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Acórdão 159/2007, de 26 de Abril

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Sumário

Não declara a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 547/74, de 22 de Outubro

Texto do documento

Acórdão 159/2007

Processo 537/99

Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:

I - O pedido e os seus fundamentos

1 - O Provedor de Justiça veio, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, requerer a apreciação e declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas contidas no artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74, de 22 de Outubro.

As normas em causa, na sua versão originária, tinham o seguinte teor:

"Artigo 5.º

1 - O rendeiro tem o direito de remir o contrato, tornando-se dono da terra pelo pagamento do preço que for fixado pela comissão arbitral.

2 - Este preço será determinado pelo valor potencial da terra, excluídas as benfeitorias, tendo em conta o estado em que se encontrava a terra no início do contrato.

3 - Depositado na Caixa Geral de Depósitos o montante do preço referido no número anterior, e paga a respectiva sisa, a comissão arbitral efectuará a transferência, a favor do rendeiro, dos bens remidos.

4 - As certidões ou fotocópias notariais da deliberação da comissão referida no número anterior são havidas, para todos os efeitos, como escrituras públicas."

2 - A fundamentação do pedido é, em síntese, a seguinte:

"O n.º 1 do artigo em análise cria um direito real de aquisição a favor do rendeiro, nos casos de arrendamento rural em que as terras tenham sido dadas de arrendamento no estado de incultas e se tenham tornado produtivas por acção do rendeiro.

Este direito de remição viola a garantia constitucional de propriedade privada prevista no artigo 62.º da Constituição, dado que este preceito estabelece que apenas podem existir limitações ao direito de propriedade privada por requisição e expropriação por utilidade pública com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.

No caso, verifica-se a ablação de um direito de um particular a favor de outro particular, não havendo qualquer utilidade pública que o justifique, dado não existirem quaisquer fins públicos mas apenas fins privados que se destinam a proporcionar ao rendeiro e à sua família o direito às benfeitorias realizadas e a evitar o seu despejo das terras.

Estas finalidades são já atingidas por outras medidas previstas no mesmo diploma: o regime da propriedade das benfeitorias (artigo 2.º) e a limitação dos casos de resolução do contrato de arrendamento, por parte do senhorio (artigo 4.º). Assim, a privação do direito de propriedade do senhorio, contra a sua vontade, revela-se desproporcionada face aos fins que se pretendem obter.

O direito de propriedade privada tem natureza análoga aos 'direitos, liberdades e garantias', pelo que as restrições se devem limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, o que não se verifica no caso.

O direito de remição do rendeiro viola quer o princípio da exigibilidade quer o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, dado que a ablação do direito de propriedade do senhorio é excessiva em relação aos fins prosseguidos e estes podem ser atingidos por outros meios menos onerosos."

3 - Notificado do pedido, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º, 55.º e 56.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), veio o Primeiro-Ministro pronunciar-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma, alegando, fundamentalmente, o seguinte:

"O direito de propriedade privada é um direito fundamental de natureza económica, que não pode ser concebido de forma unilateral, como mero direito de defesa oponível aos poderes públicos. A sua tutela faz-se nos termos da Constituição e da lei, não implicando a interdição da intervenção reguladora dos poderes públicos.

Essa intervenção dos poderes públicos deve ter em conta a função social que a Constituição atribui a esse direito, função neste caso inserida na complexa estrutura das formas de propriedade dos meios de produção constitucionalmente estabelecida.

O normativo em causa insere-se numa transição de um Estado autoritário e corporativo para um Estado de direito democrático, na qual eram desadequadas as formas tradicionais de exploração da terra e o disposto no Código Civil em matéria de remição nos casos de renda perpétua e renda vitalícia, resultando a intervenção legislativa da necessidade de proteger o mais débil em lugar do mais forte.

O pedido funda-se numa concepção pré-constitucional do direito de propriedade, ignorando a função social deste direito. Sendo elemento essencial do direito de propriedade o direito a não ser privado dela, esse direito a não ser privado da propriedade não é um direito absoluto, mas um direito a não ser arbitrariamente privado de propriedade e a ser indemnizado ou compensado no caso de desapropriação.

No caso, existe um nítido e claro fundamento social, de resto constitucionalmente previsto e explanado, que suporta a medida legislativa. Esse suporte constitucional resulta, nomeadamente, dos preceitos contidos na alínea d) do artigo 9.º, nas alíneas a), b) e g) do artigo 81.º, no artigo 88.º, na alínea b) do n.º 1 do artigo 93.º, nos artigos 94.º e 95.º e no n.º 1 do artigo 96.º E a intervenção legislativa em causa poderia ainda fundamentar-se no princípio geral contido no artigo 2.º da Constituição.

Da conjugação destas normas resulta o suporte constitucional da existência de um interesse público suficientemente preciso e relevante que fundamenta a restrição do direito de propriedade. A medida não é, portanto, nem arbitrária nem excessiva, mas pelo contrário necessária, adequada, legítima, admissível e razoável face ao fim de interesse público relevante que o Governo constitucionalmente é chamado a concretizar."

4 - O requerente solicita, de forma genérica, a declaração de inconstitucionalidade "do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74, de 22 de Outubro".

Apesar de o artigo 5.º conter quatro números, a questão de constitucionalidade suscitada no pedido coloca-se exclusivamente quanto ao disposto no primeiro deles. O que efectivamente se questiona é a conformidade à Constituição do direito do rendeiro a "remir o contrato, tornando-se dono da terra", mediante o pagamento de um determinado preço ao proprietário/senhorio. Ora, é o n.º 1 do artigo 5.º que contém tal norma.

Assim sendo, a análise da constitucionalidade do artigo 5.º centrar-se-á, em exclusivo, na norma contida no seu n.º 1. As normas dos n.os 2 a 4 serão tratadas como instrumentais relativamente ao n.º 1, no sentido de serem abrangidas por uma eventual declaração de inconstitucionalidade.

O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma identificada, por entender, com fundamento nos artigos 18.º, n.º 2, e 62.º da Constituição, que existe uma restrição "desproporcionada, excessiva e injusta" do direito de propriedade privada.

5 - Discutido em plenário o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 63.º, n.º 1, da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, cumpre agora decidir de harmonia com o que então se estabeleceu.

II - Questão prévia

A vigência da norma do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74

6 - Antes de conhecer da questão da conformidade constitucional da norma contida no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74, importa, em primeiro lugar, averiguar se esta norma ainda vigora, uma vez que, desde a sua aprovação, ocorreram diversas alterações ao regime jurídico do arrendamento rural.

A questão da vigência é analisada tanto no pedido como na resposta do órgão autor da norma, concluindo-se, em ambos os articulados, por uma resposta positiva. É também essa a posição que o Tribunal adopta, pela seguinte ordem de razões:

Em primeiro lugar porque a legislação posterior em matéria de arrendamento rural nunca revogou expressamente o artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74.

Com efeito, o artigo 48.º da Lei 76/77, de 29 de Setembro, revogou apenas o artigo 3.º daquele diploma, além de estabelecer que a competência atribuída às comissões arbitrais nos artigos 5.º, 7.º e 8.º transitava para os tribunais de comarca. O restante conteúdo do Decreto-Lei 547/74 manteve-se em vigor, sendo dado ao Governo um prazo de seis meses para proceder à sua revisão (n.º 1 do artigo 48.º); mas tal revisão não chegou a ser efectuada. O esgotamento desse prazo de seis meses não determina a cessação da vigência do diploma, dado não se tratar de uma lei temporária nem resultar da redacção do referido n.º 1 do artigo 48.º a consequência de caducidade do Decreto-Lei 547/74.

E não consta igualmente do Decreto-Lei 385/88, de 25 de Outubro, que aprovou o actual Regime do Arrendamento Rural (doravante, RAR), qualquer disposição expressamente revogatória do Decreto-Lei 547/74.

Em segundo lugar, porque se entende não ter existido revogação tácita ou indirecta do Decreto-Lei 547/74.

Na verdade, o diploma sub iudice não contém o regime geral do arrendamento rural, sendo antes apenas aplicável, nos termos do seu artigo 1.º, a um grupo especial de casos de arrendamento, em que "as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro", ou seja, a casos em que o rendeiro tornou o solo cultivável e fez plantações (isto é, efectuou trabalhos de melhoramento e modificação do solo) que influenciaram, decisiva e positivamente, a produtividade da terra.

Ora, a Lei 76/77 ressalvou expressamente a vigência desse regime especial e o RAR não contém normas especificamente dirigidas aos casos delimitados pelo artigo 1.º do Decreto-Lei 547/74.

Por aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 7.º do Código Civil, deve, pois, concluir-se que as regras especiais contidas no Decreto-Lei 547/74 não foram revogadas pelo regime geral instituído pelo RAR.

É este, aliás, o entendimento perfilhado no Acórdão de 14 de Janeiro de 1993 do Tribunal da Relação de Évora (publicado em Colectânea de Jurisprudência, 1993, ano XVIII, t. 1, p. 263) que se pronunciou no seguinte sentido:

"Por ser lei especial, o Decreto-Lei 547/74, de 22 de Outubro, não foi revogado pelo Decreto-Lei 385/88, de 25 de Outubro.

Assim os contratos de arrendamento de terrenos incultos para serem desbravados e cultivados, celebrados ao abrigo do disposto naquele Decreto-Lei 547/74, continuam a reger-se pelo regime jurídico contido neste diploma legal."

Diga-se, por último, que este entendimento é ainda pressuposto na Lei 108/97, de 16 de Setembro, que, no seu artigo 3.º, dispõe que "para os efeitos do disposto no Decreto-Lei 547/74 [...], presume-se que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato se não houver contrato escrito ou ele for omisso quanto ao estado de terras e o arrendamento subsistir há mais de 50 anos".

Deve, deste modo, considerar-se que o regime especial criado pelo Decreto-Lei 547/74 não foi revogado por legislação posterior (designadamente, o RAR) e que esse diploma (salvo o disposto no seu artigo 3.º) continua a ser o regime legal aplicável às situações de arrendamento rural em que "as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro".

7 - Não se deixará, também, de salientar que a norma questionada consta de um diploma aprovado pelo Governo provisório, na vigência da Lei Constitucional 3/74, de 14 de Maio, ou seja, anteriormente à Constituição de 1976, e que, nos termos do artigo 290.º, n.º 2, da Constituição, o direito ordinário anterior se mantém em vigor, excepto quando exista contrariedade material com a Constituição [cf., neste sentido, entre outros, o Acórdão 231/94, Acórdãos do Tribunal Constitucional (doravante, ATC), 27.º vol., pp. 205 e segs.].

A questão da vigência da norma confunde-se, assim, neste plano, com a questão da sua compatibilidade material com a Constituição, que é uma questão de constitucionalidade, cuja resolução compete ao Tribunal Constitucional (cf. os Acórdãos n.os 2/84, 20/84, 29/84, 313/85, 202/86 e 429/89, e, mais recentemente, o Acórdão 187/2001, todos em ATC, respectivamente, 2.º vol., pp. 198 e segs., 385 e segs. e 431 e segs., 6.º vol., pp. 563 e segs., 7.º vol. II, pp. 947 e segs., 13.º vol. II, pp. 1237 e segs., e 50.º vol., pp. 29 e segs.).

Ora, o problema jurídico-constitucional suscitado no presente processo diz respeito à alegada incompatibilidade entre a norma questionada e o direito de propriedade, constitucionalmente tutelado no artigo 62.º da lei fundamental, e que, na sua dimensão essencial, tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, não podendo deixar de ser tida como inconstitucionalidade material essa eventual violação do direito de propriedade.

Nesta perspectiva, a questão da "vigência" da norma acaba por ser a questão da sua constitucionalidade, que o Tribunal Constitucional tem agora que conhecer.

III - Fundamentação

A) Âmbito de aplicação e finalidades do Decreto-Lei 547/74

8 - As situações reguladas pelo n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74 são, como já se disse, casos de arrendamento rural em que, nos termos do artigo 1.º do mesmo diploma, "as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro".

A aplicabilidade da norma em análise supõe a existência de benfeitorias efectuadas pelo rendeiro e que são propriedade deste, nos termos do artigo 2.º do mesmo decreto-lei.

O Decreto-Lei 547/74 não só pretendeu garantir o direito do rendeiro às benfeitorias realizadas como também consolidar o vínculo entre o rendeiro e a terra por este cultivada. As razões para tal solução legal encontram-se patentes no próprio diploma e estão directamente relacionadas com as especificidades de um certo tipo de exploração agrícola, delimitado - ao que tudo indica no tempo e no espaço.

Afigura-se particularmente relevante para a apreciação da questão suscitada determinar o âmbito de aplicação da norma em causa, tendo especialmente em conta as circunstâncias históricas e sociais que a antecederam e as que ocorriam à data da sua aprovação.

O Decreto-Lei 547/74 teve fundamentalmente como finalidade a resolução de um problema antigo de precariedade da posição contratual do rendeiro, que se registava com maior gravidade em algumas explorações agrícolas de certas zonas do País e que motivara, duas décadas antes, a aprovação do Decreto-Lei 39 917, de 23 de Novembro de 1954.

Com efeito, ele não visa regular todos e quaisquer casos de arrendamento de terras incultas mas apenas os já existentes à data da sua aprovação, que o Decreto-Lei 39 917 disciplinara, de forma ineficaz - é o que decorre claramente do preâmbulo do Decreto-Lei 547/74, de onde se extrai o seguinte trecho:

"Em certas zonas do País, particularmente no Ribatejo e na península de Setúbal, existem situações em que a terra inculta foi totalmente aproveitada por famílias de agricultores que, com base em contratos de arrendamento, a desbravaram, cultivaram e valorizaram, nela se fixando com carácter de permanência. [...]

A disciplina jurídica de tais situações era a do arrendamento rural que não contemplava a situação específica de as terras se encontrarem incultas e daí terem-se verificado, desde há dezenas de anos, graves problemas de justiça social, quando o senhorio requeria o despejo ou exigia aumentos de renda [...].

Em 23 de Novembro de 1954 foi publicado o Decreto-Lei 39 917, em que, a propósito dos casos da Quinta da Torre, do concelho de Palmela, e Fernão Ferro, do concelho do Seixal, se estatuiu o princípio de que as benfeitorias feitas nas referidas condições eram propriedade de quem as realizou ou dos seus sucessores na respectiva posse ou fruição.

[...]

Não obstante, a situação continuou até hoje e importa ter em conta que a apropriação, pelo dono da terra, das benfeitorias feitas pelos rendeiros e bem assim o despejo destes das terras que eles ou os seus antepassados cultivaram e onde muitas vezes têm a sua habitação constituem uma forma injusta de exploração da terra e uma violação dos princípios elementares de justiça social.

Esta situação [...] tem de cessar imediatamente, o que se leva a efeito através do presente diploma [itálico aditado]."

No mesmo sentido aponta o artigo 1.º do citado decreto-lei, que delimita o âmbito de aplicação do diploma por referência aos "casos de arrendamento rural em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou de mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e o investimento do rendeiro".

Esta conclusão é ainda reforçada pelo facto de o diploma em análise pretender resolver o problema que esteve na origem do Decreto-Lei 39 917, de 23 de Novembro de 1954, e este se aplicar unicamente a situações de arrendamento já existentes, ou seja, aos rendeiros que, na data de entrada em vigor do diploma, cultivavam as propriedades por ele visadas, situadas nos concelhos de Palmela e Seixal (esta ideia foi confirmada pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no parecer ao processo 185/83, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 25 de Maio de 1984).

Por outro lado, decorre expressamente do preâmbulo do Decreto-Lei 547/74 que as situações de arrendamento rural abrangidas se circunscrevem espacialmente a "certas zonas do País, particularmente no Ribatejo e na península de Setúbal", em que se procedeu à "divisão de herdades em courelas" (pequenas porções de terra, normalmente de formato longo e estreito) e estas "foram entregues à exploração directa de pequenos agricultores".

Trata-se de uma situação de exploração da terra com características especiais, qualificada como "fenómeno de colonização espontânea" pelo preâmbulo do Decreto-Lei 39 917, que ocorreu entre o final do século XIX e o início do século XX na zona do distrito de Setúbal (cf. o enquadramento histórico constante do parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República acima citado). Segundo o preâmbulo do Decreto-Lei 39 917, foi o esforço destes agricultores que tornou cultiváveis os "solos arenosos" e "pouco produtivos" da região da "margem esquerda do Tejo".

Ainda segundo o mesmo preâmbulo, estas explorações agrícolas "apresentam um valor económico, traduzido na mobilização de recursos, até então inactivos, e um interesse social, representado pela estabilidade de vida de apreciável número de famílias rurais". Daí a preocupação do legislador em evitar "o desaparecimento desses núcleos de povoamento" e dar "às famílias fixadas a estabilidade indispensável à continuação do processo iniciado de valorização da terra".

Essa "colonização" (deve, a propósito, salientar-se que o preâmbulo da Portaria 489/77, de 1 de Agosto, se refere ainda aos rendeiros como "colonos-rendeiros") revestiu diversas formas, tais como o aforamento, a venda e o arrendamento, mas foram as situações de arrendamento que suscitaram o problema da instabilidade da exploração e que os Decretos-Leis n.os 39 917 e 547/74 procuraram resolver. Como esclarece o preâmbulo do Decreto-Lei 39 917:

"Em relação à maior parte da área colonizada, em que a terra foi adquirida por compra ou aforamento, o problema da estabilidade da exploração está resolvido. Outro tanto, porém, não sucede com os casos, aliás ainda frequentes [em 1954], em que a posse foi titulada por arrendamento.

[...]

À data do arrendamento os terrenos encontravam-se incultos e cobertos de mato alto, circunstância que, aliada à natural pobreza dos solos e à ausência de água para rega, conduzia a valores da terra bastante diminutos.

[...]

Quando agora o senhorio requer o despejo ou exige aumentos de renda correspondentes ao rendimento das benfeitorias, que, afinal, foram fruto do trabalho e de investimentos exclusivamente da conta dos arrendatários, encontram-se estes absolutamente desprotegidos em face da vigente legislação sobre arrendamento, inadequada para regular fenómenos de colonização."

A limitação espacial do âmbito do diploma é compreensível não só numa perspectiva social mas também económica, atendendo a que o objectivo era contrariar o subaproveitamento agrícola das terras e este problema se punha com especial acutilância na zona do distrito de Setúbal. Como assinala Maria João Costa Macedo (Geografia da Reforma Agrária, Europa-América, 1985, pp. 20 e 21), o problema da "reduzida percentagem de solos susceptíveis de utilização agrícola" era tão grave no distrito de Setúbal que, aí, a cultura agrícola parecia "estar quase condenada". O estudo desta autora confirma ainda a especial situação das zonas geográficas identificadas pelo preâmbulo do Decreto-Lei 547/74, em função da reduzida área média das explorações agrícolas existentes (ob. cit., pp. 108 e 262).

Por outro lado, importa realçar que o Decreto-Lei 547/74 tem por contexto histórico a "reforma agrária" que ocorreu em Portugal em meados da década de 70 mas enquadrando-se num período (1974) de iniciativas reformistas moderadas que visaram a "penalização do abandono e do insuficiente aproveitamento" dos solos agrícolas. Só numa fase posterior (em 1975 e 1976) se procedeu a uma intervenção estatal nas explorações agrícolas, ocupações, expropriações e nacionalizações (António Barreto, Anatomia de Uma Revolução - A Reforma Agrária em Portugal 1974-1976, Europa-América, 1987, pp. 98 a 103, 193 e 256 a 258).

Aliás, as explorações agrícolas visadas pelo diploma em análise correspondem a áreas de pequena dimensão, diferenciando-se das que constituíram o objecto da reforma agrária (explorações capitalistas latifundiárias) - cf. Afonso de Barros, A Reforma Agrária em Portugal: Das Ocupações de Terras à Formação das Novas Unidades de Produção, Instituto Gulbenkian de Ciência, 1979, pp. 145 e 146.

Utilizando a síntese de António Barreto (ob. cit., p. 258), o Decreto-Lei 547/74 pretendeu contrariar o "subaproveitamento dos solos agrícolas" e revela "uma vontade de justiça social ao permitir aos rendeiros [...] o acesso à propriedade nas terras que arrotearam e valorizaram durante anos". Esse objectivo legal, de consolidação da posição jurídica do rendeiro face à terra por este cultivada, reduz-se - como se viu - a um certo tipo de explorações agrícolas, delimitadas no tempo e no espaço.

Tendo como líquido que o âmbito de aplicação temporal da norma se limita aos arrendamentos então vigentes, há-de reconhecer-se e apesar do que se disse que a letra da lei não especifica qualquer delimitação espacial da norma, diferentemente do que sucedia com o Decreto-Lei 39 917, onde eram expressamente referidas as propriedades Quinta da Torre e Foros de Fernão Ferro (corpo do artigo 1.º).

9 - De todo o modo, ainda que se não delimite o âmbito de aplicação do Decreto-Lei 547/74 nos exactos termos do Decreto-Lei 39 917, hão-de necessariamente ter-se como geograficamente muito circunscritas as situações abrangidas na previsão da norma.

Note-se que está em causa - reafirma-se - um conjunto restrito de arrendamentos rurais em que, cumulativamente, a terra i) tenha sido dada de arrendamento em estado de mato ou inculta e ii) se tenha tornado produtiva mediante o trabalho e o investimento do rendeiro (neste sentido, cf. o Acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Março de 1977 e os Acórdãos da Relação de Évora de 18 de Abril e de 30 de Maio de 1978 (todos publicados em Colectânea de Jurisprudência, respectivamente, 1977, ano II, t. 2, p. 387, 1978, ano III, t. 2, p. 579, e 1978, ano III, t. 4, p. 1388).

Acresce que o direito de remição consagrado no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74 não é atribuído a todos os arrendatários rurais mas apenas aos "pequenos agricultores" (terminologia do preâmbulo) que cultivem a terra directamente ou através de membro do seu agregado familiar - v., neste sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 14 de Março de 1978 (Colectânea de Jurisprudência, 1978, ano III, t. 2, p. 544). Estão, assim, em causa apenas as explorações agrícolas de tipo familiar, correspondentes ao conceito legal hodierno de "agricultor autónomo" (cf. a definição constante do n.º 4 do artigo 3.º da Lei 109/88, de 26 de Setembro, adoptada pelo RAR, através da remissão material constante do artigo 39.º deste último diploma).

Por outro lado, com alto grau de probabilidade, parte dos contratos de arrendamento abrangidos pelo Decreto-Lei 547/74 em que não houve remição terão entretanto caducado, uma vez que já passaram 31 anos desde a aprovação do diploma e a transmissão por morte da posição jurídica de arrendatário só se opera uma vez (excepto se ela se deferir ao cônjuge sobrevivo, caso em que se transmite, uma segunda vez, aos parentes ou afins do primitivo arrendatário) - artigo 23.º do RAR.

Num contexto em que se visa, de acordo com o preâmbulo, fazer cessar uma "forma injusta de exploração da terra" e uma "violação dos princípios elementares de justiça social", consolidando a posição jurídica do rendeiro relativamente à terra que cultiva, poderia entender-se que o direito de aquisição da propriedade da terra contido no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74 se configura como uma forma de solucionar um conflito de direitos de propriedade: por um lado, o direito de propriedade da terra e, por outro, o direito de propriedade das benfeitorias realizadas, este expressamente atribuído ao rendeiro.

10 - Poderia, então, tender-se a aproximar este caso das situações de acessão industrial, em particular das reguladas no artigo 1340.º, n.º 1, do Código Civil, nos termos do qual a realização de obras, sementeiras e plantações, que tiverem trazido à totalidade do prédio maior valor que este tinha antes, confere ao seu autor a faculdade de adquirir a propriedade do prédio mediante o pagamento de uma indemnização.

Essa aproximação justificar-se-ia não apenas por uma hipotética situação de conflito de direitos como também pelo desvio, em ambos os tipos de casos, à regra segundo a qual a realização de benfeitorias por pessoa diferente do proprietário da coisa dá apenas lugar ao levantamento dessas benfeitorias (quando possam ser levantadas sem detrimento da coisa) e a um direito de indemnização (cf. artigos 1273.º a 1275.º, 1046.º, 1138.º e 1450.º do Código Civil e artigo 15.º do RAR, aprovado pelo Decreto-Lei 385/88).

A verdade, porém, é que só aparentemente as situações de remição e de acessão industrial são semelhantes.

Em primeiro lugar, a dificuldade em conciliar os direitos em presença surge, no caso da remição, devido a acto do próprio rendeiro, ao fazer cessar, por sua iniciativa, a relação jurídica de arrendamento.

Em segundo lugar, no caso da remição, os direitos de propriedade não surgem em planos independentes, como sucede na acessão. Nesta não existe um nexo jurídico entre a pessoa e a coisa beneficiada, ao contrário do que acontece na remição, que pressupõe uma relação jurídica validamente constituída (o contrato de arrendamento rural), anterior ao facto aquisitivo, em que os direitos e deveres das partes se encontram previamente fixados.

Por último, no caso da remição não há rigorosamente um conflito de direitos que demande, como na acessão, a ablação de um direito em favor do outro - os direitos, no caso, podem subsistir sem contenderem um com o outro.

A resolução da questão de constitucionalidade deverá, pois, assentar numa linha argumentativa diversa da que subjaz ao Acórdão 205/2000 deste Tribunal (ATC, 47.º vol., pp. 117 e segs.), que precisamente se pronunciou sobre a constitucionalidade do disposto no artigo 1340.º, n.os 1 e 4, do Código Civil.

B) O fundamento constitucional da limitação ao direito de propriedade contida na norma questionada

11 - Embora o direito fundamental de propriedade privada, previsto no artigo 62.º da Constituição, esteja integrado no título III da parte I da Constituição ("Direitos e deveres económicos, sociais e culturais"), o Tribunal Constitucional tem afirmado repetidamente que este direito é, numa certa dimensão, um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, sendo-lhe nessa medida aplicável o respectivo regime, nos termos do artigo 17.º da Constituição.

Dessa dimensão do direito de propriedade privada que tem natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias faz, seguramente, parte o direito de cada um a não ser privado de modo arbitrário da sua propriedade - e, ainda assim, tão-só com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.

Neste sentido tem, aliás, decidido, de modo uniforme, o Tribunal - cf. os Acórdãos n.os 1/84, 14/84 e 329/99 (ATC, respectivamente, 2.º vol., pp. 173 e 339 e segs., e 44.º vol., pp. 129 e segs.), para além do já citado Acórdão 187/2001.

12 - O requerente questiona a conformidade constitucional da norma em apreço, na medida em que esta configura uma "ablação de um direito de um particular a favor de outro particular" e a Constituição só permitiria limitações a este direito "por requisição e expropriação por utilidade pública".

É manifesto que não estamos perante um caso de expropriação por utilidade pública. No seu sentido técnico, a expropriação não abrange todos os casos em que a um particular pode ser retirada a propriedade. Como se escreveu no já mencionado Acórdão 205/2000:

"A expropriação não é um conceito equivalente ao de desapropriação forçada ou de ablação de direitos sobre coisas, em todas as modalidades que estas figuras podem apresentar. Não são actos de expropriação, por exemplo (a não ser num sentido demasiado lato, desprovido de interesse prático), os mecanismos de desapossamento destinados a assegurar a execução coactiva das obrigações do devedor através da penhora e venda forçada de bens em processo civil, nem os actos de apreensão e confisco ditados por razões penais ou de segurança.

A expropriação é um modo de aquisição de direitos sobre coisas que tem em vista proporcionar o aproveitamento directo dos bens pela entidade expropriante, sempre que a sua utilização se torna necessária para realizar determinados fins de interesse geral (obras públicas, reforma agrária, controlo da economia, protecção do património, entre os mais frequentes). É um acto, portanto, que assenta na prevalência da utilidade administrativa de um bem, para o Estado ou para outra entidade com atribuições de interesse público, em confronto com a utilidade que ele representa para o seu detentor particular. Nisso reside a justificação do sacrifício imposto ao direito do proprietário e, simultaneamente, a raiz do perfil histórico da expropriação como ponto de tensão especialmente sensível nas relações entre o poder público e os direitos individuais.".

A norma questionada no presente processo visa permitir a um particular (o rendeiro) a aquisição da propriedade da terra por ele cultivada e não proporcionar a uma entidade com atribuições de interesse público o aproveitamento directo da terra, para realização de fins de utilidade pública. Não pode, assim, qualificar-se a situação em presença como expropriação por utilidade pública.

Em todo o caso, não pode subscrever-se a interpretação do artigo 62.º da Constituição, feita pelo requerente, segundo a qual a expropriação e a requisição são os únicos limites constitucionalmente admissíveis ao direito de propriedade.

Se o n.º 2 do artigo 62.º estabelece as condições a que obedece a expropriação, dele não decorre que essa seja a única limitação admissível ao direito garantido no n.º 1 do mesmo preceito. Na verdade, aqui apenas se estabelece que tal direito é garantido "nos termos da Constituição", devendo naturalmente o alcance desta garantia ser compatibilizado com outros valores constitucionalmente consagrados.

Ou seja: a lei fundamental não impede a existência de outras limitações ou restrições ao direito de propriedade (incluindo actos "ablativos") para além das que resultam da expropriação e da requisição.

O que a Constituição proíbe é, desde logo, a ablação do direito de propriedade, sem que os actos que a consubstanciam estejam suficientemente ancorados em outras normas ou princípios constitucionais dos quais resulte a necessidade da ablação da propriedade.

Neste sentido se pronunciaram, reportando-se a limitações ao direito de propriedade, os Acórdãos n.os 391/2002 e 491/2002 (ATC, respectivamente, 54.º vol., pp. 323 e segs. e 173 e segs.), com apoio na doutrina e na jurisprudência constitucional anterior, que se dispensa aqui de reproduzir. Destaca-se da primeira decisão o seguinte:

"A tutela constitucional do direito à propriedade não significa, porém, que o legislador não possa consagrar em determinados casos limitações ou restrições a esse direito [...]. Com efeito, não é incompatível com a tutela constitucional da propriedade a compressão desse direito, desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade constitucional, que tais limitações ou restrições se afiguram necessárias à prossecução dos outros valores prosseguidos e na medida em que essas limitações se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados. [...].

Na ordem axiológica constitucional é possível, pois, encontrar fundamento legítimo para a restrição de dimensões mais ou menos abrangentes do direito de propriedade. Com efeito, consubstanciando a Constituição uma multiplicidade de valores, há que proceder à compatibilização e harmonização desses valores, o que implicará, em determinados casos, compressões ou afectações, em face de uma ponderação de interesses assente em critérios também eles constitucionalmente relevantes. Não é, portanto, procedente sustentar [...] que a Constituição apenas admite limitações ao direito de propriedade no caso de expropriação por utilidade pública."

À tutela do direito de propriedade consagrada na lei fundamental não subjaz, portanto, uma concepção absoluta deste direito a extensão da protecção é necessariamente limitada pela complexa ordem de valores constitucional. O que a este propósito transparece da Constituição é um novo conceito do direito de propriedade que transcende as velhas concepções do liberalismo oitocentista, como se salientou no Acórdão 76/85 (ATC, 5.º vol., pp. 207 e segs.):

"[A] velha concepção clássica da propriedade, o jus utendi ac abutendi individualista e liberal, foi, nomeadamente, nas últimas décadas deste século, cedendo o passo a uma concepção nova daquele direito em que avulta a sua função social."

Ora, esta outra concepção pode considerar-se relevante nos casos de propriedade sobre os meios de produção como acontece na situação em apreço - pelas seguintes razões.

Em primeiro lugar, quando está em causa a propriedade no sector produtivo do País, é nítido o relevo da dimensão social do direito de propriedade privada porque a utilização racional dos elementos produtivos (nomeadamente de um elemento radicalmente escasso, porque não reprodutível, como é o caso da terra) tem efeitos que de algum modo ultrapassam a esfera de interesses do seu proprietário. Os elementos produtivos são bens geradores de rendimentos e de desenvolvimento económico, cujos benefícios não são apropriados apenas pelo proprietário, mas se estendem a toda a colectividade. Essa circunstância leva também a que a ordenação da propriedade dos meios de produção observando embora as garantias constitucionais do direito de propriedade tenha consequências colectivas em termos de distribuição do rendimento e, portanto, de justiça social.

Ambos os aspectos referidos - a promoção do desenvolvimento económico e da justiça na distribuição do rendimento - estão claramente incluídos entre as tarefas fundamentais do Estado, consagradas no artigo 9.º da Constituição, nomeadamente, na sua alínea d).

Em segundo lugar, a especial densidade que o nosso texto constitucional confere à estrutura económica do País leva a que a chamada "constituição económica" seja uma fonte importante de limitações ao alcance do direito de propriedade. Tais limitações podem assumir especialmente relevância no que toca à propriedade rural, dado que os artigos 93.º a 98.º espelham um objectivo constitucional de transformação da realidade agrícola e florestal, admitindo, explicitamente, constrangimentos à propriedade fundiária, incluindo a forma extrema de privação total.

A interacção entre a constituição económica e a garantia da propriedade foi profusamente analisada por este Tribunal (e, antes dele, pela Comissão Constitucional: v., por exemplo, o parecer 32/82, publicado em Pareceres da Comissão Constitucional, 21.º vol., INCM, 1985, pp. 63 e segs, e o Acórdão da Comissão Constitucional n.º 460, publicado em apêndice ao Diário da República, de 23 de Agosto de 1983), a propósito da remição da colonia - questão, de algum modo, semelhante à que aqui se analisa. De entre a jurisprudência em questão, destaca-se o seguinte trecho do Acórdão 404/87 (ATC, 10.º vol., pp. 391 e segs.):

"[A pretensa violação da garantia do direito de propriedade pela remição da colonia] é afastada quando se considere tal garantia, consignada no artigo 62.º da Constituição, não isoladamente, mas no contexto global da lei fundamental. Na verdade, se essa garantia exclui em princípio, atenta a sua mesma natureza e o seu núcleo essencial (cf., de resto, o artigo 62.º, n.º 2), a possibilidade de um particular obter coactivamente de outro a alienação em seu favor de coisa pertencente ao primeiro (e a uma hipótese deste tipo, há-de reconhecer-se, se reconduz o direito de remição em causa), ela não pode, todavia, deixar de compaginar-se com os princípios constitucionais dos quais decorrem mais ou menos extensos limites, ou a possibilidade de mais ou menos extensas restrições, ao seu conteúdo e alcance - e tais princípios dão suficiente cobertura à restrição ou limite em que se traduz o direito de remição da terra concedida ao colono-rendeiro. Por outras palavras: o direito de propriedade só se acha garantido, como se diz no próprio artigo 62.º, n.º 1, 'nos termos da Constituição', mas estes termos autorizam aquela restrição ou limite a esse direito.

Que é assim resulta logo do sentido geral das normas e princípios constitucionais relativos à reforma agrária, apontando eles, como apontam, para uma profunda 'transformação das estruturas fundiárias' e para a transferência progressiva da posse útil da terra para aqueles que a trabalham, e resulta depois, especificamente, do artigo 101.º, n.º 2, que na sua redacção primitiva determinou a extinção do regime de colonia e na actual redacção o proíbe [artigos 93.º, n.º 1, alínea b), e 96.º, n.º 2, do actual texto da Constituição]. Nesta disposição, atenta aquela ideia genérica inspiradora da reforma agrária e a natureza das situações constituídas através do contrato de colonia, não pode, com efeito, deixar de ver-se, no mínimo, uma base constitucional bastante para o legislador conceder aos colonos-rendeiros o direito de porem termo ao contrato de colonia através da remição da propriedade da terra onde implantaram benfeitorias, o que vale dizer, a 'expropriarem' a terra em seu proveito. Que aí se verifica uma excepcional restrição do direito de propriedade do senhorio é inquestionável; só que se trata, atento o que fica dito, de uma restrição que, porque 'prevista na Constituição', cabe no elenco daquelas que a mesma consente, nos termos do seu artigo 18.º, n.º 2."

A invocação que aqui se faz da remição da colonia afigura-se inteiramente pertinente.

É sabido, com efeito, que, depois de o Decreto-Lei 47 937, de 15 de Setembro de 1967, ter proibido a celebração futura da colonia (mantendo, no entanto, as situações preexistentes), a Constituição determinou, no seu artigo 101.º, n.º 2 (versão originária), a extinção do regime da colonia. E na sequência desta prescrição constitucional, o Decreto Regional 13/77/M, de 18 de Outubro, estabeleceu, no artigo 3.º, um direito de remição em favor do colono-rendeiro. Essa norma foi objecto de um juízo de não inconstitucionalidade em diversos acórdãos deste Tribunal (cf., entre outros, o já mencionado Acórdão 404/87), apesar de se reconhecer que "a remição da propriedade do solo, oponível unilateralmente ao respectivo dono, é algo que afecta em cheio o direito de propriedade deste último" (citado Acórdão 404/87).

Ora, é patente alguma semelhança entre a remição da colonia e a remição do arrendamento rural admitida na norma aqui em apreciação: em ambos os casos está em causa uma "transmissão forçada" do direito de propriedade sobre a terra, do proprietário de raiz para o cultivador; em ambos os casos existe uma especial responsabilidade do cultivador em dotar a terra de condições produtivas; e em ambos os casos a intervenção legislativa ocorreu num momento de transição constitucional, visando transformar as formas de utilização produtiva da terra em favor do cultivador. Isto não obstante - há que reconhecê-lo - o respaldo constitucional da remição da colonia ter derivado, em grande parte, do referido artigo 101.º, n.º 2, da Constituição, sem que no entanto se tenha deixado de ponderar os comandos constitucionais relativos à política agrícola.

É também sabido que o mesmo artigo 101.º, n.º 2, da Constituição proibiu ainda o regime de aforamento, onde se podem distinguir dois direitos de propriedade (cf. José de Oliveira Ascensão, Direito Civil - Reais, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1983, pp. 572 e segs.), sendo certo que à data da aprovação da Constituição já estavam extintos os foros, relativos aos prédios rústicos, por força do Decreto-Lei 195-A/76, de 16 de Março.

Nesse diploma, determina-se a transferência ope legis do domínio directo dos prédios para o titular do domínio útil (artigo 1.º, n.º 1), sem que se conceda, em termos gerais, ao titular do domínio directo qualquer indemnização - esta só está prevista nos casos em que o titular do domínio directo seja pessoa singular com rendimento mensal inferior ao salário mínimo mensal nacional (artigo 2.º, n.º 1).

Ora, a posição de rejeição de formas de exploração da terra de reconhecida injustiça social - enfiteuse e colonia - que o legislador constituinte assume alicerça-se claramente em valores de protecção do cultivador, plasmados na Constituição (cf. os artigos 93.º, n.º 1, e 96.º).

E não é ousado admitir-se que essa mesma rejeição e esses mesmos valores legitimam constitucionalmente o disposto no artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei 547/74, tendo em conta a precariedade da situação jurídica do arrendatário rural que, nos termos do regime geral do arrendamento rural, poderia ser despejado, com perda das benfeitorias por ele realizadas numa terra que fora dada de arrendamento inculta e onde se instalara com carácter de permanência.

C) As exigências do princípio da proporcionalidade, em sentido amplo

13 - Estabelecida a existência de um fundamento constitucional legítimo para a prevalência do direito do rendeiro face ao direito do proprietário/senhorio resultante do disposto no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74, importa ainda verificar se a norma em causa, enquanto permite que o rendeiro se torne dono da terra, respeita o princípio da proporcionalidade.

No Acórdão 634/93 (ATC, 26.º vol., pp. 205 e segs.), o Tribunal Constitucional caracterizou o princípio da proporcionalidade nos seguintes termos:

"[O] princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)."

O princípio da adequação ou idoneidade exige, pois, que as medidas restritivas "sejam aptas a realizar o fim visado com a restrição ou contribuam para o alcançar" (Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Previstas na Constituição, Coimbra Editora, 2003, p. 731). De acordo com este controlo de aptidão, devem apenas considerar-se inidóneas as medidas restritivas cujos efeitos sejam "indiferentes, inócuos ou até negativos, tomando como referência a aproximação do fim prosseguido com a restrição" (ob. cit., p. 738).

14 - No caso sub iudice, o legislador teve por objectivo impedir a apropriação pelo senhorio das benfeitorias realizadas pelo rendeiro e o despejo deste das terras por si cultivadas, onde, muitas vezes, tinha habitação (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei 547/74). Ora, o artigo 5.º do mencionado decreto-lei, ao atribuir ao rendeiro o direito de remir o arrendamento, tornando-se proprietário do solo, obsta à apropriação das benfeitorias pelo senhorio e, fundamentalmente, permite que o rendeiro se mantenha na propriedade por ele cultivada. E, assim sendo, a solução legal questionada não pode considerar-se inadequada aos fins visados pelo legislador.

No que se refere ao princípio da exigibilidade, o que está em causa, como se disse no acima mencionado Acórdão 187/2001, é proceder a "uma avaliação in concreto da relação empírica entre as medidas e os seus previsíveis efeitos, à luz dos fins prosseguidos, para apurar a previsível maior ou menor consecução dos objectivos pretendidos, perante as alternativas disponíveis". Trata-se, assim, de uma tarefa de comparação entre as alternativas, para avaliar qual delas se apresenta menos onerosa ou restritiva.

Recorde-se, a propósito, que o requerente invoca a violação dessa vertente do princípio da proporcionalidade, com a alegação de que a medida questionada é desnecessária, por existirem meios menos gravosos de tutela dos interesses do rendeiro, previstos no próprio Decreto-Lei 547/74: a consagração de que as benfeitorias são propriedade do rendeiro (n.º 1 do artigo 2.º) e a limitação da possibilidade de o senhorio resolver o contrato de arrendamento aos casos em que o rendeiro não pague a renda em dois anos consecutivos ou em que o rendeiro prejudique gravemente a potencialidade produtiva da terra (n.º 1 do artigo 4.º).

Ora, quanto à primeira medida, não se apresenta ela, em si mesma, como uma solução adequada. Isto, desde logo, porque não evita que o rendeiro seja desapossado das benfeitorias, caso cesse o contrato de arrendamento e aquelas não possam ser separadas do solo. Restar-lhe-ia apenas o direito a ser indemnizado. Neste sentido se pronunciam Jorge Aragão Seia, Manuel Costa Calvão e Cristina Aragão Seia (Arrendamento Rural, 4.ª ed., Almedina, 2003, p. 113):

"O rendeiro é sempre indemnizado pelas benfeitorias. É porque de duas uma: ou ele faz as benfeitorias de acordo com ambas as partes, e estamos em presença de um acordo de liberdade contratual e então tem direito à sua indemnização, ou ele pode, em caso de denúncia do contrato, ser indemnizado pelas benfeitorias que fez em caso de não as poder levantar."

Por outro lado, os interesses do rendeiro tutelados pela norma não se resumem à obtenção do valor patrimonial das benfeitorias, abrangendo, ainda, a estabilização da sua posição jurídica, como medida de justiça social, pondo fim ao que se considera ser uma forma injusta de exploração dos solos.

E, sendo assim, não se vê que outros meios se pudessem equacionar para salvaguarda daqueles interesses, designadamente num quadro de arrendamento rural, com cláusulas especialmente protectoras da posição do rendeiro.

Finalmente, impõe-se confrontar a medida ablativa sub iudice com o princípio da proporcionalidade, em sentido estrito, ou seja, avaliar se a medida e os fins obtidos se situam numa "justa medida", ou se, pelo contrário, aquela é desproporcionada ou excessiva em relação a estes fins (cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed. revista, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 393).

A este propósito o requerente sustenta que o n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74 viola o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, qualificando a ablação do direito de propriedade do senhorio como "desproporcionada, excessiva e injusta".

Para que se possa concluir se a norma questionada respeita o princípio da proporcionalidade impõe-se averiguar se o prejuízo que ela causa ao senhorio (ablação do direito de propriedade) é ou não desproporcionado em relação ao benefício que com ela se espera obter (consolidação da posição jurídica do rendeiro relativamente à terra que cultiva e às benfeitorias nela realizadas).

Não se discute a gravidade do sacrifício imposto ao senhorio - a remição do arrendamento afecta de forma extrema o direito de propriedade do dono da terra.

Todavia, tal não basta para suportar a posição assumida pelo requerente.

Recorde-se que a medida em causa de algum modo se configura como sucedânea da que se previa no Decreto-Lei 39 917. Neste, as terras eram expropriadas (expropriação por utilidade pública) e adjudicadas à Junta de Colonização Interna; o valor das terras expropriadas era aquele que teriam no estado de incultas, apenas acrescido das benfeitorias realizadas pelos proprietários; seria também por esse valor que as terras seriam posteriormente vendidas aos cultivadores.

Ou seja, enquanto no regime do Decreto-Lei 39 917 a transmissão da propriedade para os cultivadores era intermediada por uma expropriação e uma venda, no regime do Decreto-Lei 547/74 ela é feita através de uma relação directa proprietário/arrendatário, com o exercício do direito de remição concedido ao arrendatário. Em ambos os casos o senhorio perde o direito de propriedade; em ambos os casos o valor a pagar ao proprietário (a indemnização ou o preço, respectivamente) corresponde ao valor das terras no estado de incultas.

Ora, neste contexto, tratando-se de arrendamento rural em que as terras tenham sido dadas de arrendamento no estado de incultas e se tenham tornado produtivas por acção do rendeiro, o valor das benfeitorias realizadas nas terras por acção do rendeiro não pode ser contabilizado como prejuízo do senhorio. O prejuízo do senhorio apenas pode corresponder à perda do valor da propriedade, excluídas as benfeitorias.

Caso o rendeiro pretenda remir o arrendamento (o exercício do direito de remição é facultativo), a perda da propriedade da terra é compensada pelo pagamento ao senhorio de um preço (n.º 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74). E esse preço não pode considerar-se injusto, em face dos critérios do citado n.º 2.

Sendo grave o sacrifício imposto ao senhorio, tal não deixa de implicar que se avalie essa gravidade "em associação com a importância e a imperatividade das razões que a justificam" (cf. Jorge Reis Novais, ob. cit., p. 755).

Ora, no caso, como resulta do que atrás se disse, são, à luz da Constituição, de extrema relevância as razões que justificam a medida, numa linha que decorre dos já citados artigos 93.º, n.º 1, alínea b), e 96.º, n.º 1, da Constituição.

Escrevem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., p. 1049), em comentário ao artigo 93.º da lei fundamental:

"Entre os vários intervenientes nas relações de produção agrícolas, a Constituição só cuida dos trabalhadores rurais e dos agricultores [n.º 1, alínea b)]. Essa preferência traduz a prevalência dos interesses dos que 'trabalham a terra' (mesmo preceito) e dos 'cultivadores' (artigo 96.º, n.º 2) sobre os interesses dos proprietários fundiários, os quais cedem perante aqueles (artigos 94.º e 96.º) [...].

Esta preferência pelo direito do trabalho e da exploração agrícola directa sobre o direito de propriedade fundiária bem como a protecção especial devida aos pequenos e médios agricultores (que são coerentes com os valores gerais da Constituição) não podem deixar de ser valorizadas no plano da interpretação das normas da 'constituição agrícola' e do seu desenvolvimento legislativo."

Face à nossa ordem constitucional de valores, o direito de aquisição da propriedade conferido ao rendeiro pela norma questionada não pode, assim, qualificar-se como excessivo ou injusto.

E, a este propósito, deve, ainda, ter-se presente que, nas situações em que a avaliação da limitação ou restrição pelo critério da proporcionalidade se revele complexa, como poderá ser o caso, o Tribunal Constitucional tem reconhecido ao legislador uma prerrogativa de avaliação ou crédito de confiança, reservando a sua intervenção apenas para as situações de ultima ratio.

Escreveu-se no já citado Acórdão 187/2001:

"[N]ão pode deixar de reconhecer-se ao legislador diversamente da administração [...] uma 'prerrogativa de avaliação', como que um 'crédito de confiança', na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objectivos visados com a medida [...]. Tal prerrogativa da competência do legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação [...] afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é social ou economicamente complexa e a objectividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.

[E]m casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação - como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida -, ser resolvidas contra a posição do legislador.

[A] própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detectar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa."

Também no caso em apreço a qualificação da ablação do direito de propriedade do senhorio como "justa medida" pressupõe uma avaliação material que se encontra muito próxima dos limites do poder jurisdicional, na fronteira com o poder legislativo. Ora, atenta a ponderação dos valores em jogo, supradesenvolvida, e não constituindo erro manifesto de apreciação a opção tomada pelo legislador com a aprovação do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74, entende-se que, igualmente aqui, o legislador deve beneficiar do mencionado crédito de confiança, tudo concorrendo para se julgar isenta de inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade, a norma em causa.

IV - Decisão

15 - Face ao exposto, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei 547/74, de 22 de Outubro.

Lisboa, 6 de Março de 2007. - Maria Helena Brito - Mário José de Araújo Torres - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza - Vítor Gomes - Rui Manuel Moura Ramos - Benjamim Rodrigues - Bravo Serra - Maria Fernanda Palma - Gil Galvão - Maria João Antunes - Paulo Mota Pinto - Carlos Pamplona de Oliveira (vencido conforme declaração que junto) - Artur Maurício.

Declaração de voto

Vencido pelas razões que passo sumariamente a expor:

I - O Decreto-Lei 547/74, de 22 de Outubro, em que se inscreve a norma em apreço, apresenta, no seu preâmbulo, a seguinte justificação:

"1 - Em certas zonas do País, particularmente no Ribatejo e na península de Setúbal, existem situações em que a terra inculta foi totalmente aproveitada por famílias de agricultores que, com base em contratos de arrendamento, a desbravaram, cultivaram e valorizaram, nela se fixando com carácter de permanência. Normalmente, tratou-se de divisão de herdades em courelas, que foram entregues à exploração directa de pequenos agricultores.

A disciplina jurídica de tais situações era a do arrendamento rural que não contemplava a situação específica de as terras se encontrarem incultas e daí terem-se verificado, desde há dezenas de anos, graves problemas de justiça social, quando o senhorio requeria o despejo ou exigia aumentos de renda, tendo em conta o rendimento das benfeitorias que haviam sido fruto do trabalho e de investimentos exclusivos dos rendeiros.

Em 23 de Novembro de 1954 foi publicado o Decreto-Lei 39 917, em que, a propósito dos casos da Quinta da Torre, do concelho de Palmela, e Fernão Ferro, do concelho do Seixal, se estatuiu o princípio de que as benfeitorias feitas nas referidas condições eram propriedade de quem as realizou ou dos seus sucessores na respectiva posse ou fruição. O Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar sobre a inconstitucionalidade daquele diploma, invocada pelos proprietários, decidiu negativamente, acolhendo o princípio estabelecido no referido diploma legal.

2 - Não obstante, a situação continuou até hoje e importa ter em conta que a apropriação, pelo dono da terra, das benfeitorias feitas pelos rendeiros e bem assim o despejo destes das terras que eles ou os seus antepassados cultivaram e onde muitas vezes têm a sua habitação constituem uma forma injusta de exploração da terra e uma violação dos princípios elementares de justiça social.

Esta situação, que está em manifesta oposição com os princípios do programa do Governo provisório, tem de cessar imediatamente, o que se leva a efeito através do presente diploma, que não só atribui ao rendeiro o direito às benfeitorias, como cria as condições para, à semelhança dos aforamentos, se poderem extinguir os contratos existentes, através da consolidação, na pessoa do rendeiro, do direito da propriedade do solo, mediante remição."

No artigo 1.º do diploma dispõe-se:

"Artigo 1.º

Os casos de arrendamento rural em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro regem-se, além do disposto na lei sobre o arrendamento rural, pelas disposições especiais constantes dos artigos seguintes."

A norma acabada de transcrever revela que o diploma se aplica em todo o território nacional. Esta conclusão não é contrariada pela leitura do referido relatório, de onde ressalta que, face às particulares circunstâncias históricas e políticas do momento ("os princípios do programa do Governo provisório"), o legislador visou fazer extinguir os contratos "em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro", generalizando, para esse efeito, o regime já anteriormente adoptado no Decreto-Lei 39 917, de 23 de Novembro de 1954, em determinados casos localizados. Fê-lo - curiosamente -, com a justificação de que tal regime se apresentava comprovadamente compatível com a Constituição (de 1933, ainda em vigor) "o Supremo Tribunal de Justiça, ao julgar sobre a inconstitucionalidade daquele diploma, invocada pelos proprietários, decidiu negativamente, acolhendo o princípio estabelecido no referido diploma legal".

Ora, se não parece lícito duvidar de que o regime assim criado passaria a aplicar-se a todos os "casos de arrendamento rural em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro", em todo o território nacional, igualmente não oferece dúvida de que se tratava de uma medida destinada a corrigir uma situação que, no entender do legislador de 1974, constituía "uma forma injusta de exploração da terra e uma violação dos princípios elementares de justiça social", que teria "de cessar imediatamente", através da "consolidação, na pessoa do rendeiro, do direito da propriedade do solo, mediante remição".

Não é, assim, possível acompanhar o acórdão na parte em que circunscreve o âmbito de aplicação do diploma a certas zonas do território continental, designadamente àquelas que já eram abrangidas pelo Decreto-Lei 39 917, de 23 de Novembro de 1954, diploma que, aliás, se deve ter por revogado, sem necessidade de menção expressa, pelo decreto-lei de 1974.

II - Por razões que radicam precisamente no alargamento das situações que o diploma visava regular, face ao que passava com o diploma de 1954, também não acompanho o julgamento que resulta do acórdão quanto à vigência da norma em apreço.

Com efeito, o aludido regime especial encontra a sua justificação, como se viu, na vontade de extinguir (fazer "cessar imediatamente") as situações que importariam "violação dos princípios elementares de justiça social"; tais situações decorreriam da concreta conformação do regime de arrendamento rural então existente, e não é admissível pensar que o legislador post-revolução achasse necessário manter esta solução, depois de, ele próprio, ter construído um quadro legal que, de forma estável e permanente, disciplinasse, de acordo com as novas orientações políticas, o arrendamento rural, resultado que inevitavelmente rejeitaria a tal "forma injusta de exploração da terra" determinante da "violação dos princípios elementares de justiça social".

De resto, esse momento chegou três anos depois, com a aprovação da Lei 76/77, de 29 de Setembro, que passou a disciplinar o arrendamento rural, e revogou "toda a legislação existente sobre arrendamento rural" [artigo 53.º da Lei do Arrendamento Rural (LAR)], com excepção de situações aqui irrelevantes, como os arrendamentos para fins florestais e os arrendamentos em que o Estado era senhorio na zona de intervenção da Reforma Agrária, que seriam alvo de legislação especial (artigo 47.º da LAR).

É neste cenário legislativo que se sistematiza o artigo 48.º desta Lei 76/77, ao proclamar:

"Artigo 48.º

1 - O Governo, no prazo máximo de seis meses e através de decreto-lei, procederá à revisão do Decreto-Lei 547/74, de 22 de Outubro.

2 - Fica desde já revogado o artigo 3.º do diploma referido no número anterior.

3 - A competência atribuída às comissões arbitrais nos artigos 5.º, 7.º e 8.º do referido diploma passa a caber ao tribunal da comarca da residência do arrendatário, aplicando-se ao processo as normas gerais."

Acontece que o Governo, "no prazo máximo de seis meses e através de decreto-lei", não procedeu à revisão do de 22 de Outubro. Aliás, nunca se procedeu a essa revisão.

A omissão tem, a meu ver, a seguinte consequência: o Decreto-Lei 547/74 perdeu a sua vigência, quer se entenda que foi revogado pela cláusula geral revogatória constante do artigo 53.º da LAR já citado - uma vez que o Governo não quis disciplinar, com especialidade, a matéria -, quer se entenda que a nova lei tratou in totum do arrendamento rural, caducando, pelo decurso do aludido prazo, a possibilidade de se manter no ordenamento jurídico uma regulamentação especial quanto a esta matéria, quer finalmente se entenda que o n.º 1 do artigo 48.º deve ser interpretado como uma norma revogatória sujeita a um certo prazo e a uma determinada condição, que produziu os seus efeitos revogatórios com o decurso do prazo sem que a condição se tivesse verificado.

Divirjo, portanto, do julgamento quanto à vigência da norma.

III - Todavia, admitindo que, por hipótese, a norma se mantinha em vigor, igualmente não acompanho o acórdão quanto à questão da sua conformidade constitucional, resolvida através da constatação de que "o que a Constituição proíbe é, desde logo, a ablação do direito de propriedade, sem que os actos que a consubstanciam estejam suficientemente ancorados em outras normas ou princípios constitucionais dos quais resulte a necessidade da ablação da propriedade", ou pela transposição dos condicionamentos ao exercício do direito da propriedade para a própria subsistência do direito. É que, por um lado, diversamente do que sucede com o aforamento e a colonia (artigo 96.º, n.º 2, da Constituição da República), a Constituição não contém uma proibição expressa do tipo de arrendamento "censurado" no Decreto-Lei 547/74, de 22 de Outubro. Por outro lado, uma vez que este tipo de arrendamento continua a ser admitido pelo regime de arrendamento rural em vigor, seria incompreensível que o mesmo regime que permite a constituição de tais relações jurídicas preveja simultaneamente a sua extinção, através da "consolidação, na pessoa do rendeiro, do direito da propriedade do solo, mediante remição", para pôr fim a "uma forma injusta de exploração da terra e uma violação dos princípios elementares de justiça social". - Carlos Pamplona de Oliveira.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1563295.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1954-11-20 - Decreto-Lei 39917 - Ministério da Economia - Gabinete do Ministro

    Declara de utilidade pública urgente a expropriação, pela Junta de Colonização Interna, das propriedades denominadas «Quinta da Torre», freguesia da Quinta do Anjo, e «Foros de Fernão Ferro», freguesia de Arrentela, respectivamente dos concelhos de Palmela e do Seixal - Aplica aos referidos terrenos o disposto no Decreto-Lei n.º 37271, de 31 de Dezembro de 1948.

  • Tem documento Em vigor 1967-09-15 - Decreto-Lei 47937 - Ministérios da Justiça e da Economia - Secretaria de Estado da Agricultura

    Proíbe para o futuro os contratos de colonia no arquipélago da Madeira e define os direitos de preferência dos contratos celebrados até à entrada em vigor do presente decreto-lei.

  • Tem documento Em vigor 1974-10-22 - Decreto-Lei 547/74 - Ministérios da Justiça e da Economia

    Estabelece a disciplina jurídica dos casos de arrendamento rural, em que as terras foram dadas de arrendamento no estado de incultas ou em mato e se tornaram produtivas mediante o trabalho e investimento do rendeiro.

  • Tem documento Em vigor 1976-03-16 - Decreto-Lei 195-A/76 - Ministério da Agricultura e Pescas - Gabinete do Ministro

    Determina a abolição da enfiteuse respeitante a prédios rústicos.

  • Tem documento Em vigor 1977-08-01 - Portaria 489/77 - Ministério da Agricultura e Pescas

    Estabelece normas relativas ao processo a seguir para a fixação do preço da terra, de forma que se possa consolidar o direito de propriedade do solo mediante remissão.

  • Tem documento Em vigor 1977-09-29 - Lei 76/77 - Assembleia da República

    Aprova a Lei do Arrendamento Rural.

  • Tem documento Em vigor 1977-10-18 - Decreto Regional 13/77/M - Região Autónoma da Madeira - Assembleia Regional

    Extingue o regime de colónia na Região Autónoma da Madeira.

  • Tem documento Em vigor 1988-09-26 - Lei 109/88 - Assembleia da República

    Aprova a lei de bases da Reforma Agrária.

  • Tem documento Em vigor 1988-10-25 - Decreto-Lei 385/88 - Ministério da Agricultura, Pescas e Alimentação

    Estabelece o novo regime de arrendamento rural.

  • Tem documento Em vigor 1994-04-28 - ACÓRDÃO 231/94 - TRIBUNAL CONSTITUCIONAL

    Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do n.º 3 do artigo 3.º do Regulamento Especial do Regime de Pensões de Sobrevivência, aprovado por despacho ministerial de 23 de Dezembro de 1970 e publicado no Diário da República, 2.ª série, de 26 de Janeiro de 1971, por violação do artigo 13.º da Constituição, e limita os efeitos da inconstitucionalidade, de modo que a declaração de inconstitucionalidade se aplique apenas aos casos pendentes sobre os quais não tenha ainda incidido act (...)

  • Tem documento Em vigor 1997-09-16 - Lei 108/97 - Assembleia da República

    Altera o Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de Março, que extinguiu a enfiteuse relativa a prédios rústicos.

Ligações para este documento

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