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Acórdão 691/2006, de 31 de Janeiro

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Sumário

Não julga inconstitucional a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, quando interpretada no sentido de ser aplicável a contratos, celebrados antes da entrada em vigor desta lei, dos quais conste cláusula estipulando qual o tribunal territorialmente competente para a resolução de eventuais litígios dele emergentes

Texto do documento

Acórdão 691/2006

Processo 937/2006

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:

I - Relatório. - 1 - Nos presentes autos, em que figuram como recorrente o Banco Mais, S. A., e como recorrido Adalberto Gomes Remelgado, o ora recorrente instaurou acção com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias e, "em complemento do já referido na petição inicial", veio juntar aos autos um requerimento em que pretende:

"[A]inda deixar expresso que a Lei 14/2006, de 26 de Abril, na parte e na medida em que altera a redacção do artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, é inconstitucional e, consequentemente, a referida alínea a) do n.º 1 do dito artigo 110.º, com a mencionada redacção, é inconstitucional - logo inaplicável pelos tribunais ex-vi o disposto no artigo 204.º da Constituição da República Portuguesa - na interpretação que permita a aplicação do disposto no referido artigo 110.º, n.º 1, alínea a), a contratos celebrados anteriormente à publicação da referida lei em que as partes tenham optado, nos termos do artigo 100.º, n.os 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, por um foro convencional no que respeita à competência dos tribunais em razão do território, por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignado no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança corolários ambos do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, donde o Tribunal de Lisboa ser o competente para conhecer da presente acção."

2 - Por decisão de 20 de Julho de 2006, foi julgada "verificada a excepção dilatória de incompetência relativa do Tribunal e, consequentemente, determina[da] a remessa dos presentes autos para o tribunal territorialmente competente". O Tribunal fundamentou assim a decisão:

"Atenta a entrada em vigor da Lei 14/2006, de 26 de Abril [que, além do mais, procedeu à alteração do Código de Processo Civil, introduzindo a regra da competência do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações], já vigente à data da apresentação da presente acção (sendo por isso aplicável in casu, por força do disposto no artigo 6.º do referido diploma legal), importa ter em consideração o disposto no artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Civil [na redacção dada pelo mencionado diploma], nos termos do qual 'a acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu.'

Nestes termos, subsumindo-se a presente acção à primeira parte do citado preceito (dado que está em causa o cumprimento de obrigações, sendo o réu uma pessoa singular), necessário se torna concluir que o tribunal competente para a apreciação da mesma é o tribunal do domicílio do réu, sendo certo por outro lado que, por força do disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil [na citada redacção], tal incompetência é de conhecimento oficioso.

Sustenta o A. que o supramencionado preceito não é aplicável ao caso em apreço, alegando por um lado que as partes estipularam validamente como foro convencional o da comarca de Lisboa (cf. o artigo 24.º da PI) e, por outro, que a citada Lei 14/2006 é inconstitucional na medida em que permita a aplicação do disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil a contratos celebrados antes da sua entrada em vigor (cf. o requerimento que faz a fl. 20 dos autos).

Afigura-se-nos, porém, salvo o devido respeito e melhor apreciação, que os argumentos aduzidos pelo A. se mostra[m] improcedentes.

No que respeita à invocada estipulação convencional do foro [da comarca de Lisboa] para dirimir o presente litígio, importa ter em atenção desde logo que a lei apenas permite às partes afastarem mediante convenção expressa nesse sentido - as regras da competência em razão do território em determinados casos, estando expressamente excluídos desse âmbito os casos em que a incompetência é do conhecimento oficioso do tribunal - cf. os artigos 100.º, n.º 1, in fine, e 110.º do Código de Processo Civil. Assim sendo, e considerando ainda que [...] a incompetência em apreço é [agora] de conhecimento oficioso, imperioso se torna concluir que tal estipulação de foro convencional, ainda que porventura fosse válida à data da celebração do contrato, já não é, presentemente, válida, sendo por isso insusceptível de afastar a regra - que assume agora natureza imperativa - prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º do Código de Processo Civil, sendo certo ainda que o legislador não fez qualquer ressalva relativamente à aplicação de tal preceito aos casos em que as partes tivesse previamente estipulado um foro convencional, adoptando como único critério para a aplicação da lei o momento da instauração da acção.

Por outro lado, ao contrário do que sustenta o A., afigura-se-nos que a aplicação da actual redacção dos artigos 74.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, à presente acção [subjacente à qual está um contrato celebrado antes da sua entrada em vigor, no qual havia sido incluída a estipulação de um foro convencional] não consubstancia qualquer violação dos invocados princípios constitucionais, uma vez que, sendo tal redacção apenas aplicável aos processos instaurados após a entrada em vigor da mencionada lei, não poderá em bom rigor falar-se em aplicação retroactiva da lei, na medida em que à data da instauração da acção o A. estava já ciente do carácter imperativo da [nova] regra e, consequentemente, da ineficácia da estipulação contratual em contrário. A este respeito, acrescente-se ainda que - ao contrário do que parece resultar da posição expressa pelo A. no requerimento por si apresentado a fl. 18 - da eventual validade (pelo menos em abstracto) da estipulação do foro aquando da celebração do contrato não resulta para as partes um qualquer direito ou uma qualquer legítima expectativa de que tal cláusula permaneça válida indefinidamente no tempo, uma vez que os interesses particulares (inerentes à celebração do contrato em apreço) estarão sempre subordinados aos interesses públicos inerentes às regras da administração da justiça e - no caso concreto - à protecção dos consumidores.

De resto, mesmo antes da entrada em vigor da citada Lei 14/2006, de 26 de Abril, a invocada cláusula de estipulação de foro convencional estava já sujeita - atenta a sua natureza de cláusula contratual geral - ao regime previsto no Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro, ao disposto nos seus artigos 5.º, 8.º e 19.º, alínea g), do citado regime, de cuja aplicação sempre poderia resultar em concreto - a invalidade de tal estipulação.

Nestes termos, e por ser aplicável ao caso em apreço, como supra se referiu, o disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º, na sua actual redacção, necessário se torna concluir que o tribunal competente para a apreciação da presente acção é o tribunal do domicílio do réu - in casu, o Tribunal da Comarca de Matosinhos -, sendo certo ainda que, por força do disposto no artigo 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil [na citada redacção], tal incompetência é de conhecimento oficioso.

Destarte, e nos termos dos artigos 74.º, n.º 1, primeira parte, 108.º, 109.º, 110.º, n.º 1, alínea a), 111.º, n.º 3, 493.º, n.º 2, 494.º, alínea a), e 495.º, todos do Código de Processo Civil [na redacção resultante da Lei 14/2006, de 26 de Abril], por este Tribunal ser territorialmente incompetente - o que expressamente se declara -, julga-se verificada a excepção dilatória de incompetência relativa do Tribunal e, consequentemente, determina-se a remessa dos presentes autos para o Tribunal territorialmente competente."

3 - Desta decisão foi interposto o presente recurso, através do seguinte requerimento:

"a) O recurso é interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 85/89, de 7 de Setembro.

b) Pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 6 de Abril, na parte e na medida em que permite a interpretação do dito preceito no sentido de o considerar aplicável a contratos celebrados anteriormente à publicação da referida Lei 14/2006.

c) Efectivamente tal norma, aplicada no sentido referido, viola os princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade e também da não retroactividade, consignados no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição da Republica Portuguesa e, também, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança corolários, ambos do Estado de direito democrático consignado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

d) A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos no requerimento neles apresentado a fl. [...] aos 22 de Maio de 2006."

4 - Notificado para alegar, o recorrente afirmou, nomeadamente, o seguinte:

"Dispunha e dispõe o artigo 100.º do Código de Processo Civil que as regras da competência em razão do território podem ser afastadas por convenção expressa, salvo nos casos a que se refere o artigo 110.º do referido normativo legal.

À data em que foi celebrado o contrato a que referência é feita nos autos, o artigo 110.º do Código de Processo Civil não permitia ao Tribunal conhecer oficiosamente da incompetência territorial quando as partes tivessem acordado um foro convencional em caso de obrigações emergentes de contrato como aquele a que os autos se reportam [...]

A escolha de foro convencional entre as partes [...] é válida mau grado a publicação da citada lei e a alteração nela introduzida na alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, donde os tribunais não podem conhecer oficiosamente da pretensa não validade de tal cláusula face ao que passou a dispor, após a respectiva entrada em vigor, o artigo 74.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela citada Lei 14/2006, de 26 de Abril [...]

[E]ra direito das partes contratantes no contrato dos autos, máxime do ora recorrente, o poderem escolher, poderem acordar, um foro convencional, em razão do território, para dirimir os conflitos emergentes do dito contrato, isto é, do contrato dos autos.

Logo tal direito só pode ser restringido de harmonia com o quadro que ressalta do disposto no citado artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da Republica Portuguesa [...]

As partes elegeram validamente um foro convencional no contrato dos autos, nos termos do enquadramento jurídico vigente à data da celebração do mesmo.

Logo a violação desse direito - que às partes assistia e assistiu até à data da publicação da Lei 14/2006, de 26 de Abril - de escolher um foro convencional em razão do território para dirimir as questões emergentes de tal contrato, e o não reconhecimento da eficácia e validade desse direito pela alteração da redacção dada, a partir de 1 de Maio de 2006, à alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, ou seja, a aplicação, portanto, deste preceito, com a referida nova redacção, a situações, factos, actos ou contratos verificados, ocorridos ou celebrados anteriormente viola os princípios da não retroactividade, da segurança jurídica e de confiança, corolários também do princípio de um Estado de direito democrático [...]

i) A interpretação e aplicação, como feita no despacho recorrido, da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela dita Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, a não consideração, como válida e eficaz, da escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100.º, n.os 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110.º do mesmo normativo legal, máxime na alínea a) do respectivo n.º 1, é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade e da não retroactividade, consignados no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.

ii) Deve, assim, como se requer, ser julgada inconstitucional a interpretação e aplicação do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, a contrato validamente celebrado antes da entrada em vigor da referida Lei 14/2006, desta forma se fazendo justiça."

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Fundamentação. - 5 - O presente recurso tem por objecto a norma constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, quando interpretada no sentido de ser aplicável a contratos, celebrados antes da entrada em vigor desta lei, dos quais conste cláusula estipulando qual o tribunal territorialmente competente para a resolução de eventuais litígios dele emergentes, por alegada "violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade e da não retroactividade, consignados no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa". A alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º, na referida redacção, estatui:

"1 - A incompetência em razão do território deve ser conhecida oficiosamente pelo tribunal, sempre que os autos fornecerem os elementos necessários, nos casos seguintes:

a) Nas causas a que se referem [...] a primeira parte do n.º 1 [...] do artigo 74.º [...]"

Por seu turno, a primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º passou a ter, também por força da alteração introduzida pela Lei 14/2006, a seguinte redacção: "1 - A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu", sendo certo que, nos termos do artigo 100.º, n.º 1, é permitido às partes "afastar, por convenção expressa, a aplicação das regras de competência em razão do território, salvo nos casos a que se refere o artigo 110.º" (itálicos aditados).

6 - Começa o recorrente, na sua alegação, por dar conta de uma orientação que vem sendo seguida por alguma jurisprudência no sentido de considerar que, tal como o próprio defendeu nos presentes autos e diferentemente do que se decidiu no despacho ora recorrido, as alterações introduzidas, em sede de processo civil, pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, não se aplicam às questões emergentes de contratos celebrados antes da sua entrada em vigor em que as partes tenham escolhido foro convencional. Acontece, porém, como o próprio recorrente reconhece, que está fora do âmbito do presente recurso a questão de saber se essa é ou não a melhor (de acordo com os cânones hermenêuticos) interpretação dos preceitos em causa. Com efeito, não cabe ao Tribunal Constitucional dirimir conflitos de interpretação de normas infraconstitucionais, nem determinar qual a melhor interpretação de tais normas, mas, apenas, como é sabido, decidir se a interpretação por que optou a decisão recorrida é ou não compatível com a Constituição e, designadamente, com os preceitos e princípios indicados pelo recorrente. Com esta advertência, vejamos então.

6.1 - Da alegada violação dos princípios da adequação, da exigibilidade, da proporcionalidade e da não retroactividade consignados no artigo 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa.

Alega o recorrente, em primeiro lugar, que a norma que vem questionada viola o disposto nos artigos 18.º, n.os 2 e 3, da Constituição. É, contudo, manifesto que, nesta parte, não lhe assiste qualquer razão. E, desde logo, pela razão evidente de que aquele preceito constitucional se refere às leis restritivas de direitos, liberdades e garantias, o que, manifestamente, não é o caso da norma que vem questionada. Com efeito, não se vislumbra qual o direito, liberdade e garantia que possa estar a ser restringido pela norma cuja constitucionalidade vem questionada, sendo certo que não pode ser, ao contrário do que o recorrente refere na sua alegação, o "direito das partes contraentes [...] a poderem escolher, poderem acordar, um foro convencional, em razão do território, para dirimir conflitos emergentes do dito contrato, isto é, do contrato dos autos". Como é óbvio, o direito de as partes convencionarem o foro territorialmente competente para a resolução dos litígios eventualmente resultantes dos contratos que celebrem não é um direito constitucionalmente garantido, não constituindo direito, liberdade e garantia, no sentido do artigo 18.º da Constituição, pelo que, no caso, este preceito não é, pura e simplesmente, aplicável.

Aliás, ainda que se pretendesse fundar a alegada inconstitucionalidade numa eventual violação da exigência de proporcionalidade, como limitação geral ao exercício do poder público, decorrente do princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição - o que o recorrente, todavia, não faz -, sempre se dirá que tal pretensão também não procederia, pois, além de não estar em causa nenhum direito constitucionalmente garantido, também se não vislumbra que a medida legislativa seja manifestamente inadequada, corresponda a opção manifestamente errada do legislador ou tenha carácter manifestamente excessivo ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.

6.2 - Da alegada violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição.

Alega ainda o recorrente que a norma que vem questionada, na parte em que seja aplicável a contratos celebrados antes da entrada em vigor da referida Lei 14/2006, é inconstitucional, por se traduzir numa situação de retroactividade violadora dos princípios da segurança jurídica e da confiança, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Constituição. Vejamos.

6.2.1 - Como o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, o princípio da não retroactividade da lei encontra-se consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal (desde que a lei nova não seja mais favorável ao arguido) - n.os 1 e 4 do artigo 29.º -, para as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias - n.º 3 do artigo 18.º - e para o pagamento de impostos - artigo 103.º, n.º 3 -, podendo, consequentemente, dizer-se que a Constituição não consagra um princípio geral de proibição de emissão de leis retroactivas.

O Tribunal vem, porém, igualmente afirmando, na sequência de entendimento que vem já da comissão constitucional, que o princípio do Estado de direito democrático (consagrado no artigo 2.º da Constituição) postula "uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas", razão pela qual "a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica" (cf., entre vários outros nesse sentido, o Acórdão 303/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17.º vol, p. 65). Mas, sendo assim, o Tribunal tem, contudo, tido sempre o cuidado de esclarecer que o que se acaba de dizer não conduz a que seja absolutamente vedada ao legislador a emissão de normas com eficácia retroactiva. Como se ponderou, por exemplo, no Acórdão 304/2001 (disponível na página Internet do Tribunal em www.tribunalconstitucional.pt), citando Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p. 309), "entender o contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a 'liberdade constitutiva e a auto-revisibilidade' do legislador, características que são 'típicas', 'ainda que limitadas', da função legislativa".

Tem, pois, o Tribunal sempre dito (cf. o Acórdão 304/2001, já citado) que, em cada caso, haverá que "proceder a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as soluções mais acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam 'tocadas' relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Em tais casos, a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, impondo-se, então, a intervenção do princípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar". (itálico aditado). No caso em apreço, porém, tal não se verifica.

6.2.2 - Em primeiro lugar, porque qualquer expectativa que as partes possam ter no momento da celebração de um contrato relativamente à intangibilidade de uma cláusula de escolha do foro territorialmente competente para julgar eventuais litígios emergentes do mesmo é sempre, no mínimo e por natureza, limitada. E isto porque uma tal cláusula sempre estará condicionada pela eventualidade de uma reorganização judiciária, a que o legislador decida proceder, e que, no limite, pode mesmo fazer desaparecer o tribunal que as partes convencionaram como territorialmente competente.

Por outro lado, há que ter em conta que a cláusula de convenção de foro é uma cláusula que não respeita ao sinalagma do contrato, tendo antes a ver com a patologia deste e com a fixação de um pressuposto processual da competência territorial dos tribunais. Competência esta que também possui normas que estão subtraídas, de todo, à possibilidade de convenção. Ora, o facto é que, sempre se entendeu que, em matéria processual, as expectativas das partes ou não merecem, de todo, a tutela da confiança ou só em termos mitigados dela podem beneficiar. Além disso, no caso concreto, a acção foi proposta já após a entrada em vigor da nova lei, sendo certo que a competência dos tribunais se fixa de acordo com a lei em vigor à data da respectiva propositura.

Não pode, assim, designadamente pelas razões que se acabam de expor, afirmar-se que no momento da celebração do contrato o ora recorrente gozasse de uma forte expectativa jurídica, legitimamente fundada, de que, mesmo no domínio do regime jurídico vigente antes da Lei 14/2006, de 26 de Abril, qualquer litígio resultante do mesmo viria a ser julgado pelo tribunal convencionado. Com efeito, embora pudesse existir a expectativa de que um eventual litígio decorrente do contrato celebrado viesse a ser julgado pelo foro convencionado, essa expectativa sempre seria "enfraquecida" ou "menos consistente" (para utilizarmos, uma vez mais, as palavras do Acórdão 304/2001, já citado), pela possibilidade, razoável, de uma interpretação do quadro normativo anterior à entrada em vigor da citada Lei 14/2006, que conduzisse já, por outra via, à invalidade da referida cláusula.

Acresce, finalmente, que, no caso concreto, no que se refere às acções destinadas à cobrança de dívidas resultantes da celebração de contratos de crédito ao consumo, a solução normativa editada pelo legislador, mesmo na interpretação que agora vem questionada - no sentido da aplicação, a contratos já existentes, da regra da impossibilidade de alteração, por convenção das partes, das normas sobre a competência territorial, por força do disposto na nova alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º, que, passando a determinar o conhecimento oficioso da incompetência em razão do território nas causas a que se refere a primeira parte do n.º 1 do artigo 74.º, inviabiliza o funcionamento da estipulação efectuada ao abrigo do artigo 100.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil - , também não é arbitrária, podendo justificar-se à luz do objectivo constitucional de protecção dos interesses dos consumidores, enunciado no artigo 60.º da Constituição.

6.2.3 - Assim sendo, pode, então, concluir-se que a aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 110.º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, aos contratos celebrados antes da entrada em vigor desta última lei, ainda que se entenda que se trata de uma aplicação retroactiva da mesma, não consubstancia violação de forma inadmissível, intolerável ou arbitrária dos direitos ou expectativas fundadas do recorrente, não se verificando, por isso, o desrespeito dos mínimos de certeza e segurança salvaguardados pelo artigo 2.º da Constituição.

III - Decisão. - Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.

Lisboa, 19 de Dezembro de 2006. - Gil Galvão - Vítor Gomes - Bravo Serra - Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com a declaração de que considero que o recorrido deveria ter sido notificado para constituir advogado, caso pretendesse intervir no recurso de constitucionalidade) - Artur Maurício.

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1540728.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1982-11-15 - Lei 28/82 - Assembleia da República

    Aprova a organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional - repete a publicação, inserindo agora a referenda ministerial.

  • Tem documento Em vigor 1985-10-25 - Decreto-Lei 446/85 - Ministério da Justiça

    Aprova o regime jurídico das cláusulas contratuais gerais.

  • Tem documento Em vigor 1989-09-07 - Lei 85/89 - Assembleia da República

    Introduz alterações à Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.

  • Tem documento Em vigor 1990-12-26 - Acórdão 303/90 - Tribunal Constitucional

    Declara inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do n.º 11 do artigo 14.º da Lei n.º 114/88, de 30 de Dezembro, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa.(Processo n.º 129/89)

  • Tem documento Em vigor 2006-04-26 - Lei 14/2006 - Assembleia da República

    Altera o Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44129, de 28 de Dezembro de 1961, bem como o Estatuto da Câmara dos Solicitadores, o regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, e o Decreto-Lei n.º 202/2003, de 10 de Setembro.

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

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