Recurso n.º 467/2002
1 - A oposição de julgados
1.1 - No dia 22 de Março de 2001, a Relação de Lisboa, no recurso n.º 650/01-9 (ver nota 1), decidiu que o artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações exige - sob pena de «ausência processual do arguido, constituindo a nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal» - que, antes da «decisão que aplica a coima» (artigo 58.º), a Administração assegure ao arguido - dando-lhe a conhecer os factos imputados, incluindo os que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável - a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação imputada:«É relevante para a sua defesa que o arguido conheça os factos que lhe são imputados, incluindo os que respeitam à verificação dos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda a qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável. Se, aliás, a decisão que aplica a coima deve conter esses factos (cf. artigo 58.º, n.º 1, do Decreto-Lei 433/82), não se vê como possa ser menor a exigência para o conteúdo da comunicação prévia da imputação destinada a assegurar a defesa, sob pena de se permitir que o arguido seja surpreendido com o teor da decisão da autoridade administrativa, o que não é seguramente intenção do legislador demais a mais quando faz questão de deixar expresso que as autoridades administrativas estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal. E este é um dado decisivo, permitindo considerar que, na fase administrativa do processo, a imputação dos factos respeitantes a uma contra-ordenação equivale à acusação em processo penal. Sendo, nesta, inequívoca a exigência desses elementos (cf. artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), para que se delimite o tema a decidir, semelhante procedimento pode e deve ser respeitado na imputação da contra-ordenação, em nome do respeito pelas garantias de defesa e da compatibilidade que a lei consagra do processo contra-ordenacional com o processo penal. E não se diga que a circunstância de a imputação dada a conhecer ao arguido referir os factos 'objectivos' que constituem a infracção é bastante para cobrir a condenação quer a título doloso quer a título negligente (no sentido de que quem imputa o mais, imputa o menos) porque tal procedimento viola os princípios da justiça e sobretudo da boa-fé a que os órgãos e agentes administrativos devem respeito na sua actuação (artigo 266.º, n.º 2, da CRP).
[...] Para que ao menos o princípio do contraditório possa ser respeitado (artigo 18.º, n.os 1 e 2, da CRP), necessário se torna que na imputação se dêem a conhecer tais factos, permitindo assim que, no exercício do seu direito de defesa, ao arguido, antes de ser proferida a decisão da autoridade administrativa, seja permitido pô-los em causa, produzindo a prova que achar oportuna. A consequência destas omissões, e mormente daquela a que a recorrente alude, qual é? Como se refere no Acórdão da Relação de Évora de 24 de Março de 1992 [Colectânea de Jurisprudência, n.º 2, pp. 92-308 (cf.
ainda o Acórdão da Relação do Porto de 1 de Abril de 1998, Colectânea de Jurisprudência, n.º 2, pp. 98-243)], à audiência da arguida passou a ser conferida dignidade constitucional, a postergação de tal direito só tem protecção adequada se tal omissão se considerar nulidade insanável, na mesma linha do que sucede com a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a respectiva comparência. É certo que no aresto citado se abordava uma situação em que a audição do arguido na fase administrativa não tivera lugar, diferente, portanto, da que aqui se aprecia e, claro está, de maior evidência. Porém, o que importa sobrelevar é que também neste caso se pode afirmar que o direito de defesa da recorrente ficou prejudicado ao não lhe ser objectivamente possibilitado que, de forma cabal e eficaz, relativamente a pontos da maior importância, apresentasse os seus argumentos e indicasse as provas que porventura entendesse pertinentes. Havendo, por conseguinte, sobre determinado aspecto a ausência de uma tomada de posição da sua parte como consequência das deficiências apontadas. Como a jurisprudência tem assinalado, a ausência do arguido em relação à sua defesa não é só a ausência física mas também a ausência processual no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa, sendo que as garantias que a lei prevê só se podem tornar efectivas tomando nulo, de forma insanável, o acto em que essas garantias não tenham sido respeitadas. O que significa que em casos tais se comete a nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal. A consequência é a prevista no artigo 122.º, n.º 1, do mesmo diploma, ou seja, a invalidade do acto praticado bem como dos que dele dependerem.» 1.2 - Mas, por acórdão emitido em 3 de Outubro de 2001 (no domínio, por isso, da mesma legislação) e transitado em julgado no dia 26 de Outubro de 2001, a Relação do Porto (ver nota 2) viria, no recurso penal n.º 567/01-4, a decidir a mesma questão em sentido diverso, ou seja, no de que a invocada «ausência processual, por impossibilidade de exercício do direito de defesa» apenas ocorreria «quando o arguido não é ouvido, em preterição nomeadamente do que impõe o artigo 50.º do Decreto-Lei 433/82», não tendo sido isso, porém, «o que aconteceu no caso dos autos, em que o arguido foi notificado, tendo oportunidade de se pronunciar e apontar para omissões como as que ora invoca»:
«Vem a recorrente invocar a nulidade insanável do artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal, com o fundamento de que: a) na 'nota de ilicitude' não se faz referência ao dolo ou negligência; b) foi condenado por decisão da autoridade administrativa pela prática dolosa da contra-ordenação, sem que, também aí, constem factos que permitam tal conclusão; c) essa mesma autoridade ponderou factos respeitantes à actividade da recorrente, à sua dimensão e aos seus resultados que não constavam da 'nota de ilicitude', donde ter sido prejudicado no seu direito de defesa; d) como a jurisprudência tem assinalado, a ausência do arguido em relação à sua defesa não é só a ausência física, mas também a ausência processual, no sentido da impossibilidade do exercício do direito de defesa. É, porém, nulidade que inexiste claramente. O que em algumas decisões se tem dito é que, quando o invocado artigo 119.º, alínea c), proclama que constitui nulidade insanável a ausência do arguido nos casos em que a lei exige a respectiva comparência, 'prevê não só a ausência física da pessoa do arguido, mas também a ausência processual, a sua não integração nos autos, por factos imputáveis à autoridade administrativa, e não a desinteresse, desleixo ou inércia da arguida' (Relação do Porto de 1 de Abril de 1998, Colectânea de Jurisprudência, XXIII, II, n.º 244; Relação de Évora de 24 de Março de 1992, Colectânea de Jurisprudência, XVII, II, n.º 309, e Relação de Évora de 10 de Novembro de 1998, Colectânea de Jurisprudência, XXIII, V, n.º 278). Sendo isso o que sucede quando o arguido não é ouvido, em preterição nomeadamente do que dispõe o artigo 50.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro. Ora, não foi isso o que aconteceu no caso dos autos, em que a arguida foi notificada, tendo oportunidade de se pronunciar e apontar para omissões como as que agora invoca. Não há, pois, a referida nulidade.»
2 - O recurso
2.1 - Perante tal oposição de julgados, a acoimada (ver nota 3), dirigindo-se ao Supremo Tribunal de Justiça, interpôs, em 19 de Novembro de 2001, recurso para fixação de jurisprudência:«Há oposição entre o acórdão da Relação do Porto proferido nestes autos e o Acórdão da Relação de Lisboa de 22 de Março de 2001 (processo 650/2001 da 9.ª Secção), ambos proferidos na vigência do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, e ambos transitados em julgado, porquanto no primeiro se entendeu que só ocorre a ausência processual do arguido em processo contra-ordenacional [e, por conseguinte, se comete a nulidade prevista pelo artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal] quando aquele não é simplesmente ouvido, como o impõe o artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações e coimas, tal não sucedendo com a notificação realizada nos presentes autos, omissa quanto aos factos constitutivos do elemento subjectivo da contra-ordenação e aos factos que, na decisão da autoridade administrativa, foram ponderados na determinação da medida da coima, ao passo que o acórdão da Relação de Lisboa entendeu que, para a efectivação do direito de defesa em processo contra-ordenacional, impõe-se que, na fase administrativa e em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações e coimas, ao arguido sejam dados a conhecer não só os factos objectivos, mas também aqueles que traduzam a imputação subjectiva da contra-ordenação e, ainda, os que possam influir na medida da coima, sob pena se estar cometendo a nulidade prevista no artigo 119.º, alínea c), do Código de Processo Penal. Deverá fixar-se jurisprudência no sentido da solução consagrada neste último acórdão, por ser esse o entendimento que se afigura mais consentâneo com os princípios do contraditório e da justiça e boa-fé que vinculam os órgãos a agentes administrativos na sua actuação.»
3 - A decisão intercalar
O STJ - tendo concluído em 18 de Abril de 2002 pela admissibilidade e tempestividade do recurso, pela legitimidade da recorrente e pela oposição de julgados - determinou que o recurso prosseguisse seus termos (artigos 441.º, n.º 1, e 442.º e seguintes).
4 Alegações
4.1 - Nas suas alegações de 23 de Maio de 2002, o MP (ver nota 4) pronunciou-se pela revogação do acórdão recorrido e pela fixação de jurisprudência no sentido da decisão do acórdão fundamento («A notificação a efectuar ao arguido pelas entidades administrativas para efeitos do disposto no artigo 50.º do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro, para além dos factos objectivos integradores da contra-ordenação, deve fazer referência aos factos que traduzem a imputação subjectiva bem como aos que podem influir na determinação concreta da sanção a aplicar»):«A solução da questão decidenda não pode deixar de ter em conta a evolução legislativa e jurisprudencial que atrás ficou traçada. Na verdade, a constitucionalização, a partir de 1989, dos direitos de audiência e de defesa no processo contra-ordenacional envolve necessariamente uma redignificação e projecção desses direitos a nível da lei ordinária. Foi nesse sentido que claramente ela caminhou, com a profunda reforma introduzida pelo Decreto-Lei 244/95 no Decreto-Lei 433/82, que aproximou notoriamente o processo contra-ordenacional do processo penal. Por último, toda a jurisprudência fixada por este STJ nestes últimos anos tem sido igualmente no sentido de aproximar os dois processos, como já foi acima salientado. Esta aproximação tem aliás a sua razão de ser. Na verdade, é incontestável a expansão permanente do direito contra-ordenacional e o aumento notório da gravidade das sanções aplicáveis, a par de uma crescente complexidade das previsões típicas. A distinção material, que Eduardo Correia queria clara e inequívoca, entre um direito penal fundado na censura ética e um direito de mera ordenação social de raiz essencialmente ordenadora e axiologicamente neutra tem vindo a esbater-se progressiva e aceleradamente. O artigo 50.º da lei quadro das contra-ordenações, o preceito legal cuja interpretação se discute neste recurso, reflecte precisamente esta evolução e a consciência do legislador de que esse agravamento do regime substantivo tem de ser compensado com o reforço das garantias de defesa. Assim, a nova redacção introduzida pelo Decreto-Lei 244/95 veio enfatizar e alargar o direito de audição e defesa do arguido, de forma a ele poder pronunciar-se sobre a contra-ordenação e a sanção correspondente. O que aí se prevê é, pois, algo correspondente à acusação em processo penal, ou seja, uma peça que contenha a imputação dos factos (abrangendo não só os factos objectivos como os que traduzem a imputação subjectiva - dolo ou negligência) e da sanção que lhes cabe (indicando as circunstâncias que podem influir na sua determinação concreta). Só tendo conhecimento dessa 'acusação' o arguido está em condições de exercer cabalmente a sua defesa, pois só assim se pode pronunciar 'sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre' (parte final do artigo 50.º). Assim, e prescindindo de mais considerações, considera-se mais ajustada a interpretação daquele preceito feita pelo acórdão fundamento.» 4.2 - Também o recorrente, nas suas alegações de 3 de Junho de 2002, preconizou que se fixasse jurisprudência no sentido de que «o pleno exercício do direito de defesa previsto no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações e coimas (aprovado pelo Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro) pressupõe que, aquando da comunicação efectuada ao arguido para tanto, esta contenha os factos respeitantes aos pressupostos da punição e à sua intensidade e ainda qualquer circunstância relevante para a determinação da sanção aplicável, designadamente deverá referir os factos integradores do elemento subjectivo da contra-ordenação e aqueles que poderão ser considerados na medida da coima (v. g. os relativos à situação económica do arguido), sob pena de, assim não ocorrendo e sendo tais factos ponderados na decisão condenatória da autoridade administrativa, esta e os demais termos do processo serem nulos, nos termos dos artigos 119.º, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal».
5 - Evolução legislativa
(ver tabela no documento original)
6 - Aproximação doutrinal (ver nota 12)
«O programa político-criminal desenhado a partir dos anteprojectos do Código Penal da autoria de Eduardo Correia foi no essencial materializado legislativamente através do Código Penal de 1982 e do diploma que veio definir o regime jurídico das contra-ordenações. Na presença do Decreto-Lei 433/82, a referida autonomia do ilícito de mera ordenação social face ao ilícito penal [...] desenvolveu-se em três diferentes níveis: dogmático, sancionatório e processual. Reportando-nos ao processo da contra-ordenação [...], a nota de maior saliência vai para a atribuição da competência às autoridades administrativas para a aplicação das coimas (artigo 33.º), com admissão de um controlo judicial de segundo nível, através da possibilidade de impugnação da decisão administrativa para o tribunal da comarca da sede da autoridade decidente (artigo 59.º). O processo segue uma tramitação simplificada - justificada pela necessidade de satisfazer os objectivos de eficácia e celeridade -, mas não deixa de consignar algumas das garantias constitucionalmente admitidas no direito penal, nomeadamente as resultantes dos princípios da legalidade e da aplicabilidade da lei mais favorável, bem como o direito de audiência do arguido (artigos 2.º, 3.º, 43.º e 50.º). O regime processual instituído pelo Decreto-Lei 433/82 assegura, porém, a aplicação a título subsidiário do direito processual penal ('sempre que o contrário não resulte deste diploma são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo penal' - artigo 41.º, n.º 1), o que poderá compreender-se, num primeiro momento, pela desnecessidade de introduzir um modelo processual específico em face da relativa inocuidade (do ponto de vista da natureza da conduta e da gravidade da sanção) que caracterizaria o ilícito em causa. O processo assume, em todo o caso, uma feição particular que deriva da distinta natureza das sucessivas fases que o compõem: a primeira, dirigida à investigação, instrução e aplicação da coima, da competência da autoridade administrativa, aproxima-se do procedimento administrativo de tipo sancionador; enquanto que a segunda, correspondendo à impugnação contenciosa da decisão administrativa, caracteriza um processo jurisdicionalizado, com a intervenção de um juiz de direito de primeira instância e eventual recurso para o tribunal da Relação.»
7 - A descaracterização do regime jurídico contra-ordenacional (ver nota
13)
«Se apreciarmos a evolução do direito de mera ordenação social na última década podemos verificar que tal autonomia não se concretizou de todo e que a linha evolutiva do sistema contra-ordenacional tem sido mesmo em sentido diverso e em alguns pontos contrário em relação aos projectos iniciais. Nestes três planos, dogmático, sancionatório e processual, a autonomia do direito de mera ordenação social tem sido juridicamente hipotecada pela experiência, pela evolução legislativa e pela grande heterogeneidade das matérias que este sector foi abrangendo [...]. Mas, para além destes fenómenos, pode identificar-se também em algumas matérias uma crescente descaracterização do regime do ilícito de mera ordenação social, processo esse que [...] se revela actualmente numa aproximação excessiva aos institutos e figuras do direito penal. Devem destacar-se como causas da actual descaracterização do direito de mera ordenação social [...] dois movimentos de sentido perverso em relação ao projecto original. Por um lado, verificou-se entre nós na última década um alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social a sectores para os quais este sistema sancionatório não foi pensado, em particular a circuitos económicos e tecnológicos complexos.Esta tendência - que não foi acompanhada por qualquer inovação no regime substantivo e processual adequada às novas realidades que foram sendo entretanto abrangidas por este ramo do direito - originou no plano sancionatório um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis. Por outro lado, mas devido em parte ao aspecto que se acabou de descrever, o legislador tem procurado equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal. [...] Após a revisão do regime geral operada pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro, a identificação entre a base normativa do regime geral do ilícito de mera ordenação social e as soluções da parte geral do Código Penal acentuou-se ainda mais, recorrendo agora o legislador na maior parte dos casos à importação pura e simples das soluções do direito penal. Além disso, quando tal equivalência de regimes não se verifica subsiste a dúvida quanto a saber se estamos perante uma omissão intencional do legislador ou perante uma matéria carente de regulamentação por via do regime subsidiário [...].
Apesar do fenómeno de expansão, não houve uma evolução do regime geral do ilícito de mera ordenação social no sentido de conciliar a eficácia dos mecanismos de atribuição de responsabilidade pelas autoridades administrativas com a garantia da esfera de liberdade e expectativas dos particulares. Entre a garantia e a eficácia o legislador tem optado, talvez correctamente, por privilegiar a primeira. Mas a opção tem custos severos para a harmonia dos sistemas sancionatórios e de pouco servirá então atribuir esse poder formalmente à Administração se ao mesmo tempo se criam limites que na prática o comprometem. Uma Administração ineficaz é, nestas áreas [...], sinónimo de um 'vazio de poder', que na realidade o não é, pois [...] outras forças não legitimadas nem controladas preencherão essas áreas de poder [...]. Tão-pouco a evolução legislativa permitiu criar uma evolução dogmática sobre aspectos substantivos e processuais que acompanhasse o alargamento e a complexidade crescentes do direito de mera ordenação social e, em especial, a heterogeneidade das áreas entretanto abrangidas por este ramo do direito. Criou-se, no fundo, uma área jurídica muito heterogénea onde por razões de segurança e de garantia se recorreu cada vez mais às categorias e figuras da dogmática penal e aos mecanismos e regras do processo penal. O que poderá ter facilitado a tarefa do legislador, mas criou na generalidade dos casos apenas uma aparência de reforma com soluções nem sempre adequadas aos problemas específicos das diversas áreas de intervenção [...].
Um dos problemas centrais que tem ocupado a ciência penal desde esse período é o da criação de mecanismos jurídicos de atribuição da responsabilidade penal, fundamentalmente, a condutas (acções e omissões) de pessoas humanas. [...] Mas quando essa mesma solução é acolhida pelo legislador no âmbito do direito de mera ordenação social, já não é legítimo nem razoável esperar que a opção legislativa seja feita sobre esse mesmo património científico que foi construído para realidades diferentes [...]. Esta tendência é profundamente criticável por três ordens de razões: em primeiro lugar, porque se trata de uma orientação que pode afectar a eficácia do direito de mera ordenação social, já que importa para o seu seio instrumentos teóricos por vezes inadequados às realidades regulamentadas. A este risco acresce, por outro lado, o facto de se estar a hipotecar a própria autonomia substantiva e processual do ilícito de mera ordenação social, pois não se privilegiam soluções específicas e adequadas aos problemas das diversas áreas de intervenção sancionatória em causa. Finalmente, a tendência descrita corresponde a uma significativa erosão do princípio da subsidiariedade do direito penal, na medida em que [...] acaba por ser a estrutura dogmática e normativa do sistema penal que é aplicada por via administrativa e os mecanismos judiciais dos tribunais comuns, com a estrutura simbólica e efectiva do processo penal, que conduzem a apreciação das decisões das autoridades administrativas impugnadas judicialmente.»
8 - Dificuldades de aplicação (ver nota 14)
«O direito das contra-ordenações nunca foi objecto de uma reflexão que ponderasse a experiência acumulada desde a introdução no ordenamento jurídico português em 1979 e que indagasse da articulação da mesma com os princípios que o inspiraram e com os objectivos que estão subjacentes à sua introdução. A experiência da aplicação deste ramo de direito inspira sérias dúvidas sobre a forma como os vários operadores o têm entendido e levado à prática. Para esse panorama contribuiu, de forma evidente, a falta de uma dogmática que permitisse a teorização da prática a partir dos princípios subjacentes às normas legais [...]. Não admira, por isso, que o mundo judiciário nunca conseguisse desligar o direito das contra-ordenações do direito penal e nunca ousasse interpretar as normas consagradas na lei quadro fora dos parâmetros penais. Mas se a maioria dos operadores revela dificuldades em entender o direito das contra-ordenações como sistema autónomo do direito penal, condição fundamental para a justificação da sua autonomia, inúmeras vezes o legislador entrou em derrapagens dogmáticas, com a aplicação ao direito das contra-ordenações de soluções substantivas e processuais que podem não ter nada que ver com os princípios que estruturam este ramo do direito e que positivaram as confusões que a prática já vinha produzindo. No âmbito desta regressão são perdas significativas a revisão do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro, operada pelo Decreto-Lei 244/95, de 14 de Setembro. Sem uma reflexão ponderada sobre aquilo que era a experiência acumulada na execução do direito das contra-ordenações, o legislador avançou com inovações que em alguns aspectos o aproximam do direito penal. Não admira, por isso, que a doutrina mais autorizada tenha recebido aquela alteração com profunda inquietação.»
9 Súmula
«O que se revela necessário é desenvolver no campo das contra-ordenações uma dogmática própria que podendo acolher os contributos da dogmática penal não se limite contudo a uma importação acrítica de regimes e figuras.» (ver nota 15)10 - Direito de audição e defesa do arguido
10.1 - «Tem inteira expressão neste ramo do direito o princípio do contraditório e da audiência, conforme resulta do artigo 50.º da lei quadro, a entender com o conteúdo que lhe é dado por Figueiredo Dias [Direito Processual Penal, I, 1974, p. 153]: 'oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo [...]'. O direito de audição do arguido que se configura neste artigo corresponde àquilo que já Marcelo Caetano ensinava no seu Manual de Direito Administrativo, II, p. 1280, a propósito do processo administrativo de tipo sancionador, quando referia que 'quer a lei o diga ou não, em tais processos há que respeitar o princípio de que ninguém pode ser condenado sem previamente ter sido ouvido, compreendendo-se neste direito natural de defesa a instrução contraditória'.» (ver nota 16) 10.2 - «O processamento das contra-ordenações [...] compete às autoridades administrativas [...]» (artigo 33.º do regime geral das contra-ordenações).
Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente, «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo» (ver nota 17). É que, por um lado, «no processo de aplicação da coima [...], as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...]» (artigo 41.º, n.º 2, do regime geral das contra-ordenações). E que, por outro, lhe «são aplicáveis, devidamente adaptados (ver nota 18), os preceitos reguladores do processo criminal» (artigo 41.º, n.º 1):
«Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código do Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas.» (ver nota 19) 10.3 - Mas será justamente na «devida adaptação» dos «preceitos reguladores do processo criminal» à actividade das autoridades administrativas no «processo de aplicação da coima» que «devem» considerar-se - sob pena de «adaptação indevida» - os preceitos correspondentes do procedimento administrativo.
10.4 - Exemplo paradigmático (ver nota 20) da imprescindível convocação desses preceitos é a realização prática, na instrução do processo contra-ordenacional (artigo 54.º, n.º 2, do regime geral das contra-ordenações), do «direito de audição e defesa do arguido» exigido, antes da «aplicação de uma coima» (artigo 58.º), pelo artigo 50.º 10.5 - Com efeito, se «não é permitida a aplicação de uma coima [...] sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção [...] em que incorre» (artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações), a concretização da «forma» (ver nota 21) e do «prazo razoável» de se assegurar esse «direito de audição do arguido» não poderá prescindir (ver nota 22) - já que «os preceitos reguladores do processo criminal» não prevêem uma «decisão condenatória», ao cabo do «inquérito», pelo próprio titular deste - da convocação dos correlativos preceitos do procedimento administrativo, designadamente os artigos 100.º a 102.º do Código do Procedimento Administrativo (ver nota 23):
Audiência dos interessados (artigo 100.º):
«1 - Concluída a instrução [...], os interessados têm o direito de ser ouvidos no procedimento antes de ser tomada a decisão final [...].
2 - O órgão instrutor decide, em cada caso, se a audiência dos interessados é oral ou escrita.» Audiência escrita (artigo 101.º):
«1 - Quando o órgão instrutor optar pela audiência escrita, notificará os interessados para, em prazo não inferior a 10 dias, dizerem o que se lhes oferecer.
2 - A notificação fornece os elementos necessários para que os interessados fiquem a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito [...].
3 - Na resposta, os interessados podem pronunciar-se sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos.» Audiência oral (artigo 102.º):
«1 - Se o órgão instrutor optar pela audiência oral, ordenará a convocação dos interessados com a antecedência de pelo menos oito dias.
2 - Na audiência oral podem ser apreciadas todas as questões com interesse para a decisão, nas matérias de facto e de direito.
3 - A falta de comparência dos interessados não constitui motivo de adiamento da audiência [...].
4 - Da audiência será lavrada acta, da qual consta o extracto das alegações feitas pelos interessados, podendo estes juntar quaisquer alegações escritas, durante a diligência ou posteriormente.» 10.6 - É que «o processo de contra-ordenação - constituindo uma realidade sui generis dificilmente enquadrável em qualquer dos tipos de processos sancionadores que a doutrina costuma indicar - nasce como autêntico processo administrativo, sendo o impulso inicial, a instrução e a decisão da competência das autoridades administrativas [...]»: «O processo contra-ordenacional tem portanto uma estrutura complexa, porque, no essencial, resultou da fusão de um verdadeiro processo administrativo do tipo sancionador (desde a instauração até à decisão) com um autêntico processo jurisdicionalizado do tipo criminal (a partir da impugnação contenciosa da decisão administrativa). A fase administrativa do processo de contra-ordenação ainda constitui um modo de realização da função administrativa do Estado [...]. Tanto no processo administrativo sancionador (em cujos princípios foi moldada a fase administrativa do processo de contra-ordenação) como no processo penal (cujos princípios enformam a fase contenciosa daquele) sempre foi reconhecida assinalável semelhança e flagrante paralelismo quanto à serventia do processo, como meio de prossecução ou de concretização do direito e quanto ao modo lógico e formal da sua execução [...]. A evolução doutrinal, jurisprudencial e até legislativa tem vindo a revelar a aceitação de uma certa interpenetração, ao nível dos princípios fundamentais, entre aqueles dois tipos de processo, sem prejuízo obviamente de se continuar a tentar extremar, com o maior rigor e segurança, os campos do direito administrativo sancionador e do direito criminal, alargando cada vez mais a área de incidência do primeiro à custa da purificação do segundo. Esta última preocupação tem levado a que a construção do processo administrativo tenha sido enriquecida com alguns princípios e exigências que dantes eram privativos do processo criminal e este tenha também sofrido a influência dos métodos do primeiro, especialmente na fase preparatória. O processo de contra-ordenação constitui uma realidade sui generis que representa um meio termo [um tertium genus] entre o tradicional processo administrativo sancionador e o tradicional processo criminal» (ver nota 24).
11 - Omissão da audição do arguido na instrução contra-ordenacional
11.1 - Sendo proibida (ver nota 25) a aplicação de uma coima sem prévia («possibilidade de») audição do arguido, surge a questão de saber qual o vício (e a respectiva sanção) da decisão administrativa que aplique uma coima a quem previamente não tiver sido assegurada «a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação [...] e [...] a sanção [...]».
11.2 - Mas, antes de a abordar, haverá que tomar em consideração a configuração bifronte, qual cabeça de Janus, da decisão administrativa que, aplicando uma coima, põe termo à instrução contra-ordenacional: virada a montante, a fronte que, condenando, abrirá lugar - se não impugnada - à execução da coima (artigos 88.º a 91.º do regime geral das contra-ordenações) e, voltada a jusante, a que, acusando, abrirá lugar - se impugnada - à «comprovação judicial da decisão de deduzir acusação» (ver nota 26), ou seja, à «impugnação judicial» (artigos 59.º e segs.) (ver nota 27).
E, por isso, a doutrina lhe chama «decisão-acusação» (ver nota 28).
11.3 - Em suma, a decisão administrativa de aplicação de uma coima só virtualmente constituirá uma «condenação», pois que, se impugnada, «tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação».
11.4 - Mas, consolidando-se, se não impugnada, como «condenação», qual o efeito na exequibilidade desta de tal vício? Será que - à semelhança do caso julgado em processo penal (ver nota 29) - o «caso (administrativo) decidido» cobrirá a correspondente «nulidade» (ainda que, eventualmente, insanável), tornando-a inatendível na execução (ver nota 30)? Ou será que uma condenação não precedida da constituição do visado como «arguido» - porque (in)sustentada em «uma relação jurídica processual que nem sequer chegou a constituir-se, inviabilizando, em definitivo, a formação de caso julgado (ver nota 31) (ver nota 32) - enfermará, mesmo, de «inexistência jurídica» (ver nota 33)? 11.5 - Na outra hipótese, ou seja, na de impugnação judicial da «decisão administrativa», já os «preceitos reguladores do processo criminal» a haverão de encarar como se de uma «acusação» se tratasse. Donde que a equiparação da instrução contra-ordenacional ao inquérito criminal deva conduzir a que a preterição do «direito de audição» no decurso daquela (assemelhável ao incumprimento, neste, da obrigatoriedade de interrogar como arguido a pessoa determinada contra quem corra o inquérito - artigo 272.º, n.º 1, do actual Código de Processo Penal)(ver nota 34) haja de ser tratada, simplesmente, como «insuficiência do inquérito» [artigo 120.º, n.º 2, alínea d)], implicando, por isso, «nulidade dependente de arguição» (artigo 120.º, n.º 1) em prazo limitado (ver nota 35).
11.6 - Se bem que constitua «nulidade insanável» (artigo 119.º) «a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência» [alínea c)], essa «ausência» tem a ver - dela sendo o seu reverso - com o «direito processual do arguido» (artigo 61.º, n.º 1) de «estar presente aos actos processuais que directamente lhe disseram respeito» [alínea a)] e de ser «assistido por defensor em todos os actos processuais em que participar» [alínea e)] (ver nota 36) e não com a eventual preterição de outros «direitos processuais do arguido» como os de «ser ouvido» [alínea b)] e de «intervir no inquérito» [alínea f)]. Aliás, a «ausência do arguido» do actual Código de Processo Penal corresponde, no anterior (em vigor à data de entrada em vigor do Decreto-Lei 433/82), à nulidade do n.º 8 do artigo 98.º, em caso - que não se assemelha (e, por isso, não demandando tratamento similar) ao de não audição do arguido durante a instrução contra-ordenacional - de «discussão e julgamento da causa sem a presença do réu, quando a lei exigisse o seu comparecimento»:
I - «Os casos de nulidade insanável, previstos no Código de Processo Penal de 1929, que se mantêm no novo diploma [...] são: 1 - [...] 2 - Discussão e julgamento da causa sem assistência do MP ou do réu, quando a lei exigisse a sua comparência (n.º 8 do artigo 98.º) - que tem consagração na parte final da alínea b) e também na alínea c) do artigo 119.º 3 - Falta de nomeação de defensor em audiência de julgamento, quando obrigatória, não arguida até ao interrogatório do réu, a menos que se venha a decretar a absolvição (n.º 4 e § 5.º do artigo 98.º) - que tem consagração nos artigos 119.º, alínea c), e 122.º, n.º 1» (Gil Moreira dos Santos, Noções de Processo Penal, O Oiro do Dia, Porto, 1.ª ed., p. 203).
II - «No artigo 119.º deste Código [Código de Processo Penal], indicam-se as nulidades insanáveis, das quais apenas a relativa ao 'emprego de forma especial de processo fora dos casos previstos na lei' poderá ser aplicável em processo contra-ordenacional» (Lopes de Sousa-Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Áreas Editora, 2001, p. 373) (ver nota 37).
III - Alfredo José de Sousa diz mesmo «não haver no processo de contra-ordenação nulidades insanáveis» (Infracções Fiscais não Aduaneiras, Almedina, p. 167).
11.7 - Em síntese: a nulidade (insanável) por «falta do arguido, nos casos em que a lei exigir a sua comparência» restringe-se, no processo penal, aos casos em que, obrigando a lei à presença/comparência do arguido em certos actos processuais, v. g., na audiência de julgamento (artigo 332.º do CPP) e no debate instrutório (artigo 300.º), esses actos venham a ser praticados sem a sua presença (ver nota 38).
11.8 - De qualquer modo, a eventual preterição, no decurso da instrução contra-ordenacional, do «direito (processual) de audição» garantido pelo artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações haveria de ficar «sanada» (ver nota 39) - por força do disposto no artigo 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal - se o arguido viesse a prevalecer-se, na impugnação judicial da «acusação» administrativa, do direito (de defesa) «a cujo exercício o acto anulável se dirigia».
11.9 - Com efeito, não faria sentido (e seria, mesmo, processualmente antieconómico) (ver nota 40) anular a «acusação» (a não ser que a impugnação se limitasse a arguir a correspondente nulidade) se o «participante processual interessado» aproveitasse a impugnação (da «decisão administrativa» assim volvida «acusação») para exercer - dele enfim se prevalecendo - o preterido direito de defesa, em ordem (cf. artigo 286.º, n.º 1) à «comprovação judicial» (negativa) (ver nota 41) da «decisão de deduzir acusação».
11.10 - Com essa excepção (sanação do vício por os participantes processuais se terem prevalecido da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia), «o legislador procura evitar a anulação do processado por motivos de mera forma, contribuindo para a construção de um sistema menos formalista e mais preocupado com a justiça material. Se o acto, apesar de imperfeito, cumpriu os objectivos para os quais foi pensado pelo legislador [...], não se justifica a sua repetição» (ver nota 42).
12 - Deficiente cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGC-O
12.1 - Não é permitida a aplicação de uma coima - determina o artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações - «sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção em que incorre».
12.2 - Se - em caso de impugnação judicial da decisão administrativa - constitui nulidade (sanável) a omissão (absoluta) da audição do arguido na instrução contra-ordenacional, a deficiente satisfação, por parte da administração, desse direito do arguido (nomeadamente, em caso de audiência escrita, por a notificação do interessado «para dizer o que se lhe oferecer» não lhe conceder um «prazo razoável» (ver nota 43) ou não lhe «fornecer os elementos necessários para que fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito») (ver nota 44), também não poderá constituir - mesmo que se equipare essa «notificação» à «acusação» que, em processo penal, necessariamente precede a «decisão condenatória» (ver nota 45) - um vício formal (ver nota 46) mais gravoso que a «nulidade» (sanável) (ver nota 47) cominada, pelo artigo 283.º, n.º 3, alínea a), do Código de Processo Penal, para a acusação penal que não contenha «a indicação das disposições legais aplicáveis» [alínea c)] ou «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena [...], incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» [alínea b)].
12.3 - «Neste domínio são de realçar os deveres de diligência e de boa-fé processuais [...]. O segundo impede que os sujeitos processuais possam 'aproveitar-se de alguma omissão porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um trunfo para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado' (Tribunal Constitucional, acórdão 429/95, de 6 de Julho, Diário da República, 2.ª série, de 10 de Novembro de 1995). [...] O legislador português [...] criou um sistema responsabilizador e progressivo, onde os sujeitos processuais são convidados a participar na marcha processual e a denunciar, com prontidão, as infracções cometidas e onde as possibilidades de sanação do vício vão aumentando à medida que o processo se afasta do acto imperfeito e se aproxima do seu epílogo [...]. No fundo, o legislador estruturou o processo penal em etapas sucessivas que servem de barreiras à propagação de certos defeitos do acto processual penal. Ultrapassados aqueles prazos fica precludida a possibilidade de invocar a infracção cometida e os efeitos produzidos pelo acto processual imperfeito sofrem uma modificação, passando de precários a definitivos.
Regime que, embora seja uma clara manifestação do princípio da conservação dos actos imperfeitos, se destina também a evitar que o interessado, em vez de arguir de imediato a nulidade, guarde esta possibilidade para utilizar no momento mais oportuno, se e quando for necessário. Conduta processual que, para além de ser muito reprovável, teria como consequência necessária a inutilização de todo o processado posterior, muitas vezes apenas na sua fase decisiva e no fim de uma longa marcha, que só com muito custo poderia ser refeita» (João Conde Correia, ob. cit., pp. 146, nota 328, e 177 a 179).
13 - Conclusões (ver nota 48)
I - Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do RGC-O, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido (ver nota 49), notificá-lo-á para - no prazo que o regime específico do procedimento previr ou, na falta deste, em prazo não inferior a 10 dias - dizer o que se lhes oferecer (cf. artigo 101.º, n.º 1, do Código de Processo Administrativo) (ver nota 50).II - A notificação fornecerá os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito (artigo 101.º, n.º 2) e, na resposta, o interessado pode pronunciar-se sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como requerer diligências complementares e juntar documentos (artigo 101.º, n.º 3)(ver nota 51).
III - A omissão dessa notificação incutirá à decisão administrativa condenatória, se judicialmente impugnada e assim volvida «acusação», o vício formal de nulidade (sanável), arguível, pelo «acusado», no acto da impugnação [artigos 120.º, n.os 1, 2, alínea d), e 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações] (ver nota 52). Se a impugnação se limitar a arguir a invalidade, o tribunal invalidará a instrução, a partir da notificação omissa, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Mas, se a impugnação se prevalecer do direito preterido (pronunciando-se sobre as questões objecto do procedimento e, sendo caso disso, requerendo diligências complementares e juntando documentos), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].
IV (ver nota a) - Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado/notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 121.º, n.º 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações)(ver nota 53). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 121.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão / acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].
V - No caso, a nulidade decorrente da insuficiência/ incompletude do teor da notificação operada ao abrigo do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações ficou sanada logo que o interessado não a arguiu nem no prazo de 10 dias perante a administração nem, depois, na impugnação judicial da subsequente decisão / acusação administrativa.
14 Decisão
Tudo visto, o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, reunido em conferência, delibera na improcedência do recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência interposto em 19 de Novembro de 2001 pela sociedade comercial Feira Nova, Hipermercados, S. A., fixar jurisprudência nos seguintes termos:Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional, pela audiência escrita do arguido, mas, na correspondente notificação, não lhe fornecer todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado / notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão / acusação administrativa.
(nota a) Rectificado. V. «2 - Rectificação».
(nota 1) Mediante acórdão transitado em 5 de Abril de 2001 (fl. 32).
(nota 2) Desembargadores Teixeira Mendes, Dias Cabral e Veiga Reis.
(nota 3) Adv. Miguel Mayordomo Cunha.
(nota 4) P-G adj. Eduardo Maia Costa.
(ver da nota 5 a nota 11 no documento original) (nota 12) Cf. parecer 19/2001, de 22 de Novembro de 2001, da Procuradoria-Geral de República (Diário da República, 2.ª série, de 8 de Fevereiro de 2002).
(nota 13) Frederico de Lacerda da Costa Pinto, «O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal», Direito Penal Económico e Europeu/Textos Doutrinários, pp. 209 e segs.
(nota 14) A. Leones Dantas, «O Ministério Público no processo das contra-ordenações», Questões Laborais, VII, 2001, pp. 16-18.
(nota 15) Frederico de Lacerda da Costa Pinto, ob. cit. e loc. cit.
(nota 16) António Leones Dantas, «Considerações sobre o processo das contra-ordenações. - A fase administrativa», Revista do Ministério Público, n.º 61, pp. 107 e 117.
(nota 17) Manuel Ferreira Antunes, Reflexões sobre o Direito Contra-Ordenacional, SPB Editores, 1997, pp. 157 e 161.
(nota 18) E «sempre que o contrário não resulte do presente diploma» (Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro).
(nota 19) Frederico de Lacerda da Costa Pinto, «O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal», RPCC, VII, Janeiro-Março 1997, pp. 14 e segs.
(nota 20) «A consagração do direito de audiência prévia do interessado como princípio geral do direito administrativo português não poderia deixar de ter reflexos ao nível do procedimento de aplicação de sanções [...] pela prática de contra-ordenações. Trata-se, aliás, de uma área prioritária da sua aplicação [...]» (Maria Fernanda Palma e Paulo Otero, Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social, RFDUL, XXXVII, n.º 2, 1996, pp. 557 e segs.) (nota 21) «Uma formalidade essencial é a audição do arguido, sem a qual o processo é inválido. Mas há muitas maneiras práticas de dar satisfação à correspondente norma. E não se está de modo algum a pensar numa acusação articulada [...]. A lei será respeitada e o espectro da nulidade afastado se se puder demonstrar que o arguido foi ouvido, quer no auto inicial quer no decurso da investigação ou da instrução, em flagrante ou fora de flagrante, por qualquer forma admissível em direito, sem necessidade de uma acusação formal, a não ser quando esta não possa ser dispensada porque falharam ou não foram possíveis outras maneiras de 'assegurar a possibilidade de se pronunciar sobre o caso', como diz a lei [...]. Não haverá nulidade insuprível se, por qualquer modo idóneo, lhe for dado conhecimento de que contra ele pende um processo por contra-ordenação, com a conveniente descrição dos factos que a integram» (Manuel Lopes Rocha, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, pp.
120-121).
(nota 22) A menos que preceitos legais próprios - como é o caso do direito contra-ordenacional estradal - especifiquem o «procedimento» a seguir. Com efeito, o artigo 155.º, n.os 1 e 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, determinava:
«1 - Antes da decisão sobre a aplicação das sanções, os interessados devem ser notificados:
a) Dos factos constitutivos da infracção;
b) Das sanções aplicáveis [...].
2 - Os interessados podem, no prazo de 20 dias a contar da notificação, apresentar a sua defesa, por escrito [...]».
Na sua redacção actual (resultante do Decreto-Lei 162/2001, de 22 de Maio), a «comunicação da infracção» passou a dever fazer-se, não «antes da decisão», mas logo «após o levantamento do auto de notícia» e com a indicação adicional «da legislação infringida». Também o Código dos Valores Mobiliários (aprovado pelo Decreto-Lei 486/99, de 13 de Novembro), de que o «regime geral dos ilícitos de mera ordenação social» é «direito subsidiário» (artigo 407.º), contém «disposições processuais» próprias (artigos 408.º e segs.), que pressupõem um «acto processual de imputação ao arguido da prática de contra-ordenação» (artigo 411.º, n.º 2), dito, no artigo 414.º, n.º 1, de «acusação formal». O mesmo se passa com o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro, e Decreto-Lei 201/2002, de 26 de Setembro), que, no seu artigo 219.º, prevê a dedução, uma vez concluída a instrução, de uma específica «acusação» (em que «serão indicados o infractor, os factos que lhe são imputados e as respectivas circunstâncias de tempo e lugar, bem como a lei que os proíbe e pune»), seguida da sua «notificação ao arguido», da «realização das diligências tornadas necessárias em consequência da defesa» e, finalmente, da «decisão».
(nota 23) Aprovado pelo Decreto-Lei 442/91, de 15 de Novembro, e alterado e republicado pelo Decreto-Lei 6/96, de 31 de Janeiro.
(nota 24) Mário Gomes Dias, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, pp. 130-133.
(nota 25) «Não é permitida» (artigo 50.º do regime geral das contra-ordenações).
(nota 26) Usando a terminologia que o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal emprega para definir o objectivo da instrução criminal.
(nota 27) «A decisão da autoridade administrativa que aplica uma coima é susceptível de impugnação judicial» (artigo 59.º, n.º 1).
(nota 28) Manuel Ferreira Antunes, ob. cit., p. 172: «Quando o recorrente interpõe o recurso, ainda não há acusação, mas, logo que o recurso seja introduzido em juízo, tudo se passa como se, desde o momento em que é proferida a decisão, esta fosse uma acusação [...]. Na verdade, com a interposição do recurso, a decisão condenatória transforma-se em acusação.» (nota 29) «A formação do caso julgado torna insindicáveis todos os vícios susceptíveis de constituir causa de nulidade - seja qual for a sua natureza - permitindo a sua conservação» (João Conde Correia, Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, Coimbra Editora, 1999, p.
169).
(nota 30) Tanto mais que «as decisões penais condenatórias transitadas em julgado» (artigo 467.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) só não são exequíveis quando «não reduzidas a escrito» ou «não determinarem a pena aplicada ou aplicarem pena inexistente na lei portuguesa» (artigo 468.º).
(nota 31) Cf. João Conde Correia, ob. cit., p. 164 e nota 376.
(nota 32) É certo que «assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação» (artigo 57.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), mas, na hipótese, a «condenação» não só não fora precedida de audição do visado como, pois que não impugnada», não se volvera, retroactivamente, em «acusação».
(nota 33) Vício que, nas suas consequências práticas e nos seus efeitos jurídicos, se assemelharia ao da «nulidade de direito administrativo» («O acto nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade» - artigo 134.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo; «A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal» - artigo 134.º, n.º 2; «Não são susceptíveis de ratificação, reforma e conversão os actos nulos ou inexistentes» - artigo 137.º, n.º 1) que afecta «os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental» [artigo 133.º, n.º 2, alínea d), que «incluem, além dos que o violam pelo seu conteúdo ou motivação, também aqueles em que cujo procedimento se postergaram direitos, dessa natureza, dos interessados», como «acontece com os direitos de participação, informação e audiência dos interessados: se e quando o direito de audiência (ou o de fundamentação) constituir um direito fundamental, o acto praticado sem que o mesmo haja sido dado é de considerar nulo» (Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, II, Almedina, 1995, p. 156]. E a verdade é que - nos direitos e deveres constitucionais fundamentais - se inclui a garantia de que «nos processos de contra-ordenação são assegurados ao arguido os direitos de audiência e defesa» (artigo 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa).
(nota 34) Ao tempo da entrada em vigor do Decreto-Lei 433/82, em que o Código de Processo Penal de 1929 ainda estava em vigor, também era nula a acusação «não precedida de interrogatório do arguido» quando «obrigatório» (artigo 268.º, parte final). O regime das nulidades era o dos artigos 98.º e 99.º, constituindo «nulidade em processo penal, entre outras», a «insuficiência de corpo de delito» (artigo 98.º, n.º 1), que ficaria «sanada» logo que transitasse em julgado o «despacho de pronúncia» ou, «em qualquer caso», a partir do momento em que «os actos omitidos já não pudessem praticar-se ou a sua realização já não aproveitasse ao descobrimento da verdade» (artigo 98.º, § 2.º). Em contrapartida, as nulidades «que se não devessem considerar sanadas» poderiam ser arguidas em qualquer estado da causa, mas «os tribunais superiores poderiam sempre julgar suprida qualquer nulidade que não afectasse a justa decisão da causa» (artigo 99.º, § 3.º).
(nota 35) a) «Até cinco dias após a notificação» da decisão [se, equiparando-se esta à «acusação», se aplicar, depois de adaptado, o disposto no artigo 120.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal]; b) até ao despacho que decidir a impugnação - artigo 64.º, n.º 2, do regime geral das contra-ordenações - ou ao encerramento dos debates na audiência de 1.ª instância - artigos 66.º a 70.º (se se equiparar a impugnação judicial à instrução criminal); ou c) até à (ou, melhor, na) «impugnação perante os tribunais» (solução interpretativa que concentrará na «impugnação judicial» - coerentemente com a função desta - toda a «defesa» do «acusado»).
(nota 36) Nomeadamente quando «obrigatória a assistência de defensor» (artigo 64.º, n.º 1): interrogatório judicial de arguido preso, debate instrutório, audiência (máxime, audiência de julgamento realizada na audiência do arguido) e recursos.
(nota 37) Já, porém, «parece» a Simas Santos-Lopes de Sousa, «dever considerar-se uma nulidade insanável a não concessão ao arguido da possibilidade de ser ouvido sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre» (Contra-Ordenações, Anotações ao Regime Geral, Vislis Editores, 2001, p. 295): «Com efeito, embora na alínea c) do n.º 1 do artigo 119.º do CPP se preveja como nulidade insanável a ausência do arguido ou seu defensor quando a lei exigir a respectiva comparência, o objectivo evidente desta obrigatoriedade de comparência é a concessão ao arguido da possibilidade de exercer os direitos de defesa que a lei e a CRP impõem que lhe seja concedida e, por isso, esta norma deve ser interpretada extensivamente como visando todas as situações em que não foi concedida ao arguido, antes de lhe ser aplicada uma sanção, possibilidade de exercer direitos de defesa que obrigatoriamente lhe deve ser proporcionada.» (nota 38) Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1999, p. 77. Cf., ainda, STJ 16 de Setembro de 1992, apud Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 8.ª ed., pp. 263-264, anotação ao artigo 119.º: «A nulidade da alínea c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal só se verifica quanto às situações em que a lei exige a comparência do arguido ou do seu defensor.» (nota 39) Ou, no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, «suprida pelos tribunais superiores» por «não afectar a justa decisão da causa» (artigo 99.º, § 3.º).
(nota 40) O fundamento desta causa de sanção da nulidade é claramente a economia processual. Com efeito, se, não obstante a nulidade do acto, o efeito a que se dirigia vier a ser igualmente produzido, é inútil recomeçar do princípio para não obter nada de mais do que o que já foi alcançado» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1999, p. 85). «Seria um exagero formal, destituído de qualquer fundamento substancial, inutilizar a actividade processual desenvolvida, principalmente porque a sua repetição não traz nada que já não tenha sido alcançado» (João Conde Correia, ob. cit., p.
180).
(nota 41) Mediante decisão judicial de «arquivamento do processo» ou de «absolvição do arguido» (artigos 64.º, n.º 3, e 66.º e 68.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações).
(nota 42) João Conde Correia, ob. cit., p. 155. Mas «a nulidade só não será declarada quando o participante processual usufruir da concreta faculdade a cujo exercício o acto anulável se destinava» (ibidem).
(nota 43) E sê-lo-á o que, em concreto, for inferior ao decorrente do regime específico ou, na falta deste, a «10 dias» (cf. artigos 41.º, n.º 1, e 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
(nota 44) Cf. artigo 101.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo.
(nota 45) Perspectivada - esta na sua bifrontalidade - como o termo final do procedimento.
(nota 46) «É necessário ter presente que os vícios do acto processual que a lei trata sob a epígrafe «Das nulidades» se referem apenas aos vícios formais» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1999, p. 68).
(nota 47) Cf. artigos 120.º, n.os 1 e 3, alínea c), e 121.º, n.º 1, do actual Código de Processo Penal.
(nota 48) «Adaptação» ao processo contra-ordenacional dos correspondentes «preceitos reguladores do processo criminal».
(nota 49) «A lei quadro das contra-ordenações põe a tónica na necessidade, insuprível, de audiência do arguido (artigo 50.º do Decreto-Lei 433/82), mas não impõe um formalismo especial. Por isso [...], será dada cabal satisfação a essa exigência desde que ao arguido, como diz a lei, 'seja assegurada a possibilidade de se pronunciar sobre o caso', o que pode fazer-se logo no próprio auto pela autoridade máxime quando a contra-ordenação é verificada em flagrante» (Manuel Lopes Rocha, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, pp. 110-111).
(nota 50) «O dirigente do serviço tributário competente notificará o arguido do facto ou factos apurados no processo de contra-ordenação e da punição em que incorrer, comunicando-lhe também que no prazo de 10 dias pode apresentar defesa e juntar ao processo os elementos probatórios que entender» (artigo 70.º do regime geral das infracções tributárias).
(nota 51) «Não pode deixar de se entender que no processo de contra-ordenações devem ser dadas ao arguido possibilidades de contestar as provas contra ele recolhidas, de formular a sua defesa, de sugerir diligências probatórias, de arrolar testemunhas, etc.» (Mário Gomes Dias, Contra-Ordenações, Notas e Comentários, Escola Superior de Polícia, p. 138).
(nota 52) «Constitui nulidade insuprível no processo de contra-ordenação tributário [...] a falta de notificação do despacho para audição e apresentação de defesa» [RGIT, artigo 63.º, n.º 1, alínea c)], de conhecimento oficioso e arguível «até a decisão se tornar definitiva» (n.º 5) e com o efeito de «anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente» (n.º 3). «Embora a nulidade subsista enquanto não for efectuada tal notificação e tenham de ser anulados todos os termos subsequentes do processo contra-ordenacional que dependam dessa nulidade, a entidade competente para o processo, na sequência da declaração de nulidade e dos termos subsequentes, poderá vir a efectivar tal notificação, praticando novamente todos os actos subsequentes que tenham sido anulados» (Lopes de Sousa-Simas Santos, ob. cit., p. 371).
(nota 53) Lopes de Sousa e Simas Santos, a pp. 372 e 401 da sua obra citada, sustentam que, no âmbito do processo de contra-ordenação tributária, «a falta destes outros elementos constitui uma mera irregularidade processual com o regime de arguição p. no artigo 123.º do Código de Processo Penal, aplicável por força do preceituado na alínea b) do artigo 3.º do regime geral das infracções tributárias e do n.º 1 do artigo 41.º do regime geral das contra-ordenações».
Lisboa, 16 de Outubro de 2002. - José António Carmona da Mota (relator) - António Pereira Madeira - Manuel José Carrilho de Simas Santos - David Valente Borges de Pinho - (Tem voto de conformidade do conselheiro Franco de Sá, que não assina por não estar presente. - José Moura Nunes da Cruz.) - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira - Armando Acácio Gomes Leandro - Virgílio António da Fonseca Oliveira - Luís Flores Ribeiro - António Correia de Abranches Martins - António Gomes Lourenço Martins - António Luís Sequeira Oliveira Guimarães - Dionísio Manuel Dinis Alves.
1 - Pedido de aclaração
1.1 - A recorrente Feira Nova Hipermercados, S. A., notificada do acórdão, de fixação de jurisprudência, do pleno das secções criminais de 16 de Outubro de 2002, pediu em 4 de Novembro de 2002, a sua «aclaração»:«Poder-se-á levado a crer que, na fase administrativa do processo contra-ordenacional [...], não suscitando o interessado aquela nulidade no prazo geral de 10 dias, este vício deverá considerar-se sanado pelo decurso do prazo para a sua arguição e, por conseguinte, esta será intempestiva se apresentada no acto de impugnação judicial.» 1.2 - A aclaração dos acórdãos proferidos em audiência ou em pleno cabe à conferência (artigos 4.º do CPP e 716.º, n.º 2, e 732.º do CPC).
1.3 - O assento - ao facultar a arguição da nulidade decorrente do deficiente cumprimento pela administração do disposto no artigo 50.º do RGC-O, quer, logo, junto da própria administração quer, judicialmente, no acto de impugnação da decisão condenatória - quis dizer isso mesmo: o arguido poderá: a) prevalecer-se dessa nulidade processual intercalar desde logo, concitando a administração a reconhecer ela própria a invalidade do acto praticado e, nessa hipótese, a repeti-lo; ou b) na expectativa de uma decisão administrativa absolutória, deixar correr o processo até final, sem prejuízo de, sobrevindo condenação, a arguir (não já, propriamente, como tal mas no seu reflexo, por omissão de diligência essencial, na decisão administrativa), na impugnação judicial desta. Daí a redacção disjuntiva utilizada na formulação do texto do assento: «o processo ficará doravante afectado de nulidade, dependente de arguição, pelo interessado / notificado, no prazo de 10 dias após a notificação, perante a própria administração, ou, judicialmente, no acto de impugnação da subsequente decisão / acusação administrativa». Mas, atenção: «Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [...]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada» (cf. conclusão IV do acórdão aclarando).
2 Rectificação
Na conclusão IV do acórdão, as duas primeiras alusões aí feitas ao artigo 121.º do CPP pretendiam-se feitas - tal como detectou, e bem, o recorrente - ao artigo 120.º. Daí que tal conclusão deva passar a ler-se, doravante, como segue:«IV - Se a notificação, tendo lugar, não fornecer (todos) os elementos necessários para que o interessado fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, o vício será o da nulidade sanável (artigos 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), arguível, pelo interessado / notificado (artigos 120.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), no prazo de 10 dias após a notificação (artigos 105.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações), perante a própria administração ou, judicialmente, no acto da impugnação [artigos 120.º, n.º 3, alínea c), e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações](53). Se a impugnação se limitar a arguir a nulidade, o tribunal invalidará a instrução administrativa, a partir da notificação incompleta, e também, por dela depender e a afectar, a subsequente decisão administrativa [artigos 120.º, n.os 2, alínea d), e 3, alínea c), e 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações]. Todavia, se o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido (abarcando, na sua defesa, os aspectos de facto ou de direito omissos na notificação mas presentes na decisão/acusação), a nulidade considerar-se-á sanada [artigos 121.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal e 41.º, n.º 1, do regime geral das contra-ordenações].»
3 Custas
O acórdão também foi omisso quanto a custas, omissão que se aproveitará agora, por iniciativa do próprio tribunal, para suprir (artigos 4.º do CPP e 667.º, n.º 1, do CPC), condenando-se a recorrente Feira Nova, Hipermercados, S. A., pois que nele não obteve ganho de causa, nas custas do recurso, com 10 UC de taxa de justiça.
4
Notifique (1, 2 e 3) e rectifique (1).
Lisboa, 28 de Novembro de 2002. - Carmona da Mota (relator) - Pereira Madeira - Simas Santos.