Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda

Acórdão 494/2013, de 30 de Setembro

Partilhar:

Sumário

Nega provimento ao recurso e confirma a decisão recorrida, julgando elegível o primeiro candidato da lista de candidatos à assembleia de freguesia de Peniche apresentada pela CDU

Texto do documento

Acórdão 494/2013

Processo 777/2013

Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:

I - Relatório

1 - Em autos de apresentação de candidaturas para a eleição autárquica para a Assembleia de Freguesia de Peniche, no município de Peniche, a realizar no dia 29 de setembro de 2013, Mariano Fernando Rasteiro Calado Mateus, mandatário das Listas do Partido Socialista candidatas àquelas eleições reclamou, junto do Tribunal Judicial de Peniche, em 12 de agosto de 2013, "ao abrigo dos artigos 25.º n. 3 e 29.º n.º 1" da lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais (Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais, Lei Orgânica 1/2001, de 14 de agosto, a seguir designada LEOAL), da admissão da candidatura à Assembleia de Freguesia de Peniche de Henrique Bertino Batista Antunes, cabeça de lista da CDU (admissão que decorre do despacho de 9 de agosto de 2013, a fls. 198).

São os seguintes os fundamentos de tal reclamação (requerimento de fls. 212 e seguintes):

«O Partido Socialista pelo seu mandatário Mariano Fernando Rasteiro Calado Mateus ao abrigo do artigos 25 n.º 3 e 29 n.º l da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais - Lei Orgânica 1/2001, de 14 de agosto vem apresentar a reclamação/impugnação contra a Lista do CDU (Coligação Democrática Unitária) da Freguesia de Peniche, encabeçada por Henrique Bertino Batista Antunes, com os seguintes termos e fundamentos:

1 - Acontece uma clara e objetiva violação da Lei 46/2005, de 29 de agosto, lei que estabelece limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais. Isto porque.

2 - Henrique Bertino Batista Antunes, tem 3 mandatos sucessivos e ininterruptos como Presidente de Junta de Freguesia da Ajuda.

Isto é,

3 - O seu primeiro mandato como Presidente de Junta de Freguesia da Ajuda iniciou-se no ano 2001 a 2005, o segundo mandato do ano de 2005 ao ano de 2009 a 2013.

4 - É o atual cabeça de lista da CDU da Junta de Freguesia de Peniche

Acresce que,

5 - O território ao qual está a candidatar-se à o mesmo em que já cumpre o seu terceiro mandato sucessivo e ininterrupto.

A anterior Junta de Freguesia de Ajuda representa mais de 50 % quer da área quer do número de eleitores da nova Freguesia.

No entanto,

6 - A lei 46/2005, de 29 de agosto, lei que estabelece limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais. Esta lei nasce para defesa do princípio constitucional da renovação política. Mas, principio esse que só será atingível se os autarcas que exerceram três mandatos consecutivos, não puderem candidatar-se, no imediato, a um quarto mandato.

7 - A lei de limites à renovações sucessivas de mandatos pretende uma clara interrupção do exercício politico de um autarca que já exerce há três mandatos consecutivos, para uma concretização plena do principio constitucional da renovação política.

8 - Caso contrário, Teríamos o exercício de cargos vitalícios ou muito longos no tempo.

9 - É para evitar isso, que a Lei 46/2005, de 29 de agosto foi criada e deve ser aplicada para esse fim.

Continuando

10 - A lei tem como caminho criar e impor o tempo constitucional da renovação. É especialmente tempo constitucional da livre oportunidade de outros cidadãos poderem «igualmente» entrar no universo autárquico, vir a ser eleitos e participar, ativamente, na vida municipal (Artigo 12.º, 13.º, 48.º, 49.º, 109.º, 118.º CRP).

11 - Num outro cargo político mas no mesmo sentido de regeneração política a própria Constituição aplica o princípio da constitucional da renovação política à eleição do Presidente da República.

12 - Diz o Artigo 123.º da Constituição da República Portuguesa:

1) «Não é admitida a reeleição para um terceiro mandato consecutivo, nem durante o quinquénio imediatamente subsequente ao termo do segundo mandato consecutivo.

2) Se o Presidente da república renunciar ao cargo, não poderá candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quinquénio imediatamente à renúncia».

13 - É a prova que a Lei 46/2005 de 29 de agosto tem exatamente a mesma esteia e finalidade ou seja a renovação política a que uma democracia que igualdade e oportunidade a todos de poderem candidatarem-se a serem eleitos a cargos políticos e não fique limitada só alguns...que por terem sido já eleitos, possuem outros recursos e vantagens do que alguém que nunca tenha sido eleito.

Assim sendo,

14 - Estamos em presença por razões fácticas e legais de uma inelegibilidade absoluta por parte de Henrique Bertino Batista Antunes, candidato da CDU (Coligação Democrática Unitária) da Freguesia de Peniche.»

Pretende, assim, que seja "rejeitada a candidatura Henrique Bertino Batista Antunes [...] candidato da CDU (Coligação Democrática Unitária) da Freguesia de Peniche por violação expressa da Lei 46/2005, de 29 de agosto, artigo 1.º".

2 - Notificada para se pronunciar sobre a alegada inelegibilidade, a CDU, representada pelo seu mandatário, Rogério Manuel Dias Cação, veio sustentar a tese contrária (da elegibilidade do candidato em referência), socorrendo-se, em síntese, dos seguintes argumentos (requerimento de fls. 219 e seguintes):

«[...]

36.º

Desde logo, atendendo ao regime constitucional relativo às restrições de direitos, liberdades e garantias constante do artigo 18.º da CRP.

37.º

O que resulta desse regime é que a restrição de direitos fundamentais tem de estar expressamente prevista na Constituição e quando essa restrição seja operada por via de lei ordinária (como é o caso) esta tem de respeitar os limites da norma constitucional habilitante.

38.º

Por outro lado, as restrições devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, de onde decorrem outros requisitos, a saber: a) a restrição deve ser aferida por um juízo de proporcionalidade entre o direito fundamental em causa e os interesses com eles concorrentes; b) a restrição deve ser feita na menor medida possível; e c) deve ser apurada na exata medida permitida pelo legislador constitucional.

39.º

Posto isto, vemos que os limites a que pode ser submetido o direito fundamental de acesso a cargos públicos constante do artigo 50.º da CRP consistem na garantia da liberdade de escolha dos eleitores e na isenção e independência do exercício dos cargos em questão.

40.º

E não podem tais restrições ser mais que as necessárias para salvaguardar esses valores. Ou seja: a elegibilidade constitui a regra; a inelegibilidade constitui a exceção.

41.º

Viu-se já que a lei 46/2005, de 29 de agosto, limita a renovação consecutiva de mandatos. Ora, o entendimento de que essa limitação seria extensiva à candidatura a qualquer autarquia do território nacional assentaria numa interpretação extensiva do caráter proibitivo da norma que a CRP não autoriza.

42.º

Desde logo, porque só na mesma autarquia é possível falar em renovação de mandatos ou em mandatos sucessivos. Se um cidadão foi Presidente de uma Junta de Freguesia em Monção e no quadriénio seguinte foi eleito Presidente de Junta de Freguesia em Vila Real de Santo António, alguém pode dizer que renovou o seu mandato? E pode dizer-se que exerceu um mandato sucessivo, alguém que sucedeu necessariamente a outrem no exercício de um mandato? Só há mandatos sucessivos quando alguém sucede a si próprio no exercício de um mandato.

43.º

Mas vejam-se então os limites expressos pela CRP à limitação de mandatos autárquicos: permite-se que o legislador restrinja o direito fundamental de acesso a cargos públicos em condições de igualdade e liberdade (artigo 50.º, n.º 1) e o direito de todos os cidadãos tomar parte na vida política por intermédio de representantes livremente eleitos (artigo 48.º, n.º 1), na estrita medida em que tal seja necessário para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência no exercício dos cargos.

44.º

Quando a CRP se refere aos eleitores, importa desde logo aferir de que eleitores está a falar. Todos os eleitores recenseados no território nacional e porventura no estrangeiro?

45.º

Como bem refere Pedro Costa Gonçalves em artigo publicado no semanário Expresso de 09/03/2013, a lei estabelece limites à renovação de mandatos tendo em conta que o exercício de mandatos sucessivos é suscetível de criar redes de cumplicidades e de interesses e fenómenos de captura psicológica dos eleitores. Além disso, o titular que se candidata ao órgão que ocupa tem, em geral, uma posição de vantagem (efeito de incumbente). Ora, a realização desse objetivo pressupõe que o cargo em disputa e o universo eleitoral são os mesmos nas eleições que se sucedem. Sendo diferente o cargo ou, sobretudo, o universo de eleitores, não subsiste qualquer risco de cumplicidade ou de captura e a restrição deixa de se justificar.

46.º

Na verdade, quando alguém que cumpriu três mandatos consecutivos numa autarquia, se candidata a uma outra, está a pedir o voto a eleitores que mantêm intocada a liberdade de escolha.

47.º

No caso vertente, a única vantagem que o candidato pode ter é a de ser reconhecidamente um bom autarca e de esse reconhecimento extravasar as fronteiras da sua freguesia. Mas isso não é crime em parte alguma do mundo.

48.º

Como conclui Pedro Costa Gonçalves no já citado artigo, a lei que limita a renovação de mandatos não pode impedir um cidadão - que não foi condenado por crime de responsabilidade e que não está em situação pessoal que envolva uma desconfiança quanto à sua isenção e independência - de se candidatar a um cargo que não ocupa e de pedir o voto a quem nele nunca foi chamado a votar.

49.º

Ora, nos termos da lei, a freguesia criada por efeito da agregação constitui uma nova pessoa coletiva territorial (cf. artigo 9.º, n.º 2 da Lei 22/2012, de 30 de maio).

50º

Donde, como diz Paulo Otero no parecer solicitado pela Câmara Municipal de Vila Nova Gaia, a este propósito, a freguesia em causa, apesar de suceder nas posições jurídicas das freguesias agregadas (cf. artigo 9.º, n.º 2, 2.ª parte da Lei 22/2012, de 30 de maio), é uma nova entidade, distinta das freguesias que lhe deram origem.

51.º

Nos termos da lei, a reorganização administrativa do território das freguesias é acompanhada de um novo regime de atribuições e competências, que reforça as competências próprias dos órgãos das freguesias e amplia as competências delegáveis previstas na lei (cf. artigo 10.º, n.º 1 da Lei 22/2012, de 30 de maio).

52.º

Esse reforço das competências próprias das freguesias é acompanhado do reforço das correspondentes transferências financeiras do Estado (cf. artigo 10.º, n.º 3 da Lei 22/2012, de 30 de maio).

53.º

Isto significa, como diz Paulo Otero no mesmo parecer, que o regime jurídico da reorganização administrativa territorial das freguesias, gerando a agregação de freguesias, determina também o nascimento de novas entidades públicas.

54.º

Cada freguesia que resulte da agregação de anteriores freguesias não é uma continuidade jurídico-formal das anteriores, antes a lei a configura como uma nova pessoa coletiva territorial.

55.º

Sendo uma nova pessoa coletiva territorial, a freguesia resultante do processo de reorganização administrativa territorial previsto na Lei 22/2012, de 30 de maio, terá também novos órgãos.

56.º

A sua assembleia de freguesia e a sua junta de freguesia são estruturas orgânicas novas, distintas das assembleias de freguesia e das juntas de freguesia das freguesias que são agregadas.

57.º

São distintos órgãos de uma nova freguesia, sem que se possa dizer que são os mesmos órgãos da anterior ou anteriores freguesias.

58.º

São estruturas orgânicas de uma nova entidade pública.

59.º

São estruturas orgânicas que expressam interesses próprios de um diferente (e mais alargado) agregado populacional.

60.º

São estruturas orgânicas que têm uma área territorial e populacional mais vasta de exercício dos seus poderes.

61.º

São estruturas orgânicas que gozam de poderes e meios financeiros reforçados.

62.º

A junta de freguesia que surge como órgão de uma nova freguesia não é o mesmo órgão que estava presente nas freguesias que foram agrupadas.

63.º

Por isso o titular que completou três mandatos sucessivos como presidente de qualquer das juntas de freguesia das entidades que foram agregadas pode, no quadriénio imediatamente subsequente, candidatar-se a presidente da junta de freguesia da nova freguesia.

65.º

É um novo órgão referente a uma nova entidade pública territorial pelo que nunca lhe pode ser aplicável a inelegibilidade prevista no artigo 1.º da Lei 46/2005 de 29 de agosto.

66.º

E esta é a única interpretação conforme os princípios da interpretação restritiva das restrições aos direitos fundamentais, máxima efetividade dos direitos fundamentais e in dúbio pro libertate.

67.º

As incapacidades eleitorais passivas ou inelegibilidades devem ser interpretadas em termos restritivos, preferindo-se sempre uma solução que conduza à ampliação aplicativa dos direitos e liberdades fundamentais.

68.º

O direito fundamental decorrente da capacidade eleitoral passiva deve sempre prevalecer sobre a restrição decorrente de uma eventual inelegibilidade.

69.º

Os presidentes de juntas de freguesia cujos territórios foram objeto de agregação, nos termos da Lei 22/2012, de 30 de maio, apesar de terem completado três mandatos consecutivos nas juntas de freguesias agrupadas, gozam do direito fundamental a candidatar-se, no quadriénio imediatamente subsequente, à presidência da nova junta de freguesia que constitui órgão da nova freguesia resultante do processo de agregação.

70.º

Qualquer interpretação em sentido contrário é contrária à Constituição.

71.º

No silêncio da lei, as inelegibilidades ou as incapacidades eleitorais não se presumem, nem existe aqui matéria geradora de uma lacuna possível de integração analógica: o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição impõe a natureza expressa da restrição.

72.º

Atendendo à natureza de restrições a direitos fundamentais que tais inelegibilidades assumem, em caso de ambiguidade ou obscuridade do texto legal, nunca se interpretam em sentido extensivo, antes devem sempre ser objeto de interpretação restritiva.

73.º

Nestes termos, deve o candidato Henrique Bertino Batista Antunes ser julgado elegível e prosseguirem os autos os seus ulteriores termos.»

3 - Em 19 de agosto de 2013, o Juiz do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Peniche indeferiu a reclamação deduzida, fundamentando assim a sua decisão (despacho de fls. 231-236):

«A fls. 212 a 214 o Partido Socialista (PS) veio impugnar a candidatura de Bertino Batista Antunes, candidato da Coligação Democrática Unitária (CDU) à Assembleia de Freguesia de Peniche, considerando ser o mesmo inelegível para o cargo de Presidente da Junta de tal Freguesia.

Para tanto alegou, em síntese, que o referido candidato cumpriu três mandatos como Presidente da Junta de Freguesia da Ajuda, a qual foi agregada na nova Junta de Freguesia de Peniche, pelo que a sua candidatura representa, na prática, a candidatura a um quarto mandato consecutivo à presidência desse órgão autárquico, o que lhe é vedado pela Lei 46/2005, de 29/08.

Notificada de tal impugnação, a CDU sustentou (fls. 219 a 229) que a Freguesia de Peniche não se confunde com a Freguesia da Ajuda, apesar de integrar esta e outras duas freguesias. Tratando-se de entidade distinta, ainda que absorvendo a interior freguesia da Ajuda, não tem aplicação a limitação de mandatos introduzida pela Lei 46/2005, de 29/08, pelo que nada obsta à candidatura de Henrique Bertino Batista Antunes.

Cumpre apreciar e decidir.

Uma primeira nota exige-se no sentido de deplorar a péssima técnica legislativa, no caso, por parte da Assembleia da República, bem como a extravagante recusa dos partidos políticos e deputados que os representam (ao invés de como imposto pela Constituição, representarem o povo) em esclarecer o alcance da limitação de mandatos introduzido por uma lei que tem quase oito anos... O resultado é conhecido, sendo patente a divergência de interpretações sobre o alcance da lei, sendo evidente que a resolução de tal controvérsia só será alcançada pela posição a adotar pelo Tribunal Constitucional na sequência das diversas impugnações interpostas no decurso do corrente processo eleitoral autárquico.

No caso dos autos tudo leva a crer que, seja qual for a posição que se tome, será interposto recurso para o Tribunal Constitucional, que seguramente assumirá posições uniformes quanto às diversas questões suscitadas pela Lei 46/2005, de 29/08. Assim sendo, compreender-se-á que a fundamentação da posição adotada seja sintética, quer porque estamos em plenas férias judiciais em turnos muito trabalhosos, quer porque, decisivamente, a decisão e esclarecimento definitivos surgirão em breve da parte do Tribunal Constitucional.

As questões a apreciar são, no essencial, três: 1) se o cumprimento de três mandatos como Presidente de Junta de Freguesia por parte do cabeça de lista da CDU configura caso de inelegibilidade do mesmo; 2) se a limitação de mandatos prevista no artigo 1.º da Lei 46/2005, de 29/08, se circunscreve ao exercício do mesmo cargo, na mesma autarquia ou se vale independentemente da autarquia e, finalmente, 3) se o facto de a Junta de Freguesia da Ajuda ter sido agregada na Junta de Freguesia de Peniche implica que a candidatura à Presidência da Junta desta última equivale à candidatura a um quarto mandato como presidente de junta.

Na apreciação destas questões tem-se por adquirido, até porque aceite por impugnante e impugnada, que Henrique Bertino Batista Antunes exerceu três mandatos consecutivos como Presidente da Junta de Freguesia da Ajuda, Concelho de Peniche que a Freguesia da Ajuda foi agregada, por força da Lei 22/2012, de 30/05, juntamente com outras duas, na nóvel Freguesia de Peniche e, finalmente, que Henrique Antunes se candidata como cabeça de lista à Assembleia de Freguesia de Peniche.

Por se entender que no momento presente são aquelas que maior autoridade revelam na apreciação dos temas suscitados demonstrando um salutar esforço de alargamento da capacidade eleitoral passiva, exigindo que lei especial só se aplique aos casos excecionais previstos na lei, sem possibilidade de analogia (artigo 11.º do Código Civil), subscrevo as posições até agora conhecidas emitidas pela Comissão Nacional de Eleições, nos moldes referidos na LEOAL anotada e comentada por Jorge Miguéis, Carla Luís, João Almeida, Ana Branco, André Lucas e Ilda Rodrigues (disponível na internet em www.cne.pt).

Assim, há que ter em conta que «[...] as limitações aos mandatos de presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais decorrem do princípio da renovação, consagrado no artigo 118.º da CRP. Este princípio pretende impedir o exercício vitalício de qualquer cargo político de âmbito nacional, regional ou local, constituindo-se como um subprincípio concretizador dos princípios Democrático e Republicano que são medulares da estrutura jurídico-constitucional e da matriz politico organizativa portuguesa.

O princípio democrático, na sua dimensão representativa, conforme consagrado na Lei Fundamental, impõe o sufrágio periódico (artigo 113.º n.º 1 da CRP) e a renovação periódica dos cargos políticos (artigo 118.º da CRP) e ao fazê-lo tem um escopo claro e definido que se traduz no impedimento da vitaliciedade dos mandatos.

[...] O TC. a propósito deste objetivo, considera que ""na sua projeção normativa eleitoral, o princípio democrático exige uma investidura ad tempus, repelindo o vitalício e impondo a renovação" (TC 364/91).

De todo o modo, até à revisão constitucional operado em 2004, a limitação do número de mandatos, em concreto dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais, não era constitucionalmente viável. Reconhecia-se., com efeito, que era "duvidoso que a lei, sem autorização constitucional, possa limitar o número de mandatos de forma a aniquilar a capacidade passiva dos cidadãos" [...]. Em sentido similar, recorde-se que o Presidente da República requereu a fiscalização preventiva da constitucionalidade do artigo 2.º do Decreto 356/1 da AR que pretendia implementar, por via de lei ordinária, uma inelegibilidade para o executivo municipal no quadriénio seguinte ao termo do terceiro mandato consecutivo do cidadão que aí tivesse exercido o cargo de presidente de CM. Esse pedido de fiscalização culminou com um juízo de inconstitucionalidade por parte do TC por considerar que a norma em causa violava os n.os 2 e 3 do artigo 18.º e o artigo 50.º da CRP (TC 364/91).

[...] A sexta revisão constitucional, extraordinária, materializada pela lei Constitucional 1/2004, viria a introduzir uma alteração significativa no quadro jurídico-constitucional em sede do princípio da renovação.

Com efeito, foi aditado um n.º 2 do artigo 118.º da CRP com o seguinte redação: "A lei pode determinar limites à renovação sucessiva de mandatos dos titulares de cargos políticos executivos.".

Desta alteração não resultou a inserção expressa no texto constitucional dos limites a determinar, solução adorada quanto à figura do Presidente da República e dos juízes do TC (v. artigos 123.º e 222.º n.º 3 da CRP), antes se remetendo para o legislador a tarefa de consagrar por via de lei ordinária tais limites.

[...] É, pois, neste quadro constitucional que nasce a atual Lei 46/2005 que estabelece os limites à renovação sucessiva dos mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais, a qual é composta apenas por dois artigos, sendo que o artigo 2.º se circunscreve à entrada em vigor do diploma,

[...] Dispõe o artigo 1.º da Lei 46/2005, sob a epígrafe "Limitação de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais", o seguinte:

1 - O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos, salvo se no momento da entrada em vigor da presente lei tiverem cumprido ou estiverem a cumprir, pelo menos, o 3.º mandato consecutivo, circunstância em que poderão ser eleitos para mais um mandato consecutivo.

2 - O presidente da câmara municipal e o presidente de junta de freguesia, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido.

3 - No caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia.

[...] As questões sobre a limitação de mandatos integram-se quer na matéria relativa à capacidade eleitoral passiva, quer na matéria relativa à legitimidade dos eleitos, consoante estejamos perante uma situação de pura inelegitimidade ou uma situação de incompatibilidade/impedimento e, por isso, da competência dos juízes de comarca, no âmbito do processo de verificação das candidaturas e do TC, em instância de recurso, ou da competência dos tribunais administrativos.

[...] A CNE, no âmbito da atribuição que lhe é cometida pela alínea a) do n.º 1 do artigo 5.º da Lei 71/78 - a de promover o esclarecimento objetivo dos cidadãos acerca dos atos eleitorais, reafirmada e desenvolvida em todas as leis eleitorais - tem proferido o seu entendimento, a título meramente consultivo, sobre diversas questões suscitadas sobre esta matéria.

[...] Concluído o número de mandatos permitidos nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei 46/2005, os presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais não podem, no período do mandato seguinte, assumir aquelas funções por via de substituição do titular cessante. Podendo, porventura, constar de uma lista de candidatura, ainda assim não podem assumir funções se, no decurso do mandato, forem convocados para preencher a vaga de presidente de câmara ou de presidente da junta [CNE 60/XIV/2012, por unanimidade dos membros presentes].

Esta deliberação evidencia um aspeto essencial relacionado com a capacidade eleitoral passiva e que pode resumir-se à conclusão de que apesar de verificada a impossibilidade de um presidente de JF ou de CM assumir essas mesmas funções, no quadriénio seguinte, o mesmo não se encontra impedido de se candidatar ao mesmo órgão. Acrescente-se, ainda que figure no primeiro lugar da lista. Com efeito, da configuração dos n.os 1 e 2 da norma em análise resulta que esse cidadão apenas é impedido de assumir funções de presidente de junta ou de câmara, mas não de vir a ser membro de uma AF ou vogal de uma JF ou vereador de uma CM, o que não é alcançável através de candidatura específica. Logo, considerando que apenas um dos primeiros candidatos das listas concorrentes a uma AF ou CM pode vir a ser eleito para o lugar de presidente, em cada um dos referidos órgãos, os outros (que forem eleitos) tomarão assento no AF ou farão parte da CM. E não tendo a Lei 46/2005 o sentido de impedir aos cidadãos em causa o exercício de outras funções que não sejam as de presidente dos órgãos executivos, os mesmos não estão incapacitados de se candidatar, independentemente do lugar que ocupam na lista de candidatos.

Nessa medida, a limitação decorrente da lei 46/2005 não configura uma situação de inelegibilidade, mas sim uma situação de impedimento/incompatibilidade.

Na eventualidade de um candidato eleito que esteja impedido de assumir as funções de presidente da respetiva junta ou câmara vir a ser chamado ao exercício dessas funções, no decurso do mandato, por ocorrência de vacatura de do cargo, deve consequentemente suspender ou renunciar ao mandato para o qual foi eleito (consoante o impedimento do titular a substituir seja temporário ou definitivo) sob pena de poder ser de decretada a sua perda pelo tribunal competente, face ao que decorre das normas que regulam o preenchimento de vagas nos órgãos autárquicos (cf. arts.º 29.º, n.º 1, 57.º, n.º 1 e 79.º da lei 169/99).

[...] Verdadeira inelegibilidade é o que decorre do disposto no n.º 3 do artigo em análise pois é expressa a incapacidade de o cidadão se candidatar. No caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia [...]»

Daqui resulta, com interesse para o caso vertente, que logo com este fundamento seria de indeferir a impugnação apresentada.

Acresce que, «[...] reiterando um parecer aprovado em 2007 [CNE 72/XII/2007], a CNE considerou que "A limitação decorrente do artigo 1.º, n.º 1 da Lei 46/2005, de 29 de agosto é restrita ao exercício consecutivo de mandato como presidente de órgão executivo da mesma autarquia local e que a previsão normativa constante do n.º 1, do artigo 1.º da lei 46/2005 de 29 de agosto, não estabelece qualquer limitação a que um cidadão eleito para três mandatos consecutivos como presidente de um órgão executivo de uma autarquia local se candidate ao exercício da mesma função, na eleição autárquica seguinte ao terminus do terceiro mandato consecutivo, em outro órgão executivo de outra autarquia local. "[CNE 62/XIV/2012].

A deliberação foi aprovada por maioria, com seis votos a favor e quatro contra, e foram apresentadas declarações de voto quanto aos fundamentos e de vencido. Quanto às primeiras evidenciam-se os fundamentos de que as interpretações extensivas do normativo em concreto seriam lesivas do principio constitucional e republicano da liberdade de candidatura, a necessidade de não renovação perpétua (ou quase) dos mandatos tem um caráter claramente territorial e o território é, nesta matéria, o circulo eleitoral (uma dada freguesia ou município).

[...] Suscitada a questão de saber se um cidadão que se encontre em 2013 a exercer o último mandato consecutivo como presidente de uma JF pode ou não candidatar-se nas próximas eleições gerais autárquicas ao exercício de novo mandato como presidente de uma freguesia criada por agregação de freguesias (na qual se integra aquela em que completou o número de mandatos consecutivos legalmente permitido), ou por alteração dos limites territoriais, a CNE deliberou "A limitação de mandatos regulada pelo n.º 1 do artigo 1.º da Lei 46/2005, de 29 de agosto é restrita ao exercício consecutivo de mandato como presidente de órgão executivo da mesma autarquia local, não se encontrando abrangida pela referida limitação a situação de um cidadão que na eleição autárquica seguinte ao terminus do terceiro mandato consecutivo como presidente de uma determinada junta de freguesia se candidate ao exercício da mesma função numa União de Freguesias na qual é agregada aquela em que completou o número de mandatos consecutivos legalmente permitidos". [CNE 71/XIV/2013][...]».

Fundamentação que, tal como já se referiu quanto à primeira questão suscitada na impugnação em apreço, implica que se considere totalmente improcedente a mesma, motivo pelo qual se declara nada a obstar à candidatura de Henrique Bertino Batista Antunes, devendo manter-se inalterada a lista apresentada pela CDU.»

4 - Consequentemente, determinou o cumprimento do disposto nos n.os 5 e 6 do artigo 29.º da LEOAL (a afixação, na porta do edifício do tribunal, de uma relação de todas as listas admitidas e envio de cópia das mesmas ao diretor-geral de Administração Interna), tendo tal despacho sido cumprido no mesmo dia 19 de agosto (cf. fls. 240).

5 - Em 21 de agosto de 2013, Mariano Fernando Rasteiro Calado Mateus, mandatário das Listas do Partido Socialista candidatas às eleições autárquicas a realizar no próximo dia 29 de setembro, veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 31.º, n.º 2 e 33.º da LEOAL (requerimento de fls. 242 e 243 e seguintes).

Complementou o alegado anteriormente, aquando da apresentação da reclamação, com os seguintes argumentos (fls. 243-246):

Nas eleições legislativas de 2011 a Freguesia de Ajuda tinha 7.406 eleitores e a Freguesia de Conceição 4.362 e a Freguesia de S. Pedro 2057.

A junta de Freguesia de ajuda não foi extinta, mas sim integrada com outras duas na União de Freguesia de Peniche, denominada Freguesia de Peniche.

A ser possível tal candidatura o candidato em causa concorreria ao quarto mandato consecutivo a Presidente de Junta de Freguesia e poderia vir a cumprir seis mandatos o que contraria a Lei 46/2005, de 29 de agosto.

Diversos Tribunais de 1.º instância têm produzido decisões no sentido de considerar inelegíveis candidatos em iguais circunstâncias.

Importa realçar o entendimento de Jorge Miranda referidos na comunicação social sobre esta matéria. Em relação às Freguesias, que têm um novo mapa administrativo, Miranda defende que não pode haver candidaturas a Freguesias que, devido à agregação, abranjam "uma Freguesia de uma certa pessoa já era presidente" (Jornal de Notícias de 18/08/2013).

Igualmente, importa realçar o entendimento de Vieira de Andrade quando afirma: no que diz respeito às freguesias, advoga que os atuais presidentes só podem candidatar-se "a uma freguesia totalmente diferente" (Jornal de Notícias de 18/08/2013).

Pede a rejeição da candidatura Henrique Bertino Batista Antunes, primeiro candidato da lista da CDU à Assembleia de Freguesia de Peniche.

6 - A este requerimento respondeu a CDU-Coligação Democrática Unitária, através do seu mandatário, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, reiterando desenvolvidamente os argumentos apresentados anteriormente na resposta à reclamação (fls. 251 e seguintes):

O processo foi imediatamente remetido a este Tribunal.

Cumpre apreciar e decidir.

II - Fundamentação

7 - Através do presente recurso, pretende o mandatário das Listas do Partido Socialista (PS) candidatas às Eleições Autárquicas do próximo dia 29 de setembro, que o Tribunal Constitucional rejeite a candidatura Henrique Bertino Batista Antunes, primeiro candidato da Coligação Democrática Unitária (CDU) à Assembleia de Freguesia de Peniche.

8 - Não existem exceções ou questões prévias a conhecer que se apresentem como impeditivas do conhecimento do recurso (artigos 31.º, n.º 1 e 2 e 32.º da LEOAL).

O recorrente cumpriu o ónus de formulação prévia de reclamação imposto pelo artigo 29.º da Lei Eleitoral, podendo dar-se como verificado, quanto a este aspeto, o requisito de admissibilidade do recurso, na parte em que através dele se pretende impugnar a "decisão final relativa à apresentação de candidaturas" (Ac. n.º 261/2006 disponível in www.tribunalconstitucional.pt).

No caso em presença, o recurso tem por objeto a decisão sobre a elegibilidade do primeiro candidato da lista proposta pela CDU para a eleição da Assembleia de Freguesia de Peniche (município de Peniche), inicialmente registada a fls. 198 e subsequentemente mantida a fls. 231 e ss., na sequência da reclamação apresentada da primeira.

Cabe, assim, apreciar a questão suscitada pelo recorrente quanto à elegibilidade do candidato Henrique Bertino Batista Antunes proposto pela CDU na eleição autárquica para a Assembleia de Freguesia de Peniche.

9 - Entende o recorrente que este candidato é inelegível, uma vez que, completou 3 mandatos sucessivos e ininterruptos como Presidente de Junta de Freguesia da Ajuda, a qual foi agregada na Freguesia de Peniche, para a qual se candidata.

Na decisão recorrida indeferiu-se a reclamação oportunamente deduzida pelo ora recorrente com este fundamento, por se ter considerado que a mencionada disposição não impunha a inelegibilidade de tal candidato, e, consequentemente, manteve-se a decisão anterior de admissão da lista proposta pela CDU.

10 - A Lei 46/2005, de 29 de agosto, veio estabelecer limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais.

Dispõe o artigo 1.º dessa lei:

"Artigo 1.º

Limitação de mandatos dos órgãos executivos das autarquias locais

1 - O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos, salvo se no momento da entrada em vigor da presente lei tiverem cumprido ou estiverem a cumprir, pelo menos, o 3.º mandato consecutivo, circunstância em que poderão ser eleitos para mais um mandato consecutivo.

2 - O presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia, depois de concluídos os mandatos referidos no número anterior, não podem assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido.

3 - No caso de renúncia ao mandato, os titulares dos órgãos referidos nos números anteriores não podem candidatar-se nas eleições imediatas nem nas que se realizem no quadriénio imediatamente subsequente à renúncia.".

Subjacente à limitação de mandatos ou ao número de mandatos que a mesma pessoa pode exercer sucessivamente está - como se dizia na exposição de motivos da Proposta de Lei 4/X, que deu origem à Lei 46/2005 - "o objetivo de fomentar a renovação dos titulares dos órgãos, visando-se o reforço das garantias de independência dos mesmos, e prevenindo-se excessos induzidos pela perpetuação no poder".

O artigo 1.º da Lei 46/2005 vem, assim, estabelecer uma inelegibilidade dos presidentes dos órgãos executivos autárquicos para um 4.º mandato consecutivo, visando a renovação dos titulares destes órgãos, objetivo que encontra acolhimento constitucional no artigo 118.º da Constituição. Esta inelegibilidade, consistindo na impossibilidade de se ser eleito para um determinado cargo público eletivo, constitui, no plano das eleições autárquicas, motivo de rejeição da candidatura (artigo 27.º, n.º 1 da Lei Orgânica 1/2001, de 14 de agosto).

11 - De uma forma geral, a inelegibilidade acarreta uma restrição à capacidade eleitoral passiva, conformando uma compressão de um direito fundamental, o direito de acesso a cargos eletivos previsto no artigo 50.º da Constituição.

Assim sendo, a inelegibilidade não pode ter caráter vitalício ou duração ilimitada ou indefinida, devendo observar o princípio da proporcionalidade e constar de lei geral e abstrata e não retroativa (artigo 18.º, n.os 2 e 3 da Constituição), emanada da Assembleia da República (artigo 164.º, alíneas a), j) e l) da Constituição).

Para além disso, consistindo a regra na possibilidade de eleição de todo o eleitor, qualquer exceção à mesma tem de ser justificada. Assim, a consagração de uma determinada inelegibilidade exige fundamento material bastante - que deve consistir num dos fundamentos previstos pelo artigo 50.º, n.º 3, da Constituição (introduzido na segunda revisão constitucional, pela lei Constitucional 1/89, de 8 de julho), onde se estabelece que «a lei só pode estabelecer as inelegibilidades necessárias para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos». Desta forma, o artigo 50.º, n.º 3, da Constituição «vem expressamente reconhecer a possibilidade de a lei estabelecer inelegibilidades, mas impõe uma clara vinculação teleológica do legislador - garantia da liberdade de escolha dos eleitores e isenção e independência no exercício de cargos eletivos - além de realçar o princípio da proibição do excesso ("inelegibilidades necessárias"). A regra é a de que todo o eleitor pode ser eleito, pelo que as exceções têm de ser justificadas» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, vol. I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, pp. 677-678).

Mesmo antes da consagração constitucional desse preceito, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tinha afirmado que o fundamento do estabelecimento de uma inelegibilidade deve residir no perigo da captatio benevolentiae do eleitorado por parte de quem exerce determinadas funções, bem como a necessidade de garantir a isenção e independência dos titulares dos cargos políticos (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 230/85).

Como o Tribunal Constitucional explicitou, especificamente em relação às inelegibilidades em eleições autárquicas, a razão de ser da imposição de uma tal restrição de um direito fundamental reside na «necessidade de, em Estado de direito democrático, [...] garantir a dignidade e a genuinidade do ato eleitoral [...] como meio de proporcionar correção à formação da vontade do eleitor, não perturbando a sua liberdade de escolha. Na área do exercício do poder local eletivo [...] a axiologia da inelegibilidade [assenta], particularmente, na isenção e independência de quem exerce cargos eletivos [...] e, simultaneamente, na expressão livre do voto periodicamente exercido e, como tal, [serve] para aferir o comportamento do eleito, sancionando-o se for caso disso» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 364/91).

12 - No que respeita ao processo legislativo que culminou na aprovação da Lei 46/2005, importa referir que esta lei surge na sequência da revisão constitucional de 2004, que aditou um número ao artigo 118.º da Constituição (que tem como epígrafe «Princípio da renovação»), autorizando o legislador a prever limitações aos mandatos sucessivos dos cargos públicos executivos, nos termos do artigo 168.º, n.º 6, alínea b), da Constituição. Esta alteração constitucional surgiu na sequência do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 364/91, que se pronunciou pela inconstitucionalidade do artigo 2.º do Decreto 356/V da Assembleia da República, relativo à «Alteração à lei eleitoral das autarquias locais», que nomeadamente estabelecia a inelegibilidade para um quarto mandato num executivo municipal dos cidadãos que tenham exercido o cargo de seu presidente por três mandatos consecutivos, por violação do disposto nos artigos 18.º, n.os 2 e 3, e 50.º, n.º 3, da Constituição. Pretendeu, assim, o legislador de revisão habilitar constitucionalmente tal limitação.

No exercício da sua margem de concretização própria do princípio da renovação dos mandatos, o legislador ordinário passou, assim, a ter o poder de definir o que considera ser "limite à renovação sucessiva de mandatos" (logo, "o tempo suficiente") de permanência nos cargos executivos autárquicos, nos termos do disposto no artigo 18.º e no artigo 50.º, n.º 3, da Constituição.

13 - Da exposição de motivos da Proposta de Lei 4/X que esteve na base da Lei 46/2005 surge inequívoca a intenção de estabelecer uma limitação de mandatos para os cargos políticos executivos de âmbito nacional, regional e local, de forma a dar execução ao artigo 118.º, n.º 2, da Constituição. Ainda de acordo com a referida exposição de motivos, o objetivo prosseguido pela introdução de limitações à renovação sucessiva de mandatos, consistia em fomentar a renovação dos titulares dos órgãos, visando-se o reforço das garantias da independência dos mesmos e prevenindo-se os excessos induzidos pela perpetuação no poder. Propunha-se, portanto, impedir que um mesmo cidadão pudesse renovar sucessivamente, e sem limites, o mandato representativo conferido para o mesmo cargo político executivo, afetando a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos cargos políticos. Como base para tais limitações era invocado o princípio da renovação e da temporalidade dos cargos do Estado (artigo 118.º da Constituição), e o princípio da eleição periódica (artigo 113.º, n.º 1 da Constituição), do qual decorre a duração limitada dos mandatos políticos.

A decisão de limitar os mandatos dos cargos políticos resultou também da perceção, no plano sociopolítico, de que a permanência dos mesmos cidadãos nos mesmos cargos políticos executivo de autarquia locais, por longos períodos de tempo, permitiria a criação de redes de influência que afetavam a alternância do poder.

14 - Por sua vez, a doutrina reflete, desde há muito, a preocupação de que a proteção irrestrita da liberdade de (re)candidatura dos que já ocupam o cargo (executivo autárquico), no plano dos factos, conduz à limitação da liberdade de todos os demais cidadãos que se disponibilizam para aceder ao mesmo cargo.

A realidade mostra bem quanto a liberdade de escolha dos eleitos e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos (artigo 50.º, n.º 3 da Constituição) são afetados pela persistência das mesmas pessoas nos órgãos do poder local «(embora mais a primeira do que a segunda)» (Jorge Miranda, Constituição e Cidadania, Coimbra Editora, 2003, p. 439).

Esta apreensão é renovada na doutrina mais recente: «o exercício dos cargos executivos autárquicos durante um período de tempo prolongado conduz, pelo menos potencialmente, a uma situação de excessiva personalização do poder e à impossibilidade de outros candidatos poderem, realisticamente, competir em condições de igualdade com o incumbente. Ou seja, neste cenário, apesar de juridicamente os eleitores continuarem a gozar da sua liberdade de escolha (podendo sempre optar por não votar, votar em branco ou noutro candidato), tal liberdade acaba por se revelar como meramente formal. Na prática os direitos de participação e sufrágio dos eleitores, com assento nos artigos 48.º e 49.º da Constituição, ficam, no fundo, esvaziados de conteúdo útil. Por outro lado, a inexistência de um limite temporal ao exercício de funções propicia igualmente o abuso de poder, que, em casos extremos, pode mesmo chegar a situações de corrupção e nepotismo. Pelo que, além de garantir a liberdade de escolha dos eleitores, a limitação de mandatos é ainda uma medida que prossegue o desígnio de assegurar a "isenção e independência" dos autarcas no exercício dos respetivos cargos, conforme exigido pelo artigo 50.º, n.º 3 da CRP» (Marco Caldeira, Tiago Serrão, «A Limitação de Mandatos Executivos Autárquicos: Uma Limitação Absoluta», Direito e Política, julho - outubro de 2013, pp. 87-88).

A Lei 46/2005 surge, assim, como manifestação de uma vontade do legislador, fruto das exigências políticas e sociais que se faziam sentir no sentido de se tomarem medidas que permitissem atenuar o risco de pessoalização do poder e de corrupção dos cargos por efeito da excessiva permanência nos mesmos, impondo a fixação de limites aos mandatos sucessivos de cargos de presidentes de câmara municipal e de junta de freguesias. É este o contexto do tempo em que foi elaborada.

Nas palavras de Maria da Glória Garcia, através desta iniciativa, o legislador «transformou em direito exigências politicamente manifestadas de uma nova definição de justiça que limite o cumprimento de mandatos sucessivos» («A limitação de mandatos dos titulares de órgãos políticos. O caso do Presidente do Governo Regional dos Açores», O DIREITO, Ano 143.º, 2011, V, p. 1138).

Independente da divergência de opiniões registada, no que respeita ao âmbito da limitação à renovação de mandatos imposta pela Lei 46/2005, de 29 de agosto (descrita no recente Acórdão deste Tribunal n.º 480/2013), entre as diferentes posições doutrinais publicadas sobre a matéria, inequívoco é que o propósito que esteve na origem da consagração dos limites à renovação sucessiva dos cargos políticos de presidente de junta de freguesia (tal como o de presidente de câmara) foi o de combater a perpetuação de titulares do poder autárquico, e sobretudo os riscos dela decorrentes para a própria legitimação do exercício do poder através do sufrágio eleitoral. Desta forma se poderia fomentar e garantir a renovação dos cargos e promover o aparecimento de alternativas credíveis, dinamizando o funcionamento das instituições através do aparecimento de novos quadros e garantindo a liberdade de escolha dos eleitores, evitando a concentração e personalização do poder que poderia decorrer de uma permanência, excessivamente longa, da mesma pessoa nos referidos cargos. É com este enquadramento que deve ser interpretada a inelegibilidade prevista no artigo 1.º da Lei 46/2005, de 29 de agosto.

15 - Diante do texto da Lei 46/2005, de 29 de agosto, suscitaram-se dúvidas quanto à amplitude definida para a limitação à renovação dos mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais.

A primeira questão de interpretação colocada perante este Tribunal Constitucional consistia em saber se o artigo 1.º, n.os 1 e 2, da referida lei impede o presidente de uma câmara municipal ou o presidente de uma junta de freguesia, que tenha exercido o número de mandatos consecutivos ali previstos, de se candidatar a outro município ou a outra freguesia para aí assumir as mesmas funções no quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo.

Ou seja, discutia-se se os mandatos consecutivos se refeririam às funções que em abstrato correspondem ao cargo de presidente de câmara municipal ou de presidente de junta de freguesia, valendo a limitação à capacidade eleitoral passiva para toda e qualquer câmara municipal ou junta de freguesia, ou, ao invés, somente abrangeriam as funções concretas de presidente de câmara municipal ou de presidente de junta de freguesia numa determinada autarquia local, abarcando apenas as situações em que o exercício de funções tivesse lugar na mesma circunscrição territorial.

Pelo acórdão 480/2013, o Tribunal decidiu que a limitação de renovação de mandatos dos titulares dos órgãos executivos de autarquias locais, imposta pelos n.os 1 e 2 do artigo 1.º da Lei 46/2005, de 29 de agosto, deve ser interpretada no sentido de apenas abranger as candidaturas ao mesmo cargo político relativamente a presidente de câmara que já tenha exercido esse mesmo cargo, na mesma câmara a que de novo se candidata, por três mandatos consecutivos, não podendo ser eleito para um novo mandato no mesmo cargo durante o quadriénio imediatamente subsequente ao último mandato consecutivo permitido.

Concluiu o Tribunal que de acordo com o regime de limitação à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais definido no artigo 1.º da Lei 46/2005, um presidente de câmara que tenha completado, num determinado município, o número máximo de mandatos consecutivos permitidos pelo artigo 1.º da Lei 46/2005, não está inibido de se candidatar para o cargo de presidente de câmara de um outro município diferente daquele em que completou o número máximo de mandatos sucessivos permitidos.

Ao decidir daquela forma, o Tribunal Constitucional delimitou o âmbito da restrição à renovação sucessiva de mandatos autárquicos, definindo que a aludida limitação vale apenas para a circunscrição territorial autárquica onde foram exercidas as funções.

16 - A mesma solução a que no mencionado Acórdão se chegou aplica-se a presidentes de juntas de freguesia, nos termos do artigo 1.º da Lei 46/2005.

Por conseguinte, de acordo com a interpretação acolhida pelo Tribunal Constitucional do referido preceito relativamente à limitação de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais, também o presidente de uma junta de freguesia que completou três mandatos consecutivos numa mesma freguesia se pode candidatar a presidente de junta de uma outra freguesia diferente.

17 - A questão colocada nos presentes autos não se esgota, todavia, naquela apreciação. De facto, na base da rejeição da candidatura pelo tribunal de recorrido está o exercício por três mandatos consecutivos, como presidente de uma determinada junta de freguesia do município de Peniche (a freguesia da Ajuda), do candidato que ora se apresenta como cabeça de lista à Assembleia de Freguesia da nova freguesia de Peniche que resultou da agregação de três freguesias, sendo uma delas precisamente a freguesia da Ajuda.

A questão trazida agora à apreciação do Tribunal Constitucional é, assim, a da ponderação dos moldes de aplicação da inelegibilidade, prevista no artigo 1.º da Lei 46/2005, em caso de agregação de freguesias entretanto ocorrida no âmbito do processo de reorganização administrativa territorial autárquica, que teve particular incidência sobre as freguesias. Com efeito, a Lei 22/2012, de 30 de maio, aprovou o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, impondo a sua obrigatoriedade no território das freguesias (diferentemente do âmbito dos municípios, relativamente ao qual se limitou a incentivar tal reorganização) posteriormente concretizada pela Lei 11-A/2013, de 28 de janeiro.

Para responder ao problema que ocupa os autos, será, portanto, necessário articular o regime dos limites à renovação sucessiva de mandatos de presidentes de juntas de freguesia, definido na Lei 46/2005, de 29 de agosto, com a agregação de freguesias que resultou da nova reorganização originada na Lei 22/2012, de 30 de maio.

Sem perder de vista o já decidido no acórdão 480/2013, o que importa determinar no presente processo é se alguém se pode candidatar ao cargo de presidente de junta de uma freguesia que resultou da agregação, com outras freguesias, da freguesia em que o candidato completou já o número máximo de mandatos consecutivos permitidos pelo artigo 1.º da Lei 46/2005.

Para tal, torna-se necessário resolver se se estará a candidatar a mais um mandato na mesma autarquia local, ou, pelo contrário, numa autarquia distinta, o candidato a presidente de uma junta de freguesia resultante da agregação empreendida pela Lei 22/2012, de 30 de maio, quando este tenha já exercido 3 mandatos consecutivos numa das freguesias extintas em virtude dessa mesma agregação.

Decidida esta questão - e caso se venha a considerar que a candidatura é apresentada em autarquia diferente -, restará, ainda, equacionar se não deverão valer, nesta situação de parcial coincidência territorial e populacional, as ponderações que levaram o legislador a consagrar as inelegibilidades no n.º 1 do artigo 1.º da Lei 46/2005.

18 - Dúvidas não há de que uma freguesia criada na sequência da fusão de freguesias empreendida pela Lei 22/2012 é uma nova autarquia local, constituindo uma realidade jurídica e materialmente distinta das freguesias extintas em consequência dessa união de freguesias.

Visando cumprir o compromisso assumido pelo Estado português, no Memorando de Entendimento, no sentido de proceder a uma redução do número de autarquias locais, como medida de redução de custos e melhoramento da eficiência na prestação do serviço público (cf. Ponto 3.44 "Memorando de Entendimento sobre as condicionalidades de política económica", datado de 17 de maio de 2011 - acessível em https://infoeuropa.eurocid.pt/registo/000046743), a Lei 22/2012, de 30 de maio, aprovou o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, onde se estabeleciam «os objetivos, os princípios e os parâmetros da reorganização administrativa territorial autárquica» e se definiam e enquadravam «os termos da participação das autarquias locais na concretização desse processo» (artigo 1.º, n.º 1).

Enquanto "lei de enquadramento", foi «além das suas antecessoras, na medida em que obriga à reorganização administrativa do território das freguesias e define os parâmetros de agregação que devem ser alcançados, através de uma redução global do número de freguesias, bem como o procedimento e os prazos a que essa reorganização deve obedecer» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 86/2013).

No artigo 9.º da Lei 22/2012, de 30 de maio, são claramente definidos os efeitos da agregação de freguesias. Nos termos do n.º 2 deste artigo, a freguesia criada por efeito da agregação de freguesias "constitui uma nova pessoa coletiva territorial", isto é, uma outra autarquia local.

19 - As freguesias criadas na sequência da reorganização administrativa territorial da Lei 22/2012, de 30 de maio, surgem como realidades juridicamente novas, diferentes das freguesias, entretanto extintas, que anteriormente coexistiam no novo, e, relativamente a cada uma destas, mais alargado espaço territorial da nova autarquia.

A agregação das freguesias operada pela Lei 22/2012 determinou o surgimento de novas entidades públicas que não se confundem com as que estiveram na sua origem, ainda que, parcialmente, abranjam parte do mesmo agregado populacional.

Do regime legal da reorganização territorial autárquica das freguesias imposto pela Lei 22/2012, extrai-se que as freguesias agregadas são extintas, sendo em sua substituição criada uma nova freguesia, dotada de personalidade jurídica, que irá integrar o património, recursos humanos e todos os direitos e obrigações das freguesias extintas pela agregação. Apesar de suceder nas posições jurídicas das freguesias agregadas, a nova freguesia, assim criada, não se confunde, pois, com as que estiveram na sua origem, nem representa uma continuidade jurídico-formal das anteriores.

Ao ser criada uma nova freguesia, por agregação de outras anteriormente existentes, assiste-se à perda de individualidade jurídica de cada um das unidades agregadas e ao nascimento de uma outra entidade autónoma, dotada de personalidade jurídica, centro de imputação de direitos e deveres.

20 - Nos termos da Lei Fundamental, as autarquias locais são pessoas coletivas territoriais, dotadas de órgãos representativos, eleitos por sufrágio universal, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (cf. artigo 235.º, n.º 2, e artigo 239.º, n.º 2, da Constituição).

A nova freguesia, ainda que composta pelo território e pelo substrato humano correspondente às freguesias agregadas anteriormente existentes, é uma realidade autárquica substancialmente diferente em cada um dos elementos essenciais que a Constituição (e a doutrina, na sequência da enumeração de Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Coimbra Editora, 1973, p. 308) identifica no conceito de autarquia local: circunscrição territorial, agregado populacional, interesses próprios e órgãos próprios representativos.

21 - As novas freguesias, enquanto pessoas coletivas territoriais, são, formal e materialmente, realidades distintas das freguesias que agregaram: desde logo, do ponto de vista do próprio substrato territorial, agora amplificado. Sendo mais abrangente a circunscrição administrativa identificada com o espaço territorial da autarquia, este território delimita e identifica a nova pessoa coletiva, definindo a população respetiva cujos interesses serão prosseguidos, e circunscrevendo, em razão do lugar, as atribuições da autarquia local e as competências dos seus órgãos (Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. I, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2006, p. 482.)

22 - Na perspetiva do substrato pessoal, não pode deixar de se considerar que, numa nova freguesia, ainda que esta abranja uma parte do agregado populacional de uma freguesia extinta, não há coincidência entre os agregados populacionais de ambas. E isto, não apenas do ponto de vista necessariamente quantitativo, mas também qualitativamente: os fregueses, agora mais numerosos, em virtude da agregação de freguesias, são, no seu conjunto, uma realidade social diversa, com aspirações comuns necessariamente distintas das que subjazem a um grupo populacional mais restrito, mais homogéneo, em suma, qualitativamente não coincidente.

Na verdade, a freguesia criada prossegue os interesses próprios de um agregado populacional agora mais alargado e heterogéneo - e, por isso, necessariamente não coincidente com o anterior -, referente a uma área territorial mais vasta, ainda que o seu território abranja o da freguesia agregada e o seu substrato humano seja integrado também pelos cidadãos residentes naquela que até agora foi a freguesia onde o candidato exerceu o cargo de presidente da junta, por três mandatos consecutivos.

O território, e a delimitação do universo humano abrangido por esta autarquia local que ele determina, influem de modo decisivo na circunscrição dos interesses comuns às populações nela residentes, cuja prossecução é fundamento primeiro da criação desta pessoa coletiva.

23 - E essa nova realidade, territorialmente fundada, e globalmente considerada, definirá, por si mesma e para si mesma, as necessidades gerais sentidas pela população respetiva, com a participação dos eleitores, mediante escolha dos órgãos representativos que avaliarão o modo de realizar as suas atribuições próprias, escolhendo objetivos e meios dentro do quadro de atribuições legalmente definido. Em cada coletividade prosseguir-se-ão, não os interesses gerais de caráter nacional, mas os interesses privativos, específicos, da comunidade em causa numa dada circunscrição territorial. Esta "capacidade de definição da orientação administrativa na prossecução dos interesses próprios da coletividade que constituiu o substrato da autarquia" - a autodeterminação a que se refere Vital Moreira (Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra Editora, 1997, p. 176) - é, no caso das novas freguesias, exercida por órgãos eleitos num outro colégio mais amplo, e que decidem em função de uma realidade territorial (fundada na proximidade territorial) e humana distinta, o que determinará opções diversas de entidade para entidade, e que, no caso das novas freguesias criadas, serão, naturalmente, não coincidentes com os das autarquias extintas. A cada substrato populacional corresponderá uma comunidade de interesses públicos próprios que determinará o sentido da sua atuação. É, como escreveu Freitas do Amaral, em função do agregado populacional "que se definem os interesses a prosseguir pela autarquia" (Curso de Direito Administrativo, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2006, p. 483).

E "a prossecução de interesses comuns é elemento indispensável do conceito de autarquia local. A população e o território são elementos necessários mas não «fazem» uma autarquia. Esta só toma consistência quando a população assente num determinado território assume como tarefa comum a satisfação de interesses próprios decorrentes da vida em comunidade" (António Cândido de Oliveira, Direito das Autarquias Locais, Coimbra Editora, 1993, p 260).

24 - Também a ideia de governo próprio, por meio de órgãos próprios, representativos, escolhidos pela comunidade de base (Vital Moreira, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra Editora, 1997, p. 173), fundamental à noção de autarquia local, numa concretização do princípio democrático, concorre para que se afirme, perentoriamente, a não confundibilidade da realidade autárquica extinta e da realidade criada: os órgãos das novas freguesias são escolhidos pela respetiva coletividade territorial no seu conjunto, agindo sob responsabilidade própria e respondendo perante essa mesma comunidade no seu todo.

«O conceito constitucional de autonomia das autarquias locais é incompatível com formas de designação dos titulares dos órgãos autárquicos que não incluam a sua eleição por parte das populações dos entes locais» (Maria Lúcia Amaral, A Forma da República, Uma Introdução ao estudo do direito constitucional, Coimbra Editora, 2012, p. 384). Mais do que isso: «a trave-mestra da descentralização é a eleição de órgãos deliberativos e executivos, de modo a que os órgãos que tenham a seu cargo os assuntos locais emanem da coletividade regional ou local, não do Estado» (J. Batista Machado, Participação e Descentralização Democratização e Neutralidade na Constituição de 76, Almedina, 1982, p. 84).

A representação nas autarquias locais é «no nosso sistema e em geral nos de Estado constitucional, uma forma de representação política» (J. de Melo Alexandrino, «Direito das Autarquias Locais», Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol. IV, 2010, p.150).

Os órgãos das autarquias locais representam, assim, politicamente, comunidades de residentes, sendo os seus titulares eleitos por essa mesma comunidade.

E é através dos representantes nos órgãos próprios da comunidade local que esta estabelece a sua própria orientação, fixando os interesses específicos deste agregado populacional, globalmente considerado, que serão objeto de autoadministração.

Ou seja, as estruturas orgânicas representativas da nova freguesia resultante de agregação são, necessariamente, também distintas das assembleias de freguesia e juntas de freguesia das freguesias originais agregadas. A nova autarquia é dotada de órgãos cujos titulares são eleitos pela nova comunidade local de residentes organizada em autarquia local, que é diferente da corporizada pelas freguesias extintas.

Sendo eleitos por sufrágio universal, livre, direto, secreto e periódico dos cidadãos recenseados na área da respetiva autarquia (artigos 113.º, n.º 1 e 129.º, n.º 2 da Constituição), os titulares de órgãos autárquicos representativos (onde se incluem os presidentes de junta de freguesia) dispõem de legitimidade democrática para a representação dos interesses da comunidade de residentes que os elegeu. A fonte de legitimação do seu poder advém da comunidade local que representam. Desta forma, «a "vontade popular" confere a um conjunto de pessoas a incumbência de decidir e agir em seu nome e interesse» (Maria Lúcia Amaral, ob. cit., p. 231). É, portanto no interesse e em representação da comunidade local que o elegeu que o eleito deve agir.

Dotados de legitimidade democrática, os titulares do poder público «tornam-se representantes políticos do povo, agindo com base numa delegação de quem, sendo o titular do poder político (artigo 108.º), não o pode exercer por si direta e imediatamente» (Paulo Otero, Direito Constitucional Português, vol. II, Organização do Poder Político, Almedina, 2010, p. 78).

Assumindo a natureza de um mandato político representativo, a relação assim materializada, entre o eleito local e a comunidade local de residentes amplamente considerada, inculca uma sensibilidade própria, que não é confundível com a relação do eleito com qualquer outra comunidade que aquela possa ter assimilado.

25 - Atendendo ao que fica exposto, considera-se que, apesar de a Freguesia de Peniche se ter constituído com a agregação (e consequente extinção) da Freguesia da Ajuda e de outras duas freguesias, esta nova freguesia, é, formal, e substancialmente, uma autarquia local perfeitamente distinta das que assimilou.

26 - Mesmo assim se considerando, poderia, ainda, argumentar-se, não obstante a novidade do ente criado, se havendo, do ponto de vista fáctico, parcial coincidência territorial e populacional entre a nova freguesia e a freguesia nela agregada, não valeriam também aqui, com particular acuidade, as razões substanciais que levaram o legislador a consagrar a inelegibilidade prevista no art.1.º, n.º 1, da Lei 46/2005.

Poder-se-ia pensar, nesta situação de parcial sobreposição territorial e populacional, que pudessem aqui valer as ponderações que levaram o legislador a consagrar as inelegibilidades no n.º 1 do artigo 1.º da Lei 46/2005.

27 - A verdade, porém, é que para os efeitos considerados na Lei 46/2005, as situações resultantes de agregação de freguesias são tão diversas entre si - nomeadamente porque a sobreposição parcial da nova freguesia e da freguesia agregada em que o presidente da junta exerceu os mandatos consecutivos é muito variável - que não se pode ter como segura a vontade do legislador de abranger todas estas situações na previsão do artigo 1.º da citada lei.

Esta incerteza é ainda agravada pela circunstância de a reorganização administrativa das freguesias ser um facto novo, não previsto em 2005, e de o legislador nada ter referido a este propósito nas leis que operacionalizaram a mencionada reorganização (Lei 22/2012, de 30 de maio, e Lei 11-A/2013, de 28 de junho).

Ora, nestes casos, não poderá deixar de se considerar que não caberá ao intérprete substituir-se ao legislador na clarificação da incerteza sobre a amplitude das inelegibilidades previstas no artigo 1.º da Lei 46/2005.

Isso mesmo se ponderou já no Acórdão 480/2013 deste Tribunal:

«Por outro lado, estando em causa apenas a amplitude da fixação legal de inelegibilidades e existindo ao lado de situações que inequivocamente são abrangidas pela lei em apreço outras que não é certo serem-no, não pode o intérprete substituir-se ao legislador na clarificação dos casos duvidosos. Com efeito, trata-se de domínio de reserva de lei parlamenta, pelo que é exigível ao legislador uma particular clareza na expressão da sua vontade - a que deverá corresponder, por parte do intérprete, uma especial contenção na imputação de sentidos menos certos ou evidentes. Mais: dadas as conexões da matéria dos limites à renovação sucessiva de mandatos dos titulares de cargos políticos executivos com o princípio democrático, em especial quando estejam em causa cargos eletivos, tal exigência de clareza para o legislador (e de contenção para o intérprete) é agravada, porquanto a lei restritiva da renovação sucessiva de mandatos carece de aprovação por maioria qualificada de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efetividade de funções - trata-se de assegurar um amplo consenso político em torno das soluções positivadas para as soluções presentes (cf. o artigo 168.º, n.º 6, alínea b), da Constituição).

A mesma solução interpretativa é alcançada se se fizer aplicação do princípio da máxima efetividade interpretativa das normas que envolvam direitos fundamentais, segundo o qual, na hipótese de existir uma dúvida quanto ao exato sentido interpretativo das normas referentes a direitos fundamentais, o intérprete ou o aplicador da norma encontra-se vinculado a conferir-lhes a máxima efetividade interpretativa (cf., Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., 2003, Coimbra, Almedina, p. 1224). Assim, perante dois sentidos possíveis de uma norma restritiva de direitos fundamentais em que se suscitem dúvidas quanto ao âmbito da restrição em causa, deverá optar-se pela solução interpretativa que, limitando o âmbito de incidência da restrição, amplie o direito em causa. No caso concreto, existindo dúvidas sobre a interpretação do artigo 1.º da Lei 46/2005, de 29 de agosto, quanto a saber se a inelegibilidade aí prevista impede os presidentes de câmara municipal e os presidentes de junta de freguesia que tenham cumprido três mandatos sucessivos numa determinada autarquia de se candidatarem, no quadriénio seguinte, para exercerem tais funções nessa mesma autarquia ou em toda e qualquer autarquia, deverá optar-se pela solução interpretativa que, restringindo o alcance ou âmbito da limitação do direito. O que leva a que tal inelegibilidade abranja apenas a autarquia local em que tenham sido cumpridos os três mandatos consecutivos.

É também para esta solução interpretativa que aponta o princípio in dubio pro libertate, por força do qual os direitos deverão prevalecer sobre as restrições (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 5.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 421). Assim, entre duas soluções interpretativas possíveis de um texto legal, deve sempre optar-se pela solução que mais favoreça a liberdade, que melhor garanta, reforce ou faça prevalecer as posições jurídicas subjetivas ou os direitos fundamentais. No caso aqui em análise do «direito de sufrágio passivo» - um direito, liberdade e garantia de participação política (cf. supra o n.º 6) -, esta interpretação «amiga da liberdade» é também uma interpretação que confia na capacidade de escolha dos eleitores sem excessivas "tutelas" em nome da "correção" das escolhas que estes venham a realizar.

Finalmente, esta é a solução que, numa perspetiva de concordância prática, permite conciliar minimamente - deixando, por isso mesmo, em aberto a questão da respetiva otimização - os três princípios conflituantes: o democrático (na vertente subjetiva da liberdade eleger e na vertente objetiva de serem os eleitores a decidir quem deve ser eleito), o da renovação de mandatos e o da participação política dos cidadãos. Na verdade, tal solução, sem sacrificar totalmente - ainda que apenas por um período limitado de tempo - o direito de ser candidato a presidente de câmara municipal ou a presidente de junta de freguesia, salvaguarda em medida não negligenciável os diferentes bens constitucionais visados e tutelados pelo artigo 118.º, n.º 2, da Constituição, em especial, a renovação (na autarquia em que o candidato tenha exercido o cargo de presidente do respetivo órgão colegial executivo), a «não vitalicidade» e a efetividade da responsabilidade perante o eleitorado. Deste modo, a Lei 46/2005, de 29 de agosto, embora não veja maximizada a sua eficácia limitadora, também a não vê inutilizada, mas antes limitada a casos em que as razões justificativas da sua aprovação se fazem sentir com grande intensidade e que na mesma são inequivocamente contemplados.»

28 - Conclui-se, consequentemente, que a limitação à renovação de mandato não se aplica ao presidente de junta de uma freguesia constituída por agregação, que tenha cumprido três mandatos consecutivos numa das freguesias agregadas.

29 - Assim sendo, deve ser mantida a decisão recorrida, sendo de aceitar a candidatura de Henrique Bertino Batista Antunes, cabeça de lista da CDU, à Assembleia de Freguesia de Peniche.

III - Decisão

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, manter a decisão recorrida, julgando elegível o primeiro candidato da lista de candidatos à Assembleia de Freguesia de Peniche apresentada pela CDU.

Lisboa, 6 de setembro de 2013. - Catarina Sarmento e Castro - Maria José Rangel de Mesquita - João Cura Mariano - Pedro Machete - Maria João Antunes (vencida, nos termos da declaração junta) - Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, nos termos da declaração junta) - Maria Lúcia Amaral.

Declaração de voto

Votei vencida, pelas razões que me levaram a não acompanhar o decidido no Ac. 480/13, remetendo para a declaração de voto aí aposta.

No essencial, entendo que a limitação à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias não releva do território onde são exercidas as funções, mas do exercício continuado das funções em si.

Maria João Antunes.

Declaração de voto

1 - Não concordo com a solução que o Tribunal Constitucional propôs para o caso em presença, pois considero que esta não corresponde ao espírito da Lei 46/2005, de 29 de agosto. Esta lei, ao impor a limitação de mandatos autárquicos, teve como objetivo garantir a liberdade de escolha dos eleitores e evitar a concentração e personalização do poder que poderia decorrer de uma permanência excessiva da mesma pessoa nos referidos cargos. É, pois, necessário conciliar os dois direitos fundamentais em presença: o direito fundamental de acesso aos cargos políticos (vulgo direito de ser eleito) e o direito fundamental a eleger livremente os titulares dos cargos políticos (vulgo direito de eleger).

De acordo com a interpretação do acórdão, o direito dos residentes na freguesia agregada a eleger livremente os titulares dos cargos políticos (direito fundamental que a Lei 46/2005 pretende proteger) passa a ser menos protegido do que o direito dos residentes das restantes freguesias, sem que haja motivo bastante que o justifique. A desconsideração dos mandatos exercidos como presidente de uma freguesia agregada naquela para a qual agora se candidata conduz inevitavelmente ao esvaziamento do propósito prosseguido pela lei.

2 - O Tribunal Constitucional foi recentemente colocado perante dúvidas suscitadas diante do texto dos n.os 1 do artigo 1.º da Lei 46/2005, de 29 de agosto, quanto à amplitude da limitação à renovação dos mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais. No acórdão 480/2013 veio o Tribunal a decidir que esta norma deve ser interpretada no sentido de apenas abranger as candidaturas à presidência de um órgão executivo autárquico caso o candidato já tenha exercido esse cargo, nessa mesma autarquia a que de novo se candidata, por três mandatos consecutivos. É esta solução que se aplica aos presidentes de juntas de freguesia: é permitido ao presidente de uma junta de freguesia que completou três mandatos consecutivos numa mesma freguesia a candidatura a presidente de junta de uma outra freguesia.

3 - A questão nova a decidir nos presentes autos consiste em saber se alguém se pode candidatar e ser eleito para o cargo de presidente de junta de uma freguesia que resultou da agregação de certa freguesia em que completou o número máximo de mandatos consecutivos permitidos pelo artigo 1.º da Lei 46/2005, com outras freguesias. Para responder a essa questão é necessário articular o regime dos limites à renovação sucessiva de mandatos (nomeadamente) de presidentes de juntas de freguesia, definido na Lei 46/2005, de 29 de agosto, com a agregação de freguesias que resultou da Lei 22/2012, de 30 de maio, que aprovou o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica, impondo a sua obrigatoriedade no território das freguesias, posteriormente concretizada pela Lei 11-A/2013, de 28 de janeiro.

De uma perspetiva meramente formal, a resposta à questão é simples. Basta recorrer a um raciocínio baseado no seguinte silogismo: 1) a inelegibilidade prevista na Lei 46/2005 só se aplica à candidatura ao mesmo cargo na mesma autarquia; 2) a freguesia surgida da agregação de freguesias concretizada pela Lei 11-A/2013, de 28 de janeiro, é uma nova autarquia, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, da Lei 22/2012; logo: 3) a limitação de renovação de mandato não se aplica ao presidente da junta de freguesia agregada.

4 - No entanto, esta perspetiva formal não responde à complexidade da questão que importa resolver. A dificuldade de interpretação, neste caso, advém do facto de, ao tempo da publicação da Lei 46/2005 não estar em curso - nem se antecipar como espectável - o processo legislativo que viria a culminar na reorganização do território autárquico, operada pela Lei 11-A/2013, de 28 de janeiro. O regime legal dessa reorganização veio a ser introduzido apenas recentemente, com a publicação da Lei 22/2012, de 30 de maio. Por conseguinte, ao estabelecer os limites à renovação dos mandatos sucessivos, o legislador não considerou a situação atual de reorganização administrativa territorial autárquica que levou à agregação de um número considerável de freguesias. Esta realidade não pode deixar de ser tida em conta ao interpretar, hoje, a Lei 46/2005.

5 - A interpretação jurídica não se basta com uma lógica meramente formal nem se pode cingir ao sentido literal e original dos preceitos (artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil). Na atividade interpretativa, para além do elemento literal, o intérprete deve socorrer-se dos antecedentes e processo legislativo que culminou na aprovação da lei (elemento histórico), bem como dos fins visados com a sua publicação (elemento teleológico), não descurando, finalmente, a necessidade de encontrar coerência no sistema legal instituído (elemento sistemático). O processo de interpretação e aplicação da lei impõe, também, a consideração das condições específicas do tempo em que a lei é aplicada (elemento atualista da interpretação). Significa isto que, na interpretação a empreender, o intérprete deve procurar o fator de atualização do pensamento legislativo, considerando a conjuntura sociológica ditada pela época em que a lei é aplicada, sem ignorar o passado que a precedeu.

É a esta luz que deve ser interpretado o regime da limitação de mandatos previsto na Lei 46/2005 no caso das freguesias agregadas, já que «uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na "unidade do sistema jurídico"» (J. BATISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, p. 191).

6 - A solução para a questão colocada deve, assim, ter em conta a teleologia da Lei 46/2005 e recordar o contexto social em que surgiu, bem como atender ao sentido do artigo 1.º da mesma lei, tal como resulta do recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 480/2013, sem deixar de ter em conta a harmonia do sistema jurídico.

A ratio da Lei 46/2005, que pretende dar execução legal aos artigos 50.º, n.º 3, e 118.º, n.º 2, da Constituição, tal como resulta da exposição de motivos da Proposta de Lei 4/X, que esteve na sua origem, implica a referida ponderação entre os dois direitos fundamentais em presença: o direito fundamental de acesso aos cargos políticos (vulgo direito de ser eleito) e o direito fundamental a eleger livremente os titulares dos cargos políticos (vulgo direito de eleger). Da exposição de motivos surge inequívoca a intenção de estabelecer uma limitação de mandatos para os cargos políticos executivos, de forma a dar execução ao artigo 118.º, n.º 2, da Constituição. O objetivo prosseguido pela introdução desta limitação consistia em fomentar a renovação dos titulares dos cargos, visando-se o reforço das garantias da independência dos mesmos e prevenindo-se os excessos induzidos pela perpetuação no poder, uma vez que esta pode levar à sua concentração e personalização. Propunha-se, portanto, impedir a permanência, excessivamente longa (na avaliação do legislador), da mesma pessoa nos referidos cargos que decorreria da possibilidade de um mesmo cidadão poder renovar sucessivamente, e sem limites, o mandato representativo conferido para o mesmo cargo político executivo, afetando a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos cargos políticos.

A desconsideração dos mandatos exercidos como presidente de uma freguesia agregada naquela para a qual agora se candidata conduz inevitavelmente ao esvaziamento daquele propósito.

7 - Sem descurar que a freguesia para a qual agora se candidata configura uma nova pessoa coletiva territorial, expressando interesses próprios de um agregado populacional mais alargado referente a uma área territorial mais vasta, certo é que o seu território abrange o da freguesia agregada e que o seu substrato humano é integrado também pelos cidadãos residentes naquela que até agora foi a freguesia onde o candidato exerceu o cargo de presidente da junta, por três mandatos consecutivos. Ignorar este elemento é ignorar a realidade.

Apesar de a "união de freguesias" ser uma nova entidade, ela é composta pelo território - e, mais importante, pelo substrato humano, a comunidade de eleitores - da circunscrição onde já se atingiu o limite de mandatos. A história do território e a realidade subjacente à comunidade de vizinhos em causa não desaparecem. E o legislador valorizou essa realidade na definição do regime da reorganização do território autárquico ao salvaguardar o respeito pela identidade de cada uma das comunidades que integravam o substrato humano das freguesias agregadas (artigo 9.º, n.º 3 da Lei 22/2012).

8 - Os órgãos das autarquias locais representam politicamente, comunidades de residentes, sendo os seus titulares eleitos por essa mesma comunidade, por sufrágio universal, livre, direto, secreto e periódico dos cidadãos recenseados na área da respetiva autarquia (artigos 113.º, n.º 1 e 129.º, n.º 2 da Constituição). Os presidentes de junta de freguesia dispõem, assim, de legitimidade democrática para a representação dos interesses da comunidade de residentes que os elegeu. A fonte de legitimação do seu poder advém da comunidade local que representam.

Assumindo a natureza de um mandato político representativo, a relação assim materializada entre o eleito local e a comunidade local de residentes assenta numa base de confiança e de responsabilidade. Na sua essência, o poder local reside, pois, na comunidade de vizinhos, residente num território delimitado, organizada em pessoa coletiva para a prossecução das suas necessidades coletivas. Ou seja, no substrato humano da autarquia local composto pelo conjunto de residentes (cada um deles) que forma uma comunidade ou agregado populacional.

9 - A interpretação sufragada no acórdão desconsidera estes aspetos relevantes na interpretação da lei e, desta forma, frustra o seu fim.

Ao ignorar os mandatos anteriormente exercidos pelo candidato na freguesia agregada, priva uma parcela do território e da população da nova comunidade da proteção visada pela limitação de mandatos. De facto, se parte dos residentes que integram a nova comunidade local não vê beliscada a sua liberdade de escolha pela apresentação de uma candidatura que, para eles, constitui novidade, outra parte, porém, - a composta pelos residentes da freguesia agregada em que o candidato foi presidente da junta ao longo de três mandatos consecutivos - ver-se-á necessariamente confrontada com a candidatura de alguém que já foi o presidente da junta de freguesia da sua residência durante doze anos consecutivos. E que poderá continuar a sê-lo por mais doze anos.

E não é pela circunstância de «os fregueses, agora mais numerosos, em virtude da agregação de freguesias, [serem], no seu conjunto, uma realidade social diversa, com aspirações comuns necessariamente distintas das que subjazem a um grupo populacional mais restrito, mais homogéneo, em suma, qualitativamente não coincidente» como referido no acórdão, que a liberdade do voto individual que se procura acautelar a cada eleitor deve desaparecer, na construção da vontade do conjunto.

O exercício do direito de voto é individual e pessoal (artigo 49.º, n.º 2, da Constituição), não é um voto orgânico ou corporativo que se dilui no substrato pessoal da pessoa coletiva. Por via da interpretação feita pelo Tribunal Constitucional no presente Acórdão, o direito fundamental de cada um dos residentes na freguesia agregada participar livremente na eleição dos titulares dos cargos políticos, que a Lei 46/2005 pretende assegurar, é menos protegido do que o direito dos residentes das restantes freguesias, sem que haja justificação bastante.

Tendo o legislador avaliado como tempo limite de permanência no mesmo cargo executivo autárquico três mandatos consecutivos, ignorar - para efeitos de permissão da sua candidatura, ao abrigo do artigo 1.º da Lei 46/2005, de 29 de agosto - que a freguesia onde o candidato exerceu o cargo se encontra agregada na nova freguesia para a qual agora se candidata mais uma vez, significa, afinal, permitir uma quarta candidatura sucessiva à mesma circunscrição eleitoral (o mesmo candidato para o mesmo universo de eleitores). Se a pessoa que ocupa o cargo de presidente do órgão executivo que preside à autarquia onde o eleitor residiu e reside (seja a união de freguesias atual, seja a freguesia agregada anterior) é e poderá continuar a ser, de facto, a mesma, então o objetivo de evitar a pessoalização do poder é frustrado. Uma tal solução frustra o propósito visado pela norma e traduz uma interpretação da lei que não corresponde ao seu espírito.

A interpretação que ignora a materialidade prévia e subjacente à agregação de freguesias conduz, portanto, a uma solução que obriga o legislador a tolerar «uma definição de justiça que considerou errada e, por considerar errada, procurou corrigir» - nestes casos, o decisivo, «é a estrutura compreensiva da norma e a sua intenção; caso contrário, seriam os factos a obstaculizar os princípios e não estes a conformar os factos», nas expressivas imagens de MARIA DA GLÓRIA GARCIA, em parecer emitido no âmbito de aplicação da lei de limitação de mandatos dos titulares de órgãos políticos, ainda que tomando por base cargo diferente do aqui em apreciação (O DIREITO, Ano 143.º, 2011, V, p. 1142 e 1144).

10 - Como argumento adicional hipotético, mas impressivo, imagine-se a situação oposta à agregação: determinada autarquia é dividida em duas. Nesse caso, formalmente também estaríamos perante entidades novas, pelo que também se poderia usar o argumento de que, por esse motivo, seria possível a recandidatura para além do limite. No entanto, a ratio da norma claramente indica que a limitação de mandatos ainda assim deveria ser aplicada. O mesmo se teria de concluir numa situação em que, por absurdo, uma autarquia é extinta e recriada, com a mesma delimitação geográfica mas apenas com designação diferente: apesar de ser uma entidade nova, o que é relevante para a aplicação da limitação de mandatos é a coincidência de território e de comunidade de eleitores sob os quais o mandato vai ser exercido.

11 - Tendo em conta o exposto, resta salientar que a solução legal exposta não traduz interpretação "extensiva" do artigo 1.º da Lei 46/2005, nem contraria qualquer comando constitucional. Antes resulta da interpretação da norma em causa, realizada no respeito pela ratio da lei.

Maria de Fátima Mata-Mouros.

207260105

Anexos

  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/1115850.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1978-12-27 - Lei 71/78 - Assembleia da República

    Cria a Comissão Nacional de Eleições e estabelece a sua natureza, composição e competências.

  • Tem documento Em vigor 1989-07-08 - Lei Constitucional 1/89 - Assembleia da República

    Segunda revisão da Constituição.

  • Tem documento Em vigor 1999-09-18 - Lei 169/99 - Assembleia da República

    Estabelece o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento, dos orgãos dos municípios e das freguesias.

  • Tem documento Em vigor 2001-08-14 - Lei Orgânica 1/2001 - Assembleia da República

    Aprova a lei que regula a eleição dos titulares dos órgãos das autarquias locais. Altera o regime de financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.

  • Tem documento Em vigor 2004-07-24 - Lei Constitucional 1/2004 - Assembleia da República

    Altera a Constituição da República Portuguesa (Sexta revisão constitucional). Publica, em anexo, o novo texto constitucional.

  • Tem documento Em vigor 2005-08-29 - Lei 46/2005 - Assembleia da República

    Estabelece limites à renovação sucessiva de mandatos dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais.

  • Tem documento Em vigor 2012-05-30 - Lei 22/2012 - Assembleia da República

    Aprova o regime jurídico da reorganização administrativa territorial autárquica.

  • Tem documento Em vigor 2013-01-28 - Lei 11-A/2013 - Assembleia da República

    Procede à reorganização administrativa do território das freguesias.

Ligações para este documento

Este documento é referido no seguinte documento (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

Aviso

NOTA IMPORTANTE - a consulta deste documento não substitui a leitura do Diário da República correspondente. Não nos responsabilizamos por quaisquer incorrecções produzidas na transcrição do original para este formato.

O URL desta página é:

Clínica Internacional de Campo de Ourique
Pub

Outros Sites

Visite os nossos laboratórios, onde desenvolvemos pequenas aplicações que podem ser úteis:


Simulador de Parlamento


Desvalorização da Moeda