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Acórdão 4/94, de 4 de Novembro

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Sumário

COM A ENTRADA EM VIGOR DO DECRETO LEI NUMERO 267/92, DE 28 DE NOVEMBRO, - SUPRIME A NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO NOTARIAL NAS PROCURAÇÕES PASSADAS A ADVOGADOS PARA A PRÁTICA DE ACTOS, QUE ENVOLVAM O EXERCÍCIO DO PATROCÍNIO JUDICIÁRIO E REGULA O CONTEUDO DAS MESMAS PROCURAÇÕES QUANDO ATRIBUAM PODERES ESPECIAIS -, CADUCOU A JURISPRUDÊNCIA FIXADA PELO ACÓRDÃO OBRIGATÓRIO NUMERO 2/92, DE 13 DE MAIO DE 1992, (PUBLICADO NO DR.IS-A, NUMERO 150, DE 920702), DESTE TRIBUNAL, POR AQUELE DIPLOMA TER REVOGADO IMPLICITAMENTE O NUMERO 3 DO ARTIGO 49 DO CODIGO DO PROCESSO PENAL (APROVADO PELO DECRETO LEI 78/87, DE 17 DE 17 DE FEVEREIRO), MOTIVO POR QUE NAO EXISTE QUALQUER NECESSIDADE DE RATIFICAÇÃO DE QUEIXA APRESENTA POR MANDATÁRIO JUDICIAL, MUNIDO DE SIMPLES PROCURAÇÃO FORENSE, DENTRO DO PRAZO FIXADO PELO NUMERO 1 DO ARTIGO 112 DO CODIGO PENAL, APROVADO PELO DECRETO LEI 400/82, DE 23 DE SETEMBRO. (PROC. NUMERO 45888).

Texto do documento

Acórdão 4/94
Processo 45888
Acordam, no plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto na Relação do Porto veio, ao abrigo dos artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal, interpor o presente recurso extraordinário para a fixação de jurisprudência do Acórdão daquele Tribunal de 19 de Maio de 1993, proferido no processo 238/93, 1.ª Secção, transitado em julgado, alegando que:

O acórdão recorrido se encontra em oposição com o Acórdão daquela mesma Relação proferido em 11 de Julho de 1990, no processo 24104, da 1.ª Secção, também transitado em julgado;

No acórdão recorrido decidiu-se no sentido de que em crime semipúblico cuja participação foi apresentada por mandatário judicial sem que este tenha poderes especiais especificados para o efeito, a correcção do vício e a ratificação do processo só serão eficazes se ocorrerem antes do decurso do prazo de caducidade do direito de queixa estabelecido no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal, pois que, se a ratificação não tiver lugar até ao termo de tal prazo, o direito de queixa encontrar-se-á extinto a consequenciar a ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal;

Por seu turno, no acórdão fundamento proferido no mencionado processo 24104, de 11 de Julho de 1990, fora decidido que perante a apresentação de participação nessas circunstâncias deverá o juiz, em qualquer altura do processo, suprir oficiosamente a insuficiência da procuração e fixar prazo dentro do qual deverá ser suprido o vício e ratificado o processado, cujos efeitos se retrotraem à data da apresentação da participação, mesmo que a ratificação ocorra após o decurso do prazo de caducidade do direito de queixa;

Ambos os acórdãos foram proferidos num domínio da mesma legislação, estando reunidas as condições de admissibilidade do presente recurso extraordinário, com a consequente legitimidade do Ministério Público para recorrer, ao abrigo dos já citados artigos 437.º e seguintes do Código de Processo Penal.

Os autos subiram a este Supremo Tribunal, foi proferido o despacho liminar e, colhidos os vistos, foi decidido, por Acórdão de 17 de Março de 1994, constante de fl. 35 a fl. 36, que o recurso deveria prosseguir por estarem em causa acórdãos da mesma Relação, proferidos no domínio da mesma legislação e que deram solução oposta à mesma questão de direito.

Cumpriu-se o disposto no artigo 442.º do Código de Processo Penal, tendo o Exmo. Magistrado do Ministério Público apresentado doutas alegações, constantes de fl. 40 a fl. 65, onde conclui dever, em sua óptica, fixar-se jurisprudência nos seguintes termos:

1) Em crime semipúblico cuja participação foi apresentada por mandatário judicial sem poderes especiais especificados para o efeito, o suprimento do vício e a ratificação do processado podem efectivar-se com efeitos retrotraídos à data da denúncia, mesmo que já tenha decorrido o prazo de caducidade do direito de queixa previsto no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal;

2) Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 267/92, de 28 de Novembro, caducou a doutrina do Acórdão, com força obrigatória, deste Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 1992, havendo que considerar-se revogado implicitamente o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal, pelo que não existe qualquer necessidade de ratificação dentro do prazo de seis meses previsto no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal, de uma queixa por crime semipúblico, apresentada por mandatário munido de simples procuração forense.

Considerando a substância dos dois acórdãos em curso - o recorrido e o fundamento -, tem-se como certo que ambos chegaram a soluções opostas sobre a mesma questão de direito, pelo que não tem este plenário qualquer objecção a opor ao decidido no Acórdão preliminar de 17 de Março de 1994, constante de fl. 35 a fl. 36.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
I - Vejamos, em primeiro lugar, as disposições normativas que interessam à solução da questão suscitada:

a) O artigo 49.º do Código de Processo Penal de 1987:
1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

2 - Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.

3 - A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais.

4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depende da participação de qualquer autoridade.

b) O artigo 40.º do Código de Processo Civil:
1 - A falta de procuração e a sua insuficiência ou irregularidade podem, em qualquer altura, ser arguidas pela parte contrária e suscitadas oficiosamente pelo tribunal.

2 - O juiz marcará o prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado. Findo este prazo sem que esteja regularizada a situação, fica sem efeito tudo que tiver sido praticado pelo mandatário, devendo este ser condenado nas custas respectivas e na indemnização dos prejuízos a que tenha dado causa.

c) O artigo 112.º do Código Penal:
1 - O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores ou a partir da morte do ofendido ou da data em que ele se tornou incapaz.

2 - Sendo vários os titulares do direito de queixa, o prazo conta-se autonomamente para cada um deles.

d) O Decreto-Lei 267/92, de 28 de Novembro:
Nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte:

Artigo único - 1 - As procurações passadas a advogado para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais, não carecem de intervenção notarial, devendo o mandatário certificar-se da existência, por parte do ou dos mandantes, dos necessários poderes para o acto.

2 - As procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de actos, qualquer que seja a sua natureza, para os quais são conferidos esses poderes.

II - Haverá, ainda, que ter presente o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, de 13 de Maio de 1992, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 2 de Julho do mesmo ano, que fixou a seguinte jurisprudência:

Os poderes especiais a que se refere o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal são poderes especiais especificados e não simples poderes para a prática de uma classe ou categoria de actos.

III - Vejamos agora os argumentos expendidos por cada um dos acórdãos na defesa das respectivas teses.

1 - Comecemos pelo Acórdão fundamento de 11 de Julho de 1990.
A argumentação ali referida pode resumir-se assim:
Só há extinção do direito de queixa quando esse direito não tiver sido exercido (eficazmente exercido) dentro do prazo de seis meses;

Num caso em que o representante legal do ofendido confirmou a queixa, mas quando já se havia extinto o prazo do exercício desse direito, há que desencadear a fixação do prazo abrangido pela previsão do n.º 2 do artigo 40.º do Código de Processo Civil;

A ratificação tem eficácia retroactiva;
Se o titular do direito de queixa ratificar o processado, é aquela plenamente eficaz desde o momento em que foi apresentada;

Se a queixa for plenamente eficaz desde momento anterior ao transcurso do prazo de caducidade, é juridicamente correcta a afirmação de que existe queixa anterior a esse transcurso;

Este não pode determinar a extinção do direito de queixa, uma vez que esta foi feita em devido tempo e com plena eficácia.

2 - A posição sustentada pelo acórdão fundamento pressupõe, assim, claramente, a aplicação ao processo penal do artigo 40.º do Código de Processo Civil, nele se dizendo expressamente que «não faria sentido que os problemas suscitados pela falta, pela insuficiência ou pela irregularidade do mandato se colocassem no processo civil e que o processo penal se mostrasse absolutamente insensível à imposição desses mesmos problemas», daí que conclua nos seguintes termos:

Assim, devendo entender-se que a falta de regulamentação dessas três situações no Código de Processo Penal constitui uma lacuna e sendo certo que o regime estabelecido pelo artigo 40.º do Código de Processo Civil se harmoniza com o processo penal (sem qualquer prejuízo para as diferenças funcionais ou de estrutura entre os dois tipos de processo), entendemos que o caminho da integração por essa via não pode ser considerado interdito. [Fl. 14.]

IV - Por sua vez, no Acórdão recorrido de 19 de Maio de 1993 parte-se do princípio, como dele resulta, que:

Não há, no caso vertente, caso omisso, tal como se exige no artigo 4.º do Código de Processo Penal;

O novo Código de Processo Penal não apresenta disposição semelhante à contida no § 2.º do artigo 101.º do diploma p. penal anterior, daí que a ratificação só será válida quando exercida em devido tempo, ou seja, dentro do prazo em que o ofendido pode efectivar o seu direito de denúncia;

Uma queixa apresentada por pessoa diferente daquele e não por si ratificada é como se não existisse, só passando a ter existência legal após a ratificação;

Se esta não é feita antes do decurso do prazo de caducidade estabelecido no n.º 1 do artigo 112.º do Código Penal, o direito de queixa extinguiu-se;

De outra forma, seria pôr de lado e esvaziar de sentido útil e verdadeiro o referenciado preceito do diploma penal.

V - É abundante a jurisprudência incidente sobre a questão de direito que nos preocupa, «efeito de ratificação nos casos em que se esgotou, já, aquele prazo fixado para o exercício de direito de queixa».

Entre outros, no sentido de que os efeitos se produzem não obstante o decurso de tal prazo (Acórdãos da Relação de Coimbra de 1 de Março de 1989, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 385, p. 623, e deste Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Junho de 1990, Boletim, cit., n.º 398, p. 424, e, em sentido contrário, Acórdãos da Relação de Évora de 26 de Janeiro de 1988, in Colectânea de Jurisprudência, ano XIII, vol. I, p. 277, da Relação de Lisboa de 25 de Janeiro de 1989, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 383, p. 600, e da Relação do Porto, de 23 de Janeiro de 1991, in Colectânea de Jurisprudência, ano XVI, vol. I, p. 264) (de fl. 43 a fl. 44 dos autos).

VI - Por sua vez, considerando a doutrina sobre o assunto, não deixará de referir-se ser na área civilista que o instituto da ratificação e seus efeitos têm merecido ampla abordagem (de entre outros, Cunha Gonçalves, in Tratado de Direito Civil, vol. IV, pp. 203-207 e 466-471, e Gazeta da Relação de Lisboa, n.os 23, de 29 de Agosto de 1909, e 51, de 5 de Dezembro de 1909; Barbosa de Magalhães, em artigo publicado na mesma Gazeta, n.º 24, de 7 de Outubro de 1909; Alberto dos Reis, em anotação ao artigo 41.º do Código de Processo Civil Anotado, vol. I; Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 104.º, e Rui Alarcão, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 138, n.º 36, sendo certo também terem tomado posição quanto ao exercício do direito de queixa Manzinni, in Dirritto Processuale Penale, e Paolo Cendon, anotação ao artigo 1399.º do Código Civil Italiano e Enciclopedia de Diritto, Giuffré, «Decadenza», na área civilista) (de fl. 45 a fl. 51 dos autos).

VII - Vejamos agora o estudo do problema e a posição a assumir:
Conforme acentuado já foi, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, de 13 de Maio de 1992, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 2 de Julho do mesmo ano, fixou a seguinte jurisprudência:

Os poderes especiais a que se refere o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal são poderes especiais especificados, e não simples poderes para a prática de uma classe ou categoria de actos.

Após a publicação de tal aresto registaram-se procedimentos divergentes por parte dos magistrados do Ministério Público relativamente às queixas apresentadas por mandatários não munidos de tais poderes, nalguns casos tendo sido ordenado o arquivamento dos respectivos inquéritos e, em outros, a notificação do ofendido para juntar a competente procuração e ratificar o processado.

Perante uma tal divergência de actuações emitiu o Exmo. Procurador-Geral da República a circular n.º 11/92, de 2 de Setembro, onde, além do mais, se diz expressamente:

A subsidiariedade das disposições de processo civil que se harmonizem com o processo penal justifica, no entanto, que na hipótese acima referida os Exmos. Magistrados, por aplicação do disposto no artigo 40.º do Código de Processo Civil, na falta, insuficiência ou irregularidade da procuração, marquem prazo dentro do qual deve ser suprida a falta ou corrigido o vício e ratificado o processado. A ratificação opera ex tunc, sendo os efeitos reportados à data da apresentação da queixa.

Acrescenta ainda a referenciada circular:
Os Exmos. Magistrados seguirão e sustentarão este entendimento quando, independentemente da fase processual, tenham de requerer, promover ou recorrer relativamente a decisão que o ponha em causa.

Conforme bem salienta o Exmo. Procurador-Geral-Adjunto nas suas doutas alegações (fl. 55 dos autos e fl. 56) embora a circular não pareça, numa leitura menos atenta, haver abordado a situação que ora se coloca, ou seja, «qual o procedimento a adoptar se ou quando houver entretanto decorrido o prazo fixado pelo artigo 112.º do Código Penal para o exercício do direito de queixa», a verdade é que o silêncio sobre o tema se afigura significativo no sentido de implicitamente se considerar inteiramente válida a retroacção da ratificação posterior ao decurso do referido prazo, já que, fazendo apelo ao plano processual e à jurisprudência dos interesses, por estar em causa a possibilidade de arquivamento de grande caudal de processos com enormes prejuízos daí decorrentes «para os lesados-ofendidos-queixosos», visou a Procuradoria-Geral da República sufragar um conceito amplo e não restritivo da ratificação, cuja possibilidade legal, em harmonia com as disposições combinadas dos artigos 40.º do Código de Processo Civil e 4.º do Código de Processo Penal, não poderá legitimamente contestar-se, daí a inevitável conclusão de o decurso do prazo estabelecido no artigo 112.º do Código Penal não constituir obstáculo ao efeito retroactivo da ratificação e consequente legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação.

VIII - No domínio do Código de Processo Penal de 1929, na segunda parte do § 2.º do seu artigo 101.º, estabelecia-se que a pessoa ofendida, em casos semelhantes ao agora em apreço, poderia validar o processo desde que declarasse, em qualquer estado da causa, que desejava se tomasse conhecimento do facto em juízo, sendo certo não conter o acual Código de Processo Penal disposição semelhante ou equivalente à que foi referenciada e constava do diploma p. penal anterior.

Em defesa da tese de que «o decurso do prazo de caducidade fixado pelo artigo 112.º do Código Penal constitui obstáculo inultrapassável ao exercício do direito de queixa» poderá dizer-se que, se o diploma p. penal não contém disposição semelhante à já referenciada do Código de Processo Penal de 1929, tal significará que o legislador não pretendeu consagrar a solução que anteriormente vigorava e que, não sendo o direito exercido por aquele que é o seu titular, tudo se passa como se não tivesse sido exercido, daí que, expirado o prazo fixado, o mesmo se extinguiu e a ratificação, ainda que opere retroactivamente, não possa operar após a ocorrência da caducidade sem que se olvide o carácter pessoalíssimo do exercício do direito de queixa, ter o legislador pretendido evitar a intromissão de pessoas alheias à ofensa no impulso processual e não ter querido deixar indefinidamente ao arbítrio do ofendido a iniciativa da perseguição penal.

IX - Afigura-se, porém, de seguir a solução contrária à acabada de apontar, dado que:

Se o legislador não incluiu, no ora vigente Código de Processo Penal, uma disposição semelhante à contida na segunda parte do § 2.º do artigo 101.º do Código de Processo Penal de 1929, tal circunstância não poderá afastar a conclusão de isso unicamente ser verificar por se ter entendido que seria de aplicar in casu o regime do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal;

O afirmar-se ter de considerar-se extinto o direito de queixa se a ratificação não tiver sido feita antes do decurso do prazo referido no artigo 112.º do Código Penal corresponderia ao entendimento de que «a ratificação» não tem efeito retroactivo em todos os casos, operando ex tunc;

O acto praticado por quem não possui os necessários poderes para o fazer não é um acto inválido, mas apenas inquinado de simples ineficácia, sanável através de «ratificação», daí que, não se tratando de «acto juridicamente inexistente» nem ferido de «nulidade absoluta», sendo ratificado pelo titular do direito ofendido, adquira toda a sua eficácia, uma vez ser aceite uniformemente que «a ratificação» opera retroactivamente ab initio, garantida assim ficando a legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.

X - Acresce que, após a prelecção do Acórdão deste Supremo Tribunal de 13 de Maio de 1992, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, já anteriormente referido, e que fixou jurisprudência no sentido de que «os poderes especiais a que se refere o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal são poderes especiais especificados, e não simples poderes para a prática de uma classe ou categoria de actos», teve lugar a publicação do Decreto-Lei 267/92, de 28 de Novembro, que muito vem contribuir para a resolução da questão controvertida, diploma que consubstancia uma medida de simplificação de procedimentos e se integra num objectivo mais vasto de revisão da problemática do reconhecimento de assinaturas em documentos destinados a uso oficial, objectivo já apontado no Decreto-Lei 383/90, de 10 de Dezembro.

No citado diploma (Decreto-Lei 267/92, de 28 de Novembro), o Governo, depois de ouvida a Ordem dos Advogados e ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição da República, decretou, em artigo único, no seu n.º 1, que «as procurações passadas a advogado para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário, ainda que com poderes especiais, não carecem de intervenção notarial, devendo o mandatário certificar-se da existência por parte do ou dos mandantes dos necessários poderes para o acto» e, no seu n.º 2, que «as procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de actos, qualquer que seja a sua natureza, para os quais são conferidos esses poderes».

As várias passagens do preâmbulo deste Decreto-Lei 267/92 são esclarecedoras da vontade do legislador, visando conferir especial relevo ao princípio da confiança e à franca autonomia dos mandatários na interpretação da extensão dos poderes que lhe são conferidos pelos mandantes, havendo, assim, que reconhecer ter ficado completamente esvaziada de conteúdo «a exigência constante do Acórdão obrigatório deste Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Maio de 1992» de que a procuração forense para a apresentação de queixa-crime tinha necessariamente de conferir poderes especiais especificados ao mandatário, daí a inevitável conclusão de que, a partir do início da vigência do decreto-lei referenciado, a jurisprudência obrigatória decorrente do aludido acórdão tenha deixado de poder ser invocada por, através das disposições do primeiro, se ter operado uma revogação implícita do comando do n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal.

Ao próprio intuito revogatório do preceito acabado de citar nos conduz a exegese cuidada do decreto-lei que tem vindo a ser considerado, sendo de ponderar que a sua aplicação imediata não é prejudicada pelo disposto nos artigos 12.º, n.º 2, do Código Civil, 2.º, n.º 4, do Código Penal e 5.º do Código de Processo Penal.

Na verdade:
Através da eliminação do reconhecimento notarial da assinatura do mandante nas procurações forenses desapareceu totalmente a intervenção de uma entidade que atestava, com força pública, não só a veracidade da assinatura do mandante como também a data em que o documento lhe tinha sido apresentado para aquele fim, tarefa de atestação que passou «de pleno» para o advogado.

Este novo regime, por um lado, dignifica grandemente tal profissão e, por outro, faculta o poder de ser ele, mandatário judicial, a determinar, pelo menos tendencialmente, a data do instrumento do mandato, uma vez que nada impede que ele, sem com isso proceder a qualquer falsificação, venha exibir outra procuração emitida em data anterior, na qual, com inteiro respeito pela realidade, se refira que a intenção do mandante, na altura, era a de conferir poderes especiais para a apresentação de queixa criminal.

Não restam, pois, quaisquer dúvidas de que o Decreto-Lei 267/92, de 28 de Novembro, esvaziou completamente de conteúdo, como já foi dito, a exigência constante do Acórdão obrigatório de 13 de Maio de 1992 deste Supremo Tribunal, de que na apresentação de procuração forense para queixa-crime deveriam constar poderes especiais especificados conferidos ao mandatário, o que necessariamente conduz a que desse facto se tenham de extrair as respectivas consequências que, seguidamente, se enumeram:

a) A partir do início da vigência do referido decreto-lei, de 28 de Novembro, a jurisprudência fixada pelo aludido acórdão obrigatório deixou de poder ser invocada por, através das disposições do primeiro, se ter operado uma revogação implícita do comando do segmento da norma contida no n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal;

b) Relativamente a situações anteriores à entrada em vigor do diploma, o conhecimento da verdadeira motivação do legislador conduz à necessidade de não aplicação da doutrina do mencionado acórdão obrigatório, mas aqui por aplicação do princípio consignado no artigo 12.º do Código Civil sobre a aplicação das leis civis no tempo;

c) A revogação implícita do preceito do n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal implica, por seu lado, que, presentemente, se deva entender que, para a apresentação de uma queixa-crime por intermédio de mandatário advogado, bastará uma simples procuração forense, sem necessidade de outorga de poderes especiais, contrariamente ao que ficou afirmado no Acórdão obrigatório de 13 de Maio de 1992, cuja doutrina caducou em virtude de uma específica alteração da lei.

XI - O problema da ratificação da queixa feita por mandatário sem poderes especiais:

Em resultado de tudo o que ficou explanado, perde o objecto a parte substancial do problema que foi invocado para fundamentar a apontada oposição de acórdãos - «o de se saber se, apresentada uma queixa por mandatário sem poderes especiais especificados, se tornava ou não necessária, nos crimes de natureza semipública ou de natureza particular, a ratificação da mesma, feita pelo lesado, dentro do prazo de seis meses a contar da data dos factos delituosos», uma vez que se deve entender ser desnecessária toda e qualquer ratificação de uma queixa válida e tempestivamente apresentada pelo mandatário com simples procuração forense.

Não deixará de acentuar-se, finalmente, que a problemática da apresentação de queixas-crime por mandatário (dotado ou não de poderes especiais) se tem colocado exclusivamente no campo do procedimento criminal, por crimes de emissão de cheques sem provisão ou de burla, ainda que, em teoria, ela se possa colocar relativamente a qualquer tipo de crimes, sendo certo que, relativamente aos crimes de emissão de cheques sem provisão poder-se-á sempre e enquanto não for fixada jurisprudência obrigatória suscitar a questão de se saber se, como já tem sido decidido por alguns tribunais de 2.ª instância, tais ilícitos criminais não passaram a revestir natureza pública depois da entrada em vigor do Decreto-Lei 454/91, de 28 de Dezembro, por força de uma certa equiparação desses crimes ao ilícito de burla, já que, no caso afirmativo, a discussão sobre a eventual e atempada ratificação de queixa nem sequer teria o mínimo sentido.

Conclusão:
1 - Em função de tudo o que foi dito, constata-se ter perdido o objecto «a parte substancial da questão que foi invocada para fundamentar a apontada oposição de acórdãos, dado que, volta a acentuar-se, se mostra desnecessária toda e qualquer ratificação de uma queixa válida «ab initio» e tempestivamente apresentada por mandatário judicial.

2 - Revogam o acórdão recorrido e determinam a repetição do julgamento na respectiva Relação, de harmonia com a decisão que seguidamente se passa a proferir e que estabelece, com carácter obrigatório para os tribunais judiciais, a seguinte jurisprudência:

Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 267/92, de 28 de Novembro, caducou a jurisprudência fixada pelo Acórdão obrigatório n.º 2/92, de 13 de Maio de 1992, deste Supremo Tribunal de Justiça, por aquele diploma ter revogado implicitamente o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal, motivo por que não existe qualquer necessidade de ratificação de queixa apresentada por mandatário judicial, munido de simples procuração forense, dentro do prazo fixado pelo n.º 1 do artigo 112.º do Código Penal.

Isento de tributação.
Lisboa, 27 de Setembro de 1994. - António Joaquim Coelho Ventura - Fernando Faria Lopes de Melo - José Sarmento da Silva Reis - Afonso de Azevedo Pinto e Melo - Bernardo Guimarães Fisher de Sá Nogueira - Humberto Carlos Amado Gomes - Vítor Manuel Ferreira da Rocha - António Alves Teixeira do Carmo - Manuel António Lopes Rocha - Sebastião Duarte Vasconcelos da Costa Pereira (vencido conforme declaração que se junta) - José António Lopes Cardoso Bastos (concordo com a posição do Exmo. Conselheiro Costa Pereira, ficando, portanto, vencido) - Pedro Elmano Figueira Marçal (vencido nos termos da declaração que junto).


Declaração de vencido
Votei vencido porque, com o máximo respeito pela posição defendida pelo Exmo. Relator, não posso concordar que tenha caducado a jurisprudência fixada pelo Acórdão obrigatório n.º 2/92, de 13 de Maio, deste Supremo Tribunal de Justiça, com a entrada em vigor do Decreto-Lei 267/92, de 28 de Novembro, já que este diploma não revogou implicitamente o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal.

Com efeito, o artigo único do mencionado diploma apenas se limitou a tornar despicienda a intervenção notarial, substituída agora pela certificação levada a efeito pelo próprio mandatário, mantendo-se intacto o regime anterior, com plena validade, por conseguinte, para o Acórdão obrigatório deste Supremo n.º 2/92, de 13 de Maio.

Mantém-se, assim, de pé toda a questão de fundo que deveria ter sido resolvida no acórdão e que consiste, essencialmente, na possibilidade ou não de aplicação do regime do artigo 40.º do Código de Processo Civil ao processo penal.

Todavia, o douto acórdão parece inclinar-se para tal possibilidade, quando, a dado passo, ali se escreve:

Se o legislador não incluiu no ora vigente Código de Processo Penal uma disposição semelhante à contida na segunda parte do § 2.º do artigo 101.º do Código de Processo Penal de 1929, tal circunstância não deverá afastar a conclusão de isso unicamente se verificar por se ter entendido que seria de aplicar in casu o regime do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal.

Também não podemos concordar por forma alguma com isto, pelo que passaremos a expor a nossa posição:

1.º Não existe no Código de Processo Penal qualquer lacuna na respectiva regulamentação que imponha, por qualquer indício normativo, o recurso à analogia para aplicação do regime constante do artigo 40.º do Código de Processo Civil;

2.º Mesmo que tal lacuna existisse, o que só por mera hipótese se admite, a sua integração analógica não pode fazer-se com base no artigo 4.º do Código de Processo Penal, desde que resulte uma diminuição dos direitos processuais do arguido;

3.º A hipótese de possibilidade de aplicação analógica do artigo 40.º do Código de Processo Civil ao processo penal, no tocante ao direito de queixa, podendo levar ao afastamento do artigo 112.º do Código Penal, implica a diminuição referida no ponto anterior quanto ao estatuto processual do arguido, pelo que é de rejeitar tal integração e aplicação subsidiária do preceito;

4.º Mesmo que fosse possível, que não é, a aplicação por analogia, do referenciado preceito do artigo 40.º do Código de Processo Civil, por se considerar não haver diminuição dos direitos processuais do arguido, nem mesmo assim se poderia admitir aquela aplicação, porquanto seria infringido o princípio da igualdade jurídica, essencial entre o caso regulado e o caso a regular, e o princípio da harmonização contemplado no artigo 4.º do Código de Processo Penal, por isso que existe uma diferença básica entre o mandato forense (de índole contratual) e o direito de queixa (condição de procedibilidade ou mero pressuposto processual);

5.º A aplicação do artigo 40.º do Código de Processo Civil ao processo penal em matéria de regulamentação do direito de quaixa, se fosse legalmente possível, conduziria ao afastamento do artigo 112.º do Código Penal, prorrogando indefinidamente a possibilidade do exercício do referido direito, contra o determinado numa lei substantiva, contrariando o princípio da subordinação da lei adjectiva à substantiva e subvertendo, desta forma, o princípio da hierarquia das leis;

6.º Nesta óptica, a ratificação da queixa terá sempre de ser feita no prazo de seis meses estipulado pelo artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal.

Em consequência de tudo quanto fica exposto, solucionaria o conflito de jurisprudência pela seguinte forma:

O artigo 40.º do Código de Processo Civil, cujo objecto é regular a falta, insuficiência e irregularidade do mandato, atenta fundamentalmente a diversidade de natureza dos institutos, não pode aplicar-se por analogia e subsidiariamente ao direito de queixa e sua ratificação em processo penal, que deverão ser exercidos exclusivamente no prazo determinado pelo artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal.

Sebastião Duarte Pestana de Vasconcelos da Costa Pereira.

Declaração de voto
Fiquei vencido em parte, por não aceitar que o Decreto-Lei 267/92 tenha revogado implicitamente o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal.

A procuração com poderes especiais, que este n.º 3 exige para um mandatário apresentar queixa (quando dela depende o procedimento criminal), não foi dispensada por aquele decreto-lei, que em ambos os números do seu artigo único prevê expressamente as procurações dessa natureza e, no n.º 2, até estabelece que «as procurações com poderes especiais devem especificar o tipo de actos, qualquer que seja a sua natureza, para os quais são conferidos esses poderes». No n.º 1 limita-se a dispensar a intervenção notarial em procurações passadas a advogado para o patrocínio judiciário, «ainda que com poderes especiais», devendo o mandatário certificar-se da existência dos poderes conferidos - só nesta medida se dispensando, pois, a verificação por notário.

Assim, parece-me que deverá fixar-se a seguinte jurisprudência obrigatória:
1.º Em crime semipúblico, cuja participação foi apresentada por mandatário judicial sem poderes especiais para o efeito, o suprimento do vício e a ratificação do processado podem efectuar-se com efeitos retrotraídos à data da denúncia, mesmo que já tenha decorrido o prazo de caducidade do direito de queixa previsto no artigo 112.º, n.º 1, do Código Penal;

2.º Com a entrada em vigor do Decreto-Lei 267/92, de 28 de Novembro, caducou a doutrina do Acórdão com força obrigatória deste Supremo Tribunal, de 13 de Maio de 1992, havendo que entender o n.º 3 do artigo 49.º do Código de Processo Penal de harmonia com o n.º 2 daquele decreto-lei e bastando, por isso, que a procuração se refira, em abstracto, à apresentação de queixas-crime.

27 de Setembro de 1994. - Pedro Elmano Figueira Marçal.

Anexos

  • Texto integral do documento: https://dre.tretas.org/pdfs/1994/11/04/plain-62667.pdf ;
  • Extracto do Diário da República original: https://dre.tretas.org/dre/62667.dre.pdf .

Ligações deste documento

Este documento liga aos seguintes documentos (apenas ligações para documentos da Serie I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1990-12-10 - Decreto-Lei 383/90 - Ministério da Justiça

    Procede à abolição do reconhecimento notarial das assinaturas dos médicos nos atestados comprovativos de doença.

  • Tem documento Em vigor 1991-12-28 - Decreto-Lei 454/91 - Ministério da Justiça

    Estabelece normas relativas ao uso do cheque e fixa o regime penal e contra-ordenacional do cheque.

  • Tem documento Em vigor 1992-11-28 - Decreto-Lei 267/92 - Ministério da Justiça

    Suprime a necessidade de intervenção notarial nas procurações passadas a advogados para a prática de actos que envolvam o exercício do patrocínio judiciário e regula o conteúdo das mesmas procurações quando atribuam poderes especiais.

Ligações para este documento

Este documento é referido nos seguintes documentos (apenas ligações a partir de documentos da Série I do DR):

  • Tem documento Em vigor 1997-01-10 - Acórdão 1/97 - Supremo Tribunal de Justiça

    Apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes especiais, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a acção penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito respectivo - mesmo que após o prazo previsto no artigo 112º, nº 1, do Código Penal de 1982 (aprovado pelo Decreto- Lei 400/82, de 23-Set). O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses, a contar da data em que o titular teve conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou d (...)

  • Tem documento Em vigor 2012-05-21 - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 4/2012 - Supremo Tribunal de Justiça

    Fixa a seguinte jurisprudência: o prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa, nos termos do nº 1 do artigo 115º do Código Penal, termina às 24 horas do dia que corresponda, no 6º mês seguinte, ao dia em que o titular desse direito tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores; mas, se nesse último mês não existir dia correspondente, o prazo finda às 24 horas do último dia desse mês. (Processo n.º 148/07.0TAMBR.P1-B.S1- 3.ª)

Aviso

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