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Acórdão 11/2008, de 13 de Março

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Sumário

Julga inconstitucional a norma do artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18 de Setembro

Texto do documento

Acórdão 11/2008

Processo 584/07

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional

Relatório

Euroscut Norte, Sociedade Concessionária da Scut do Norte Litoral, S. A., na qualidade de concessionária para a concepção, construção, financiamento, conservação e exploração da auto-estrada n.º 28 (IC1 Viana do Castelo/Caminha), requereu contra André Domingues Pereira e Idalina Rosa Gonçalves a expropriação por utilidade pública, com carácter de urgência, para a construção da referida auto-estrada, lanço Viana do Castelo/Riba de Âncora, da parcela de terreno com a área de 5523 m2, a destacar do prédio inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 418.º da freguesia de Riba de Âncora, sito no lugar de Barrosa, da referida freguesia, tendo-lhe sido atribuído o número 368.

A declaração de utilidade pública respeitante a esta expropriação foi efectuada pelo Despacho 18.240/2003, de 18 de Agosto, do Secretário de Estado da Obras Públicas, publicado no D.R., n.º 220, 2.ª série, de 23 de Setembro de 2003.

O acórdão arbitral atribuiu pela expropriação da parcela em causa o valor global de (euro) 31.215,00.

A expropriante interpôs recurso do acórdão arbitral, nos termos do disposto nos artigos 58.º e seguintes do Código das Expropriações de 1999, invocando argumentos de facto que, em seu entendimento, conduziriam a que a indemnização pela expropriação da parcela referida se quedasse pelo valor global de (euro) 10.415,25.

O Juiz do Tribunal de Caminha proferiu sentença, em 11-4-2007, que, qualificando a parcela expropriada como "solo apto para outros fins", decidiu o recurso interposto do seguinte modo:

"a) Não aplico a norma ínsita no artigo 23º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela lei 168/99 de 18 de Setembro, com fundamento na inconstitucionalidade da mesma, designadamente, na violação do disposto nos artigos 13º, n.º 1, 62º, n.º 2 e 103º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa;

b) Julgo parcialmente procedente, por parcialmente provado, o recurso interposto por Euroscut Norte - Sociedade Concessionária da SCUT do Norte Litoral, S. A., e, consequentemente, fixo a indemnização devida aos expropriados em (euro) 14.811,75, a actualizar, a final, nos termos do disposto no artigo 24º, n.º 1, do Código das Expropriações."

Desta sentença recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, al. a), e 75.º-A, da lei 28/82, de 15/11 (LTC), na parte em que recusou a aplicação da norma contida no artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações, aprovado pela Lei 168/99, de 18 de Setembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade.

Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:

"Pelas razões invocadas no Acórdão 422/04, proferido pelo Plenário do Tribunal Constitucional, a norma constante do artigo 23º, n.º 4, do Código de Expropriações de 1999 não viola o disposto nos artigos 13º e 62º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.

Termos em que deverá proceder o presente recurso."

Fundamentação

1 - A norma cuja aplicação foi recusada

A decisão recorrida considerou inconstitucional e, consequentemente, não aplicou a norma constante do artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações de 1999, nos termos da qual "ao montante indemnizatório, determinado de acordo com os critérios previstos no Código das Expropriações deverá ser deduzido o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos."

Esta disposição não tinha correspondência nos anteriores Códigos das Expropriações, tendo sido uma inovação da Lei 168/99, de 18 de Setembro, que aprovou o actual Código.

Pronunciaram-se pela sua inconstitucionalidade Alves Correia em "A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade pública e o Código das Expropriações de 1999", na R.L.J., Ano 133.º, pág. 116-119, e em anotação ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 422/04, na R.L.J., Ano 134º, pág. 340-352, Luís Perestrelo de Oliveira, em "Código das Expropriações anotado", pág. 92-93, da ed. de 2000, da Almedina, Victor Sá Pereira e António Proença Fouto, em "Código das Expropriações", pág. 86, da ed. de 2002, do Rei dos Livros, João Pedro de Melo Ferreira, em "Código das Expropriações anotado", pág. 174-175, da 4ª ed., da Coimbra Editora, Pedro Elias da Costa, em "Guia das Expropriações por utilidade pública", pág. 263, da ed. de 2003, da Almedina, e Vasco Valdez Matias, em "Parecer sobre o Código das Expropriações", pág. 13-15, da ed. pol. de 1999, da APAE.

2 - A posição anterior do Tribunal Constitucional

Este Tribunal decidiu, no Acórdão 422/2004 (pub. em "Acórdãos do Tribunal Constitucional", 59º vol., pág. 687), tirado em Plenário, ao abrigo do disposto no artigo 79.º - A, da LTC, num caso em que estava em causa a mesma norma, mas em que a entidade expropriante era o Município onde se situava o terreno expropriado, não julgar inconstitucional a norma questionada.

Considerou-se que o disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Código das Expropriações de 1999, não violava nem o princípio da igualdade, nem o direito a uma justa indemnização, consagrados, respectivamente, nos artigos 13.º e 62.º, n.º 2, da C.R.P. - fundamentos então invocados para recusar a aplicação daquela norma pela sentença proferida no processo em que foi prolatado o referido acórdão.

Posteriormente, efectuaram o mesmo juízo de constitucionalidade, por remissão para os fundamentos do acórdão acima referido, os seguintes acórdãos do Tribunal Constitucional:

n.º 585/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).

n.º 588/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).

n.º 625/2004 (pub. em "Acórdãos do Tribunal Constitucional", 60.º vol., pág. 503).

n.º 629/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).

n.º 643/2004 (pub. no Diário da República, 2.ª série, de 10-1-2005).

n.º 644/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).

n.º 662/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).

n.º 683/2004 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).

n.º 251/2005 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).

n.º 332/2005 (disponível no site www.tribunalconstitucional.pt).

No acórdão 625/2004 afirmou-se que "o acolhimento dessa orientação implica não apenas o acatamento do sentido da decisão das questões de constitucionalidade expressamente tratadas pelo acórdão do Plenário, mas também o respeito pela projecção que, relativamente a questões nele não explicitamente apreciadas, há que atribuir aos juízos em que se fundaram tais decisões, pelo menos quando constituam seu pressuposto lógico necessário."

Este raciocínio permitiu que também se considerasse, nesse acórdão e noutros posteriormente proferidos, que o disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Código das Expropriações de 1999, não violava também o princípio da não retroactividade fiscal, consagrado no artigo 103.º, n.º 3, da C.R.P..

3 - A delimitação do objecto do recurso

A situação em que se recusou a aplicação do disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., nos presentes autos, é algo diversa da situação sobre a qual recaiu o acórdão 422/2004, tirado por este Tribunal em Plenário, uma vez que aí a entidade expropriante era o próprio Município onde se localizava o terreno expropriado, enquanto neste processo a entidade expropriante é uma sociedade comercial anónima - a "Euroscut Norte, Sociedade Concessionária da Scut do Norte Litoral, S. A.", concessionária da construção da auto-estrada a que se destina a parcela expropriada.

Apesar da sentença recorrida revelar conhecer a posição que defende que o n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., deve der interpretado no sentido que o mesmo só é aplicável às expropriações em que a entidade expropriante é o Município onde se situa o terreno expropriado (vide Alves Correia em "A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade pública e o Código das Expropriações de 1999", na R.L.J., Ano 133º, pág. 116-117, e Luís Perestrelo de Oliveira, em "Código das Expropriações anotado", pág. 92-93), admitiu a aplicação infraconstitucional da citada norma à situação sub iudice, apenas a tendo afastado por contrariar preceitos constitucionais.

Não competindo ao Tribunal Constitucional questionar a bondade da interpretação do direito infraconstitucional acolhida pela decisão recorrida, deve limitar-se, nos termos do artigo 70.º, n.º 1, a), da LTC, a verificar a correcção da recusa da aplicação do disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Expr., com fundamento na sua inconstitucionalidade, apesar de, neste caso, a entidade expropriante não ser o Município onde se situa o terreno expropriado.

Por outro lado, a norma sob análise reporta-se à dedução na indemnização por expropriação da diferença entre o valor da contribuição autárquica efectivamente satisfeito e aquele que seria pago, caso se tivesse considerado como matéria colectável aquele montante indemnizatório.

A contribuição autárquica foi um imposto de receita municipal, criado pelo Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código da Contribuição Autárquica (C.C.A.), e substituído posteriormente pelo imposto municipal sobre imóveis (IMI), criado pelo Código de Imposto Municipal sobre Imóveis (C.I.M.I.), aprovado pelo Decreto-Lei 287/2003, de 12 de Novembro, que, no seu artigo 31.º, n.º 1, revogou o C.C.A., determinando que deve considerar-se "a contribuição autárquica substituída pelo imposto municipal sobre imóveis para todos os efeitos legais".

Contudo, tendo a decisão recorrida efectuado o seu juízo de inconstitucionalidade com referência à contribuição autárquica, uma vez que o montante da indemnização, por expropriação, deve ser calculado à data da publicação da Declaração de Utilidade Pública (artigo 24.º, n.º 1, do Cód. das Exp.), que neste caso ocorreu em 18 de Agosto de 2003, ou seja em data anterior à revogação do C.C.A., é o regime desse imposto e não o do posterior IMI, que deve estar presente na presente análise de constitucionalidade.

4 - A natureza da norma

O facto de, neste caso, a entidade expropriante não ser o Município onde se situa o imóvel expropriado e ser antes uma sociedade anónima, suscita pertinentes interrogações sobre a natureza da disposição contida no n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., a qual já foi questionada na fundamentação do acórdão 422/2004 e, sobretudo, no voto de vencido a ele aposto do Cons.º Vítor Gomes.

A norma aqui em questão encontra-se inserida no diploma (Código das Expropriações) que regula a expropriação de bens imóveis e direitos a eles inerentes, de titularidade privada, por razões de utilidade pública, compreendida nas atribuições, fins ou objecto da entidade expropriante, no título (III) dedicado ao conteúdo da indemnização e no artigo (23.º) onde se explicitam os princípios e regras gerais que presidem à determinação do valor do bem expropriado, para efeito de fixação da indemnização pela expropriação.

No n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., impõe-se a dedução ao valor dos bens expropriados, calculado por aplicação dos critérios referenciais fixados nos artigo 26.º e seguintes, do valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago nos últimos cinco anos, com base na avaliação efectuada para efeitos de determinar o montante da indemnização devida pela expropriação.

O fundamento ou pressuposição desta norma é a desarmonia entre o valor do bem expropriado, considerado para efeito de liquidação anterior de contribuição autárquica, e o valor da avaliação efectuada para efeito de atribuição de indemnização por expropriação por utilidade pública, visando-se corrigir a disfunção revelada pelo apuramento da quantia indemnizatória a pagar pelo acto expropriativo.

Inserir-se-á esta norma, encarada na sua substância, no conjunto concatenado de regras e princípios que formam o instituto jurídico da expropriação por utilidade pública, como parece indiciar a sua localização sistemática, ou será antes uma "norma fiscal espúria enxertada no Código das Expropriações" (Alves Correia, em "A jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade pública e o Código das Expropriações de 1999", na R.L.J., Ano 133º, pág. 116), por respeitar à liquidação e cobrança adicional de um imposto?

A resposta a esta pergunta é decisiva para se saber quais os princípios e preceitos constitucionais que devem ser convocados para se aferir da sua constitucionalidade.

Sendo o Direito Fiscal o direito dos impostos, as normas de direito fiscal são aquelas que disciplinam as relações jurídicas a que dá lugar a percepção dos impostos (Braz Teixeira, em "Princípios de direito fiscal", pág. 35, da 3ª ed., da Almedina, e Casalta Nabais, em "Direito fiscal", pág. 9 e 10, da 3ª ed., da Almedina).

A contribuição autárquica foi um imposto de receita municipal criado pelo Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, que aprovou o Código da Contribuição Autárquica (C.C.A.) Este imposto veio substituir a antiga contribuição predial e incidia sobre o valor patrimonial tributário dos prédios rústicos e urbanos situados no território português (artigo, 1.º, do C.C.A.)

A sua liquidação e cobrança competia aos Serviços Centrais da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos (artigo 18.º e seg., do C.C.A.), sendo, contudo, os Municípios onde se situavam os imóveis sobre os quais incidia o imposto, os titulares da respectiva receita (artigo 16.º, a), da lei 42/98, de 6 de Agosto).

Efectuando-se a operação dedutiva prevista no n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., caberia, nesses casos, à entidade expropriante proceder à liquidação e cobrança adicional da contribuição autárquica, assim como seria ela a beneficiária da respectiva receita, uma vez que não foi legalmente consagrado o dever desta proceder à transferência da quantia deduzida à indemnização pela expropriação para "os cofres" do respectivo Município.

Esta alteração da entidade responsável pela gestão do imposto e da titular da respectiva receita, a qual, neste caso, passou a ser uma sociedade anónima, a quem foi concessionada a construção da auto-estrada a que se destina o imóvel expropriado, apesar de impressionar, não é suficiente para se poder dizer que a norma em causa não tem natureza fiscal.

Se, tradicionalmente, o sujeito responsável pela gestão dos impostos era a administração fiscal, nos tempos mais recentes, essa competência passou a ser dividida entre a administração fiscal e os particulares (os contribuintes ou terceiros), falando-se já numa privatização da administração dos impostos, pelo que não deixa de ter natureza fiscal a liquidação e cobrança adicional da contribuição autárquica efectuada pela entidade expropriante, em processo de expropriação de imóvel, mesmo que essa entidade seja um particular, agindo em nome do Estado.

Mais estranho é o facto da receita desse imposto estar consignada à entidade expropriante, deixando assim de ser uma receita do Município onde se localizava o imóvel expropriado.

Apesar do titular da receita do imposto ser normalmente o Estado, os municípios ou outros entes públicos, hoje em dia já se verificam casos, embora raros, em que a lei determina que os beneficiários dessa receita possam ser pessoas colectivas privadas, tendo em vista um determinado interesse público, como também sucede no presente caso, em que a expropriante é uma concessionária do Estado, agindo em nome deste (v.g. artigo 32.º, n.º 4 e 6, da Lei 16/2001, de 22 de Junho).

Assim, se a conexão de procedimentos introduzida pelo artigo 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., levanta graves problemas ao nível da liquidação, titularidade e impugnabilidade da pretendida cobrança adicional de imposto, não parece que essas dificuldades e anomalias, sejam só por si suficientes para excluir o disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., do direito fiscal, considerando a sua clara pressuposição e intencionalidade tributária.

Mas esta norma também pode ser olhada noutra perspectiva.

O resultado da sua aplicação, tal como o dos preceitos previstos nos n.º 2 e 3, do mesmo artigo 23.º, traduz-se numa efectiva diminuição do valor da indemnização a atribuir ao proprietário do imóvel expropriado, pelo que o seu conteúdo interfere efectivamente na conformação do respectivo direito.

No Código das Expropriações de 1999, além de regras definidoras dos critérios a deve obedecer o cálculo da indemnização devida pelo acto expropriativo, existem normas "flanqueadoras" do quantum indemnizatório, que pretensamente visam evitar valorizações especulativas ou injustificadas, em nome de alegados interesses públicos. Foi nestas últimas que o legislador procurou inserir a norma em análise.

Assim, na medida em que o disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., interfere na operação de fixação do montante da indemnização devida pelo acto expropriativo, também se pode dizer que o mesmo respeita ao direito das expropriações.

O conteúdo da norma em causa tem, pois, uma natureza mista, inserindo-se no direito fiscal, quanto à sua pressuposição, e no direito das expropriações, quanto aos seus efeitos.

Por isso, justifica-se que os princípios constitucionais que orientam estes dois ramos do direito possam ser convocados para se solucionar a questão de constitucionalidade suscitada neste processo.

5 - O princípio constitucional da justa indemnização

O artigo 62.º, n.º 2, da C.R.P., determina que a expropriação por utilidade pública só pode ser efectuada mediante o pagamento de justa indemnização.

Apesar da Constituição ter remetido para o legislador ordinário a fixação dos critérios conducentes à fixação da indemnização por expropriação, ao exigir que esta seja "justa", impõe a observância dos seus princípios materiais da igualdade e proporcionalidade, assim como do direito geral à reparação dos danos, como corolário do Estado de direito democrático (artigo 2.º, da C.R.P.)

Em termos gerais e utilizando definição comum à jurisprudência deste Tribunal, poder-se-á dizer que a "justa indemnização" há-de tomar como ponto de referência o valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda do bem que lhe pertencia, com respeito pelo princípio da equivalência de valores. O valor pecuniário arbitrado, a título de indemnização, deve ter como referência o valor real do bem expropriado.

Se é admissível que na fixação deste montante interfiram razões de interesse público que justifiquem a introdução de cláusulas de correcção do puro valor de mercado, de modo a evitar avaliações que não se enquadrariam na ideia do valor "justo"(v.g. o disposto nos artigo 23.º, n.º 2, a), b), c) e d) e n.º 3), já não devem ser admitidas operações redutoras do valor real do bem expropriado, visando apenas uma diminuição oportunista da indemnização a pagar, ou com fundamentos estranhos à equidade desse valor.

O artigo 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., ao impor a dedução do valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos, ao montante indemnizatório calculado de acordo com os critérios previstos no Código das Expropriações, está a reduzir o valor da indemnização a receber pelo expropriado, sem que essa redução tenha como finalidade a afinação da "justiça" desse valor.

Na verdade, a aplicação desta disposição interfere relevantemente na fixação do quantum indemnizatório (Alípio Guedes, em "Valorização de bens expropriados", pág. 79, da 2ª ed., da Almedina, refere que essa redução é, em média, da ordem dos 5 % do montante indemnizatório), resultando esta tentativa de cobrança de uma prestação totalmente alheia ao acto expropriativo e às operações de apuramento do valor do bem expropriado, através de um enxerto procedimental, numa arbitrária diminuição do valor da indemnização a pagar, com benefício injustificado para a entidade expropriante.

Traduzindo-se, pois, o disposto no artigo 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., numa diminuição do montante indemnizatório a pagar pelo acto expropriativo, sem qualquer fundamento no acerto do valor "justo" do bem expropriado, mostra-se violado o princípio constitucional da "justa indemnização", consagrado no artigo 62.º, da C.R.P..

E, uma vez que ao conceito de "justa indemnização" está umbilicalmente ligada a observância do princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º, n.º 1, da C.R.P.), na sua manifestação de igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, abrangendo a relação externa da expropriação (Alves Correia, na anot. cit., na R.L.J., Ano 134º, pág. 346), o artigo 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., ao impedir que os expropriados sejam plenamente compensados pelo "sacrifício" patrimonial que lhes foi exigido, recebendo menos do que aquilo que perderam, também infringe o referido princípio da igualdade de encargos.

6 - O princípio constitucional da igualdade fiscal

O princípio constitucional da igualdade fiscal, como expressão específica do princípio geral estruturante da igualdade (artigo 13.º, da C.R.P.), não se resume à regra da universalidade dos impostos, segundo a qual estes incidem sobre todos aqueles que têm capacidade contributiva, determinando também que todos devem estar adstritos ao pagamento de impostos com base no mesmo critério - a regra da uniformidade dos impostos (sobre este princípio, vide Sousa Franco, em "Finanças públicas e direito financeiro", vol. II, pág. 178-182, da 4ª ed., da Almedina, e Casalta Nabais, em "O dever fundamental de pagar impostos", pág. 435 e seg., da ed. de 1998, da Almedina).

Segundo esta regra, o que é igual deve ser tributado igualmente e o que é desigual deve ser tributado desigualmente, na medida dessa desigualdade. Mas a diferenciação entre o que é igual ou desigual implica a adopção de critérios valorativos das realidades tributáveis.

Para apurar a eventual violação deste princípio pela norma recusada pela sentença recorrida convém efectuar um rápido sobrevoo pelo regime da contribuição autárquica.

A contribuição autárquica sucedeu à contribuição predial, cujo Código mais recente havia sido aprovado em 1963, pelo D.L. n.º 45.104, de 1 de Junho, no âmbito da Reforma Fiscal de 1958-1966, dirigida pelo Prof. Teixeira Ribeiro (a contribuição predial terá sido criada pela lei de 19 de Abril de 1845, sendo a "jugada", cobrada no reinado de D.Afonso Henriques, o primeiro imposto predial conhecido em Portugal).

Esta reforma caracterizou-se por consagrar um sistema misto de impostos cedulares sobre o rendimento, taxando as suas diferentes categorias, consoante a respectiva origem, a que acrescia um imposto de sobreposição - o imposto complementar - que tributava globalmente a soma de todos os rendimentos pessoais. Nesse conjunto de impostos figurava a contribuição predial, que tributava os rendimentos efectivamente obtidos, no respeitante aos prédios urbanos arrendados, o valor locativo, ou seja a utilidade obtida pelo respectivo uso ou fruição que era dada pela renda que o proprietário poderia obter, caso tivesse arrendado o imóvel, relativamente aos prédios urbanos não arrendados, e a renda da terra, obtida pelo rendimento médio presumido, determinado por avaliação directa ou cadastral, no tocante aos prédios rústicos.

Com a reforma fiscal operada nos anos 1988-1989, a inclusão na base de tributação dos novos impostos - IRS e IRC - de todos os rendimentos efectivos auferidos pelos contribuintes, conduziu à consequente extinção da contribuição predial, apenas relativamente aos prédios produtores de rendimentos, o que resultou na necessidade de repensar a problemática da tributação predial.

Foi nesta conjuntura legislativa, aliada à problemática do financiamento das autarquias locais, que nasceu a contribuição autárquica, consagrada no C.C.A., aprovado pelo Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, que entrou em vigor em 1-1-1989.

Este novo imposto municipal pretendeu ser um imposto sobre o património imobiliário, que incidia sobre o valor de todos os prédios situados no território de cada município (artigo 1.º, do C.C.A.), enquanto o rendimento real que alguns deles proporcionavam continuava a ser tributado em sede de IRS e IRC. Mais do que na lógica do princípio da capacidade de pagar, a criação deste imposto foi justificada pelo princípio do benefício, na medida em que os proprietários dos prédios são especiais beneficiários de infra-estruturas e serviços muito onerosos que a colectividade lhes proporciona, desempenhando as autarquias um papel relevante nesse domínio (Lopes Porto, em "A reforma fiscal portuguesa e a tributação local", em "Estudos em Homenagem ao Prof. Eduardo Correia", no B.F.D.U.C., n.º especial do ano de 1984, vol. III, pág. 133-137, Rui Duarte Morais, em "Notas sobre a contribuição autárquica", em "Fisco", 1989, vol. I, t. 7, pág. 15, Vasco Valdez Matias, em "A contribuição autárquica e a reforma da tributação do património", pág. 24-25, da ed. de 1999, da Vislis, e Casalta Nabais, em "As bases constitucionais da reforma tributária do património", em "Fisco", 2004, vol. XV, t. n.º 111/112, pág. 18-20).

Estabeleceu o C.C.A., no seu artigo 7.º, n.º 1, que o valor tributável dos prédios é o seu valor patrimonial determinado nos termos de um futuro Código das Avaliações.

Mas, enquanto este Código não entrasse em vigor, os artigo 6.º a 9.º, do Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, estabeleceram, transitoriamente, o seguinte:

"Artigo 6º

1 - O valor tributável dos prédios urbanos, enquanto não for determinado de acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da capitalização do rendimento colectável actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 15.

2 - O rendimento colectável dos prédios urbanos não arrendados, reportado a 31 de Dezembro de 1988, é desde já objecto de uma actualização provisória de 4 % ao ano, cumulativa, com o limite de 100 %, desde a última avaliação ou actualização, não se considerando para o efeito a que resultou da aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 69º da lei 2/88, de 28 de Janeiro.

Artigo 7.º

1 - O valor tributável dos prédios rústicos, enquanto não for determinado de acordo com as regras do Código das Avaliações, será o que resultar da capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 20.

2 - O rendimento colectável dos prédios rústicos, reportado a 31 de Dezembro de 1988, é desde já objecto de uma actualização provisória de 2 % ao ano, cumulativa, com o limite máximo de 100 %, desde a última avaliação ou actualização, não se considerando para o efeito a que resultou da aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 69º da lei 2/88, de 28 de Janeiro.

Artigo 8º

1 - Enquanto não entrar em vigor o Código das Avaliações, os prédios continuarão a ser avaliados segundo as correspondentes regras do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, aprovado pelo Decreto-Lei 45 104, de 1 de Julho de 1963, determinando-se o seu valor tributável de acordo com o disposto nos n.os 1 dos artigos 6º e 7º do presente decreto-lei.

2 - No caso de terrenos para construção, o seu valor tributável será determinado por aplicação das regras contidas no Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações.

Artigo 9º

Até à entrada em vigor da nova legislação que as regulamente, a organização e conservação das matrizes será feita por aplicação das correspondentes normas do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, aprovado pelo Decreto-Lei 45 104, de 1 de Julho de 1963."

Perante a falta de um consensual Código de Avaliações pronto para entrar em vigor simultaneamente com o C.C.A., o legislador recorreu ao regime revogado, limitando-se a prever uma pequena actualização automática do valor tributável constante das desactualizadas matrizes prediais.

Apesar da A.R. ter emitido autorização legislativa no sentido do Governo poder aprovar um Código de Avaliações (artigo 50.º, b), da Lei 2/92, de 9 de Março, a qual foi declarada inconstitucional com força obrigatória geral pelo acórdão 358/92, deste Tribunal, por indeterminação), isso nunca chegou a suceder (um projecto do Código de Avaliações foi publicado em "Ciência e Técnica Fiscal", n.º 384, Outubro-Dezembro de 1996, pág. 187-235), pelo que as transcritas normas transitórias perpetuaram-se, tendo acabado por vigorar durante todo o período de vida da contribuição autárquica.

A constatação da profunda desactualização das matrizes prediais, perante a quase inexistência de operações de reavaliação pela administração fiscal, nomeadamente nas situações previstas no artigo 263.º, b), e 264.º, do C.C.P.I.I.A., não é suficiente para que o automatismo da valoração da avaliação efectuada no âmbito de um processo de expropriação, imposta pelo n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., seja considerado um atentado ao princípio da igualdade fiscal.

Na verdade, não pode a desactualização generalizada dos valores matriciais, resultante da não utilização pela administração fiscal dos mecanismos legais previstos para evitar esse fenómeno, justificar que se "interdite" um preceito que prevê, nos casos em que ocorre uma avaliação do imóvel para efeitos de fixação da indemnização pela expropriação, uma actualização automática daqueles valores, aproveitando a realização daquela avaliação.

A inexecução generalizada duma lei, por inércia dos órgãos do poder executivo, frustrando os objectivos do respectivo regime legal, não é suficiente para que se considere que viola o princípio da igualdade o preceito legal que preveja um mecanismo de funcionamento automático capaz de atingir aqueles objectivos, em apenas alguns casos, dispensando a prática de actos de execução.

O princípio da igualdade, funcionando como aferidor de constitucionalidade, deve ter como termos de comparação previsões normativas, sendo duvidoso que estas possam ser substituídas por realidades resultantes de uma deficiente execução da lei, por inércia da Administração Pública, mesmo que generalizadas.

O artigo 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., prevê um mecanismo de reavaliação distinto do regime geral, face à existência de um circunstancialismo próprio, tratando de forma diferente aquilo que é diferente e de forma adequada à diferença verificada, pelo que o funcionamento de um regime de reavaliação automática do valor tributável para efeitos de contribuição autárquica não viola, só por si, o princípio da igualdade fiscal.

Todavia, nos impostos sobre o património adquirem especial importância os critérios de valoração dos bens que o integram, de cuja aplicação resultará a quantificação da base tributária, a qual é um dos elementos-chave dos resultados de qualquer imposto.

Sendo a contribuição autárquica um exemplo paradigmático de um imposto real e objectivo, uma vez que o sujeito passivo do mesmo é determinado pela qualidade de ser titular de um direito real sobre um imóvel, a regra da uniformidade impõe uma igualdade horizontal, ou seja, todos os que são titulares da mesma forma de riqueza devem ser tributados da mesma maneira (SOUSA FRANCO, na ob. cit., pág. 181).

Assim, para que fosse respeitado o princípio da igualdade fiscal, na sua regra da uniformidade, os critérios de valoração da propriedade dos imóveis que integravam a realidade tributada através da contribuição autárquica teriam que ser uniformes, relativamente a cada espécie de bens.

Daí que importe comparar o critério valorativo resultante da aplicação do disposto no n.º 4, do artigo 23.º, do Cód. das Exp., com critério valorativo geral donde resulta a base de incidência da contribuição autárquica.

Considerando o sentido das acima referidas normas transitórias do Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, que acabaram por se aplicar durante todo o período de vigência da contribuição autárquica, foram os seguintes os critérios de fixação do valor tributável da contribuição autárquica, relativamente aos diversos tipos de imóveis:

a) Prédios rústicos

Nos termos do artigo 7.º, do Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, o valor tributável dos prédios rústicos era o que resultava da capitalização do rendimento colectável, actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 20.

Este rendimento colectável era a renda fundiária, correspondendo esta ao saldo de uma conta anual de cultura em que o crédito é representado pelo rendimento bruto e o débito era constituído pelos encargos mencionados no n.º 1, do artigo 59.º, do C.C.P.I.I.A., diminuído aquele saldo do lucro da exploração (artigo 36.º, do C.C.P.I.I.A.)

b) Terrenos para construção

Nos termos do n.º 2, do artigo 8.º, do Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, o valor tributável destes terrenos era determinado por aplicação das regras contidas no Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, o qual no seu artigo 94.º, § 4º, determinava que a avaliação de terrenos considerados para construção basear-se-ia no valor venal de cada metro quadrado.

c) Prédios urbanos

Nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, o valor tributável dos prédios urbanos, era o que resultava da capitalização do rendimento colectável actualizado com referência a 31 de Dezembro de 1988, através da aplicação do factor 15.

Este rendimento colectável, quando os prédios se encontravam arrendados, era igual às rendas efectivamente recebidas em cada ano, liquidas de uma percentagem para despesas de conservação e dos encargos referidos no artigo 115.º, do C.C.P.I.I.A., quando suportados pelo senhorio (artigo 113.º, do C.C.P.I.I.A.)

Quando os prédios não se encontravam arrendados, o rendimento colectável obtinha-se deduzindo do valor locativo a percentagem e encargos mencionados no artigo 113.º, do C.C.P.I.I.A., correspondendo o valor locativo à justa renda pelo período de 1 ano em regime de liberdade contratual (artigo 125.º, do C.C.P.I.I.A.)

Da análise destes parâmetros resulta que, anacronicamente, a contribuição autárquica apesar de se assumir como um imposto sobre o património, teve como critério preponderante de cálculo do valor tributável dos imóveis a capitalização do seu rendimento líquido real ou presumido (com a excepção dos terrenos para construção), uma vez que as referidas normas "transitórias" se limitaram a consagrar uma actualização da capitalização dos rendimentos colectáveis constantes das matrizes, fixados segundo as regras do Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola (C.C.P.I.I.A.)

Como escreveu Rui Duarte Morais, "sem o novo Código de Avaliações a contribuição autárquica pouco mais é, na prática, que a velha contribuição predial com outro nome" (in "Notas sobre a contribuição autárquica", em "Fisco", 1989, vol. I, t. n.º 7, pág. 16).

Conhecidos os critérios gerais estipulados para o cálculo da base de incidência da contribuição autárquica, importa agora verificar se o artigo 23.º, n.º 4, do Cód. das Expr., obriga a uma liquidação adicional deste imposto, mantendo a uniformidade de critério de cálculo do valor tributável.

Sendo o controlo de constitucionalidade efectuado por este Tribunal, nos termos da a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, um controlo concreto ou incidental, relativamente ao processo onde ele foi suscitado, tem sido afirmado que o recurso de constitucionalidade tem uma função meramente instrumental aferida pela susceptibilidade de repercussão útil no processo concreto de que emerge, não servindo, assim, para dirimir questões meramente teóricas ou académicas.

Assim, estando em causa neste processo a fixação duma indemnização pela expropriação duma parcela de terreno integrando um prédio rústico, classificado para esse efeito como "solo para outros fins", apenas importa verificar o critério estabelecido no Código das Expropriações para a avaliação deste tipo de terrenos, uma vez que é esse o critério que determina o valor da matéria colectável da contribuição autárquica liquidada adicionalmente.

O artigo 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp. de 1999, ao determinar que "ao montante indemnizatório, determinado de acordo com os critérios previsto no Código das Expropriações deverá ser deduzido o valor correspondente à diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos", impõe como valor tributável para liquidação da contribuição autárquica relativa aos últimos 5 anos anteriores à expropriação, o resultado da avaliação efectuada para efeitos de atribuição da indemnização pela expropriação.

Ora, nos termos das disposições do Código das Expropriações, a fixação desse valor, relativamente aos prédios rústicos que não sejam aptos para a construção é efectuada segundo as seguintes regras:

"Artigo 23.º (Justa indemnização)

1 - A justa indemnização não visa compensar o benefício alcançado pela entidade expropriante, mas ressarcir o prejuízo que para o expropriado advém da expropriação, correspondente ao valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data.

...

5 - Sem prejuízo do disposto nos n. 2 e 3 do presente artigo, o valor dos bens calculado de acordo com os critérios referenciais constantes dos artigos 26º e seguintes deve corresponder ao valor real e corrente dos mesmos, numa situação normal de mercado, podendo a entidade expropriante e o expropriado, quando tal se não verifique, requerer ou o tribunal decidir oficiosamente, que na avaliação sejam atendidos outros critérios para alcançar aquele valor.

...

Artigo 27º - (Cálculo do valor do solo para outros fins)

1 - O valor do solo apto para outros fins será o resultante da média aritmética actualizada entre os preços unitários de aquisições ou avaliações fiscais que corrijam os valores declarados efectuadas na mesma freguesia e nas freguesias limítrofes nos três anos, de entre os últimos cinco, com média anual mais elevada, relativamente a prédios com idênticas características, atendendo aos parâmetros fixados em instrumento de planeamento territorial e à sua aptidão específica.

2 - Para os efeitos previstos no número anterior, os serviços competentes do Ministério das Finanças deverão fornecer, a solicitação da entidade expropriante, a lista das transacções e das avaliações fiscais que corrijam os valores declarados efectuadas na zona e os respectivos valores.

3 - Caso não se revele possível aplicar o critério estabelecido no n.º 1, por falta de elementos, o valor do solo para outros fins será calculado tendo em atenção os seus rendimentos efectivo ou possível no estado existente à data da declaração de utilidade pública, a natureza do solo e do subsolo, a configuração do terreno e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas susceptíveis de influir no respectivo cálculo.

Conforme resulta do transcrito artigo 23.º, n.º 1, do Cód. das Exp., o critério geral de valorização dos bens expropriados, como medida do ressarcimento do prejuízo sofrido pelo expropriado, no seguimento de longa tradição legislativa, é o do seu valor corrente, ou seja o seu valor venal ou de mercado, numa situação de normalidade económica.

Como escreveu Alves Correia "... a indemnização calculada de acordo com o valor de mercado, isto é, com base na quantia que teria sido paga pelo bem expropriado se este tivesse sido objecto de um livre contrato de compra e venda, é aquela que está em melhores condições de compensar integralmente o sacrifício patrimonial do expropriado e de garantir que este, em comparação com outros cidadãos não expropriados, não seja tratado de modo desigual e injusto" (em "O plano urbanístico e o princípio da igualdade", pág. 546, da ed. de 1989, da Almedina).

Apesar deste valor de mercado não poder atender a situações especulativas e poder sofrer algumas correcções impostas por razões de justiça que visam evitar enriquecimentos injustificados (vide as alíneas do n.º 2, e o n.º 3, do artigo 23.º, do Cód. das Exp.), donde resultará um "valor de mercado normativo", é ele que constitui o critério referencial determinante da avaliação dos bens expropriados para o efeito de fixação da respectiva indemnização a receber pelo expropriado.

Procurando evitar alguma subjectividade na determinação deste valor, o legislador fixou critérios valorativos instrumentais, relativamente a vários tipos de bens expropriados.

Quanto aos "solos aptos para outros fins", o que abrange as parcelas de prédios rústicos que não se destinem à construção, adoptou-se como critério instrumental preferencial o cálculo aritmético do valor médio actualizado entre os preços unitários das aquisições ou avaliações fiscais que corrijam os valores declarados, efectuados na mesma freguesia, ou nas freguesias limítrofes nos 3 anos, de entre os últimos 5, com média anual mais elevada, relativamente a prédios com idênticas características, atendendo aos parâmetros fixados em instrumento de planeamento territorial e à sua aptidão específica (artigo 27.º, n.º 1, do Cód. das Exp.)

As avaliações fiscais aqui referidas eram as correctivas dos valores declarados nas transmissões de bens, as quais obedeciam às regras do Código da Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações, em nada se identificando com as avaliações para correcção do valor tributável pela contribuição autárquica, constante das matrizes prediais (artigo 14.º, n.º 3, b), do C.C.A.), as quais tinham como critério o disposto no C.C.P.I.I.A., no que respeita aos prédios rústicos não destinados à construção (artigo 7.º, do Decreto-Lei 442 - C/88, de 30 de Novembro).

No caso de não poder ser aplicado este critério por falta de elementos, o que parece ter ocorrido por sistema, como já previa Pedro Elias da Costa (em "Guia das expropriações por utilidade pública", pág. 310, da ed. de 2003, da Almedina), o valor de mercado será encontrado, por aplicação de um segundo critério instrumental subsidiário complexo que ponderará, em conjunto, os seguintes elementos do terreno expropriado: os seus rendimentos efectivo ou possível no estado existente à data da declaração de utilidade pública, a natureza do solo e do subsolo, a configuração do terreno e as condições de acesso, as culturas predominantes e o clima da região, os frutos pendentes e outras circunstâncias objectivas susceptíveis de influir no respectivo cálculo (artigo 27.º, n.º 3, do Cód. das Exp.)

Neste critério subsidiário, mas de frequente aplicação, perante a inaplicabilidade prática do critério preferencial, a consideração do rendimento efectivo ou possível do terreno expropriado, além de não corresponder à renda fundiária do C.C.P.I.I.A., é apenas um dos elementos a ponderar, na panóplia de factores que devem ser considerados para se encontrar o valor de mercado do terreno expropriado.

Além destes critérios instrumentais não se identificarem com o critério geral estabelecido para o cálculo da base de incidência da contribuição autárquica, é necessário ter presente a sua mera instrumentalidade face ao critério principal que é o do valor de mercado do bem expropriado, o qual não só é ponto de partida para uma delimitação mais precisa da justa indemnização, mas também ponto de chegada, face ao disposto no n.º 5, do artigo 23.º, do Cód. das Exp.. Conforme dispõe este normativo "...o valor dos bens calculado de acordo com os critérios referenciais constantes dos artigos 26º e seguintes deve corresponder ao valor real e corrente dos mesmos, numa situação normal de mercado, podendo a entidade expropriante e o expropriado, quando tal se não verifique, requerer ou o tribunal decidir oficiosamente, que na avaliação sejam atendidos outros critérios para alcançar aquele valor".

Desde que o funcionamento dos critérios instrumentais não conduza a um resultado conforme ao critério principal, há que proceder às correcções necessárias a que este critério se mostre observado, pelo que é ele que, em última instância, determina o valor normativo do bem expropriado.

Comparando o regime geral de valoração da base de incidência da contribuição autárquica, com o regime de valoração do Código das Expropriações, relativamente aos terrenos de prédios rústicos que não sejam aptos para a construção, verifica-se que enquanto o primeiro adopta como critério o da renda fundiária, o segundo tem como critério o valor de mercado.

São critérios perfeitamente distintos, cuja aplicação conduz a resultados diferentes, sendo os valores obtidos com a aplicação do último critério bem superiores aos resultantes da aplicação do primeiro (no estudo realizado em Dezembro de 1996, pelo GAPTEC da Universidade Técnica de Lisboa, em conjunto com a Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais - Ministério das Finanças, coordenado por Sidónio Pardal, e que se encontra publicado em "Ciência e Técnica Fiscal", n.º 384, pág. 81 e seg., o valor médio patrimonial dos prédios rústicos para efeitos de liquidação da contribuição autárquica nos anos de 1993, 1994 e 1995 era de 14.000$00, seguramente muito inferior ao valor médio das indemnizações por expropriação desse tipo de terrenos).

Assim, do funcionamento do disposto no artigo 23.º, n.º 4, do Cód. das Exp., o cálculo do valor tributável para efeitos de contribuição autárquica, relativo aos últimos 5 anos anteriores à expropriação, é diferente para os prédios expropriados e os não-expropriados, não existindo qualquer razão justificativa para tal diferenciação.

Se esta circunstância, pela necessidade da realização duma operação de avaliação do prédio expropriado, pode indiciar a desactualização do valor tributável aplicado, tornando evidente a necessidade da sua correcção, já não justifica que se fixe um novo valor tributável para liquidação adicional da contribuição autárquica, com utilização de critério diferente do legalmente estabelecido, apenas para aproveitar a avaliação entretanto efectuada no processo expropriativo.

Verificando-se uma dualidade de critérios na fixação do valor tributável, sem qualquer justificação, estamos perante uma violação do princípio da igualdade fiscal, o que também torna inconstitucional esta norma.

7 - Conclusão

Verificada a violação pela norma em causa dos parâmetros constitucionais da justa indemnização e da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, incluindo o da igualdade tributária, importa julgá-la inconstitucional, dispensando-se, por economia de argumentação, o seu confronto com o princípio da proibição da retroactividade dos impostos, invocado na decisão recorrida.

Decisão

Nestes termos decide-se julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da justa indemnização, consagrado no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, e da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, incluindo o da igualdade tributária, enquanto expressão específica do princípio geral da igualdade constante do artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, o artigo 23.º, n.º 4, do Código das Expropriações de 1999, julgando-se improcedente o recurso.

Sem custas.

Lisboa, 14 de Janeiro de 2008. - João Cura Mariano - Joaquim de Sousa Ribeiro - Mário José de Araújo Torres - José Borges Soeiro - Maria Lúcia Amaral - Carlos Fernandes Cadilha - Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração) - Ana Maria Guerra Martins (com declaração) - Vítor Gomes (com declaração) - Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com a declaração de voto anexa) - Gil Galvão (vencido pelas razões constantes do acórdão 422/2004, actualizadas, no essencial, pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Exmo. Conselheiro Benjamim Rodrigues) - Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração que se junta) - Rui Manuel Moura Ramos (com declaração).

Declaração de voto

Voto o presente acórdão pelas razões invocadas no voto expresso no Acórdão 422/2004, de que divergi.

Entendo, assim, que a norma em causa, visando introduzir um factor arbitrário de desvalorização no montante devido ao expropriado, viola essencialmente o princípio da "justa indemnização" a que se refere o artigo 62º n.º 2 da Constituição, conforme vinha sendo definido pelo Tribunal (cf., a título de exemplo, o Acórdão 86/2003 - DR, 2.ª série, de 23MAI2003).

Carlos Pamplona de Oliveira

Declaração de Voto

Tendo dúvidas quanto à natureza fiscal da norma constante do n.º 4 do artigo 23º do Código de Expropriações, acompanho apenas a fundamentação do ponto 5, considerando-a suficiente para julgar a norma como inconstitucional. Não subscrevo, portanto, a fundamentação do ponto 6 relativa ao princípio constitucional de igualdade fiscal.

Ana Maria Guerra Martins

Declaração de voto

As reservas, que mantenho, quanto à natureza tributária formal da dedução em causa, expressas em declaração aposta ao acórdão 422/2004 para que remeto, não me impedem, ultrapassada esta questão pela qualificação adoptada, de acompanhar as ponderações do acórdão quanto à violação do princípio da igualdade fiscal.

Vítor Gomes

1 - Votei vencido, por não poder acompanhar a decisão e os fundamentos em que a mesma se abona.

2 - Não tendo a posição que obteve vencimento conseguido deixar de aceitar expressamente várias dúvidas sobre a bondade de alguns dos fundamentos em que se estribou e afastar, sem quaisquer reservas, a bondade das razões que suportaram a orientação anterior do Tribunal expressa no Acórdão 422/04 e nos demais que se lhe seguiram (identificados na presente decisão) - antes tendo assumido expressamente constantes formulações argumentativas substancialmente dubitativas - , impunha-se que, em abono do princípio da segurança jurídica, mantivesse a orientação anterior.

3 - Continuamos a pensar ser bem fundada a posição anterior constante daquele acórdão 422/04.

4 - O mesmo não entendemos relativamente à argumentação agora aduzida para suportar a nova orientação. Senão vejamos.

4.1 - O acórdão perspectiva a norma do n.º 4 do artigo 23.º do Código das Expropriações de 1999 (doravante, CE) como sendo uma norma de natureza mista, em que a dimensão fiscal ofende o princípio constitucional da igualdade fiscal e a vertente relativa ao regime das expropriações viola o princípio da justa indemnização.

Não vemos que venha mal ao mundo com a opção dualista seguida na qualificação jurídica da norma em causa.

Todavia, como simples operação de qualificação, ela apenas pode ter préstimo para evidenciar as características essenciais do regime ou dos regimes que transporta e não para constituir, ela própria, fonte do regime pretendido instituir, ao contrário do que está subjacente à decisão.

4.2 - Não obstante considerarmos, pelos efeitos jurídicos que projecta, que a norma do n.º 4 do artigo 23º do C.E. é, materialmente, uma norma de natureza fiscal, conquanto "espúria" para usar a terminologia qualificatória do Prof. Dr. Fernando Alves Correia, há-de conceder-se que ela apenas pode ser vista como uma norma relativa ao regime legal das expropriações no ponto em que nela se dispõe que deve haver lugar à dedução ao montante da indemnização apurado nos termos do CE da diferença entre as quantias efectivamente pagas a título de contribuição autárquica e aquelas que o expropriado teria pago com base na avaliação efectuada para efeitos de expropriação nos últimos cinco anos.

Nesta dimensão, o preceito limita-se a estatuir uma obrigação de dedução que, como adiante se verá, tem a natureza de uma simples retenção fiscal quando o credor do imposto não seja o expropriante, e não a prever um regime de compensação, pois nem o preceito em causa nem outro qualquer atribuem essa diferença à entidade expropriante quando esta não seja o município da situação dos bens, ao contrário do que o acórdão afirma.

Por outro lado, o preceito em nada interfere com os critérios de avaliação que o CE estabelece para determinar o valor dos bens expropriados: os bens são avaliados de acordo com os critérios previstos no CE como constituindo a densificação, no plano infraconstitucional, do princípio constitucional da justa indemnização, consagrado no n.º 2 do artigo 62.º da Constituição.

O efeito a que o preceito se refere é um efeito que ocorre já depois de apurado o montante correspondente à indemnização que deveria ser paga ao expropriado: se se constatar, a quando do momento do pagamento da indemnização calculada, que o expropriado deveria ter pago, em face da avaliação para efeitos expropriativos, contribuição autárquica superior àquela que pagou nos cinco anos anteriores então deverá ser-lhe deduzida a diferença.

Como operação posterior e exterior ao processo e às regras legais de determinação do valor dos bens expropriados a pagar pela entidade expropriante, não se vê como é que ela pode interferir na determinação desse valor, a qual acontece em momento temporal e racionalmente anterior e por aplicação dos critérios legais, autonomamente definidos, que densificam o princípio constitucional da justa indemnização.

Neste ponto, e em sede de contribuição autárquica, a relevância substancial que se atribui ao que se recebeu a título de indemnização pelos bens expropriados está tão distante do critério constitucional de determinação do valor correspondente "à justa indemnização" como a obrigatoriedade de se ter de considerar esse montante como um rendimento sujeito ao imposto sobre o rendimento das pessoas singulares, a título de incrementos patrimoniais (cf. artigo 1.º, n.º 1, e 9.º do CIRS).

A diferença está apenas na oportunidade escolhida pelo legislador fiscal para fazer funcionar a norma fiscal, por evidentes razões de praticabilidade, simplificação e eficácia fiscal: no caso da contribuição autárquica, o momento do pagamento da indemnização; no IRS, no momento da sua liquidação anual.

Considerar como valor de indemnização pela expropriação apenas o seu valor líquido do imposto da contribuição autárquica é tão errado como ter por valor de indemnização apenas o seu valor líquido dos impostos sobre o rendimento anual!

O efeito constitutivo desta dimensão da norma corresponde a uma simples retenção de imposto a entregar ao respectivo credor tributário, nos termos que são possibilitados pelos artigos 20.º e 34.º da lei Geral Tributária (LGT).

Ao contrário do defendido no acórdão, o credor da contribuição autárquica não é a entidade expropriante, salvo se esta for, por coincidência, o município da situação dos bens expropriados.

E não o é porque o preceito em causa ou outro qualquer não investe o expropriante na titularidade da receita obtida em tais termos.

Ora, é sabido que o sujeito activo da relação tributária é a entidade de direito público titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias (artigo 18.º da LGT).

A receita em causa, cobrada por ocasião da expropriação, e devida a título de diferença de contribuição autárquica, cabe ao município da situação dos bens expropriados.

É o artigo 16.º da lei da Finanças Locais, n.º 42/98, de 6 de Agosto, vigente ao tempo, que o afirma, dizendo que "constituem [...] receita dos municípios o produto da cobrança dos impostos a que os municípios tenham direito, designadamente a contribuição autárquica [...]".

O mesmo se passa hoje relativamente ao imposto sucessor da contribuição autárquica - o imposto municipal sobre imóveis (IMI) -, de acordo com o disposto no artigo 10.º, alínea a), da Lei 2/2007, de 15 de Janeiro.

Sendo assim, é indiferente que a entidade expropriante seja o município ou outra entidade pública ou concessionária de serviços públicos: a receita obtida pela via da operacionalidade do preceito em causa cabe e só pode caber ao município da situação dos bens. Só este tem o título legal da sua atribuição.

4.3 - Na sua outra considerada vertente, é imputada à norma uma natureza fiscal, ponto em que estamos de acordo com o acórdão.

E é uma norma fiscal porque regula uma relação jurídica relativa à percepção de impostos, no caso da contribuição autárquica.

Numa tal dimensão, a norma estabelece, para o caso de avaliação de bens efectuada para efeitos de expropriação, qual é o valor patrimonial dos prédios que deve ser relevado como valor tributável para efeitos de liquidação da contribuição autárquica nos últimos cinco anos, estipulando que o valor patrimonial é aquele que for determinado de acordo com os critérios previstos no CE para efeitos de determinação do valor da indemnização a pagar pela entidade expropriante, bem como, ainda, uma obrigação de proceder à liquidação adicional do imposto que for devido em função desse valor.

A norma, neste vector, é, por um lado, uma norma de definição da matéria colectável da contribuição autárquica, assumindo-se aqui como uma norma complementar, conquanto concernente apenas às hipóteses de expropriação de bens, da norma constante do artigo 7.º do Código da Contribuição Autárquica, e, por outro, simultaneamente, uma norma respeitante ao procedimento de cobrança do imposto.

Como neste passo nota o acórdão, nada impede constitucionalmente que a gestão da liquidação e cobrança da contribuição autárquica em causa não possa ser cometida, por lei (como é o caso), à entidade expropriante, seja esta uma entidade pública ou até uma sociedade concessionária de um serviço público. A intervenção desta entidade em tal procedimento não é mais do que uma intervenção a título de "representante" do credor do imposto, sendo possibilitada pelo artigo 18º, n.º 1, da LGT.

De resto, nos modernos sistemas fiscais, é cada vez mais frequente a atribuição aos contribuintes e a outros sujeitos de direito privado, que estão numa conexão material (económica ou jurídica) próxima com os factos tributários, da obrigação de gestão dos procedimentos de liquidação, cobrança e arrecadação temporária dos impostos emergentes desses factos.

É o que se passa no campo do IVA e do IRS, por exemplo.

Por outro lado, não se vê que haja qualquer problema relativo à impugnabilidade da liquidação adicional da contribuição autárquica.

A operação de dedução da eventual diferença de contribuição autárquica consubstancia, para além do aspecto já evidenciado, o acto formal de liquidação de imposto.

E é um acto formal de liquidação, porque fixa os direitos tributários dos contribuintes relativos à contribuição autárquica (artigo 60.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário - CPPT).

Sendo assim, torna-se evidente que o mesmo é susceptível de impugnação perante os tribunais tributários competentes, nos termos previstos nos artigos 95.º, n.º 1, da LGT e 99.º e segs. do CPPT.

Trata-se de uma situação paralela com a que se passa nas situações de autoliquidação [cf. artigos 82.º, alínea a), e 83.º, n.º 1, alínea a), do CIRC, e 26.º e 40.º do CIVA], de retenção na fonte (cf. artigos 34.º da LGT, 88.º a 90.º do CIRC, 88.º a 102.º do CIRS e Decreto-Lei 42/91, de 22 de Janeiro) ou do pagamento por conta [cf. artigos 96.º, n.º 1, alínea a), e 97.º do CIRC], em que a liquidação é efectuada não pela administração fiscal mas pelos contribuintes, representantes ou substitutos tributários.

Note-se que, nesses casos, a retenção na fonte poderá, também, ter de ser efectuada num processo judicial, quando os rendimentos a ele sujeitos sejam atribuídos em tal processo, sem que se veja aí qualquer obstáculo à sua impugnabilidade perante os tribunais tributários.

A circunstância de, eventualmente, o acto tributário ser praticado no processo judicial de expropriação em nada afecta a sua simples natureza de acto materialmente administrativo-tributário.

Por outro lado, sempre importa notar que estamos em face de uma norma que cumpre inteiramente o princípio da legalidade fiscal, seja ele visto de uma forma estrita ou mais ampla (cf., a propósito, José Casalta Nabais, Direito Fiscal, 2.º edição, 2003, pp. 136 e segs.), porquanto foi editada pelo legislador que tinha competência constitucional para regular essas matérias - a Assembleia da República [artigos 103.º, n.os 2 e 3, e 165.º, n.º 1, alínea i), da CRP].

4.4 - Considera o acórdão que a norma em causa viola o princípio da igualdade fiscal na medida em que trata diferentemente e sem razão material bastante os proprietários expropriados e os não expropriados, já que, no que importa a estes, o valor patrimonial relevante para efeitos de liquidação da contribuição autárquica, e durante todo o tempo de vigência do respectivo tipo tributário, é o valor resultante da capitalização do rendimento efectuada nos termos previstos nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei 442-C/88, de 30 de Novembro, ou, relativamente, aos terrenos para construção, o determinado por aplicação das regras contidas no Código de Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doações (CIMSISSD).

Esta ponderação despreza ou esquece inteiramente, todavia, outros princípios constitucionais que emprestam ao princípio da igualdade um especial significado, no domínio fiscal, quando entendido nas suas várias significações de princípio que impõe não só que seja dado tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o tratamento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais), mas também sem que proíba, de modo absoluto, o estabelecimento de distinções, desde que baseadas em fundamentos razoáveis, objectiva e racionalmente, em face da Constituição (Cf., entre muitos, os Acórdãos n.os 186/90 e 232/03, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

É o que se passa com os princípios da praticabilidade e da eficiência fiscais e com a justiça material do critério de tributação.

Ao contrário do raciocínio pressuposto no acórdão, não decorre da regra da uniformidade dos impostos, que preenche uma das vertentes do princípio da igualdade fiscal, que o legislador apenas possa adoptar como critérios ou métodos de definição/aferição do valor tributável dos prédios para efeitos de contribuição autárquica os critérios que se mostrem efectivamente idóneos para poder captar relativamente a todos e cada um dos contribuintes a igual dimensão ou extensão da capacidade contributiva que é relevada no domínio deste tipo de imposto.

O princípio da uniformidade dos impostos apenas demanda que a mesma realidade de facto económico-financeira, que foi erigida a pressuposto ou fundamento do imposto, seja definida/aferida por idêntica medida ou por idêntico critério de mensuração.

Sendo a realidade fáctica e económica a surpreender diferente, diferente poderá e terá de ser o critério a usar para avaliar a concreta capacidade contributiva.

Daí o facto de, nos diversos tipos tributários, se preverem, por vezes, métodos diferentes para determinar a matéria colectável sujeita ao imposto (cf. artigos 21.º e segs. do CIRS e 15.º e segs. do CIRC, por exemplo).

Nesta perspectiva, nada autoriza que se considere como realidade de facto equivalente para efeitos da relevância do valor a que se refere a respectiva operação económica, em sede de contribuição autárquica, a situação dos não expropriados e dos expropriados, mesmo em caso de venda dos bens fora de processo expropriativo.

No que respeita a esta, o acórdão e as teses que alinham por ele partem de um duvidoso princípio de equiparação jurídica entre as duas realidades, aliás objecto de vasta controvérsia doutrinária.

Todavia, no domínio fiscal - e por razões que se prendem com o fundamento axiológico de que o imposto pressupõe que se tenha capacidade (económica/financeira) de o pagar - releva não o princípio da equivalência jurídica mas o da equivalência das realidades (económicas, financeiras) de facto.

Justifica-se assim inteiramente que, estando o regime jurídico da expropriação funcionalizado para, simpliciter, permitir a determinação do valor real dos bens numa economia de mercado, despida de factores especulativos e anómalos (por isso se fala de um "valor de mercado normativamente entendido", "valor de mercado normal" ou "habitual"), e correspondendo o valor tributável dos prédios, para efeitos da contribuição autárquica, ao seu valor patrimonial (artigo 7.º do CCA), o legislador da norma em causa releve aquele valor para efeitos da liquidação desse imposto, pelo período da caducidade.

A justiça material de uma tal solução encontra, congruentemente, arrimo no facto de a indemnização ser paga com o dinheiro dos impostos e no princípio de estes deverem ser pagos de acordo com a capacidade contributiva de cada contribuinte: não tem o mínimo sentido de justiça material pagar impostos por um valor dos bens e receber, com o dinheiro proveniente desses impostos, indemnização por um valor diferente relativamente aos mesmos bens.

É claro que se sustenta que essa igual capacidade contributiva, implícita na titularidade do direito de propriedade ou de usufruto dos bens expropriados, abrangidos na incidência objectiva do imposto (não há que curar dos direitos expropriáveis não incluídos na incidência objectiva da contribuição autárquica), também pode existir nos casos de alienação desse direito por banda dos não expropriados, não sendo estes sujeitos passivos da contribuição autárquica atingidos na mesma medida, até pela circunstância de a administração fiscal se abster de corrigir os valores tributáveis, lançando mão dos instrumentos jurídicos expostos no referido Acórdão 422/04.

Mas as situações não são idênticas.

Antes de mais, porque no caso de alienação dos bens ou direitos fora do processo expropriativo (não expropriados), o preço é sempre um preço subjectivamente concertado e não objectivamente determinável e determinado, não tendo de corresponder ao seu valor normal de mercado, só este feito condizer pela norma em causa ao seu valor patrimonial objectivo.

Por outro lado, relativamente aos não expropriados não está afastada, de vez, a hipótese de terem de vir a pagar a contribuição autárquica por um valor equivalente, como se demonstrou no Acórdão 422/04.

O problema, aqui, é o de saber se o legislador pode conformar constitucionalmente o imposto, no que respeita ao valor tributável, tal qual este foi recortado no artigo 7.º do CCA, em função de certas circunstâncias específicas, tratando-as de maneira diferente da daqueles casos de falta de evidência objectiva do valor patrimonial dos bens abrangidos pela contribuição autárquica, ou se, ao invés, apenas pode optar por um critério que seja susceptível de aplicar-se, pese embora a diversidade de situações de facto, a todos os prédios.

Ora, nós entendemos que o princípio da igualdade não obsta a tal solução. E não obsta porque razões de justiça material, de praticabilidade e de eficiência fiscais são susceptíveis de o justificar.

Benjamim Rodrigues

Votei vencida pelas seguintes razões: o n.º 4 do artigo 23º tem natureza essencialmente tributária (ponto 5. do Acórdão 422/2004, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, e ponto 4.2 da declaração de voto do Senhor Conselheiro Benjamim Rodrigues); a norma em apreciação não viola o princípio constitucional da justa indemnização (artigo 62º, n.º 2, da Constituição), porque não se traduz numa diminuição do montante indemnizatório (Acórdão 422/2004, pontos 5 e 7, e ponto 4.2 da declaração de voto do Senhor Conselheiro Benjamim Rodrigues); a norma em causa não viola o princípio da igualdade dos cidadãos perante os encargos públicos, incluindo o da igualdade tributária, enquanto expressão específica do princípio geral da igualdade constante do artigo 13º da Constituição, pelas razões constantes da declaração de voto do Senhor Conselheiro Benjamim Rodrigues (ponto 4.4).

Maria João Antunes

Declaração de voto

Votei integralmente o presente acórdão. Para além das razões constantes da declaração que apus ao Acórdão 422/2004, de que dissenti, e que enfatizavam a violação, pela norma sub judicio, do princípio da igualdade, a reflexão posterior levou-me a concluir ainda pela indossociabilidade existente, nesta matéria, entre aquele princípio e o da justa indemnização, pelo que acompanho o discurso argumentativo do acórdão também neste ponto.

Rui Manuel Moura Ramos

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1658654.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1963-07-01 - Decreto-Lei 45104 - Ministério das Finanças - Direcção-Geral das Contribuições e Impostos

    Aprova o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, que faz parte do presente decreto-Lei.

  • Tem documento Em vigor 1988-01-26 - Lei 2/88 - Assembleia da República

    Orçamento do Estado para 1988.

  • Tem documento Em vigor 1988-11-30 - Decreto-Lei 442-C/88 - Ministério das Finanças

    Aprova o Código da Contribuição Autárquica.

  • Tem documento Em vigor 1991-01-22 - Decreto-Lei 42/91 - Ministério das Finanças

    Altera as fórmulas de retenção do IRS (imposto sobre o rendimento de pessoas singulares).

  • Tem documento Em vigor 1992-03-09 - Lei 2/92 - Assembleia da República

    Aprova o Orçamento do Estado para 1992

  • Tem documento Em vigor 1993-01-26 - Acórdão 358/92 - Tribunal Constitucional

    Decide não declara a inconstitucionalidade nem a ilegalidade dos artigos 12.º, 13.º, n.os 1 e 2, e 14.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, não declara a inconstitucionalidade do artigo 38.º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, e declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do artigo 50.º da Lei n.º 2/92, de 9 de Março, por violação do artigo 168.º, n.º 2, da Constituição (Processo n.º 120/92).

  • Tem documento Em vigor 1999-09-18 - Lei 168/99 - Assembleia da República

    Aprova, e publica em anexo, o Código das Expropriações.

  • Tem documento Em vigor 2001-06-22 - Lei 16/2001 - Assembleia da República

    Aprova a Lei da Liberdade Religiosa.

  • Tem documento Em vigor 2003-11-12 - Decreto-Lei 287/2003 - Ministério das Finanças

    No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 26/2003, de 30 de Julho, aprova o Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e o Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, altera o Código do Imposto do Selo, altera o Estatuto dos Benefícios Fiscais e os Códigos do IRS e do IRC e revoga o Código da Contribuição Predial e do Imposto sobre a Indústria Agrícola, o Código da Contribuição Autárquica e o Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto sobre as Sucessões e Doaçõ (...)

  • Tem documento Em vigor 2007-01-15 - Lei 2/2007 - Assembleia da República

    Aprova a Lei das Finanças Locais.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 2016-01-05 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1/2016 - Supremo Tribunal de Justiça

    O prazo de 30 dias previsto no art 328.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, na redacção anterior à Lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, é inaplicável nas fases processuais em que, após a deliberação do tribunal sobre as questões da culpabilidade e da determinação da sanção, seguida ao encerramento da fase de discussão, seja verificada a necessidade de repetição de prova registada no decurso dessa anterior fase de discussão por haver deficiência no registo efectuado mantendo-se, portanto, a eficácia da prova

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