Acórdão 3/2003
Processo 735/1999
Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:
I - O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça interpôs o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência - artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal -, do Acórdão proferido por este Supremo Tribunal, de 28 de Abril de 1999, no processo 302/97, da 3.ª Secção, invocando, como fundamento, a oposição com o decidido no Acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 11 de Outubro de 1995, no processo 47938, da 3.ª Secção, oposição esta que se verificaria no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão de direito, pedindo que se fixe jurisprudência no sentido do acórdão fundamento, isto é, que existe concurso real entre os crimes de fraude fiscal, previstos e punidos pelo artigo 23.º do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras (doravante designado pela sigla RJIFNA), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, e os crimes de burla e de falsificação, previstos e punidos pelos artigos 313.º e 228.º, respectivamente, do Código Penal.
Respondendo, defenderam os arguidos, a ENGIL - Sociedade de Construção Civil, S. A., Jorge Manuel Tavares Salavessa Moura, Ismael Antunes Hernandez Gaspar e José Mário Ramos do Nascimento, a rejeição do recurso "por não existir oposição de julgados»; assim não se entendendo que a jurisprudência a fixar seja no sentido de que "o artigo 13.º do Regime Jurídico anexo ao Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, consagra uma regra de especialidade, em relação ao direito penal, sempre que as condutas imputadas ao arguido, apesar de poderem ser subsumidas a mais de um tipo legal, ofendem, exclusivamente, interesses do Estado».
O Ministério Público teve vista dos autos - artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Penal -, manifestando-se pela oposição de julgados.
Após peripécias várias de saneamento da instância, por Acórdão de 15 de Abril de 2001, foi constatada a invocada oposição de julgados no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão de direito, mas apenas no tocante ao arguido António Manuel Domingos Tomás Lopes (do acórdão recorrido).
Uma vez que a decisão emanada da conferência da Secção, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, carece de força de caso julgado formal, atenta a diferente composição do órgão competente para a decisão final, impõe-se a reapreciação dos indispensáveis pressupostos legais da oposição de julgados - decisão da mesma questão de direito, no domínio da mesma legislação.
No acórdão fundamento, estamos perante um quadro de factos que se entendeu configurar como concurso real entre os crimes de fraude fiscal, burla e falsificação, no que se refere aos três arguidos do processo em que foi proferido (Joaquim Henriques de Oliveira, António da Silva Ferreira e António Constantino Calçada), com a sua consequente punição autónoma.
No acórdão recorrido, essa situação só vem a ocorrer em relação ao arguido António Manuel Domingos Tomás Lopes, único relativamente ao qual se questionavam crimes de burla qualificada, falsificação de documentos e fraude fiscal - além de crimes de abuso de confiança fiscal que ora não relevam - e que acabou por ser absolvido dos crimes de burla e falsificação por se ter entendido que estes crimes se não encontravam em concurso real com o de fraude fiscal.
Nesse aresto, no que concerne aos restantes arguidos - sem considerar as sociedades, a quem não haviam sido imputados crimes de burla e de falsificação - apenas estavam em causa dois crimes, até porque, salvo o caso de um deles, foi reposta a verdade fiscal, o que arredou a punibilidade do crime de fraude fiscal e alterou o conjunto de factos a valorar jurídico-penalmente.
Ponderando o que acaba de ser reavivado, deve manter-se a anterior conclusão, obtida em conferência, de que existe oposição de julgados, no domínio da mesma legislação, com o âmbito descrito, sobre a mesma referida questão de direito, qual seja a de saber se a conduta do agente que inscreve na contabilidade de uma empresa uma factura emitida por outra empresa que não corresponda a qualquer transacção real, integrando assim o imposto que lhe foi supostamente facturado na declaração periódica do IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito, constitui apenas um crime de fraude fiscal, ou se deve ser também punido, em concurso real, como tendo praticado um crime de burla e outro de falsificação.
Notificados os intervenientes processuais para os efeitos do artigo 442.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Penal, defendem os arguidos a posição do acórdão recorrido, enquanto o Ministério Público propõe que seja fixada jurisprudência no seguinte sentido:
"Constitui o crime de burla dos artigos 217.º e 218.º do Código Penal, na versão de 1995, ou dos artigos 313.º e 314.º na versão originária, bem como o crime de falsificação do artigo 228.º, n.º 1, do Código Penal (actualmente artigo 256.º), a conduta do agente que consiste em inscrever na contabilidade de uma empresa uma factura emitida por outra empresa que não corresponda a qualquer transacção real, integrando assim o imposto que lhe foi supostamente facturado na declaração periódica do IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito».
É de notar que a proposta de solução ora apresentada pelo Ministério Público, que não a do requerimento inicial, consistirá num tertium genus relativamente à alternativa que parecia estar em discussão: fraude fiscal apenas ou em concurso real com os crimes comuns de burla e falsificação.
Por jubilação do primeiro relator, conselheiro Hugo Lopes, foi o presente recurso extraordinário redistribuído; foi-o de novo por não ter feito vencimento o projecto apresentado pelo segundo relator (ver nota 1).
Repetidos os vistos legais, em simultâneo, procedeu-se a julgamento (artigo 443.º do Código de Processo Penal) em conferência do pleno das secções criminais.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Saliente-se, desde já, que o âmbito e a força da fixação de jurisprudência a proferir se circunscrevem à vigência do RJIFNA, uma vez que se encontra revogado este regime, nos termos do artigo 2.º, alínea b), da Lei 15/2001, de 5 de Junho. De qualquer modo, a sua utilidade mantém-se para situações temporalmente delimitadas.
1 - Prossigamos, de pronto, com a indicação da legislação a examinar:
1.1 - As principais normas em foco estão (estavam) insertas no RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro. Assim:
"Artigo 13.º
Concurso de crimes
Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime previsto neste Regime Jurídico e crime comum, as penas previstas para ambos os crimes são cumuláveis desde que tenham sido violados interesses jurídicos distintos.
Artigo 23.º
Fraude fiscal
1 - Constituem fraude fiscal as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
2 - A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração fiscal;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
3 - Para efeitos do número anterior considera-se que tem lugar a ocultação ou alteração de factos ou valores quando se verifique qualquer das seguintes circunstâncias:
a) A vantagem patrimonial ilegítima pretendida for superior a 1000 contos para as pessoas singulares e 2000 contos para as pessoas colectivas ou entes fiscalmente equiparados;
b) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
c) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
d) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
e) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei fiscal;
f) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiros.
4 - A pena aplicável à fraude fiscal é de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da vantagem patrimonial pretendida, nem superior ao dobro, sem que esta possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido, salvo se, tratando-se de pessoas singulares, na ocultação ou alteração dos factos ou valores ou na simulação se verificar a acumulação de mais de uma das circunstâncias referidas nas alíneas c) a f) do número anterior, caso em que é exclusivamente aplicável a pena de prisão de um até cinco anos.
5 - Se a vantagem patrimonial pretendida não for superior a 100000$00, a pena será de multa [...]»
1.1.1 - Na redacção original (anterior ao Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro), dispunha-se neste mesmo artigo 23.º:
"1 - Quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida:
a) Ocultar ou alterar factos ou valores que devam constar das declarações que para efeitos fiscais apresente ou preste a fim de que a administração fiscal, especificamente, determine, avalie ou controle a matéria colectável; ou
b) Celebrar negócio jurídico simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão, ou substituição de pessoas, dirigidos a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado, será punido [...]
2 - Se nos casos previstos no número anterior:
a) A vantagem patrimonial indevida for superior a 1000 contos;
b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
c) O agente se tiver socorrido, para a prática do crime, do auxílio de funcionário público com grave abuso das suas funções;
d) O agente manipular indevidamente livros ou documentos fiscalmente relevantes;
a pena não será inferior a [...]
3 - Para os efeitos da alínea d) do número anterior, verifica-se manipulação indevida quando o agente:
a) Falsificar ou viciar, ocultar, destruir, danificar, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar documentos fiscalmente relevantes;
b) Usar tais livros ou documentos sabendo-os falsificados ou viciados por terceiros.»
1.1.2 - Ainda do Decreto-Lei 20-A/90, diploma preambular que aprovou o RJIFNA:
"Artigo 5.º
Âmbito da revogação
1 - O presente diploma revoga toda a legislação em contrário, sem prejuízo da subsistência dos crimes previstos no Código Penal e legislação complementar.»
1.2 - Do Código Penal:
"Artigo 30.º
Concurso de crimes [...]
1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.»
Artigo 313.º
Burla
1 - Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais, será punido com prisão até 3 anos. [Na redacção originária (ver nota 2).]
Artigo 228.º
Falsificação de documentos
1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo:
a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outrem para elaborar um documento falso;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante;
c) Usar um documento a que se referem as alíneas anteriores, falsificado ou fabricado por terceiros;
d) Intercalar documento em protocolo, registo ou livro oficial sem cumprir as formalidades legais;
será punido com prisão até 2 anos e multa até 60 dias. [Também na redacção originária (ver nota 3)].»
1.3 - Há ainda que ter em atenção a jurisprudência fixada mediante o Assento 8/2000 (ver nota 4) do plenário das secções criminais deste Supremo Tribunal, do seguinte teor:
"No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.»
Aliás, na vigência da redacção original do Código Penal de 1982, também através de semelhante acórdão do plenário das secções criminais (ver nota 5), já havia sido fixada jurisprudência em iguais termos:
"No caso de a conduta do agente preencher as previsões da falsificação e de burla do artigo 228.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 313.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes.»
2 - Na visão de conjunto da evolução legislativa, a que o intérprete não deve escusar-se, importa ainda atentar na redacção posterior que o legislador deu a preceitos equivalentes aos que serão objecto de atenção. Assim, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), aprovado pelo artigo 1.º da Lei 15/2001, de 5 de Junho, cumpre destacar alguns deles:
2.1 - O RGIT diz:
"Artigo 2.º
Conceito e espécies de infracções tributárias
1 - Constitui infracção tributária todo o facto típico, ilícito e culposo declarado punível por lei tributária anterior.
...
Artigo 3.º
Direito subsidiário
São aplicáveis subsidiariamente:
a) Quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar; [...]
Artigo 10.º
Especialidade das normas tributárias e concurso de infracções
Aos responsáveis pelas infracções previstas nesta lei são somente aplicáveis as sanções cominadas nas respectivas normas, desde que não tenham sido efectivamente cometidas infracções de outra natureza. (ver nota 6)
Artigo 12.º
Penas aplicáveis aos crimes tributários
1 - As penas principais aplicáveis aos crimes tributários cometidos por pessoas singulares são a prisão até 8 anos ou a multa de 10 até 600 dias.
2 - Aos crimes tributários cometidos por pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas é aplicável a pena de multa de 20 até 1920 dias.»
Na parte III do diploma trata-se das "infracções tributárias em especial», classificando-se como "crime tributário comum» a burla tributária, prevista no artigo 87.º:
"1 - Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é a de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias.
3 - Se a atribuição patrimonial for de valor consideravelmente elevado, a pena é a de prisão de dois a oito anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas colectivas.
4 - As falsas declarações, a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou a utilização de outros meios fraudulentos com o fim previsto no n.º 1 não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.
5 - A tentativa é punível.»
E no capítulo III, relativo aos crimes fiscais:
"Artigo 103.º
Fraude
1 - Constituem fraude fiscal, punível com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias, as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável;
b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas.
2 - Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a (euro) 7500.
3 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Artigo 104.º
Fraude qualificada
1 - Os factos previstos no artigo anterior são puníveis com prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas quando se verificar a acumulação de mais de uma das seguintes circunstâncias:
a) O agente se tiver conluiado com terceiros que estejam sujeitos a obrigações acessórias para efeitos de fiscalização tributária;
b) O agente for funcionário público e tiver abusado gravemente das suas funções;
c) O agente se tiver socorrido do auxílio do funcionário público com grave abuso das suas funções;
d) O agente falsificar ou viciar, ocultar, destruir, inutilizar ou recusar entregar, exibir ou apresentar livros, programas ou ficheiros informáticos e quaisquer outros documentos ou elementos probatórios exigidos pela lei tributária;
e) O agente usar os livros ou quaisquer outros elementos referidos no número anterior sabendo-os falsificados ou viciados por terceiro;
f) Tiver sido utilizada a interposição de pessoas singulares ou colectivas residentes fora do território português e aí submetidas a um regime fiscal claramente mais favorável;
g) O agente se tiver conluiado com terceiros com os quais esteja em situação de relações especiais;
2 - A mesma pena é aplicável quando a fraude tiver lugar mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente.
3 - Os factos previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do presente preceito com o fim definido no n.º 1 do artigo 103.º não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.»
No artigo 105.º tipifica-se o abuso de confiança (fiscal).
Já na Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei 398/98, de 17 de Dezembro, alterada e republicada em anexo à Lei 15/2001, a que vimos aludindo, o artigo 11.º ("Normas tributárias»), sob a epígrafe "Interpretação», dispõe:
"1 - Na determinação do sentido das normas fiscais e na qualificação dos factos a que as mesmas se aplicam são observadas as regras e os princípios gerais de interpretação e aplicação das leis.
2 - Sempre que, nas normas fiscais, se empreguem termos próprios de outros ramos de direito, devem os mesmos ser interpretados no mesmo sentido daquele que aí têm, salvo se outro decorrer directamente da lei.
3 - Persistindo a dúvida sobre o sentido das normas de incidência a aplicar, deve atender-se à substância económica dos factos tributários [...]»
A noção de benefícios fiscais, em princípio limitados ao período de cinco anos, consta do artigo 14.º, sendo a sua criação dependente de uma "clara definição dos seus objectivos e da prévia quantificação da despesa fiscal».
Nos termos do artigo 30.º, integram a relação jurídica tributária, o crédito e a dívida tributários, o direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição, o direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto e o direito a juros compensatórios e a juros indemnizatórios.
A propósito da simulação dos negócios jurídicos - artigo 39.º -, "a tributação recai sobre o negócio jurídico real e não sobre o negócio jurídico simulado».
Referindo-se ao "acesso a informações e documentos bancários» - artigo 63.º-B -, é permitido "quando existam indícios da prática de crime doloso em matéria tributária, designadamente nos casos de utilização de facturas falsas [...]»
Antecipando uma primeira observação, dir-se-á que se alguma conclusão resulta com evidência da nova legislação é a de que a discussão doutrinária e jurisprudencial que teve lugar sobre o tema ora em debate influenciou matérias como as da definição da "burla tributária» e da articulação das infracções tributárias fiscais com as leis gerais, merecendo registo autónomo a realidade da emissão de facturas falsas com vista ao enriquecimento do agente.
III - 1 - Centradas sobre o objecto do recurso, as posições que têm sido assumidas quer na doutrina quer na jurisprudência podem sintetizar-se assim:
A factualidade referida integra apenas o crime de fraude fiscal do artigo 23.º do RJIFNA;
Existe concurso real e efectivo entre as infracções comuns - os crimes de burla e falsificação dos artigos 313.º e 228.º do Código Penal de 1982 - e a infracção fiscal - crime de fraude fiscal;
Os factos integram apenas o crime de burla agravada dos artigos 313.º e 314.º, alínea c), e o crime de falsificação de documento do artigo 228.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal de 1982, não se verificando qualquer concurso aparente ou efectivo entre a infracção fiscal - fraude fiscal - e a infracção comum - crime de burla.
2 - O acórdão recorrido, enfileirando na primeira daquelas posições, considerou que a situação de facto nele evidenciada não configurava um concurso real de crimes por a incriminação pelo crime de fraude fiscal excluir a punição pelos outros delitos (burla e falsificação), optando pela verificação de um concurso aparente.
A sua fundamentação, abonando-se em copiosa doutrina, é, em síntese, a seguinte:
Sendo o direito fiscal votado à defesa de interesses específicos, que não se confundem, atenta a sua particularidade, com os tutelados no Código Penal, quando as normas de direito penal fiscal assumem o aspecto dissuasor - e intimidativo - de certos comportamentos dos sujeitos naquela área fiscal, estabelece-se uma compartimentação entre normas penais gerais reunidas no Código Penal e normas penais fiscais.
A incriminação pela fraude fiscal "exclui a punição pelos outros delitos visto que o crime de fraude fiscal, precisamente porque se coloca dentro de um ramo especial de direito, ambiciona, com aspecto de exclusividade, a punição dele sempre que os interesses em jogo não digam respeito a terceiros e os comportamentos possam coincidir com outros descritos em normas penais gerais ou ainda que coincidam». Mas, "se através de uma infracção fiscal se violam também interesses de terceiros, deverão aplicar-se as penas comuns para além das sanções tributárias. Os bens jurídicos cuja violação estas procuram evitar - os interesses da Fazenda Nacional - não contêm e, por isso, não absorvem, nesse caso, a protecção de terceiros, a um tempo ofendidos por essa mesma infracção».
Quando o Estado aplica às infracções fiscais reacções diferentes das aplicadas às infracções comuns, deve ter-se presente a regra da especialidade ou da alternatividade: a uma conduta subsumível ao domínio da lei criminal geral e ao das disposições penais tributárias só estas teriam aplicação, uma vez que o preceito especial revoga o geral - disse-se citando a doutrina.
Daí que o disposto no artigo 13.º do Decreto-Lei 20-A/90 (versão original) não comporte uma interpretação que atente contra a ratio legis. Este artigo, diversamente do artigo 30.º do Código Penal, que define o concurso de crimes sem fazer apelo aos interesses jurídicos violados como critério distintivo do concurso de infracções, expressamente estabelece que só há lugar a cúmulo - de penas - quando os interesses jurídicos violados nas infracções penais do RJIFNA e ali previstos sejam distintos, diferentes, numa e noutra infracção.
Constituindo o Decreto-Lei 20-A/90 como que um código tributário, "seria absurdo pensar e admitir que, tendo o poder legislativo estudado e analisado os vários comportamentos possíveis que se traduzem em violação de interesses da Fazenda Nacional, de modo directo ou indirecto, e escolhendo a penalidade que julgou adequada à prevenção e sanção, elaborando um código específico, se consentisse que o mecanismo dissuasor e punitivo desses comportamentos afinal saísse (acabasse por sair) do direito penal comum, se não sempre, pelo menos na maior parte dos casos» (§§ 1.º e 2.º do relatório). A intervenção do direito penal comum só se justifica a título subsidiário, "o que veda uma aplicação de princípios e normas alheios aos bens jurídicos que se desejaram proteger com a elaboração daquele diploma» (artigo 4.º do Decreto-Lei 20-A/90).
A factualidade típica da fraude fiscal é apenas o atentado à verdade ou transparência corporizado nas diferentes modalidades da falsificação previstas no n.º 1 do artigo 23.º do diploma em causa, crime que se consuma mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar, sendo a segurança e a fiabilidade do tráfico jurídico com documentos no domínio específico da prática fiscal - e não património fiscal como tal - que configura o bem jurídico directa e primacialmente protegido pela incriminação da fraude fiscal, que aparece relativamente à falsificação de documentos como um caso de especialidade, pois que a sua incriminação só se propõe fazer face aos atentados à verdade, segurança e fiabilidade no âmbito circunscrito da relação jurídico-tributária, enquanto a infracção do Código Penal visa prevenir atentados à segurança e fiabilidade do tráfico jurídico em geral.
Consequentemente, nada no campo do direito penal relativo à falsificação de documentos fica a descoberto com a aplicação da norma que tipifica a fraude fiscal, pelo menos nos casos em que a falsificação de documentos é levada a cabo com o único objectivo de realizar a fraude fiscal, e esgota a sua danosidade social no âmbito desta infracção, como prescreve o artigo 13.º daquele diploma.
A nova redacção do artigo 26.º, através do Decreto-Lei 394/93, constituiria uma interpretação autêntica do artigo 13.º do Decreto-Lei 20-A/90, afastando a ideia de que com o enriquecimento do agente haveria sempre burla. Existe um concurso aparente de normas - lex specialis derogat legi generali.
Em conformidade, no acórdão recorrido, a condenação foi apenas pelo crime de fraude fiscal.
3 - A diferente conclusão chegou o acórdão fundamento - a existência de concurso real de crimes -, apoiando-se nos seguintes argumentos:
"[...] o crime de burla dirige-se no sentido da defesa de interesses de natureza patrimonial, o que, aliás, o elemento sistemático bem evidencia.
Mas sendo assim, o que importa averiguar é a natureza dos interesses tutelados pelo aludido ilícito fiscal, a fim de poder afirmar-se a existência, ou a inexistência, de coincidência entre os interesses protegidos por um e outro dos tipos em confronto.
O que mais avulta no desenho da incriminação (do crime de fraude fiscal) - como dizem os mestres de Coimbra - é o facto de ela assegurar uma 'tutela avançada' ao património público fiscal. Para maximizar e reforçar a protecção deste património, a lei portuguesa antecipa a intervenção preventiva e repressiva do direito penal para um momento em que apenas se efectiva a lesão da verdade e transparência exigidas nas relações Fisco-contribuinte.
À semelhança do que em geral acontece com os chamados 'crimes de resultado cortado', também aqui (na fraude fiscal) a produção do resultado lesivo (não pagamento ou pagamento arbitrariamente reduzido de um imposto, obtenção de um benefício ou reembolso indevidos) não determina uma mudança a nível do ilícito típico. Trata-se apenas de uma forma de realização do crime fundamental, que só determinará, por isso, uma agravação da pena aplicável.»
Esta configuração do crime de fraude fiscal resulta do simples exame do artigo 23.º do citado Decreto-Lei 20-A/90, especialmente quando confrontado com o artigo 313.º do Código Penal.
Efectivamente, enquanto neste normativo se exige, da parte do sujeito passivo, a prática de actos causadores de prejuízos patrimoniais para si ou para terceiros (desvalor do resultado), aquele dispositivo fiscal satisfaz-se com a prática dos actos que enumera, independentemente da verificação de lesão patrimonial (desvalor da acção).
Com efeito, o artigo 313.º do Código Penal exige uma conduta ardilosa ou enganosa que determine "outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais», enquanto o artigo 23.º do Decreto-Lei 20-A/90 se satisfaz com a ocultação ou alteração de "factos ou valores que devam constar das declarações que, para efeitos fiscais (o agente), apresente ou preste a fim de que a administração fiscal, especificamente, determine, avalie ou controle a matéria colectável».
O que equivale a afirmar que o delito de fraude fiscal se consuma no momento da prática dos actos que enumera, independentemente e antes da lesão efectiva do património público.
Visando o crime de fraude fiscal a verdade e a transparência nas relações tributárias, a lesão do património público não constitui um seu elemento constitutivo, mas apenas circunstância a atender na graduação da respectiva pena, não existindo coincidência entre os interesses protegidos pelo crime de burla e os tutelados pelo delito fiscal.
Daí o concurso puro de infracções, a punir nos termos dos artigos 30.º, n.º 1, e 78.º, ambos do Código Penal.
Para salvaguarda do princípio ne bis in idem, a lesão efectiva do património público não pode ser punida duas vezes, pelo que o crime de fraude fiscal deve ser punido, como se essa lesão não se tivesse verificado, sempre que essa lesão efectiva do património público esteja coberta pela punição correspondente ao crime de burla.
Com o crime de falsificação pretende-se salvaguardar a fé pública dos documentos necessária à normalização das relações sociais e, com o crime de fraude fiscal, proteger a verdade e a transparência nas relações tributárias, não constituindo a lesão efectiva do património público elemento típico, mas apenas circunstância a atender na graduação da respectiva pena, pelo que inexiste qualquer coincidência entre estes dois tipos legais de crime.
A existir coincidência, mal se compreenderia a nova postura legislativa quanto à necessidade de reprimir estes delitos económicos, se os interesses a tutelar já estivessem devidamente acautelados no regime penal geral.
Sendo diferentes os interesses tutelados no crime de falsificação e no crime de fraude fiscal, estamos também perante um concurso real de infracções, a punir nos termos supra-apontados.
Refuta-se ainda a tese da fraude fiscal como único crime, com os efeitos de abrandamento da punição que acarretaria. O crime fiscal cometido era o previsto na alínea a) do n.º 1 do citado artigo 23.º do RJIFNA.
Em consequência, determinaram-se punições pela prática dos crimes de burla agravada e falsificação (do Código Penal) e fraude fiscal (daquele diploma).
4 - Vejamos finalmente como argumenta o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto em defesa da sua proposta de fixação de jurisprudência. Apoiando-se também na doutrina, diz, em síntese:
Não existe relação de consunção ou de especialidade entre o crime de fraude fiscal e o de burla do Código Penal. Trata-se de crimes com alguma afinidade, com elementos comuns, mas não existe relação de especialidade entre eles porque o pretendido crime especial (fraude fiscal) não contém todos os elementos típicos da burla, sendo também diverso o elemento subjectivo nos dois crimes;
Nem sequer concurso de normas, porque os factos não integram o crime de fraude fiscal. Nenhuma relação fiscal se estabeleceu entre o agente e o Estado, não se estando perante operações tributáveis, mas de conduta do agente destinada a apropriar-se de uma parcela do património (geral) do Estado, utilizando um meio fraudulento estranho à actividade fiscal do Estado;
O artifício fraudulento das facturas falsas nada tem a ver com a fiscalidade, nem existe uma relação Estado-contribuinte (e são essas relações que estão pressupostas no ilícito penal fiscal). Não foi como contribuinte que o agente actuou. Ele ficcionou uma relação fiscal para se apropriar de dinheiro do Estado. Criou um artifício fraudulento idóneo a enganar os serviços do Estado, levando-os a fazerem-lhe uma entrega patrimonial que não lhe era devida. Estamos claramente no domínio típico da burla. Insistindo e concluindo: não havendo relação tributária, não há fraude fiscal.
É de afastar a tese do concurso efectivo entre o crime de burla e o de fraude fiscal, como, pelas mesmas razões, é igualmente de rejeitar a tese da prevalência da fraude fiscal, em detrimento da burla, uma vez que a conduta não preenche os elementos típicos daquela.
Aquele magistrado destaca mais algumas notas.
Em primeiro lugar, o texto da alínea c) do n.º 2 do artigo 23.º do RJIFNA, ao prever, como um dos meios de execução vinculada, a celebração de negócio "simulado», logo acrescenta "quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas», o que exclui as situações de simulação absoluta, os casos de negócio ficcionado ou inexistente (precisamente porque aí está ausente uma relação tributária).
Segunda nota: o reembolso indevido é sem dúvida um enriquecimento ilegítimo, como tal enquadrável no elemento típico correspondente ao crime de burla, o que não sucede na fraude fiscal, pois o que o agente procura é evitar a diminuição do seu património pelo pagamento dos impostos.
Por último: o facto de o Decreto-Lei 343/93, de 24 de Novembro, ter incluído os reembolsos no número das condutas típicas da fraude fiscal não invalida as considerações precedentes, já que tais reembolsos, para que sejam abrangidos por esse crime, têm de ser praticados no âmbito de uma relação tributária.
Posição assumida: é de acolher o entendimento que propõe que os factos descritos não integram o crime de fraude fiscal e de burla, em concurso efectivo, nem sequer o crime de fraude fiscal, em concurso aparente com o de burla, mas sim o de burla (e de falsificação).
Posição esta que, como assinalámos, não coincide com nenhuma das que foram seguidas nos acórdãos em oposição.
Estando, porém, em causa a decisão de uma questão de direito, a posição a adoptar não tem de ser coincidente forçosamente com a tomada num dos arestos em oposição.
IV - 1 - Como já se deixou insinuado, sobre a matéria tem sido largo o debate neste Supremo Tribunal.
Recopilemos.
Até 1995, o Supremo Tribunal de Justiça inclinou-se no sentido da posição do acórdão fundamento (ver nota 7). Ou seja, existiria concurso real de crimes de fraude fiscal, de burla e de falsificação.
A partir de 1996, o Acórdão de 3 de Outubro de 1996 (ver nota 8) - que tratou do concurso dos crimes de fraude fiscal e de burla, terá marcado a viragem -, alterou essa orientação, passando a decidir-se no sentido da existência de mero concurso aparente entre o crime de fraude fiscal e os de falsificação e burla, com prevalência do crime fiscal, quando apenas estejam em jogo os interesses do Estado, mais precisamente do Fisco (ver nota 9).
E também a doutrina se tem pronunciado abundantemente sobre a materialidade, muitas vezes no âmbito de processos em curso, outras em artigos adrede preparados, outras ainda em comentário a decisões dos tribunais (ver nota 10).
2 - Há razões para alterar tal jurisprudência, que agora se pode dizer pacífica?
Vamos de novo passar em revista os principais argumentos que têm sido invocados, pela doutrina e por este Supremo Tribunal.
Começaremos pela tese do concurso aparente, isto é, pela punição exclusiva como crime de fraude fiscal.
Mas, antes, convém descrever melhor a situação fáctica em presença, que tem a ver, essencialmente, com o sistema de cobrança do imposto de valor acrescentado (IVA).
O sujeito passivo do IVA é alguém que, tendo o dever de liquidar o imposto, de o cobrar e de o entregar nos cofres do Estado, está exonerado por lei, através do mecanismo de repercussão fiscal, de o suportar economicamente (ver nota 11).
Uma vez que o imposto atinge todas as fases do circuito de produção, concebeu-se uma fórmula que permite ao interveniente, a montante, compensar o imposto suportado a jusante.
"O que se pretende é que as empresas - e todas as empresas que participam num certo circuito [...] produzindo bens ou vendendo serviços - cobrem o IVA sem que sejam por ele onerado [...] de modo que sejam apenas um 'veículo técnico' para este imposto.»
A neutralidade do IVA, imposto que acompanha todo o circuito produtivo, implica "o direito atribuído a cada sujeito passivo de, no momento em que apure o imposto devido às suas vendas e serviços prestados, poder deduzir o imposto que suportou nas aquisições de bens e serviços necessários à sua actividade, entregando apenas a diferença entre os dois montantes considerados». Tal direito opera "através da compensação e subsidiariamente do reembolso».
Para além de comportamentos de redução fraudulenta de imposto a pagar ou de retenção de um imposto cobrado, pode haver a criação de uma aparência de situação fiscalmente relevante. É neste último quadro que se inscreve a criação de "facturas falsas» com vista a obter um reembolso do Estado, a que de todo não se tem direito.
2.1 - Posto isto, passemos à aludida tese do concurso aparente, a do acórdão recorrido.
A principal linha condutora da sua defesa assenta na especialidade do crime de fraude fiscal face ao comum crime de burla e na do concurso aparente dos crimes de fraude fiscal, de falsificação de documentos e de burla do direito penal comum, com prevalência do primeiro.
Destaquemos da doutrina os pontos principais, a que a jurisprudência se tem acolhido.
2.1.1 - Faria Costa põe em evidência o movimento de neocriminalização oriundo do Decreto-Lei 619/76, de 27 de Julho, no sentido da criação de um direito penal fiscal. Do seu preâmbulo destaca-se o propósito de "criminalizar as infracções tributárias mais graves - punindo-as com a pena de prisão» -, criando-se uma área normativa especial, um direito penal fiscal, absolutamente diferenciado das normas incriminadoras presentes no Código Penal de 1886. Esta racionalidade inerente aos propósitos político-criminais que têm envolvido a punição das infracções fiscais, não mais foi abandonada pelo legislador penal nas diferentes intervenções, quer do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, quer do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, diplomas que contemplam em toda a linha normas penais incriminadoras especiais.
A natureza fragmentária do direito penal potencia as dificuldades na determinação das áreas normativas protegidas, rectius, na determinação das condutas criminalmente puníveis.
Havendo uma "região normativa especial», o intérprete deve considerar-se, em princípio, cingido às normas de direito penal especial e não às do direito penal comum, pois que "o legislador, ratione materiae, dessa maneira o entendeu».
Só uma razão interpretativa forte é que pode fazer deslocar os factos para o direito penal comum.
"Será para nós - prossegue Faria Costa - uma razão interpretativa forte quando a ratione materiae deixa de ser uma finalidade substancial e passa a ser uma finalidade instrumental [...] Admite-se, por consequência, que um comportamento seja, ratione materiae, punido pelo direito penal fiscal e também pelo direito penal comum, mas já não se antevê defensável que esse comportamento seja, ab initio, tido como levado a cabo no âmbito do direito fiscal e depois só venha a ser punido pelo direito penal comum. Podemos admitir que se apliquem as regras do concurso; o que já dificilmente se vislumbra como possível é punir esse mesmo comportamento exclusivamente pelas normas do direito penal comum [...]»
Colhendo a lição de Eduardo Correia sobre a relação de especialidade de normas - concurso legal ou aparente de infracções -, anota:
"Especialidade. Traduz-se na relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na lex specialis se contêm já todos os elementos duma lex generalis, isto é, daquilo que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda, certos elementos especializadores. Esta relação terá como efeito, evidentemente, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial: lex specialis derogat legi generali.»
Para concluir: "a qualificação, substancial, de um facto como pertencente ao direito penal comum ou ao direito penal especial está determinada, em princípio, por vontade legislativa»; uma "interpretação/qualificação» fora desta metódica é, a todas as luzes, uma interpretação ilegítima e ilegal, já que vai contra a intencionalidade legislativa.
E refutando qualquer conflito com o disposto no artigo 13.º do RJIFNA, considera "perfeitamente plausível que, através da factualidade que determina a fraude fiscal, se possam cometer outras infracções para além daquela. Mister é que se tenham violado interesses ou bens jurídicos substancialmente diferentes e se não caia, por isso, numa situação de consunção».
2.1.2 - Também para Germano Marques da Silva, o direito penal fiscal (aduaneiro e não aduaneiro) constitui, entre nós, um exemplo manifesto de direito penal especial. O que só aconteceu em 1990 (diferentemente da autonomização precoce do direito aduaneiro punitivo em relação ao direito penal comum).
Trata-se de um verdadeiro ordenamento jurídico especial ou particular em relação ao direito penal comum.
Quando os factos apenas lesem ou ponham em perigo, por forma típica, os interesses do Estado enquanto credor tributário, a sanção aplicável é apenas a constante dos tipos especiais, em razão da relação de especialidade existente entre o direito penal especial e o direito penal comum.
E ainda:
"Acontece, no entanto, que a solução que o artigo 13.º do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras consagra é, não apenas uma solução particular para o problema específico do concurso ideal entre crimes fiscais previstos naquele diploma e crimes comuns, mas a positivação de um princípio geral de relação entre o direito penal comum e os direitos penais especiais ou particulares.»
2.1.3 - Figueiredo Dias e Costa Andrade (ver nota 12), debruçando-se sobre as relações de concurso entre a fraude fiscal do RJIFNA e os crimes de falsificação de documentos e burla do Código Penal, dizem:
"11 - Importa, à partida, assinalar a complexidade e as dificuldades acrescidas dos problemas de concurso suscitados pela incriminação da fraude fiscal [...].
Assim, e continuando a privilegiar os três modelos abstractos e arquetípicos [...], tudo estará, com efeito, em saber:
a) Se o legislador erige a fraude fiscal como um crime material e de dano, em que o resultado lesivo do património fiscal figura como um elemento insuprível da factualidade típica. Um modelo em que a fraude fiscal surge claramente numa relação de concurso aparente com a figura geral da burla [...] No quadro deste modelo, cabe outrossim questionar se a aplicação da incriminação da fraude fiscal não deverá, em princípio, excluir a norma incriminatória da falsificação de documentos, agora em nome de uma relação de consunção impura;
b) Se o legislador concebe e modela a fraude fiscal como mero atentado contra a verdade, sc., denegando qualquer relevo ao resultado lesivo do património, quer como elemento do tipo objectivo quer como referente da intenção do agente. A fraude fiscal estará aqui numa relação de concurso aparente com a falsificação de documentos e, a par disso, numa relação de concurso efectivo com a burla;
c) Se o legislador prescreve o resultado lesivo como referente necessário da intenção do agente de uma fraude fiscal que se consuma mesmo que aquele resultado não venha a ter lugar. Isto é, se o legislador conforma a infracção segundo o modelo dos crimes de resultado cortado. Neste quadro, a fraude fiscal, que surge tipicamente como um crime contra a verdade, está numa relação de concurso aparente ou legal com a falsificação de documentos. Para além disso, também não haverá espaço para um concurso efectivo (real ou ideal) com a burla, mas tão-só para um concurso legal ou aparente com esta infracção. E isto depois de se ter valorado a produção do resultado como fundamento autónomo de agravação da pena. Os casos de efectiva ocorrência do resultado lesivo - os únicos em que obviamente tem sentido questionar a aplicabilidade da norma incriminatória da burla - hão-de, assim, ser tratados sob o regime da medida da pena, em que o resultado esgota a relevância jurídico-penal.»
Este último será o paradigma a que obedece o direito português (ver nota 13).
E logo de seguida:
"12 - No quadro do direito português vigente, não cremos que a fronteira entre a fraude fiscal e a falsificação de documentos suscite problemas de concurso particularmente difíceis. Isto sendo, desde logo, manifesto que entre as duas incriminações medeia uma nítida relação de especialidade. É o que resulta da já assinalada sobreposição entre a factualidade típica das duas incriminações, tanto no plano objectivo como subjectivo [...]
13 - À mesma conclusão se poderia chegar por uma via alternativa: uma via que privilegiasse o regime jurídico-penal da simulação e das relações entre a simulação e a falsificação de documentos, no contexto da ordem jurídica portuguesa vigente a partir da entrada em vigor do Código Penal de 1982.
Resumidamente, na experiência jurídica portuguesa vale hoje como asserção axiomática, com a força estabilizada de um dogma, a tese segundo a qual a simulação não configura, em si e de per si, um autónomo ilícito penal, não sendo, como tal, proibida e sancionada pelo direito criminal vigente [...]
Na apodíctica e clarificadora formulação de Cavaleiro de Ferreira: 'A simulação é incompatível com a falsidade, não apenas com a falsidade material, mas com a falsidade ideológica em documentos.'
Em sentido substancialmente convergente, puderam já os autores deste estudo sustentar, em síntese conclusiva: 'A alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º do novo Código Penal - a chamada falsificação intelectual ou ideológica - não vale para o negócio simulado, por ser evidente que a formalização do negócio simulado, através de escritura pública, é coisa radicalmente distinta da falsidade intelectual e com ela inconciliável.'
Enquanto isto, tudo em princípio se conjuga no sentido de qualificar a prática das chamadas facturas falsas como um caso manifesto de simulação. Tudo, noutros termos, permite concluir que, na medida em que os seus agentes preencham a factualidade típica do crime de fraude fiscal, o façam sob a forma descrita na lei (artigo 23.º do RJIFNA) como 'celebrar negócio jurídico simulado'. Como, nesta linha e pertinentemente assinala Helena Moniz, 'as facturas falsas constituem o documento comprovativo da simulação de contratos de compra e venda não realizados'.
[...] Só que esta conclusão - sc., qualificação dos factos como simulação e, por vias disso, a subsunção na factualidade típica do crime de fraude fiscal - preclude eo ipso qualquer pretensão de imputar aos seus agentes o crime de falsificação de documentos (artigo 256.º do Código Penal). Isto precisamente por força da incompatibilidade entre a simulação e a falsificação de documentos, que corresponde [...] a um axioma consensual da experiência jurídico-penal portuguesa contemporânea.
14 - O quadro não será substancialmente outro do lado do concurso entre a fraude fiscal e o crime de burla, previsto e punido nos termos do artigo 217.º do Código Penal [...], o problema só pode suscitar-se nas hipóteses em que o agente, por sobre atentar contra a segurança e a fiabilidade do tráfico jurídico fiscal, chega a causar um resultado lesivo do património fiscal. Um resultado que tanto pode assumir a forma de um arbitrário não pagamento ou pagamento reduzido, da obtenção de um benefício indevido ou de um reembolso sem suporte legal.
Decisiva, desde logo, a estrutura normativa e doutrinal da fraude fiscal [...] o que mais avulta no desenho da incriminação é o facto de ela assegurar uma 'tutela avançada' ao património público fiscal. Para maximizar e reforçar a protecção deste património, a lei portuguesa antecipa a intervenção preventiva e repressiva do direito penal para um momento em que apenas se efectiva a lesão da verdade e transparência exigidas nas relações Fisco-contribuinte. Isto, suposta a verificação cumulativa e comprovada da intenção de, por esta via, se infligir o dano ao Fisco. São, de resto, estas notas que [...] reconduzem a fraude fiscal à categoria genérica dos chamados crimes de resultado cortado ou de tendência interna transcendente. Haverá, por isso, toda a vantagem em equacionar a questão do significado jurídico-penal do resultado no horizonte mais alargado dos crimes de resultado cortado, em geral.
[...] em síntese: como forma 'estrutural de tentativa' (Zielinski) a fraude fiscal consuma-se antes e independentemente da produção do resultado lesivo. Mas a ocorrência deste resultado determina a agravação da pena. A medida da pena configura, em qualquer caso, a única e esgotante sede de relevância jurídico-penal do resultado lesivo do património fiscal. [...]
No direito português, a relação de concurso aparente só se actualiza a partir da agravação da pena [...] A partir deste momento, ela resulta, porém, tão unívoca como imperativa. Na verdade, falar de concurso aparente antes ou à margem da agravação equivaleria a deixar o desvalor do resultado sem a necessária valoração jurídico-penal. Denegá-la depois disso equivaleria a uma irremível e violação do princípio constitucional ne bis in idem [...]
16 - No mesmo sentido aponta ainda um decisivo argumento de índole histórica. Na verdade, tudo nos trabalhos preparatórios, máxime nos debates parlamentares, deixa a descoberto um inequívoco propósito do legislador português: o de inscrever os ilícitos que apenas contendem com interesses encabeçados pelo Fisco nas incriminações do RJIFNA como regime especial que afasta o regime geral do Código Penal.»
O confronto entre a fraude fiscal e o regime jurídico-penal da incriminação contígua, o abuso de confiança fiscal (artigo 24.º do RJIFNA), constituiria ainda, segundo os mesmos autores, decisivo argumento em abono do entendimento sufragado. Com efeito, "diferentemente da fraude fiscal, o abuso de confiança fiscal integra, entre os pressupostos da factualidade típica, a efectiva produção de um dano patrimonial [...]
Por manifesta identidade de razões, não se vê que possa ser outra a solução aplicável em caso de fraude fiscal [...]
É o absurdo a que levaria a tese do concurso efectivo entre a fraude fiscal e a burla do Código Penal. Não pode ser! O legislador não pode ter querido uma desigualdade tão brutal» que seria a punição com penas (para o abuso de confiança) muito mais benignas.
E agora mais próximos das discordâncias com a tese combatida, e repetindo o já aflorado supra, dizem: "O resultado lesivo relevante para efeitos de direito penal fiscal pode assumir várias formas: pode traduzir-se no não pagamento puro e simples de um imposto devido; pode resultar na liquidação e pagamento de um imposto em montante inferior ao legalmente previsto; pode consistir na obtenção de um benefício fiscal à margem da lei; pode ser a obtenção de um reembolso sem suporte legal. Como facilmente se intui, qualquer destes resultados configura, a igual título, tanto um enriquecimento indevido como, reflexamente, um prejuízo infligido ao Estado-Fisco. Para ambos os efeitos é rigorosamente igual não pagar pura e simplesmente um imposto de 10, pagar 10 quando se devia pagar 20 ou obter um benefício ou um reembolso indevidos de 10.
Nada, por isso, menos infundado do que um tratamento jurídico-penal diferenciado assente, por exemplo, na distinção conceitual entre um enriquecimento (por recebimento de uma soma indevida) e uma não diminuição do património (por não desembolso ou desembolso em montante inferior ao legalmente devido). Em termos jurídico-materiais, trata-se rigorosamente da mesma coisa, a reclamar, por isso, o mesmo tratamento jurídico-penal.
[...] O reembolso indevido é uma forma de enriquecimento do agente e de prejuízo do Estado inteiramente igual às demais. Foi o que, de resto, a nova redacção do n.º 1 do artigo 23.º do RJIFNA, introduzida pelo Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, veio definitivamente clarificar, ao levar o reembolso indevido à conta de conduta típica da fraude fiscal.
Em síntese conclusiva: também para o reembolso indevido terá de valer, por manifesta e invencível identidade de razões, a tese que julgamos ter pertinentemente demonstrado. No que fica dito vão já enunciadas as razões da nossa clara e assumida distanciação em relação à doutrina sustentada pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu douto Acórdão de 15 de Dezembro de 1993. Que se louva precisamente na distinção entre enriquecimento e mero não empobrecimento para extremar, de entre a fenomenologia das 'facturas falsas', as hipóteses de reembolso como fundamento da punição do agente a título de burla [...]
Não cabe naturalmente questionar o acerto lógico-categorial da distinção. Já se nos afigura mais difícil adscrever-lhe um qualquer significado axiológico-material e uma qualquer valência normativa. Seja, porém, como for quanto a este ponto em abstracto, uma coisa sobra como líquida: a entrada em vigor (em 1 de Janeiro de 1994) do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, veio precludir em definitivo o tratamento excêntrico dos casos de reembolso.
Ao inscrever expressamente o reembolso na constelação das condutas puníveis a título de fraude fiscal, a nova versão do RJIFNA veio cortar o passo à doutrina até então ensaiada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Nestes termos, e em síntese conclusiva: fossem quais fossem os créditos que assistissem ao citado acórdão na data em que ele foi proferido, a sua doutrina já não seria legalmente admissível a partir de 1 de Janeiro de 1994.»
V - Da significativa jurisprudência enunciada, crê-se elucidativa a lograda síntese do Acórdão de 27 de Maio de 1999 (ver nota 14):
"Tem sido uma vexata quaestio a de saber qual o sentido e alcance a atribuir ao falado artigo 23.º do RJIFNA, quando em confrontação com as normas que tipificam os crimes de burla e falsificação do Código Penal.
Mas pode considerar-se hoje maioritária neste Supremo a posição segundo a qual as condutas em infracção às normas fiscais têm um tratamento autónomo em face do direito penal comum, isto é, que entende que o RJIFNA (adiante chamado Regime) contém um direito penal especial, que rege de forma total e fechada a tutela dos interesses tributários do Estado.
Neste sentido, alinham os defensores dessa posição um conjunto de argumentos [...]
Por um lado, a própria natureza institucional das normas de direito fiscal, dirigidas a disciplinar as relações tributárias entre o cidadão e o Estado, e também o peculiar conteúdo daquelas normas, que não se identifica com as do direito penal comum, de tal forma que, historicamente, e mesmo que as descrições típicas coincidam, o sancionamento do direito fiscal tem surgido sempre como desagravado relativamente ao primeiro.
Peculiaridade que já resultava do relatório do Decreto-Lei 619/76, de 27 de Julho (onde se exprime a necessidade de, no domínio fiscal, se sancionarem condutas que poderiam, de outro modo, considerar-se subsumíveis às normas penais comuns, como a viciação ou falsificação de registos ou documentos destinados a comprovar a situação tributária do agente), emergia outrossim da Lei (de autorização legislativa) n.º 89/89, de 11 de Setembro (que autorizava o Governo, em matéria penal, a adaptar os princípios gerais, os pressupostos da punição, as formas de crime, tipificando novos ilícitos penais e definindo novas penas, tomando como ponto de referência a dosimetria do Código Penal, ainda que podendo alargá-la ou restringi-la, isto é, que autoriza a elaboração de um verdadeiro código penal fiscal), e, finalmente, é acentuada no relatório do Decreto-Lei 20-A/90 (onde se reconhece a autonomia do tratamento normativo das infracções fiscais) e no relatório do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, que alterou aquele (onde mais uma vez se releva a especificidade ética do ordenamento jurídico-tributário).
Por outro lado, é patente que a regulamentação desenhada pelo legislador é tributária do pensamento do Prof. Eduardo Correia (cf. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 100.º, pp. 306 e 55), quando propugna que os interesses fiscais do Estado devem ser defendidos através de sanções especiais, e não de sanções comuns, e que, sempre que o Estado trate as infracções fiscais com reacções diferentes, na natureza e na gravidade, das que aplica às infracções comuns, importa ter presente a regra da especialidade ou da alternatividade, de tal modo que, se uma conduta é subsumível à lei criminal comum e às normas da lei penal tributária, só estas terão aplicação.
Assim, a censura jurídico-criminal, no âmbito das infracções tributárias, é apenas a que resulta dos tipos penais estabelecidos no RJIFNA, ficando para o direito comum os casos de protecção dos interesses de terceiros (v. os artigos 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei 20-A/90 e 13.º do Regime).
Competirá, de resto, ao direito penal comum a função de direito subsidiário, de integração genérica nos termos do artigo 4.º do Regime, já que - quanto aos tipos penais - prevalecem os organizados pelo dito Regime, que visa essencialmente a relação jurídica tributária.
A este respeito, e no mesmo sentido, afirmam os Profs. Figueiredo Dias e Costa Andrade (in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 6.º, t. I, pp. 71 e 33):
'A regra da consunção das sanções fiscais - quando estão em causa apenas interesses próprios do Fisco - viu a sua plausibilidade progressivamente reforçada à medida que se ia afirmando e ganhando terreno o conhecido movimento de eticização do direito tributário.'
E acrescentam: 'O entendimento do legislador do RJIFNA ao estabelecer no artigo 13.º que só haveria aplicação cumulativa das sanções penais comuns quando tenham sido violados interesses jurídicos distintos é consagração legal de um princípio geral de especialidade e consunção entre o direito penal tributário e o direito penal comum.'
Trata-se de condutas tipificadas nas alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 23.º do RJIFNA, tendo-se por excluído (quer quanto à burla quer quanto à falsificação intelectual) o direito penal comum.
Conforme resulta do acima explanado, o legislador, sabendo que a figura da burla não era tradicionalmente aplicável às situações de fraude fiscal, em que o contribuinte enganosamente fornece dados falsos para conseguir uma fuga ao pagamento de impostos, reservou para diploma específico da área do direito fiscal o enquadramento jurídico dos actos ilícitos em que tais condutas pudessem traduzir-se, bem como o respectivo sistema sancionatório, por se tratar de realidades da vida social insusceptíveis de integrar o crime de burla, ainda que aparentemente preencham os requisitos desta figura criminal.»
VI - Mas não podemos deixar de ponderar, com espírito crítico, a orientação do concurso real.
1 - Fá-lo-emos a propósito da incriminação pelos crimes de falsificação e burla (do Código Penal), posição que era a aceite no projecto anterior (ver nota 15).
Apoiando-se nos princípios da legalidade e da tipicidade, esteios do direito penal, escudava-se tal posição nos seguintes argumentos:
a) Antes de ser punível e imputável a título de culpa, deve a acção tida como censurável ser típica, isto é, corresponder a um dos "esquemas» ou "delitos tipo» objectivamente descritos na lei penal;
b) Decorre do Código Penal que o crime de burla se apresenta como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que a vítima se deixe espoliar;
c) No caso sob exame, um agente inscreve na contabilidade de uma empresa uma factura emitida por outra empresa que não corresponde a qualquer transacção real, integrando assim o imposto, que lhe foi supostamente facturado, na declaração periódica do IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito;
d) É, pois, patente a utilização por esse agente de meios adequados a provocar astuciosamente uma situação de erro ou engano por parte do Estado, levando a administração fiscal a praticar um acto que causa uma diminuição injustificada do património público - o reembolso indevido -, com o consequente enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro;
por outro lado:
e) Na fraude fiscal, entre as condutas ilegítimas tipificadas no artigo 23.º do RJIFNA (após a redacção de 1993) visa-se a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias;
f) Mas, se a factura emitida não corresponde a qualquer transacção real, então as transacções comerciais, a que a mesma se refere, são pura e simplesmente inexistentes, não passando de ficção ou encenação fraudulenta destinada a enganar o Estado, não representando qualquer "operação» tributável;
g) Este meio fraudulento constituído por facturas falsas é estranho à actividade fiscal do Estado, não tendo o agente actuado na veste de contribuinte, e não visando a diminuição das receitas tributárias, mas, sim, obter um enriquecimento ilegítimo; sem relação tributária verdadeira, não há fraude fiscal;
h) Não está, assim, presente o elemento subjectivo do crime de fraude fiscal, isto é, a intenção do agente de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, visando uma diminuição das receitas fiscais ou a obtenção de um benefício fiscal injustificado;
i) No artigo 23.º, n.º 2, alínea c) do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, apenas se encontra contemplada a simulação relativa, e não também a simulação absoluta;
j) A consideração de que a fraude fiscal se consuma mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar não permite afirmar que o património não seja também protegido pelo tipo (somente é antecipada essa protecção);
l) Não se perfilam os interesses que motivam um regime específico, e que conduziriam à injustificada aplicação de um regime muito mais favorável do que o previsto para a criminalidade comum contra o património.
Ao relevar o prejuízo patrimonial e sua reparação no desenho do tipo de fraude fiscal e sua regulamentação, concluir-se-ia pela protecção que se quis dar ao património do Estado com o crime de fraude fiscal, assim afastando o concurso puro de infracções, entre os crimes de burla e fraude fiscal, defendido pelo acórdão fundamento.
2 - Esta tese pode resumir-se essencialmente em dois segmentos: a tipicidade do crime de fraude fiscal, mesmo após a redacção de 1993, não abarca a situação (que por simplificação ora se designa das "facturas falsas»), pois esse tipo legal supõe uma relação tributária verdadeira (ou pelo menos a actuação na veste de contribuinte), entre o Estado e o contribuinte, que não existe; inexistindo essa relação tributária, o que o agente pretende é o enriquecimento do seu património, à custa do património do Estado, mediante astúcia, tal como é típico dos vulgares crimes de burla.
Vejamos.
2.1 - Olhando para a redacção anterior e posterior ao Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, depara-se com algumas alterações, não apenas formais.
Dizia-se na redacção original do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro:
"Quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida [...] celebrar negócio jurídico simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão, ou substituição de pessoas, dirigidos a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado, será punido [...]»
Diz-se a partir de 1993:
"1 - Constituem fraude fiscal as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento do imposto ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
A fraude fiscal pode ter lugar por celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas».
Houve, com a redacção de 1993, uma maior pormenorização das acções que integram a tipificação da fraude fiscal, nomeadamente passou a fazer-se referência aos reembolsos obtidos indevidamente, note-se, num momento em que a jurisprudência ia no sentido do concurso real de infracções (comuns e fiscais).
Lê-se no preâmbulo desse diploma que a experiência do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, já proporcionara a antevisão de "novos contornos da fraude e evasão fiscais» que obrigavam à intervenção legislativa com repercussões práticas. Por outro lado, vários factores - novas tecnologias, complexificação do sistema fiscal - teriam contribuído para o progresso daqueles fenómenos de evasão ilegítima e fraude fiscal "cujas proporções revelam uma danosidade muitas vezes superior à dos crimes comuns» (itálico nosso).
Para de seguida se relevar a possibilidade de pena de prisão, a título principal, até 5 anos, num sinal consequente do sentido ético que cada vez mais passou a impregnar o ordenamento jurídico-tributário.
Convirá destacar, em particular, a afirmação de que "os crimes fiscais mereceram uma nova tipificação, com especial incidência no de fraude e abuso de confiança fiscais».
Não é pois arrojado retirar a ilação de que o legislador procurou, mediante esta intervenção, quebrar o passo a impulsos que estavam a levar à orientação de que os crimes fiscais actuavam em concurso real com os crimes comuns no âmbito estrito da fiscalidade (ver nota 16). Isto no sentido do reforço da regra da especialidade deste tipo de delitos em confronto com os crimes comuns, desde que não se extravase para fora dos interesses de ordem fiscal.
Mais directamente: crê-se não ser pertinente o argumento de que o tipo legal do mencionado artigo 23.º do RJIFNA supõe uma relação tributária verdadeira (ou pelo menos a actuação na veste de contribuinte), o que não ocorreria no caso sub judice.
Com efeito, não se pode falar, em pleno sentido, de uma relação tributária "verdadeira». A admitir-se que apenas está contemplada a simulação relativa, uma vez que ela assenta em dados falsos ou alterados, essa relação não é "verdadeira».
O que sucede é que o declarante se serve da sua posição nas relações contribuinte-Estado para praticar a adulteração de elementos que deve fornecer com verdade, introduzindo, ao invés, dados falsos, incompletos ou simulados.
Não pode assim dizer-se que a inclusão de facturas representativas de negócios jurídicos simulados - e não se vê onde esteja prevista a distinção entre simulação absoluta e relativa, para só esta estar abrangida pelo tipo (ver nota 17) -, porque não passam de ficção ou encenação fraudulenta destinada a enganar o Estado, por isso não representam qualquer "operação» tributável.
A conduta do agente desenvolve-se no plano da relação contribuinte-Estado, relação que a lei admite, para a tipificação criminal, que possa ocorrer através de uma manifestação simulada de declaração, isto é, de afirmações em que voluntariamente não existe correspondência entre a vontade declarada e a real. Mas é precisamente em virtude da verificação da aparência dos pressupostos dessa relação tributária - uma empresa que, no âmbito da sua actividade, pratica actos jurídicos susceptíveis de tributação - que o direito penal secundário actua.
Por outro lado - e ainda a respeito da distinção entre a simulação absoluta e a relativa -, o raciocínio que levaria à exclusão da primeira do tipo legal da fraude fiscal surgiria de todo incongruente. Como acima se citou, "o resultado lesivo relevante para efeito de direito penal fiscal pode assumir várias formas: pode traduzir-se no não pagamento puro e simples de um imposto devido; pode resultar na liquidação e pagamento de um imposto em montante inferior ao legalmente previsto; pode consistir na obtenção de um benefício fiscal à margem da lei; pode ser a obtenção de um reembolso sem suporte legal». Pelo que "qualquer destes resultados configura a igual título tanto um enriquecimento indevido como, reflexamente, um prejuízo infligido ao Estado Fisco».
Na verdade, com a aludida distinção, se a empresa, de conluio com terceiro, outra empresa ou pessoa singular, introduz facturas simuladas no seu circuito tributário, qual a diferença entre facturas que são parcialmente simuladas quanto ao valor ou outro elemento estrutural ou completamente simuladas? Se são totalmente simuladas, não será esta realidade típica que o legislador desde logo quis abarcar?
Aliás, a declaração de vontade pode nem sequer ser destinada a qualquer destinatário, na medida em que a factura seja completamente fictícia (ver nota 18).
2.2 - Façamos já a ponte para o outro argumento: não existindo qualquer relação tributária, nessa fenomenologia da emissão de "facturas falsas», o que o agente pretende é o enriquecimento do seu património à custa do património do Estado, mediante astúcia, tal como é típico dos vulgares crimes de burla, em contrário do que é típico destes crimes fiscais, ou seja, a não diminuição do seu património, ou não empobrecimento, quer porque não se esportula do imposto quer porque o faz em quantidade inferior ao devido.
Repare-se, porém, que na versão originária do preceito do artigo 23.º do Decreto-Lei 20-A/90 se aludia a "quem, com intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida», mediante celebração de "negócio jurídico simulado dirigido(s) a uma diminuição das receitas fiscais ou à obtenção de um benefício fiscal injustificado, será punido [...]».
Se a noção de "benefício fiscal» poderia apontar para um conceito muito preciso, já a de "diminuição das receitas fiscais» deteria capacidade para integrar o "reembolso indevido» como "vantagem patrimonial indevida».
Não poderia facilmente dizer-se que um reembolso do tipo descrito não cabia na descrição típica sem passar sobre uma indicação literal suficiente de sentido oposto.
Na redacção de 1993 desaparece aquela referência à obtenção de vantagem patrimonial indevida, mas surge a menção expressa à obtenção indevida de reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Posto que as modificações se apresentem muito mais na forma do que no conteúdo, não deixará de reconhecer-se que a menção ao reembolso é clarificadora.
3 - Certo que uma interpretação que não acolha quer a acumulação real de infracções de fraude fiscal, com a burla e a falsificação (de direito penal comum), quer a versão defendida pelo Ministério Público da burla em concurso com a falsificação (do Código Penal) e siga a interpretação do concurso aparente, em que se considere existir apenas o crime de fraude fiscal, é susceptível da crítica de que uma fraude cometida contra o Estado, numa realidade criminológica semelhante à do crime comum de burla, é punida muito mais benignamente (ver nota 19) - uma pena de 1 a 5 anos, em confronto com uma pena de 2 a 8 anos para a burla qualificada do artigo 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal. Constitui o dito sancionamento "desagravado» do direito fiscal, que, apesar de abarcar as pessoas colectivas, seria injustificável.
Não há dúvida de que à progressiva expressão do desvalor ético das condutas violadoras das normas fiscais, ao longo do tempo, vem correspondendo a passagem das penas de multa para pena de prisão e, dentro desta, uma subida dos seus montantes.
De qualquer modo, a modificação da percepção comunitária sobre o desvalor desses comportamentos não atingiu, de um momento para o outro, uma intensidade comparável à dos clássicos crimes de burla ou abuso de confiança.
O que, como acabámos de ver, sintomaticamente o legislador afirma implicitamente no preâmbulo do diploma de 1993: embora considere que a evasão ilegítima e a fraude fiscal atingem proporções de danosidade muitas vezes superior à dos crimes comuns, o acréscimo de pena de prisão a que procedeu não excedeu os 5 anos para as situações mais graves.
O que adiante se dirá, sobre a evolução mais recente da legislação penal fiscal, melhor esclarecerá este progressivo ascendente das sanções.
4 - Como já se deixou adiantado, seja o disposto no artigo 13.º do RJIFNA - "Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime previsto neste Regime Jurídico e crime comum, as penas previstas para ambos os crimes são cumuláveis desde que tenham sido violados interesses jurídicos distintos» - seja o artigo 5.º do diploma que aprovou o RJIFNA - "O presente diploma revoga toda a legislação em contrário, sem prejuízo da subsistência dos crimes previstos no Código Penal e legislação complementar» - não podem deixar de ser entendidos como dirigidos à protecção de bens jurídicos que ficam de fora da relação tributária, isto é, em que são afectados terceiros exteriores ao Fisco. Assim a melhor doutrina o entendeu desde cedo, e não se vê motivo para discordar.
VII - Do que vem de dizer-se resulta que a nossa inclinação vai para a posição seguida pelo acórdão recorrido, em que a regra da especialidade (ver nota 20) é fundamental, arredando-se do mesmo passo a tese do Ministério Público sustentada nas suas alegações nos presentes autos, sem depreciar a sua correcção nos casos em que os interesses em causa não sejam puramente fiscais.
Não terminaremos, todavia, sem atentar com mais alguma pertinácia na evolução legislativa que convergiu no regime vigente.
Através dos transcritos artigos 10.º e 12.º do RGIT, é visível a intenção de superar as dúvidas que se vinham suscitando.
O primeiro dos preceitos acentua o cunho de especialidade das normas tributárias - "Aos responsáveis pelas infracções previstas nesta lei são somente aplicáveis as sanções cominadas nas respectivas normas, desde que não tenham sido efectivamente cometidas infracções de outra natureza.».
Sublinha-se que para as infracções previstas no RGIT se aplicam somente as sanções aí previstas, a despeito de ter sempre de admitir-se a possibilidade de concurso com infracções de outra natureza. Estas não poderão deixar de ser as de natureza não tributária, e, embora a redacção não se antolhe completamente feliz, a descrição dos elementos dos tipos a que depois se procede auxilia na clarificação.
Por outro lado, o máximo da pena (8 anos) aproximou-se do previsto para os crimes contra o património em geral, o que está agora mais em conformidade com o que o legislador preconizava no exórdio do diploma de 1993.
E passou a estar previsto expressamente o crime de burla tributária (artigo 87.º).
Aqui a tipicidade apresenta as características específicas do crime fiscal no que toca ao meio fraudulento, mas bebendo do figurino geral da burla quanto ao enriquecimento do agente ou de terceiro, e também com uma dosimetria sancionatória equivalente à da burla qualificada do artigo 218.º do Código Penal.
E, nos termos do n.º 4 do aludido artigo 87.º, exclui-se de punição autónoma a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante, salvo se pena mais grave lhe couber.
O que apontaria para se dar razão à tese defendida pelo Ministério Público, embora fosse também possível afirmar que o legislador se limitou a clarificar o que poderia mostrar-se duvidoso.
Parece, no entanto, mais curial o entendimento de que o conceito de prestação tributária, à qual se aplica o RGIT, nele se incluindo todas as infracções tributárias - cf. artigos 1.º e 2.º - pela sua amplitude abre a porta à hipótese do preenchimento do novo tipo de burla tributária (e não dita fiscal) em muitos outros sectores da tributação que não apenas do IVA.
Mas - mais importante - é que a textura dos artigos 103.º e 104.º, relativos à fraude fiscal, agora desdobrada em simples e qualificada, mantém-se, e com uma descrição do tipo legal praticamente idêntica à anterior.
E curiosamente a fraude, mediante a utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes (claramente a cobrir a hipótese de simulação absoluta) ou por valores diferentes ou ainda com a intervenção de pessoas ou entidades diversas das da operação subjacente, merece tratamento autónomo, dentro da fraude qualificada, e também com explicitação de que certas falsificações são consumidas pelo crime de fraude (n.os 2 e 3 do artigo 104.º citado) (ver nota 21).
Pensamos, assim, que o sentido último da lei, no tema da fraude fiscal, se bem que sem vislumbre de se pretender qualquer interpretação dita autêntica, aponta para confirmar a interpretação defendida, a de que a infracção de fraude fiscal, prevista e punida no artigo 23.º do anterior RJIFNA, se encontrava numa relação de concurso aparente com os crimes comuns de burla e de falsificação do Código Penal.
Em suma, a boa doutrina encontra-se do lado do acórdão recorrido.
VIII - De harmonia com o exposto, acordam os juízes que compõem o pleno das secções criminais deste Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 445.º do Código de Processo Penal, em:
a) Fixar a seguinte jurisprudência: "Na vigência do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção original e a que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, não se verifica concurso real entre o crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 23.º daquele RJIFNA, e os crimes de falsificação e de burla, previstos no Código Penal, sempre que estejam em causa apenas interesses fiscais do Estado, mas somente concurso aparente de normas com prevalência das que prevêem o crime de natureza fiscal»;
b) Confirmar o acórdão recorrido.
Dê-se observância ao que se dispõe no artigo 444.º do Código de Processo Penal.
Não é devida tributação.
Lisboa, 7 de Maio de 2003. - António Gomes Lourenço Martins (relator) - Manuel de Oliveira Leal Henriques - António Luís Sequeira Oliveira Guimarães - José António Carmona da Mota - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho de Simas Santos (vencido como relator, nos termos da declaração que anexo) - David Valente Borges de Pinho (vencido, acompanhando o douto posicionamento do Sr. Conselheiro Simas Santos) - José Vaz dos Santos Carvalho - António Joaquim da Costa Mortágua - António Silva Henriques Gaspar - António Luís Gil Antunes Grancho - Políbio Rosa da Silva Flor - Sebastião Duarte Vanconcelos da Costa Pereira (vencido pelas mesmas razões aduzidas na declaração do Exmo. Conselheiro Simas Santos) - Luís Flores Ribeiro - António Correia de Abranches Martins (tem voto de conformidade do conselheiro Franco de Sá, que não assina por não estar presente) - José Moura Nunes da Cruz.
Declaração
Vencido, pois, de acordo com o memorando que apresentei à conferência como relator, uniformizaria a jurisprudência nos termos seguintes:
"No domínio do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, que aprovou o Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro, o agente que inscreve na contabilidade de uma empresa uma factura emitida por outra empresa que não corresponda a qualquer transacção real, integrando assim o imposto que lhe foi supostamente facturado na declaração periódica do IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito, comete o crime de burla dos artigos 313.º e 314.º, bem como o de falsificação do artigo 228.º, n.º 1, do Código Penal, na versão originária, ou dos artigos 217.º, 218.º e 256.º do Código Penal, na versão de 1995.»
1 - Não se dissente da solução dada ao concurso das normas do Código Penal e da legislação penal fiscal, mas entende-se que, antes de determinar que tipo de concurso se estabelece entre essas normas, se impõe determinar se se verifica sequer concurso entre elas.
2 - Em obediência aos princípios da legalidade e da tipicidade, impõe-se começar por verificar qual(is) o(s) crime(s) que a conduta em causa corporiza, sabendo que a parte especial do Código Penal dá cumprimento ao princípio da legalidade, que tutela e protege os direitos fundamentais do cidadão, e ao seu corolário, o princípio da tipicidade: para a conduta humana assumir a dignidade de um crime, é indispensável que coincida formalmente com a descrição feita em norma incriminadora. Não basta, pois, que alguém tenha cometido um facto anti-social, merecedor da reprovação pública, se esse facto escapou à previsão do legislador.
Cabe, assim, à lei, e só a ela, especificar quais os factos ou condutas que constituem crime e quais os pressupostos que justificam a aplicação de uma medida de segurança, optando o legislador por fazê-lo através de modelos ou tipos que têm como função aferir se determinados comportamentos humanos se amoldam ao desenho arquitectado pelo legislador, deve a acção tida como censurável ser típica, isto é, corresponder a um dos "esquemas» ou "delitos-tipo» objectivamente descritos na lei penal.
Analisado o tipo do crime de burla tal como configurado, quer no texto original quer na redacção actual do Código Penal, conclui-se que os elementos que preenchem e informam a respectiva tipicidade são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo.
No caso sujeito, trata-se de um agente que inscreve na contabilidade de uma empresa uma factura emitida por outra empresa que não corresponda a qualquer transacção real, integrando assim o imposto que lhe foi supostamente facturado na declaração periódica do IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito.
É, pois, patente a utilização por esse agente de meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano do Estado. E mercê do uso de tal artifício fraudulento e do erro em que, assim, a administração fiscal foi induzida, é esta levada a praticar um acto que lhe causa um prejuízo patrimonial. Património que, numa visão jurídico-económica, integra o conjunto de "utilidades económicas» detidas pelo sujeito, cuja fruição ou exercício a ordem jurídica não desaprova: a totalidade das "situações» e "posições» com valor ou utilidade económica detidas por uma pessoa e protegidas pela ordem jurídica ou, pelo menos, cuja fruição não é desaprovada por essa mesma ordem jurídica. Noção que se revê também no uso feito no primeiro segmento da norma em análise da expressão "enriquecimento ilegítimo».
Da forma descrita, o agente leva a administração fiscal a praticar um acto que causa uma diminuição injustificada do património público: um acto de disposição patrimonial, que se traduz ou em compensar indevidamente um direito de crédito do Estado ou em obter deste um reembolso indevido. O que sempre se traduz numa verdadeira deslocação patrimonial do erário público e um enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro, actuando aquele com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito, assim enriquecendo ilegitimamente ele ou terceiro.
3 - Importa, depois, verificar se, como sucede em situações muito comuns, o agente, com a sua conduta, não preenche apenas um único ou o mesmo tipo de ilícito, mas, sim, mais de um tipo ou o mesmo tipo mais de uma vez, podendo suceder que ocorra concurso de normas incriminadoras, ou seja, e no caso, que a conduta em causa corporize também outros crimes, designadamente fraude fiscal.
Tomando em consideração o RJIFNA (Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, e na redacção do Decreto-Lei 394/93, de 24 de Novembro) no seu artigo 23.º, podemos reter que constituem fraude fiscal as condutas ilegítimas aí tipificadas que visem:
A não liquidação, entrega ou pagamento do imposto; ou
A obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
Relembremos que se trata de um agente que inscreve na contabilidade de uma empresa uma factura emitida por outra empresa que não corresponda a qualquer transação real, integrando assim o imposto que lhe foi supostamente facturado na declaração periódica do IVA, com o objectivo de obter da parte do Estado um reembolso a que não tinha direito.
Se a factura emitida não corresponde a qualquer transacção real, então as transacções comerciais, a que a mesma se refere, eram pura e simplesmente inexistentes, não passavam de ficção ou encenação fraudulenta destinada a enganar o Estado. E, sendo assim, é evidente que tais "operações» (ficções) não eram tributáveis. E, não sendo tributáveis, a conduta ilícita não tem em vista diminuir as receitas fiscais ou tributárias, pois aquelas não eram, no caso, devidas.
Ao obter indevidamente o reembolso, o agente, está tão-só a apropriar-se de uma parte do património do Estado, utilizando, como se viu já, meios adequados a provocar astuciosamente um estado de erro ou engano do Estado, induzido através da administração fiscal, que é levada a praticar um acto que causa ao Estado (erário público) um prejuízo patrimonial.
Trata-se, pois, de um meio fraudulento estranho à actividade fiscal do Estado, equivalente portanto a qualquer outro artifício fraudulento produzido noutra esfera de actividade estatal. Os reembolsos obtidos foram-no de forma "absolutamente» indevida, já que nenhuma relação fiscal se estabeleceu entre o agente e o Estado. O artifício fraudulento constituído pelas facturas falsas é alheio à relação fiscal; o agente não actuou na veste de contribuinte e não visou a diminuição das receitas tributárias, mas sim obter um enriquecimento ilegítimo, mediante a determinação do Estado, através da administração fiscal, à prática de actos que lhe causam prejuízo patrimonial.
Em síntese, o agente ficcionou uma relação fiscal para se apropriar de parte do património do Estado, ao criar um artifício fraudulento idóneo a enganar os serviços desse mesmo Estado, levando-os a fazerem-lhe uma entrega patrimonial que não lhe era devida. Não está, assim, presente o elemento subjectivo do crime de fraude fiscal (específico complexo): intenção do agente de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida, visando uma diminuição das receitas fiscais ou a obtenção de um benefício fiscal injustificado.
Como não está presente a relação jurídica fiscal, pressuposta pela fraude fiscal, tendo como sujeito activo o Estado Fisco e sujeito passivo o contribuinte, devedor do imposto ou responsável pelo cumprimento de alguma obrigação relacionada com a cobrança do imposto.
Essa relação jurídica fiscal, enquanto pressuposto necessário do crime de fraude fiscal, é sempre verdadeira, e não simulada. Com efeito, o negócio jurídico simulado previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 23.º do RJIFNA não se refere à relação jurídica fiscal, mas sim à simulação de actos tendentes a alterar os termos daquela relação. E, no entendimento deste Tribunal que se acompanha, "o legislador fiscal, ao referir-se no artigo 23.º da RJIFNA, na redacção do Decreto-Lei 394/93, a simulação teve em vista o conceito normativo do direito civil, nomeadamente da simulação relativa. Por isso, esse diploma não tem aplicação, nos termos do artigo 2.º, n.º 4, do Código Penal, quando os arguidos se limitaram a forjar facturas que não titulavam qualquer negócio» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 1994, processo 45029.) "1) No artigo 23.º, n.º 2, alínea c), do Decreto-Lei 20-A/90, de 15 de Janeiro, apenas se encontra contemplada a simulação relativa e não também a simulação absoluta. 2) Não é possível falar de simulação quando o agente não celebrou qualquer negócio jurídico e se limitou a forjar factura que não titulava qualquer negócio, sendo totalmente falsa.» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Junho de 1998, processo 975/98.)
Sem relação tributária verdadeira, não há fraude fiscal.
E essa relação tributária verdadeira não pode esgotar-se no mero plano formal, em que seria sempre "verdadeira» porque existente, mas, no plano material, traduzida em actos tributáveis, susceptíveis de gerar receitas tributárias e correspondentes reembolsos.
4 - Assumida esta posição no plano dos princípios da legalidade e da tipicidade, fica afastada a ocorrência de concurso de normas do Código Penal e do RJIFNA, o que não deve, no entanto, causar estranheza.
A consideração de que o RJIFNA constitui um código específico das matérias tratadas, pelo que "seria absurdo pensar e admitir que, tendo o poder legislativo estudado e analisado os vários comportamentos possíveis que se traduzem em violação de interesses da Fazenda Nacional, de modo directo ou indirecto, e escolhendo a penalidade que julgou adequada à prevenção e sanção, elaborando um código específico, se consentisse que o mecanismo dissuasor e punitivo desses comportamentos afinal saísse do direito penal comum, se não sempre, pelo menos na maior parte dos casos» (§§ 1.º e 2.º do relatório), só se justificando a intervenção do direito penal comum a título subsidiário, "o que veda uma aplicação de princípios e normas alheias aos bens jurídicos que se desejaram proteger com a elaboração daquele diploma» (artigo 4.º do Decreto-Lei 20-A/90), elemento importante na tese do acórdão recorrido, impõe necessariamente uma tarefa fundamental: a clara e precisa delimitação do âmbito de aplicação de tal diploma.
Só bem definido esse limite é que pode afastar-se o direito penal comum. Ora, como vimos, essa delimitação só poderá ser material, nos termos expostos.
Por outro lado, a consideração de que o direito fiscal é votado à defesa de interesses particulares e que não se confundem, atenta a sua particularidade, com os tutelados no Código Penal, como fundamento da aludida especialização do direito penal fiscal, impõe que a sua aplicação não seja deslocada e acabe por ter lugar em relação a factos, a condutas alheias àqueles interesses particulares, como sucede com a conduta aqui em causa.
Em relação a estes factos não se perfilam os interesses particulares que motivam um regime específico, e que conduziriam à injustificada aplicação de um regime que iria mesmo mostrar-se muito mais favorável à criminalidade comum contra o património.
A consideração de que a fraude fiscal se consuma mesmo que nenhum dano/enriquecimento indevido venha a ter lugar, não permite afirmar que o património não seja também protegido pelo tipo. Significa somente que é antecipada essa protecção, o que não afasta a protecção de outros bens jurídicos.
Com efeito, como refere Jescheck (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.ª ed., p. 6), "o direito penal tem por missão proteger bens jurídicos. Em todas a normas jurídico-penais subjazem juízos de valor positivo sobre bens vitais, que são indispensáveis para a convivência humana na comunidade e que consequentemente devem ser protegidos, pelo poder coactivo do Estado através da pena pública [...] Todos os preceitos penais podem reconduzir-se à protecção de um ou vários bens jurídicos. O desvalor do resultado radica na lesão ou o colocar em perigo de um objecto da acção (ou do ataque) (v. g., a vida de uma pessoa ou a segurança de quem participa no tráfico), que o preceito penal deseja assegurar do titular do bem jurídico protegido». O que significa que poderá um só tipo legal proteger mais de um bem jurídico, questão a dilucidar, perante cada tipo e cada acção dele violadora.
Basta atentar, na relevância dada, no desenho do tipo de fraude fiscal e sua regulamentação, ao prejuízo patrimonial e sua reparação, para concluir pela protecção que quis dar-se ao património do Estado com o crime de fraude fiscal. Assim se afastaria, pois, o concurso puro de infracções, entre os crimes de burla e fraude fiscal defendido pelo acórdão fundamento.
5 - Resolvida esta questão, aplicaria, no que diz respeito à questão do concurso do crime de burla com o crime de falsificação, a jurisprudência fixada por este Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 19 de Fevereiro de 1992, publicado em 9 de Abril de 1992, e Acórdão 8/2000, publicado em 23 de Maio de 2000).
Lisboa, 7 de Maio de 2003. - Manuel José Carrilho de Simas Santos.
(nota 1) O actual relator viu a sua tarefa facilitada pela proficiente recolha de elementos e profundidade do estudo já realizado pelos dois ilustres magistrados que o precederam, do que, com a devida vénia, muito se aproveitou, em homenagem elementar ao seu saber e competência.
(nota 2) A que corresponde actualmente o artigo 217.º, n.º 1, após a revisão do Decreto-Lei 48/95, de 15 de Março, aliás sem alterações de interesse para o efeito:
"Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
(nota 3) A que corresponde actualmente o artigo 256.º, n.º 1, após a mencionada revisão de 1995: "Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo:
a) Fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento, ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso;
b) Fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante; ou
c) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado ou falsificado por outra pessoa;
é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.»
(nota 4) De 4 de Maio de 2000, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 23 de Maio de 2000.
(nota 5) De 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, 1.ª série-A, de 9 de Abril de 1992.
(nota 6) Cf., porém, o artigo 41.º, n.º 3:
"Se o mesmo facto constituir crime tributário e crime comum, pode o Ministério Público determinar a constituição de equipas também integradas por elementos a designar por outros órgãos de polícia criminal para procederem aos actos de inquérito.»
(nota 7) Acórdãos de 15 de Dezembro de 1993, in Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano II, t. 2, p. 203, processo 45029 e in Scientia Juridica, t. XLIII, 1994, pp. 141 e segs.; de 29 de Setembro de 1995, processo 47891; de 4 de Outubro de 1995, processo 47891; de 11 de Outubro de 1995, processo 47938, o acórdão fundamento, e de 5 de Novembro de 1997, processo 549/97, in Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano V, t. 3, p. 222.
(nota 8) In Colectânea de Jurisprudência - Supremo Tribunal de Justiça, ano IV, t. III, p. 152.
(nota 9) Acórdãos de 1 de Outubro de 1997, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 470, p. 319, de 15 de Fevereiro de 1998, processo 886/96, 3.ª, de 19 de Março de 1998, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 475, p. 261, de 24 de Junho de 1998, processo 1284/98, de 2 de Julho de 1998, processo 219/98, de 8 de Outubro de 1998, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VI, t. 3, p. 89, de 29 de Outubro de 1998, processo 676/98, 3.ª, de 10 de Fevereiro de 1999, processo 886/96, de 25 de Fevereiro de 1999, processo 967/98, 3.ª, de 28 de Abril de 1999, no processo 302/97, 3.ª, o acórdão recorrido, de que foi relator o conselheiro Brito Câmara, de 27 de Maio de 1999, processo 381/99, 3.ª, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VII, t. 2, p. 222, de 23 de Junho de 1999, processo 1284/98, 3.ª, de 10 de Novembro de 1999, processo 754/99, 3.ª, de 2 de Março de 2000, processo 810/99, 5.ª, de 12 de Outubro de 2000, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano VIII, t. 3, p. 194, de 14 de Março de 2001, processo 1169/99, 3.ª, de 5 de Julho de 2001 - processo 4000/00, 3.ª Ainda na mesma linha de orientação, os acórdãos de 2 de Julho de 1998, processo 219/98, 3.ª, respeitando apenas a crime de fraude fiscal e de falsificação, de 5 de Novembro de 1998, processo 972/98, 3.ª, respeitando apenas a crimes de fraude fiscal e de burla.
(nota 10) Eduardo Correia, "Os artigos 10.º do Decreto-Lei 27153 e 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei 28221 de 24 de Novembro de 1937, a Reforma Fiscal e a Jurisprudência (Secção Criminal) do Supremo Tribunal de Justiça», Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 100.º, n.º 3350; Figueiredo Dias e Costa Andrade, "O crime de fraude fiscal no novo direito penal tributário português (Considerações sobre a factualidade típica e o concurso de infracções)», RPCC, ano 6, fasc. 1, p. 71.; Helena Moniz, "Facturas falsas ou simulação fiscal», Scientia Iuridica, t. XLIII, n.os 247-249, p. 141; Mário Ferreira Monte: "O chamado 'Crime de Facturas Falsas': o problema da punição por crime de burla e ou por crime da fraude fiscal», Scientia Iuridica, t. XLV, n.os 262-264, p. 355; Alfredo José de Sousa, Infracções Fiscais não Aduaneiras, Almedina, 1997, anotação ao artigo 23.º; Nuno Sá Gomes, "O Princípio non bis in idem face à criminalização das infracções fiscais não aduaneiras» Ciência e Técnica Fiscal, n.º 171; "Os crimes essencialmente fiscais como crimes especiais sui generis privilegiados», Ciência e Técnica Fiscal, n.º 376, p. 23; "Relevância jurídica, penal e fiscal das facturas falsas e respectivos fluxos financeiros e da sua eventual destruição pelos contribuintes», Ciência e Técnica Fiscal n.º 377, p. 7; Luís Domingos da Silva Morais, Incriminação de Infracções Fiscais não Aduaneiras; Augusto Silva Dias, "O novo direito penal fiscal não aduaneiro», Fisco, n.º 22, Julho de 1990; "Infracções Fiscais Aduaneiras», CEJ, 1998; Costa Oliveira e Silva Fernandes, "O crime de fraude fiscal e a contabilidade», Fisco, n.º 29, Março de 1991; Lemos Costa, "Ainda as facturas falsas ... A dedução indevida do IVA e o crime comum de burla», RVMP, n.º 65, p. 147; Nogueira da Costa, "Facturas Falsas», RVMP, n.º 65, p. 107; Dá Mesquita, Revista do Ministério Público, ano 20.º, Julho/Setembro de 1999, n.º 79, p. 153, em comentário ao Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Abril de 1999; pareceres de Germano Marques da Silva, Maria Teresa Pizarro Beleza, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, e José de Faria Costa, juntos ao processo onde foi proferido o acórdão recorrido.
(nota 11) Neste ponto, cf. o parecer de Saldanha Sanches, junto aos autos, pp. 8 e segs., que, por sua vez, se inspira em Silvério Mateus, "Regime e natureza do direito à dedução no imposto sobre o valor acrescentado», Fisco, 12-13 (1989), p. 36. E também Nuno Sá Gomes, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 376, cit., p. 59.
(nota 12) Na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, de fl. 71 a fl. 110.
(nota 13) Para uma crítica, que parece pertinente, a esta construção - v. Augusto Silva Dias, Infracções Fiscais [...], cit., pp. 7 e 8 -, embora siga a posição do concurso aparente em que a fraude fiscal absorve a ilicitude de todo o comportamento.
(nota 14) Processo 381/99, 3.ª, acima referenciado.
(nota 15) Que não fez vencimento.
(nota 16) Ilação a que chegaram, desde logo, Figueiredo Dias e Costa Andrade, como vimos.
(nota 17) Os conceitos de simulação absoluta e relativa encontram-se vertidos no Código Civil. Assim, segundo o artigo 240.º, n.º 1, "Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. E sobre a simulação relativa, o n.º 1 do artigo 241.º:
"Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado.»
Figueiredo Dias e Costa Andrade, RPCC, cit., pp. 100-101, ao recordarem a relação de incompatibilidade entre a simulação e a falsificação de documentos, descrevem a simulação inserta nas facturas falsas como o "acordo com os fornecedores ou com terceiros, [em que] os agentes económicos simulam a celebração de contratos que não têm qualquer correspondência na realidade».
(nota 18) Para Nuno Sá Gomes, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 377, cit., p. 20, no caso de facturas falsas não há sequer simulação fiscal mesmo quando há conluio entre emitente e utilizador da factura. O que há é factura falsa, forjada ou de favor.
(nota 19) Em busca do fundamento das penas menos graves que as comuns - cf. Nuno Sá Gomes, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 376, cit., pp. 29 e segs. - o qual estaria no propósito de evitar a diminuição do património em vez do enriquecimento pretendido nos crimes comuns.
(nota 20) Para Teresa Beleza, existe uma relação de especialidade num duplo sentido: "Por um lado, existe uma especialidade em função da matéria regulada, que no caso concreto se traduz na regulação de uma zona específica do ordenamento fiscal que leva à autonomização de um ramo de direito - o direito penal fiscal. Por outro, existe uma relação de especialidade entre normas [...] em que uma delas (a norma especial) contém os elementos da outra (norma geral) mas, para além dessa zona comum, se identificam elementos específicos que apenas existem na norma considerada especial [...] que acrescentam uma individualidade própria à norma especial [...]»
(nota 21) Na proposta de lei 53, VIII Legislatura, 2.ª sessão legislativa do Governo, publicada no Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 19, VIII Legislatura, 2.ª sessão legislativa, de 14 de Dezembro de 2000, diz-se em certo passo: "introduz-se um tipo autónomo de burla fiscal, capaz de pôr termo à incerteza doutrinária que tem rodeado a repressão penal de certas práticas defraudatórias da administração tributária e reformulam-se os crimes de fraude fiscal e de abuso de confiança fiscal, recortando com maior rigor a previsão da lei e densificando os tipos legais, de modo a trazer-lhes maior segurança e eficácia na prevenção e repressão da fraude e evasão». Isto na sequência do que antes se havia proposto: "Por outro lado, impunha-se rever e adaptar à realidade económica e social do País alguns dos tipos penais, reaproximando a dosimetria das sanções da gravidade das condutas em jogo e do fito preventivo que a lei assume.» Sobre os restantes trabalhos preparatórios, cf., Diário da Assembleia da República, 1.ª série-A, n.º 29, VIII Legislatura, 2.ª sessão legislativa, de 27 de Janeiro de 2001 - relatório da CEFP; Diário da Assembleia da República, 2.ª série-A, n.º 29, VIII Legislatura, 2.ª sessão legislativa, de 27 de Janeiro de 2001 - relatório da CACDLG; Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 41, VIII Legislatura, 2.ª sessão legislativa, de 26 de Janeiro de 2001, e 44, VIII Legislatura, 2.ª sessão legislativa, de 2 de Fevereiro de 2001 - discussão na generalidade e votação, respectivamente, com votos a favor do PS, PCP, PEV e BE e abstenção do PSD e CDS-PP; Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 66, VIII Legislatura, 2.ª sessão legislativa, de 30 de Março de 2001 - votação na especialidade e votação final global, com a mesma posição das forças partidárias.