvida, violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio, quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por ausência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada.
Por outro lado, as medidas de diferenciação hão-de ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não devendo basear-se em qualquer razão constitucionalmente imprópria (cf. sobre a matéria, por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 44/84, 425/87, 39/88 e 231/94, Diário da República, 2.ª série, de, respectivamente, 11 de Junho de 1984 e 5 de Janeiro de 1988, e 1.ª série, de, respectivamente, 3 de Março de 1988 e 28 de Abril de 1994, e ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1993, pp. 127 e segs.; Jorge Miranda, «O regime dos direitos, liberdades e garantias», Estudos sobre a Constituição, vol. iii, pp. 50 e segs., e Manual de Direito Constitucional, t. iv, Coimbra, 1993, p. 219; Maria da Glória Ferreira Pinto, «Princípio da igualdade - Fórmula vazia ou fórmula consagrada de sentido?», separata do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987; Lívio Paladin, Il Princípio Costituzionale D' Equaglianza, Milão, 1965).»
Nesta ordem de considerações tem-se entendido que a vinculação jurídico-material do legislador ao princípio da igualdade não elimina a liberdade de conformação legislativa, pertencendo-lhe, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente.
E, assim, aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução «razoável», «justa» e «oportuna» (do que seria a solução ideal do caso); compete-lhes, sim «afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de se credenciarem racionalmente» (Acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983, p. 120, também citado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 750/95, que vimos acompanhando).
À luz das considerações precedentes pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico (nestes precisos termos o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 370/2007 (disponível no mesmo sítio).
Ora, tendo presente a jurisprudência constitucional, que essencialmente reconduz o princípio da igualdade a uma proibição de arbítrio ou, noutra perspectiva, a uma exigência de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico das medidas legislativas, há que reconhecer que o critério da obrigatoriedade do seguro automóvel não se mostra ser arbitrário ou desprovido de fundamento material suficiente.
Com efeito, e em primeiro lugar, o Fundo de Garantia Automóvel foi instituído para substituir, em certos casos, as seguradoras. Veja-se, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de Janeiro de 2006 (disponível em www.dgsi.pt/trl), onde se afirma que «[g]rosso modo, o Fundo de Garantia Automóvel ocupa, por força da lei, a posição de uma seguradora que seria accionada se o obrigado a outorgar o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel tivesse cumprido a sua obrigação. Preenche a mesma função social que justifica a necessidade da obrigatoriedade do seguro do risco da circulação rodoviária automóvel a cargo das seguradoras - , e é, como se viu, financiado directamente pelas seguradoras e indirectamente pelos segurados do ramo 'automóvel'».
Em segundo lugar, o objectivo de socialização do risco da circulação automóvel não impõe que só ao Fundo (e não a qualquer outra entidade) seja cometido o encargo dessa socialização e todo o encargo dessa socialização: é assim que, por exemplo, o Fundo não responde por certas lesões materiais [artigo 21.º, n.os 2, alínea b), e 3], assim como não responde por acidentes ocorridos fora do território nacional (artigo 21.º, n.º 4); e só responde até certos montantes (artigo 23.º), com exclusão de danos produzidos em certos condicionalismos (artigo 24.º); e, naturalmente, que o Fundo não visa ressarcir qualquer dano na via pública, como, por exemplo, os danos causados por peões ou danos de causa natural (artigo 21.º, n.º 1).
A intervenção do Fundo de Garantia Automóvel está, por conseguinte, delimitada por um certo grau de operacionalização do risco social que se encontra associado ao sistema de seguros na área da sinistralidade automóvel, destinando-se a suprir certas contingências resultantes da ineficácia do sistema.
Não parece, nestes termos, face aos objectivos da lei, que o critério subjacente à interpretação normativa aqui em causa seja desajustado ou desprovido de um fundamento material razoável, pelo que, também, não poderá concluir-se pela violação do princípio da igualdade.
Certo é que o regime decorrente do Decreto-Lei 522/85 foi recentemente alterado pelo Decreto-Lei 291/07, de 21 de Agosto, que, apesar de continuar a dispensar da obrigação de segurar os responsáveis pela circulação das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula (artigo 4.º, n.º 2), instituiu, no seu artigo 48.º, n.º 1, alínea c), a regra segundo a qual o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados «[p]or veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo [...]». Essa é uma solução centrada no aumento de protecção dos lesados, que é acompanhada de outras medidas de reforço da responsabilização do Fundo, como seja a extensão da cobertura dos danos materiais nos sinistros causados por responsável desconhecido ou quando tenha o veículo causador do acidente sido abandonado no local do acidente [artigo 49.º, alínea c)], e que se integra num mais amplo conjunto de alterações justificadas pela necessidade da transposição da Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio (cf. preâmbulo do diploma).
No entanto, essa ampliação das competências do Fundo, como último recurso para o ressarcimento das vítimas da circulação automóvel, não cobrindo ainda assim todas as situações em que poderá haver lugar a um direito à reparação (veja-se os artigos 51.º e 52.º desse diploma), não deixa de se integrar na liberdade de conformação legislativa (em certa medida, neste caso, condicionada pela obrigatoriedade do cumprimento do direito comunitário), e não põe em causa a validade, do ponto de vista jurídico-constitucional, das soluções que provinham do diploma agora revogado. Ou seja, não é a circunstância de o legislador ter melhorado o sistema de protecção dos lesados por acidentes de viação, através da publicação de um novo diploma, que permite considerar que o regime anterior - e especialmente o regime decorrente do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85 - está ferido de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade. Isso porque, como vimos, a exclusão da garantia do Fundo, como previa essa norma, quando baseada na não obrigatoriedade do seguro não se apresentava como uma medida legislativa arbitrária.
Questão diversa é a de saber se a não sujeição a matrícula do veículo causador do acidente dos autos, e a sua consequente não sujeição a seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, é constitucionalmente justificável. Mas, como se viu, não é essa a questão que constitui o objecto do presente recurso de constitucionalidade. O que está causa não é a inexigência de seguro em relação a viaturas agrícolas, mas o âmbito de responsabilidade civil do Fundo da Garantia Automóvel, e quanto a isso não se encontrou motivo para considerar verificada uma discriminação infundada.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 522/85, de 31 de Dezembro, interpretada como excluindo a responsabilidade civil do Fundo de Garantia Automóvel pelos danos causados a terceiros por viatura agrícola, não sujeita a matrícula, e cujo proprietário está legalmente dispensado da obrigação de celebrar contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel;
b) Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação da decisão recorrida de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 2 de Abril de 2008. - Carlos Fernandes Cadilha - Maria Lúcia Amaral - Vítor Gomes - Ana Maria Guerra Martins - Gil Galvão.